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As formas do espírito: espiritualidade, teologia e arte

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Academic year: 2021

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Espiritualidade, teologia e arte

ANTÓNIO MANUEL ALVES MARTINS*

«E o Espírito Santo desceu sobre Jesus em forma de pomba» (Lc 3,22). Este texto do evangelho de Lucas oferece a inspiração ao título do presente trabalho. Partimos do pressuposto de que toda a arte é uma «encarnação» e um «dar forma» material às profundas inquietações do espírito humano. Procuraremos sondar como nas Escrituras do Antigo Testamento a Palavra revelada apela a uma imaginação e visibilização, apesar da proibição de fazer imagens esculpi-das. O objectivo do nosso trabalho consistirá na indagação da fundamentação teológica e espiritual da arte cristã, que encontra em Cristo, palavra e imagem de Deus, o seu fundamento. Referiremos ainda a relação intrínseca e comple-mentar entre a palavra e a imagem, entre a Escritura e a arte cristã. O texto bíblico inspira a arte e esta revela, caquecticamente, os acontecimentos narrados no texto. A arte cristã, particularmente a arte barroca, é o triunfo da imagem, do corpo e da visão, suportado pela palavra da Escritura e por um misticismo contemplativo, dando origem a uma prodigiosa fantasia criativa.

1. Espiritualidade e arte

A arte é o resultado da aliança entre a matéria e o espírito. A criação artística é sempre o triunfo da ordem (da forma) sobre o caos da matéria (o informe); um resgate da matéria em sua finitude pelo espírito que nela se materializa e

* Faculdade de Teologia – Universidade Católica Portuguesa.

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se visibiliza. Parto doloroso, numa luta corpo-a-corpo, de vida ou de morte, do artista com a matéria, modelando-a com as suas mãos e o seu espírito1. A

dimensão espiritual da arte é imanente à própria criação artística, prévia a toda a inspiração religiosa. A dimensão religiosa ou confessional da arte é um plus de espiritualidade, uma interpretação concreta, no contexto de uma tradição religiosa, daquilo que é o movimento próprio da arte, vencer a resistência da matéria, eternizar o que é efémero, dar dimensão de infinito ao finito.

Arte é uma expressão do desejo de beleza e de amor que, silenciosamente, palpita no coração de cada homem, do qual o artista, por vocação e missão, é intérprete e tradutor. Em si mesma a arte é um acontecimento espiritual, en-quanto expressão da interioridade do homem, das suas alegrias e dores, da sua inquietação e júbilo, da sua fome de beleza e da mortal miséria da sua condição. «A arte é verdadeira na medida em que interpreta as dimensões simbólicas da vida, as faz vibrar, as aprofunda»2. O artista revela a sua espiritualidade nas

obras de arte que cria. Elas podem contar a história da sua existência; são como que formas e encarnações materiais que foi tomando a sua aventura espiritual. Afirma, a este propósito, o Papa João Paulo II, em sua Carta aos Artistas:

De facto, o artista quando plasma uma obra, não somente chama à vida a sua obra mas por meio dela, de certo modo, revela também a sua própria personalidade. Na arte ele encontra uma dimensão nova e um extraordinário canal de expressão do seu crescimento espiritual. A história da arte, por isso, não é somente a história das obras, mas também dos homens3.

Consequentemente podemos também afirmar que a história da arte de um povo ou de uma cultura é a história da sua própria aventura espiritual e o modo como esta se materializa esteticamente no tempo.

Beleza e bondade coincidem em Deus; e a sua obra criada é, simultane-amente, boa e bela. Este é um dado que atravessa toda a Escritura. Depois de ter criado o ser humano (homem e mulher), Deus, contemplando em regozijo, «viu tudo o que tinha feito; e era muito bom (belo)» (Gn 1,31). Bom e belo é o que agrada a Deus, o que corresponde à sua vontade; é tudo o que une e cria harmonia. «As coisas podem ser boas e úteis, mas a dimensão do belo, a dimensão da estética, é aquela que tudo une, que mantém em conjunto; é a componente simbólica que tudo unifica»4. Porque beleza e bondade, a partir de

Deus, identificam-se, podemos afirmar que toda a arte, enquanto busca e

expres-1 Cf. P.-M. Leonard, «Art et spiritualité», in Dictionnaire de Spiritualité, I, Paris 1937, 900-906. 2 C. M. Martini, La bellezza che salva. Discorsi sull’arte, Milão 2002, 73.

3 Giovanni Paolo II, Lettera agli artisti, Città del Vaticano 1999, nº 2, 8. 4 C. M. Martini, La bellezza che salva. Discorsi sull’arte, 73. Cf. Ibidem, 80.

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são de beleza, é um acto de bondade. A arte resulta de um olhar benevolente, compassivo, pleno de esperança sobre a condição humana e o mundo. O amor torna cada pessoa artista da sua própria vida e da vida dos seus semelhantes. Citamos de novo o papa João Paulo II: «A cada pessoa é confiada a tarefa de ser artista da própria vida: num certo sentido, deve fazer dela uma obra de arte, uma obra-prima»5. É na bondade como expressão da beleza que radica a

profunda espiritualidade da arte.

Enquanto procura do belo, a arte é, por sua natureza, um apelo ao mistério, um assomar-se sobre o abismo de beleza que é o próprio Deus. Toda a procura de beleza é uma procura de Deus, implícita ou explicitamente, consciente ou não. Mesmo no seu protesto iconoclasta, na sua intencional deformidade, na recusa de uma beleza fácil, como são algumas expressões da arte contempo-rânea, está latente (ou violentamente manifesto) um grito de inquietação, que é profundamente espiritual. O máximo do belo e do bom é o próprio Deus, percepção antiga que teve já Platão e depois foi acolhida pelo cristianismo. O mundo, os homens e as coisas não são sombras de uma realidade espiritual, a verdadeira, como veiculava o platonismo. Experimentando uma autêntica síntese dos contrários, o cristianismo, ao acreditar em Cristo como verdadeiro Deus e verdadeiro homem, funda uma aliança entre espírito e matéria.

Na relação entre a espiritualidade da arte e a religião, afirmamos com o teólogo e bispo inglês Richard Harries:

A verdadeira arte tem sempre uma dimensão espiritual. Mas se a religião tratasse de convertê-la em propaganda, o espiritual poderia desaparecer. As obras de arte não podem evitar testemunhar, por sua verdade e beleza, que a sua fonte e origem é o próprio Deus. Mas a religião, sempre em perigo de corromper e de ser corrompida, não tem esta arte à sua disposição para os seus próprios fins. Contudo, pode reconhecer e louvar o artista e o Deus do artista, e, onde for apropriado, pode procurar expressar as suas mais pro-fundas verdades em obras de verdade e beleza6.

Toda a arte acontece num dinamismo interior doloroso de luta com a matéria, suportada por um dom, uma força interior mais forte do que as pró-prias forças do artista, a que chamamos inspiração7. Toda a inspiração artística

5 Giovanni Paolo II, Lettera agli artisti, nº 2, 8.

6 R. Harries, El arte y la belleza de Dios, Madrid 1995, 126.

7 Palavra ambígua, com vários significados. Remete, em sua etimologia, para espírito/spiritus,

para a respiração, o hálito que suporta a vida e a oxigena, no fluxo de receber o ar (inspiração) e de devolvê-lo (expiração). «Inspiração» tem um sentido técnico teológico, pois diz a acção do Espírito Santo nos Escritores Sagrados do Antigo e do Novo Testamento para que, através da palavra humana,

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participa, de certo modo, do hálito (Espírito) criador de Deus que, no princípio, pairava sobre o informe da terra (cf. Gn 1,1)) e pela palavra dá ordem e forma, inteligibilidade e vida ao universo, criando e nomeando cada coisa. A inspiração é esse dom espiritual que torna o artista um criador. O próprio Espírito Santo, o inspirador de toda a criação, torna possível a espiritualidade da arte, como serviço à glória e beleza de Deus8.

1.1. Da palavra à imagem: Um dinamismo da própria Escritura Ao contrário das culturas e das civilizações vizinhas (egípcia, persa, gre-ga…), marcadas pela expressividade da imagem, a cultura e a religião judaicas privilegiam a palavra e a audição9. Todo o Antigo Testamento está atravessado

por um contínuo apelo à escuta da palavra de Deus: «Escuta, ó Israel» (Dt 5,2); «Ouve, meu povo» (Sl 81,9). Os Salmos, orações do povo de Israel em forma de poesia, são um permanente convite a escutar a voz do Senhor, no aqui e no agora da vida: «Oxalá ouvísseis hoje a voz do Senhor» (Sl 95,7).

1.2. Do ouvir ao ver

Deus revela-se ao homem comunicando através da sua própria linguagem humana, com o recurso literário a símbolos, imagens e palavras. O texto bíblico, do Génesis ao Apocalipse, mobiliza o ouvinte e o leitor para uma visualização da palavra. As narrativas simbólicas das origens, em sua descrição poética, apelam a uma imaginação interior: «Ihaveh Deus modelou o homem do pó da terra

fosse revelada a Palavra de Deus: «As coisas reveladas por Deus, contidas e manifestas na Sagrada Escritura, foram escritas por inspiração do Espírito Santo» (Constituição dogmática Dei Verbum, 11, in Concílio ecuménico Vaticano II, Documentos conciliares e pontifícios, Braga 198710, 227). Se

o Espírito Santo inspira os autores do texto bíblico, por analogia também poderemos dizer que o mesmo Espírito «inspira» também a sua leitura: «… a Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com o mesmo espírito com que foi escrita» (Constituição dogmática Dei Verbum, 12, in Ibidem, 228). Ainda em sentido analógico, podemos dizer que a inspiração criadora do artista é, ela própria, motivada pelo Espírito Santo. Sobre a inspiração artística, refere-se ainda o Concílio Vaticano II: «Recordem-se constantemente os artistas que desejam, levados pela sua inspiração, servir a glória de Deus na Santa Igreja, de que a sua actividade é, de algum modo, uma sagrada imitação do Deus criador» (cf. Gn 1,1): Constituição Sacrosanctum Concilium, 127, in Concílio ecuménico Vaticano II, Documentos conciliares e pontifícios, 40.

8 Cf. H. U. Von Bakthasar, «Arte cristiano y predicación», in J. Feiner – M. Löhrer (ed.), Mysterium salutis I, Madrid 19814, 780.

9 Cf. H. U. Von Balthasar, «Revelación y belleza», in Verbum caro. Ensaios teológicos I, Madrid

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com a argila do solo, insuflou-lhe em suas narinas um hálito de vida e o homem tornou-se um ser vivente. Ihaveh Deus plantou um jardim em Eden, e aí colocou o homem que modelara. Ihaveh Deus fez crescer do solo toda a espécie de árvores formosas de ver e boas de comer» (Gn 2,7-9). A própria dinâmica narrativa do texto mobiliza os sentidos do leitor, particularmente a visão e o paladar. Sub-jacente ao texto está uma antropologia do concreto e do sensorial, que envolve o leitor por inteiro, convocado a experimentar, ao menos na imaginação, o que a poética literária sugere. A visão não é apenas mobilizada, é mesmo atraída a ver, porque as árvores, em sua formosura, convidam a ser vistas.

Por isso não é de espantar quando, na progressividade da revelação e da redacção do texto bíblico, se passa de uma visualização meramente sugestiva a uma clara explicitação10. Nos oráculos proféticos ouvir-escutar e ver fazem

parte da mesma e única comunicação de Deus. O início do livro de Isaías, texto do século VIII-VII a. C., abre com a referência à visão do profeta: «Visão que teve Isaías, filho de Amós» (Is 1,1). A profecia brota de uma experiência pessoal de encontro com Deus, que o texto traduz por «ver»: «No ano em que faleceu Ozias, vi o Senhor sentado sobre um trono alto e elevado. A cauda do seu manto enchia o santuário» (Is 6,1). Na sequência do mesmo livro, Deus apela o povo não só a ouvir mas também a ver: «Ouvi-me, vós, que estais à procura de justiça. Vós que buscais a Ihaveh. Olhai para a rocha da qual fostes talhados, para a cova de que fostes extraídos» (Is 51,1). No Livro do profeta Jeremias, texto do século VII-VI a. C., podemos ler: «Olhai, constatai, procurai nas praças» (Jer 5,1).

A complementaridade entre palavra e imagem, escuta e visão, está, parti-cularmente, presente na literatura apocalíptica11, tanto do Antigo como do Novo

Testamentos. Podemos ler no Livro de Daniel: «Levantei os olhos para observar. E vi: Um homem revestido de linho, com os rins cingidos de ouro puro, o seu corpo tinha a aparência do crisólito e o seu rosto o aspecto do relâmpago, os seus olhos como lâmpadas de fogo» (Dn 10,4-6). Afirma, por seu lado, o último livro da Novo Testamento, o Apocalipse: «Vi então um céu novo e uma nova terra – pois o primeiro céu e a primeira terra foram-se, e o mar já não existe. Vi também descer do céu, de junto de Deus, a cidade santa, a Jerusalém nova,

10 Cf. J. Duplacy – J. Guillet, «Ver», in X.-L. Dufour (ed.), Vocabulário de teologia bíblica,

Pretópolis 19874, 1053-1057.

11 Do grego «apokalypsis», que significa revelação. Literatura complexa, cheia de imagens e

símbolos, procurando fortalecer a fé do povo de Israel em períodos de crise e de perseguição pelas potências que ocupavam o território (ptolomeus, seleucidas e romanos). A literatura apocalíptica apresenta um julgamento radical da história e a salvação como vinda directamente de Deus. Foi particularmente desenvolvida no período intertestamentário, entre os séculos II a. C. e o I: cf. W. Schmithalis, L’apocalitica. Introduzione e interpretazione, Bréscia 1976, 115-136.

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pronta como esposa que se enfeitou para seu marido» (Ap 21,1-2)12. Se a palavra

tende a demonstrar, a imagem procura mostrar. Na Bíblia, palavra e imagem, audição e visão dialogam e apelam-se mutuamente.

Toda a tradição hebraica é uma luta contra os ídolos, as falsas imagens de um deus mero produto da imaginação e das representações humanas. O ani-conismo13 do povo de Israel é, particularmente, intensificado e teologicamente

fundado a partir do século VI a. C., com a chamada tradição deuteronomista14.

É no contexto deste movimento religioso de afirmação da radicalidade monote-ísta que aparece uma violenta repulsa por toda a representação iconográfica do Deus único. Precisamente pela sua inominável e inabarcável transcendência que nenhuma representação humana, em palavras ou imagens, pode conter: «Não farás para ti imagem esculpida de nada que se assemelhe ao que existe lá em cima, nos céus, ou em baixo na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra» (Ex 20,4; Lv 19,4; Dt 4,15-20). O Deus de Israel não admite rival; a fabricação de imagens aparecia como algo de blasfemo, uma negação do Deus único; Deus não se deixa esculpir, modelar e manipular pelas mãos e pela criatividade humanas. Ele é o irrepresentável, o que não tem modelo, porque toda a imagem resulta em ídolo de Deus. A interdição da imagem de Deus diz a sua irredutibilidade a tudo o que é humano e material. Deus é acreditado pela sua palavra, pelas acções da sua potência e não pela sua aparição visual em imagem15.

1.3. Jesus Cristo, Palavra e Imagem

Palavra e imagem constituem uma única realidade em Jesus Cristo, a Palavra de Deus feita carne16. O Deus invisível, que no Antigo Testamento se

subtrai a toda a possibilidade de visão, torna-se visível, audível e tangível em

12 A forma verbal «vi»/eidon do verbo horáô significa ver, olhar, observar, ter uma visão, mas

também sentir e experimentar: cf. C. Rusconi, Dicionário do Grego no Novo Testamento, S. Paulo 20052, 336.

13 Neologismo a partir do grego, formado pelo prefixo «an», que significa negação, e pela

palavra «iconismo», derivada de «eikon»-imagem. Significa negação das imagens. Sobre a tensão entre palavra e imagem no povo de Israel do AT: cf. J. Trebolle, Imagen y Palabra de un silencio. La

Biblia en su mundo, Madrid 2008.

14 Movimento de reforma religiosa e política centrado numa vivência mais interior da Lei

(Torah) e na fidelidade à aliança para com Deus. Este movimento, contemporâneo do período do exílio, deu origem a um texto (a chamada tradição deuteronomista) disperso por vários livros do Antigo Testamento, um deles chama-se mesmo «Deuteronómio».

15 Cf. F. Boespflug, Dieu et les images. Une histoire de l’Éternel dans l’art, Paris 2008, 34-38. K.

Van Der Toorn (ed.), The Image and the Book. Iconic Cults, Aniconism and the Rise of Book Religion in

Israel and the Ancient Near East, Louvain 1998.

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seu próprio Filho feito homem: «Ninguém jamais viu a Deus, o Filho único que está voltado para o seio do Pai, este o deu a conhecer» (Jo 1,18). A Palavra eterna, que é o próprio Filho todo voltado para o Pai (Jo 1,1), o lógos pelo qual tudo foi criado, encarna, torna-se visível e audível em condição humana. Deus, agora, revela-se falando e deixando-se ver na pessoa de seu Filho, simultane-amente Palavra e Imagem do Pai: «O Verbo fez-se carne e habitou entre nós, e nós vimos a sua glória» (Jo 1,14). Em Jesus Cristo, o homem pode contemplar/ ver a glória de Deus.

Este encontro, em Cristo, entre a palavra e a imagem, entre a audição e a visão, é expresso de uma forma lapidar no hino aos Colossenses: «Ele é a imagem do Deus invisível» (Cl 1,15). A recusa veterotestamentária de qualquer representação de Deus deixa o caminho aberto à futura encarnação. Cristo é a verdadeira imagem de Deus, enquanto Palavra feita carne. Deus aproxima-se dos homens, humanando-se, tomando a «forma de servo», «figura humana» (Fl 2,7), no esvaziamento de si mesmo. Em Cristo há uma inversão e subversão de paradigmas: o criador torna-se criatura, o formado forma, o artista opera; Deus torna-se humano, a palavra é imagem. Deus compromete-se inteiramente com o que é humano entranhando-se Ele mesmo nas vísceras da condição humana. Do-ravante não há nenhum acesso a Deus que não passe pela humanidade de Cristo e, consequentemente, por tudo o que é humano: pela experiência dos sentidos, dos afectos, do corpo, do encontro e da relação. O que os sentidos podem ver, apalpar e contemplar é também verbal. A Palavra de Deus toma forma e visibilidade em Jesus Cristo. Ele próprio é palavra e imagem, a forma visível de Deus17. Por isso

mesmo pode afirmar a Primeira Epístola de S. João: «O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos, e o que as nossas mãos apalparam do Verbo da vida (…), o que vimos e ouvimos vo-lo anunciamos» (1 Jo 1,1-2). Através do visível do humano, revela-se o invisível de Deus. Ver o Filho significa ver o próprio Pai (cf. Jo 14,9)18.

A tensão entranhada na tradição judaica encontra na encarnação do Filho de Deus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, a sua solução. Chegamos, em Cristo, a uma correspondência perfeita entre a palavra e a imagem, entre a audição e a visão. Por isso mesmo toda a arte cristã apresenta uma analogia com o mistério do Verbo encarnado; ou seja, é visibilização de uma realidade invisível que transcende a própria representação mas que nela se deixa assomar, vislumbrar e intuir. O acontecimento da encarnação da Palavra de Deus, que se torna imagem humana em Jesus Cristo constitui o fundamento teológico e espiritual da arte cristã.

17 Cf. H. U. Von Balthasar, «Arte cristiano y predicación», 774-781.

18 S. Irenaei, Adversus Haereses IV, 6: PG 7, 989c: «O Pai é o que há de invisível no Filho, o

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2. Sentido teológico e espiritual da arte cristã: Uma cristologia da imagem Não foi nem nunca será totalmente pacífica, na vivência da espirituali-dade cristã e nas suas múltiplas actualizações ao longo dos tempos e luga-res, a relação entre a fé e sua representação iconográfica19. Podemos mesmo

afirmar que no cristianismo permanece um latente potencial iconoclasta, de recusa das imagens enquanto empobrecimento da palavra e desvirtuamen-to da capacidade contemplativa da escuta. As grandes reformas ao longo da tradição cristã comportaram sempre uma contenção iconográfica, uma decidida e intencional limitação do visual e das imagens (a reforma cister-ciense no século XII; a reforma protestante do século XVI em sua vertente calvinista, ou a própria reforma contemporânea da Igreja Católica após o Concílio Vaticano II…). Uma experiência e uma espiritualidade cristãs que dão maior centralidade à meditação da Palavra, ao silêncio contemplativo, à inteligência da fé, terão sempre tendência para colocar o culto das imagens em segundo plano. Por seu lado, uma vivência espiritual mais próxima do concreto, mais emotiva do que racional, mais popular e menos erudita, defenderá e promoverá a representação iconográfica e a expressão artística visual. Palavra e imagem, em Cristo harmonicamente identificadas, têm, ao longo da tradição cristã, coabitado de uma forma tensa, que tem sido também a base de uma fecunda criatividade.

2.1. Os tímidos começos da arte cristã

A arte cristã surgiu timidamente, no silêncio das catacumbas, através de representações figurativas e simbólicas da ressurreição e do triunfo da vida sobre a morte (as figuras toscas do bom-pastor, do orante, da pomba, do pão e dos peixes…). São discretas figurações, mais alusões ao mistério de Cristo e à sua promessa de salvação e de vida eterna do que pormenorizadas descrições naturalistas de acontecimentos bíblicos. A partir do contexto destas primeiras expressões artísticas cristãs (as catacumbas enquanto lugar onde colocar os mortos por inumação e, por isso, lugares onde se afirma a esperança da res-surreição), podemos afirmar que a arte é sempre um grito de vida, um canto à força criadora que vence o caos e a morte, que ordena a matéria bruta. Esta timidez em relação à visibilidade artística, precisamente no mundo cultural greco-romano que tanto valorizava o espectáculo da imagem e da representação

19 Cf. F. Boespflug, «Images», in J.-Y. Lacoste (ed.), Dictionnaire critique de théologie, Paris 1998,

553-557; «Culte des Images», in Dictionnaire de Spiritualité VII, Paris 1971, 1401-1516; P. Mariotti, «Imagen», in S. de Fiores (ed.), Nuevo Diccionario de Espiritualidad, Madrid 19832, 698-706.

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artística, está associada ao perigo de contaminação de paganismo e de idolatria, que as estátuas dos deuses veiculavam20.

O culto das imagens estava associado à idolatria pagã ou ao sincretismo religioso dos movimentos cristãos heterodoxos e gnósticos. Nos princípios do século II, Ireneu de Lião refere que «os gnósticos têm imagens pintadas de Cristo que eles dizem feitas por Pilatos; eles coroam estas imagens e colocam-nas com as dos filósofos Pitágoras, Platão, Aristóteles e outros»21. Esta reticência, ou

mesmo hostilidade às imagens nos inícios do cristianismo, além da precaução contra o perigo de idolatria, tem também uma profunda razão teológica: só o homem, particularmente Jesus Cristo, é imagem autêntica de Deus. Daí resulta a exigência ética de respeito absoluto pela vida do semelhante porque irmão. O jejum figurativo tem, pois, a ver com inadequação das técnicas artísticas para representar a vida e a glória da beleza divinas. Não é possível representar com cores mortas e sem vida esse Jesus que na terra é uma irradiação da glória divi-na22. O cristianismo nasceu e desenvolveu-se nos primeiros séculos anicónico,

na sequência do judaísmo23.

Contudo a arte vai fazendo, progressivamente, o seu caminho dentro do cristianismo e adquirindo cada vez maior visibilidade e expressividade. A própria espiritualidade e teologia cristãs vão legitimando e integrando o desenvolvimento artístico. Após a liberdade de culto, em 311, e mais ainda após a instituição do cristianismo como religião oficial do Império, em 386, desenvolve-se decididamente a arte cristã. O cristianismo passará a adoptar os temas artísticos do mundo greco-romano, mas criticamente seleccionados: para os espaços de culto a arquitectura das basílicas; para a decoração dos interiores, pavimentos e absides, a técnica do mosaico, adoptando os motivos figurativos da época (aves, animais, peixes, plantas, flores, frutos…). As esculturas são raras, mesmo até proscritas, reflexo daquela proibição veterotestamentária de fazer qualquer imagem esculpida. A arte cristã aparece e permanece como figurativa, em pintura ou em mosaicos24.

As disputas trinitárias e cristológicas a partir dos séculos IV e V ajudarão a clarificar um pouco mais os fundamentos teológicos e espirituais da arte cristã. S. Basílio Magno formula uma ideia decisiva na argumentação e legitimação, no Oriente ortodoxo, da veneração das imagens: «A glória que prestamos [à imagem do rei] é única e não múltipla, porque a honra prestada à imagem

20 Cf. A. Grabar, Christian Iconography: A Story of Its Origins, Princeton 1980; J. Lowden, Early Christianity and Byzantine Art, London 1997.

21 S. Irenaei, Adversus haereses I, 25, 6.

22 Eusebii Caesariensis, Espistolae, PG 20, 1545. 23 Cf. F. Boespflug, Dieu et les images, 64-66. 24 Cf. F. Boespflug, «Images», 556.

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passa ao protótipo [aquele que ela representa]»25. A afirmação é breve e densa;

o seu contexto é doxológico, de louvor e reconhecimento da glória divina por parte da comunidade cristã. É na liturgia cristã que o culto das imagens tem o seu lugar. Não como valor próprio e em si mesmo mas como representação de uma realidade outra, invisível, o arquétipo, que funda e legitima a imagem26.

A imagem é apenas a mediação de uma realidade invisível. A ideia platónica de beleza, que é o protótipo, funda o valor, a dignidade e a razão da própria beleza da imagem e do seu lugar na liturgia cristã.

2.2. A luta anti-iconoclasta

Foi a querela iconoclasta ocorrida, no Oriente entre os séculos VIII e IX, o contexto para a elaboração e fixação de uma teologia cristã da imagem. Nas fron-teiras orientais do Império Bizantino desenvolveu-se, entre as classes cultas, um cristianismo marcado por uma concepção de absoluta transcendência de Deus e da irredutibilidade do divino ao humano. O iconoclaísmo, no seu monoteísmo radical próximo do judaísmo e do islamismo, negava a possibilidade de uma estética teológica e, no fundo, a possibilidade da arte apresentar o divino. As razões de fundo do combate às imagens são cristológicas. O que está em causa é a negação de haver uma imagem própria e verdadeira de Cristo, pois tinha de se representar a sua natureza divina, o que artística e tecnicamente seria impossível. A arte apenas conseguiria representar a natureza humana de Cristo e nunca a sua divindade. Tal, do ponto de vista de uma recta interpretação da fé, seria cair num reducionismo de Cristo ao humano. Uma visão cristológica fortemente concentrada na divindade acabava por obscurecer a humanidade de Jesus. Em última instância, o que estava em causa era o dogma central do cristianismo, a encarnação do Filho de Deus, verdadeira e autêntica imagem do Pai27.

Para refutar os iconoclastas, o pensamento de S. Basílio Magno é acolhido e desenvolvido por João Damasceno (+749): «Uma coisa é a representação, outra o que é representado»28. Apesar da distinção, não pode deixar de haver uma

relação entre a representação e o representado, entre a imagem e o arquétipo. A justificação dessa relação é, segundo João Damasceno, pneumatológica. É o Espí-rito Santo que capacita o que é material e humano para ser, por graça, expressão

25 Basile, Traité du Saint Esprit, 18, 45 : SC 17 (407).

26 O arquétipo, a realidade representada, é um termo herdado do platonismo em que todas

as coisas sensíveis estão fundadas nos seus arquétipos invisíveis.

27 Cf. P. Mariotti, «Images», 701; F. Boespflug, Dieu et les images, 115-120. 28 Ioannis Damasceni, De immaginibus III, 16 : PG 94, 1337.

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de santidade: «Os santos durante a sua vida foram cheios do Espírito Santo; depois da sua morte, a graça do Espírito Santo está inseparavelmente unida à sua alma e às suas imagens, não por substância, mas pela força e eficácia»29. Há

uma participação da imagem na realidade da pessoa do santo mediante a graça do Espírito Santo. A esta argumentação pneumatológica, não de todo clara, acrescenta João Damasceno uma centralidade cristológica, em analogia com o Verbo encarnado: «Como fazer a imagem do visível? (…). Enquanto invisível, não fazes imagens; mas desde que tu vejas o incorpóreo tornado homem, fazes a imagem da forma humana; desde que o Invisível se tornou visível na carne, pintas a semelhança do invisível»30. A visibilidade do invisível e do incorpóreo

de Deus na carne e na matéria da condição humana, através da Encarnação do Verbo, será o argumento teológico decisivo na luta anti-iconoclasta.

Esta teologia cristã da imagem é confirmada no II Concílio de Niceia, em 787. Precisa este Concílio: «Quanto mais estas imagens são contempladas, tanto mais aqueles que as contemplam são levados à recordação e ao desejo dos modelos ori-ginais (protótypoi) e a tributar-lhes, beijando-as, respeito e veneração (próskynesis)», porque, justifica, «a honra prestada às imagens, em realidade, pertence a quem nelas é representado e quem venera a imagem venera a realidade (hypóstasis) de quem é nela reproduzido»31. Sendo visibilização do invisível, representação de

um arquétipo, o culto prestado às imagens significa honrar a pessoa que nelas é representada. As imagens artísticas são meios de epifania do divino e de acesso do homem ao transcendente. Tal como no Verbo encarnado a humanidade material é manifestação da divindade, também as imagens de Cristo e dos santos, porque participam da energia do Espírito que santifica, têm capacidade para revelar, na materialidade das formas, o divino e a beleza da glória de Cristo. Legitimado por esta teologia, o Oriente ortodoxo protegeu e promoveu a integração e a veneração das imagens (os ícones) pintadas em madeira na liturgia32.

O Ocidente latino valorizou mais a dimensão catequética e pedagógica da arte. Esta entra na vida eclesial, não tanto suportada por uma teologia nem por

29 Ioannis Damasceni, De immaginibus I, 19 : PG 94, 1249c.

30 Ioannis Damasceni, De immaginibus I, 8 : PG 94, 1237d-1240a ; cf. Ibidem, I, 16, 1245a. «Porque

nem todos sabem letras, nem têm tempo para a leitura, os Padres compreenderam que algumas proezas, para a sua recordação concisa, se pintaram em imagens. Por negligência muitas vezes não temos na mente a paixão do Senhor, mas quando vemos a imagem de Cristo crucificado voltamos à recordação da paixão salvadora, e caindo por terra adoramos, não a matéria do Evangelho, nem a da Cruz, mas ao modelo»: Id., De fide orthodoxa IV, 16: PG 94, 1171; tradução espanhola consultada, Id., Exposición sobre la fe, IV, 16, Madrid-Santiago 2008, 275.

31 H. Denzinger – P. Hünermann, Enchiridion symbolorum, Bolonha 20003, 601 (obra citada

pela sigla DH). O II Concílio de Niceia distingue ainda a «adoração» (latreia) reservada pela fé à «natureza divina» da «veneração» (próskynesis) devida às imagens: Ibidem.

32 Cf. P. Evdokimov, Teologia della bellezza, 197-221; O. Clément, Solchi di luce. La fede e la bellezza, Roma 2001, 48-59.

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uma espiritualidade, mas mais por motivos práticos e pastorais. No Ocidente não se poderá tanto falar de uma arte cristã mas mais de uma arte inspirada pela fé cristã ou que encontra na tradição eclesial os seus motivos. Não é directamente uma arte confessante, embora tantos artistas exprimissem a sua fé através da arte. É uma arte mais subjectiva e naturalista, comprometida com o concreto e com o mundo. A linguagem da arte ocidental emancipa-se da sua relação com o Magistério da Igreja e, em certa medida, com a liturgia33. Daí a intrínseca

di-mensão secular da arte ocidental, que a humaniza e a liberta da estreiteza dos cânones estéticos teológicos, mas também a pulveriza e a fragmenta no subjec-tivismo de cada artista ou a acomoda aos gostos dominantes. A sua liberdade criativa é, ao mesmo tempo, a sua grandeza e a sua pobreza.

2.3. Da crise da Reforma à arte apologética barroca

A estética antropocêntrica do Renascimento, inspirada nos modelos do belo ideal clássico, está marcada por um excesso naturalista. Acentua-se a beleza física, a sensualidade das formas anatómicas. Os artistas dão largas à sua imagi-nação criativa, e a arte coloca-se ao serviço das devoções e dos gostos estéticos dos mecenas, perdendo a sua função litúrgica. O excesso naturalista retira-lhe o valor simbólico e o apelo ao transcendente. A representação artística do sagrado é subjectiva, desdivinizada, reduzida a uma descrição dos aspectos psicológi-cos. Savoranola e Lutero não deixam de proclamar inflamados sermões contra esta paganização da arte34. Por outro lado, a Reforma protestante, sobretudo

no movimento calvinista, irá provocar mais uma crise iconoclasta, ao atacar o culto católico às imagens dos santos, acusando-o de idolatria.

Perante tais excessos, o Concílio de Trento, em 3 de Dezembro de 1553, defende o tradicional culto das imagens:

As imagens de Cristo, da Virgem Mãe de Deus e dos outros santos devem encontrar-se e ser conservadas, sobretudo, nas Igrejas; a essas deve-se atribuir a devida honra e a veneração (honor et veneratio), não porque se crê que nelas existam qualquer divindade ou poder que justifique este culto (…) mas porque a honra a elas atribuída refere-se aos protótipos que elas representam35.

Trento retoma aqui, à letra, a doutrina do II Concílio de Niceia; apresenta, assim, a razão teológica do culto às imagens. Mas acrescenta ainda uma razão

33 Cf. F. Boespflug, «Images», 555.

34 E. Nadal, «Imagens do prazer, da beleza e da dor», Ephemerides Mariologicae 45 (1995) 212. 35 DH 1823.

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didáctico-pedagógica: «…que através da história dos mistérios da nossa reden-ção, expressa nas pinturas e de outros modos, o povo seja instruído e confirmado na fé, recebendo os meios para recordar e meditar assiduamente os artigos de fé»36. O Concílio de Trento forneceu a matriz da arte sacra católica ao longo

de mais quatro séculos, afirmando a vigilância da Igreja sobre a produção das imagens destinadas ao culto católico. O principal critério de discernimento é o da decência das imagens e a sua conformidade à fé cristã (ao dogma) como interpretação autêntica do texto bíblico37.

As imagens são sinais pedagógicos que apelam a um comportamento cristão conforme ao modelo nelas representado; através da contemplação das imagens dos santos, os fiéis são chamados a uma experiência de fé mais autêntica e a traduzi-la na vida. Em sua função didáctica, a arte sacra apresenta-se com uma função moralizadora da vida dos crentes. Consequentemente, pretende-se eliminar todos os abusos artísticos e determina-se um controle eclesiástico na aprovação das imagens destinadas ao culto. A arte torna-se, agora, apologética da fé38. O culto e a representação iconográficas marianas são incrementadas. A

arte barroca, já expressão das exigências tridentinas, torna-se mais pudica, menos naturalista; acentua-se não a colocação do santo no mundo, mas na transcendên-cia do céu. Todavia, é uma arte emotiva, sensual e teatral, cuja principal função é provocar espanto e fascínio, oferecendo ao homem a experiência estética da transcendência, a contemplação do invisível no visível. Prazer e sofrimento, sensualidade e dramatismo fundam-se, na arte barroca, no mesmo e único estremecimento sensorial, emotivo e místico39. O barroco ficou, para maravilha

de todos, como um dos momentos mais densos e sublimes da expressividade artística da fé cristã (católica), com todo o seu excesso de teatralidade, de dra-maticidade, de sensualidade e de misticismo.

3. A arte interpreta e revela a Palavra

A arte possui um valor pedagógico e catequético próprios, a sua capaci-dade de visualizar o texto bíblico e os acontecimentos salvíficos nele narrados, particularmente aqueles relacionados com a vida de Cristo. A arte tem uma extensão maior do que o texto bíblico, só acessível aos letrados. A imagem é

36 DH 1824.

37 Cf. F. Boespflug, Dieu et les images, 317-318.

38 Cf. J. L. Sierra Cortés, «La iconografia mariana: De la exuberância del pasado a la penúria

del presente», Ephemerides Mariologicae 45 (1995) 236.243. Esta dimensão moralizadora da arte é expressa, claramente, pelo Concílio de Trento: vendo as imagens, os fiéis possam «modelar a vida e os costumes à imitação dos santos»: DH 1824.

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democrática, o texto selectivo e elitista. Raros eram os que, antes da invenção da imprensa, tinham acesso directo ao texto bíblico e o podiam ler e meditar. As imagens artísticas aparecem como uma forma de divulgação e de interpre-tação das Escrituras. Os próprios Padres Gregos, os primeiros a elaborar uma cristologia da imagem, foram também os primeiros a reconhecer o seu valor pedagógico e catequético. Escreve S. Gregório de Nissa (330-395): «O desenho mudo sabe falar sobre os muros das igrejas e ajuda grandemente»40. Em sua

mudez, a imagem fala através do visual. A imagem aparece na vida eclesial como uma linguagem outra, alternativa ao texto, com a sua capacidade de ajudar a crescer na fé.

S. João Damasceno conclui, explicitando, o pensamento deixado em aberto por Gregório de Nissa: «Aquilo que a Bíblia é para os que sabem ler, é o ícone para os iletrados»41. E ainda: «Porque nem todos conhecem

as letras e não se entregam à leitura, os Padres julgaram por bem que es-tes conhecimentos [da vida de Cristo] fossem expostos em imagens, como também explorados, em vista de uma pronta memória»42. Quem não pode

conhecer o texto bíblico, tem ao seu alcance a mediação visual das imagens, a representação iconográfica. Não deixamos de sublinhar como a imagem, em sua valência pedagógica, não deixa de condicionar a própria imaginação do leitor impondo, ela mesma, uma determinada representação visual do texto. Mas ao mesmo tempo é oferecido ao «espectador», sem esforço pessoal próprio, uma interpretação visual e artística do texto que de outro modo, possivelmente, não teria acesso.

A imagem é o livro daqueles que não sabem ler, escreve o Papa Gregório Magno (540-604) ao bispo de Marselha, Sereno: «Uma coisa é adorar uma imagem, outra coisa é aprender por essa imagem a quem se dirigem as tuas preces. O que é a Escritura para aqueles que sabem ler, é a imagem para os ignorantes: eles aprendem através desta imagem o caminho a seguir. A imagem é o livro daqueles que não sabem ler (in ipsa legunt qui litteras nesciunt)»43. As

imagens não se adoram; a adoração é dirigida a Deus. As imagens têm um valor pedagógico, pois apontam para aquele que é objecto de adoração e a quem se dirigem as preces do crente. Saliente-se, particularmente, a comple-mentaridade entre a Escritura e as imagens. A imagem revela a Palavra aos iletrados; ela própria é livro, porque revelação. Nesta perspectiva se desen-volveu a arte das catedrais românicas e góticas, autênticas «bíblias de pedra» em imagens esculpidas ou na transfiguração da luz dos vitrais, narrando toda

40 Ggregorii Nysseni, De S. Theodoro Martyre : PG 46, 737d. 41 Ioannis Damasceni De imaginibus I, 17: PG 94, 1248c; cf. 1268ac. 42 Ioannis Damasceni, De fide orthodoxa IV, 16: PG 94, 1169-1172. 43 Sancti Gregorii Magni, Epist. XIII, 13: PL 77, 1128c.

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a história da salvação, do Génesis ao Apocalipse, centrada em Cristo Senhor em seu juízo universal44.

A pintura e a escultura europeias medievais, da Renascença e do período barroco encontram na Escritura uma fecunda fonte de inspiração. Os temas são, predominantemente, bíblicos, centrados na vida de Cristo ou de sua Mãe, Maria, e nos episódios do Antigo Testamento que podem ser interpretados como «figuras»/«tipos» e «profecias» dos acontecimentos do Novo Testamento45; ou

também inspirados na vida dos santos, visualizando, de forma moralizante, a sua conversão, piedade, ascese, morte e glorificação no céu. A Escritura torna-se fonte de inspiração da arte46. Escreve o Papa João Paulo II, em sua Carta aos Artistas:

«A Sagrada Escritura tornou-se, assim, uma espécie de « dicionário imenso » (P. Claudel) e de « atlas iconográfico » (M. Chagall), onde foram beber a cultura e a arte cristãs»47. Entre Escritura e arte, entre palavra e imagem há uma mútua

fecundidade. A fé cristã necessita de artistas que possam interpretar e traduzir esteticamente a Escritura, como, igualmente, os próprios artistas encontram na revelação, traduzida literariamente no texto bíblico, uma fonte permanente de inspiração. O artista apresenta-se como um leitor e um tradutor da Escritura, ao dar visibilidade, cor e forma ao texto. A sua criação artística inspirada em algum acontecimento bíblico oferece-se como tradução da sua própria leitura, da espiritualidade e consciência de Igreja que a suportam48. A arte apresenta-se,

deste modo, como uma revelação e interpretação da Escritura.

Se a arte pode ser interpretação da Escritura, podemos afirmar também que é através da Escritura que se pode, cabalmente, compreender a arte que nela se inspira. «As obras-primas inspiradas pela fé são verdadeiras “bíblias dos pobres”, “escadas de Jacob”, que elevam a alma até ao Artífice de toda a beleza e, com Ele, ao mistério de Deus e daqueles que vivem na sua visão beatífica»49.

44 Cf. C. Rowland, «Imagining the Apocalypse», New Testament Studies 51 (2005) 303-327. 45 É a chamada «exegese tipológica», praticada no período patrístico e na Idade Média com

tanta fecundidade. Procurando o sentido espiritual para além do sentido literal do texto, este mé-todo exegético faz realçar a unidade entre o Antigo e o Novo Testamentos a partir da centralidade de Cristo, no qual se cumprem todas as Escrituras: cf. H. De Lubac, Exégèse et théologie. Les quatre

sens de l’Écriture, I-IV, Paris 1959-1964; P. Beauchamp, «Sens de l’Écriture», in J.-Y LACOSTE (ed.), Dictionnaire critique de théologie, 1085-1087. A exegese medieval inspira a arte e a arte apresenta uma

leitura tipológica e cristológica da Escritura.

46 Cf. P. Stefani, «La via simbolica della bellezza. Dalla Bibbia all’arte e dall’arte alla Bibbia»,

in N. Valentini, Cristianesimo e bellezza. Tra Oriente e Occidente, Milão 2002, 20-52.

47 Giovanni Paolo II, Lettera agli artisti, Città del Vaticano 1999, nº5,

13-14-48 Cf. M. O’Kane, «The Artist as Reader of the Bible. Visual Exegesis and the Adoration of the

Mage», Biblical Interpretation 13 (2005) 333-373.

49 Assemblea Plenaria de Pontifício Consiglio per la Cultura, La «Via pulchritudinis». Documento finale, III. 2.C., in http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/cultr/

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A Escritura é o «grande código da cultura universal». É impossível compreender a cultura e a arte ocidentais ignorando a matriz comum que é a Escritura. O texto sagrado é hoje ainda o código revelador do sentido e da espiritualidade subjacentes à arte cristã e a todas as obras de arte que se inspiram no cristia-nismo. Se a arte revelou em imagens, formas e cores o texto bíblico, do mesmo modo também, na actualidade, o conhecimento da Escritura, ao menos como texto inspirador de cultura, ajuda-nos a redescobrir o sentido espiritual da arte e a reconciliar-nos com a nossa herança cultural.

Ao chegarmos ao fim da nossa reflexão, terminamos regressando ao ponto de partida: a arte é um acontecimento espiritual, revelador da inquietação do próprio artista e da cultura do seu tempo. A espiritualidade da arte é prévia à sua inspiração religiosa, embora possa encontrar nas diversas tradições religiosas uma fonte de inspiração. Foi, precisamente, o que aconteceu com a arte cristã. A princípio tímida e hesitante, no receio de contaminar a fé pela assimilação do culto às imagens próprio do politeísmo, depressa descobriu que, no dinamismo interior da revelação, a palavra apela a uma visualização e a uma «imaginária». No acontecimento Jesus Cristo, o Deus invisível deixa-se ver, tocar, saborear e contemplar. O humano passa a ser a forma e o rosto do divino. A novidade cristã de um Deus que se torna humano, da palavra que se faz carne, funda a estética do cristianismo e possibilitou, ao longo dos tempos, um fecundo en-contro entre a fé e a arte. Tanto no Oriente ortodoxo como no Ocidente latino, apesar das diferenças estéticas e das motivações espirituais subjacentes, a arte encontra na Escritura uma das suas fontes mais promissoras de inspiração. A arte cristã é bem a expressão do triunfo do concreto da imagem, da matéria, do corpo e dos sentidos sobre uma concepção monoteísta abstracta, intelectual e racional. Deus deixa-se ver no humano e as formas da matéria, trabalhadas pelas mãos e pela inspiração do artista, são pressentimento e vislumbre da própria beleza de Deus.

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