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Primeiras frentes de conquista no sertão do Rio Grande (final do século XVII)

Fonte: Santos Júnior (2008)209.

208 Requerimento que – aos pés de Vossa Majestade humildemente prostrado – faz em seu nome e nome de todos

os oficiais e soldados do terço de Infantaria São Paulista de que é mestre de campo, Domingos Jorge Velho que atualmente serve à Vossa Majestade na guerra dos Palmares contra os negros rebelados nas capitanias de Pernambuco. Documento original no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU, Portugal, Lisboa) transcrito e publicado por Ernesto Ennes, pp. 316-344. In: GOMES, Flávio (org.). Mocambos dos Palmares: histórias e fontes (Séc. XVI-XIX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2010, p. 421-422.

209 SANTOS JÚNIOR, Valdeci dos. Os índios tapuias do Rio Grande do Norte: antepassados esquecidos.

A conquista do interior, não apenas da Capitania do Rio Grande, mas de maneira geral das Capitanias do Norte do Estado do Brasil, interferia na vida de vários setores da sociedade colonial. Primeiro, a própria Coroa que visava a expansão territorial a fim de avançar com a empresa pastoril; em seguida, as elites coloniais poderiam galgar novos títulos ou adquirir novas terras; já a Igreja, além das terras, alastraria o campo de alcance da catequese e os povos indígenas sofreriam as diversas tentativas de desterritorialização seguidos de suas ações de resistências e enfrentamentos. Esse interior a ser conquistado é o que recebe a denominação de sertão, possivelmente advinda do termo “desertão” ou “deserto”, no século XV, já que se tratava de um espaço ausente da presença da Coroa e de seus súditos210.

Gabriel Soares de Souza, sertanista do século XVI, deixou suas impressões a respeito das terras que correspondiam aos sertões e seus habitantes:

Este gentio senhoreia esta costa do Rio Grande até a Paraíba, onde se confinaram antigamente com outro gentio, que chamam os Caités, que são seus contrários, e se faziam cruelíssima guerra uns aos outros, e se fazem ainda agora pela banda do sertão onde agora vivem os Caités, e pela banda do Rio Grande são fronteiros dos Tapuias, que é gente mais doméstica, com que estão às vezes de guerra e às vezes de paz, e se ajudam uns aos outros contra os Tabajaras, que vizinham com eles pela parte do sertão211.

Observa-se, portanto, que o sertão era visto pela Coroa como um espaço amplo que se encontrava sem sua extensão de poder e leis, mas que poderia ser ultrapassado ao se romper a barreira formada pelos grupos indígenas, sempre associados aos selvagens e incivilizados. Foi apenas no século XVIII, próximo do fim da Guerra dos Bárbaros, que o sertão ganhou também o significado de estrada ou caminho de acesso. Nesse caso, seria a possibilidade de entrada a uma área ora desconhecida, mas possível de tornar-se produtiva após sua conquista212.

Em uma carta de Domingos Afonso Sertão para D. João de Lencastro, datada de janeiro de 1702, em que dava conta ao governador-geral do Brasil dos caminhos e povoações que distavam da Bahia até o último povoado da parte Norte, ele comentou acerca de uma estrada que partia de uma povoação e se conseguiria alcançar o Ceará, Rio Grande, Paraíba e Pernambuco. A partir dessa estrada foi possível “ir socorros sempre que fosse preciso, em carros e cavalos, porque por todas aquelas paragens havia muitos currais de gados e farinhas para

210 Cf.: LOPES, Fátima Martins. Missões religiosas – índios, colonos e missionários na colonização do Rio Grande

do Norte. 1999. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

211 SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Recife: Ed. Massangana. 2000. p. 16-17. 212 Cf.: SILVA, Op. Cit.

sustento desses comboios213”. Isso estabeleceu, assim, a relação que se existia para auxiliar os comboios que estavam presentes em outras regiões, sempre que necessário, e principalmente no caso de ataques dos índios já que um outro caminho que existia tivera sido destruído pelo gentio bravo.

Nesse sentido, dialoga-se com Domingos Loreto Couto (1700-1757), que foi um cronista e religioso da Ordem de São Bento que também deixou suas impressões acerca dos sertões após a Guerra dos Bárbaros:

Livres os moradores destes certões das hostilidades, que experimentavão no furor dos Indios, se vião combatidos de grande chusma de gente atrevida, e dissoluta, que procurando naquellas terras huã vida livre, e licenciosa, cometião roubos, homicidios, e outros enormes peccados, porque não havia Tribunal, onde pedissem satisfação dos agravos, nem Justiça que castigasse os seus insultos. O comercio era a medida de suas vontades, e dividas só as paga quem queria, e muitas vezes o pagamento era huã balla, porque matar e ferir mais que culpa, era bizarria.214

Entendendo os sertões como fronteiras, percebe-se que os processos de transformações territoriais no que hoje é o Brasil, e mais especificamente na Capitania do Rio Grande, estão relacionadas com a efetiva expansão dos domínios do império ultramarino português. É nesse contexto de avanços dos colonizadores pela colônia que há choques entre os grupos sociais, tendo em vista que cada grupo vivencia sua territorialidade ao seu próprio modo, configurando o que Paul Little chamou de “conduta territorial”215.

Em uma consulta do Conselho Ultramarino sobre a nomeação de alguém para uma vaga na companhia de Infantaria, no lugar de Luís da Silveira Pimentel, falecido após ter servido vinte anos como soldado, alferes, ajudante e capitão de Infantaria do Terço dos Paulistas, encontra-se a folha de serviços de Luís Pimentel na qual cita sua atuação na Guerra dos Bárbaros e comenta justamente das entradas feitas ao sertão. Para o socorro da Capitania do Rio Grande, portanto, diz-se que se penetrou “cem léguas do sertão, sendo mandado por cabo de 250 homens das Guaraíras a buscar o inimigo no meio da capitania216”. A missão

213 Carta de Domingos Afonso Certão para D. João de Lencastre, governador e capitão-geral do Brasil, dando-lhe

conta, a seu pedido, dos caminhos, povoações e distâncias da Baia ao último povoado para a parte do Norte [...]. In: RAU, Op. Cit., p. 34-36.

214 COUTO, Domingos Loreto. Desagravos do Brasil e Glória de Pernambuco. In: Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. vols. 24 e 25. Rio de Janeiro: Oficina Tipográfica da Biblioteca Nacional, 1904, p. 33. Disponível em: <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_obrasgerais/drg177349/drg177349.pdf>. Acesso em 02 de junho de 2019.

215 LITTLE, Op. Cit.

216 CONSULTA do Conselho Ultramarino sobre a nomeação do terço do mestre de campo, Manoel Lopes para a

companhia de Infantaria, posto vago quando do falecimento de Luís V. S. da Costa [1697]. DOCUMENTO original no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU, Lisboa, Portugal) transcrito e publicado por Ernesto Ennes, p.

religiosa de Guaraíras era localizada no litoral da Capitania do Rio Grande, e, nessa ocasião, propôs-se o confronto entre os 250 índios dessa localidade e os índios sitiados no “meio da capitania”, possivelmente referindo-se aos grupos étnicos presentes na passagem para o sertão. Nesse sentido, compreende-se a resistência adaptativa indígena também presente na aliança estabelecida com os “250 homens das Guaraíras” e os portugueses, que para além de se manterem circunscritos pela missão religiosa, lutaram a favor da Coroa portuguesa e contra os índios, como um claro exemplo de negociação e agenciamento.

Durante a Guerra dos Bárbaros, fica evidente esse choque entre diferentes grupos sociais e o estabelecimento de simultâneos e sobrepostos processos de territorialização e desterritorialização. Assim, em contextos de conflitos entre sociedades distintas no momento de disputas pela posse das terras é gerada a desterritorialização dos grupos indígenas, até então presentes no território. Através da invasão às terras desses grupos, a defesa pelo território pareceu ser um elemento recorrente entre eles, gerando uma nova conduta territorial baseada na proteção ou na territorialização de outro espaço.

3.3 – Simultâneos e sobrepostos processos de territorialização e desterritorialização no sertão do Açu

Ao detalhar o conflito que teve como um dos palcos principais o sertão do Açu, Luís da Câmara Cascudo, apesar de inicialmente atribuir a causa dele aos índios e a sua ferocidade comentando acerca dos assaltos cometidos aos currais de gado e aos moradores daquela área, munidos de mosquetes e armas tradicionais, faz um adendo ao tratar dos interesses dos conquistadores. Cascudo ressalta que pelo fato de as cartas régias proibirem a escravidão deliberada dos índios, os conquistadores ludibriavam a lei com “fórmulas jurídicas e capciosas”217, que era o apresamento de índios em guerras que se diziam ser justas para consequente escravização. Assim, na intenção de remediarem a escassez de mão de obra, “excitavam, riscavam, estimulavam o indígena até que perdesse a calma e atacasse”218. Embora Cascudo tenha pontuado esse caráter da guerra justa e da artimanha dos colonos, ele terminou por se focar apenas na questão da necessidade da mão de obra quando, na verdade, o interesse

276. In: GOMES, Flávio (org.). Mocambos dos Palmares: histórias e fontes (Séc. XVI-XIX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2010, p. 390.

217 CASCUDO, Op. Cit., p. 79. 218 Idem.

na tomada de terras dos índios também representou um fator decisivo para a incidência da guerra por se pretender desenvolver o criatório de fazenda de gado e o complexo pastoril.

O início dos conflitos no sertão do Açu, por volta de fevereiro de 1687, foi marcado quando os índios Janduís teriam matado 46 vaqueiros. No entanto, um parente desses índios teria sido assassinado por soldados, anteriormente. Se comparados, o número de apenas um índio morto frente aos 46 vaqueiros, pode-se parecer desproporcional e impressionante, por isso precisaria se levar em consideração que nesse caso, talvez não se tratasse de um membro qualquer do grupo indígena que tivera sido assassinado, mas possivelmente uma liderança daquele povo. Contudo, por motivo de ausência de mais detalhes oriundos da fonte, não se pode afirmar categoricamente quem de fato era esse parente dos Janduís, o que se sabe é que a retaliação da Coroa portuguesa diante do ocorrido já estava confabulada na Consulta do Conselho Ultramarino. Sugeriu-se por parte do Conselho que, caso não se destruísse totalmente o índio na guerra ou os reduzisse à paz, eles continuariam com repetidos assaltos. Dito de outro modo, as alternativas propostas para os índios limitavam-se entre a guerra ou a redução.219

Nessa consulta, o caráter da guerra, além de corresponder com o esperado para uma guerra justa com relação ao apresamento e cativeiro, determinou também a destruição total dos índios ditos tapuias. Pelas décadas seguintes, continuou-se a combater os índios, fosse por meio da possibilidade legítima de uma guerra justa ou pela sua redução. Tendo em vista as amplas discussões que recentemente foram desenvolvidas acerca da Guerra no Açu, será privilegiado, neste momento, um diálogo entre os documentos analisados e uma bibliografia atual que evidencie possíveis estratégias de que os índios valeram-se direta ou indiretamente da guerra justa. Destarte, a guerra do Açu e Piranhas contra os índios tapuias contou com gente experiente e versada na espécie de guerra regular220, segundo o procurador dos Paulistas Bento Sorriel Camiglio221.

219 Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. Pedro II, sobre carta do capitão-mor do Rio Grande do Norte,

Pascoal Gonçalves de Carvalho, acerca das hostilidades que os índios tapuias Janduí faziam na capitania. AHU- RN, Papéis avulsos, Caixa 1, Doc. 27 (1688, Fevereiro, 6, Lisboa).

220 Cf. ARAÚJO, Maiara Silva. Tropas pagas e ordenanças: perfil social dos militares da capitania do Rio Grande

(séculos XVII-XIX). 2019. 235f. Dissertação (Mestrado em História) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2019.

221 Condições que os paulistas do terço de Infantaria de que é mestre de campo Domingos Jorge Velho pede que

se lhe concedam para poder continuar nos Palmares [1694]. Documento original no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU, Lisboa, Portugal) transcrito e publicado por Ernesto Ennes, p. 212-221. In: GOMES, Flávio (org.). Mocambos dos Palmares: histórias e fontes (Séc. XVI-XIX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2010. p. 332-337.

Dentre as folhas de serviços de pessoas que se candidataram ao posto de capitão de infantaria na praça de Pernambuco222, em maio de 1698, destaca-se a de Manoel da Rocha Lima em meio à consulta do Conselho Ultramarino que, além de ter servido como soldado na Guerra dos Palmares, teria servido também no Açu. Ao discorrer sobre sua atuação e a de mais de 200 homens, em 1689, por terem sido mandados pelo governador de Pernambuco, Antônio Luis Gonçalves, comentava-se que a perseguição contra os índios Janduís começou na Ribeira do Açu, avançando pela Ribeira do Piató, travessia do rio Paneminha, Panema Grande, Ribeira de Mossoró até à Lagoa do Apodi, no decurso de cinco meses, trajeto destacado em vermelho no Mapa 4. Segundo o relato, o resultado dessa empreitada foi a morte de quatros índios, além do principal Jacaré-açu, e o aprisionamento de suas mulheres e filhos.

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