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Análise jurídica do conceito de desenvolvimento sustentável na jurisprudência do Tribunal Internacional de Justiça

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO

ANÁLISE JURÍDICA DO CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

NA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL INTERNACIONAL DE JUSTIÇA

JOSEFA CARLOTA BRITO VICENTE

ORIENTADOR: PROFESSORA DOUTORA RUTE SARAIVA MESTRADO EM DIREITO E ECONOMIA

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Aos meus pais a quem amo de forma incondicional, à minha irmã Marisa, minha companheira,

à felicidade do meu irmão Miguel

e aos meus sobrinhos, Laura e Tomé, que preenchem a minha vida de sentido

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Agradecimentos

Em primeiro lugar queria agradecer à minha professora e orientadora Rute Saraiva que pela sua singularidade numa casa como a FDL sempre suscitou a minha admiração. Ser-lhe-ei sempre grata por me ter ensinado a gostar de economia e por, mais tarde, me ter dado a conhecer o assunto que é hoje o meu tema de tese.

Um agradecimento aos meus pais porque lhes devo tudo, pelo exemplo e pela força de carácter que me transmitiram. A ti mãe pelo teu enorme coração e apoio incondicional e a ti pai, pela integridade e valores que me transmitiste. Sei o quanto as minhas conquistas são as vossas.

Um agradecimento à minha irmã Marisa e segunda Mãe, uma companheira de vida e ao meu meu irmão Miguel, que tanto me transmitiu o gosto pelo saber.

Um agradecimento ainda à Maria da Luz, à avó que nunca tive e que sempre acreditou em mim mais do que eu mesma. Obrigada e abracinho em oração como sempre responde às minhas mensagens.

Por fim e não menos importante um agradecimento a esta casa que é a faculdade de direito da Universidade de Lisboa pela dura aprendizagem que foram os anos de licenciatura. Hoje sei que recebi o melhor ensino que poderia ter recebido.

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Resumo

O desenvolvimento sustentável tem sido sistematicamente utilizado no seio da comunidade internacional. Um conceito que apesar de grandemente acolhido, resta indeterminado quanto à sua natureza jurídica.

O presente trabalho pretende assim fazer uma análise jurídica deste conceito apoiando-se na jurisprudência do Tribunal Internacional de justiça. Antes de passar diretamente para a análise do Direito internacional e das Convenções das Nações Unidas, onde nasceu este conceito, bem como da sua aplicação pelo TIJ, pareceu-nos necessário fazer uma resenha sobre os diferentes paradigmas da ciência, que conformaram todo o pensamento moderno e do qual ainda hoje se sente a sua influência na forma como é entendida a racionalidade. Pretendemos assim mostrar como estes paradigmas estiveram na origem da crença no progresso ilimitado e numa representação errada da relação do homem com a natureza, o que esteve na origem da degradação ambiental em primeiro lugar.

Depois duma resenha pelos paradigmas da ciências focamo-nos na natureza jurídica do conceito de desenvolvimento sustentável, nomeadamente na questão de saber se ele pode ser visto como um princípio geral de direito internacional. O que impõe não apenas uma análise do direito internacional nesta matéria e da jurisprudência do TIJ mas requer também uma passagem pelo pensamento jurídico, nomeadamente um retorno à querela entre positivistas e jusnaturalistas, levando-nos ao fundamento do direito.

Palavras chaves: Desenvolvimento sustentável, Tribunal Internacional de Justiça, Jurisprudência, Direito Internacional, Princípios gerais de direito, pensamento jurídico

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Abstract

The concept of sustainable development has been systematically mentioned over the years in the international community. A concept endorsed by the International community as a whole, still lacking a precise legal clarity and a precise meaning. By the present work we intend to undertake a juridical analysis regarding this concept, doing so by carrying further research into the International Court of Justice jurisprudence.

Before analysing the ICJ jurisprudence and the UN Conferences, where the concept arose, we took the initiative, in the first part, to approach the scientific paradigms in order to show how they defined modern thinking and plunge their effects in our thinking until today. With this previous step, we wish to acknowledge that the mentioned scientific paradigms were at the roots of the belief in unlimited material progress and of a misrepresentation of the relationships between men and nature which came to be at the origin of environmental deterioration in the first place.

Upon doing so, we focus our research in the juridical nature of the concept of sustainable development, whether it can be a General Principle of Law, which requires, not only the analysis of the international law on the subject and of the ICJ Jurisprudence, but simultaneously requires a look at the legal thinking, namely the doutrinal quarrel between positivists and jus naturalists which leads us to the foundations of the law.

Key words: Sustainable development, International Court of Justice, Jurisprudence, General Principles of law, International law, Legal thinking

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ÍNDICE

ABREVIATURAS………..3 INTRODUÇÃO……….4 1. O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO NOVO PARADIGMA………7 1.1. Os paradigmas da ciência…….………..………8 1.1.1. O paradigma mecanicista ……….……….…10 1.1.2. O paradigma Termodiâmico………..12 1.1.3. Consequências dos paradigmas mecanicista e termodinâmico………13 1.1.3.1. Um Direito à imagem e semelhança do homem………..13 1.1.3.2. As bases para o liberalismo estão lançadas……….………14 1.1.3.3. Uma análise económica dos recursos naturais desprovida de ética………..……15 1.1.3.4. Comportamentos económicos………..18 1.2. Desenvolvimento sustentável- o paradigma que aproxima as ciências da sociedade…………..20 2. ASPECTOS INTERNACIONAIS DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ...25 2.1. A penetração do conceito de desenvolvimento sustentável ……….…26 2.1.1. A Conferência de Estocolmo……….26 2.1.2. Relatório Brundtland – o nascimento do conceito………29 2.1.3. A Conferência Rio (1992)……….30 2.1.4. A Conferência de Johanesburgo………....32 2.1.5. A Conferência Rio+12……….33 2.2. Ausência de concretização conceptual ………...35 2.3. A natureza jurídica do desenvolvimento sustentável………..37 3. A JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL INTERNACIONAL DE JUSTIÇA……….40 3.1. Caso gabcikovo-nagymaros (Hungria/Eslováquia)...40 3.1.1. Antecedentes do contencioso...41 3.1.2. A decisão do Tribunal...42 3.2. Caso relativo às fábricas de celulose no Rio Uruguai (Argentina/Uruguai)………47 3.2.1. Antecendentes do contencioso………..47 3.2.2. Competência do Tribunal……….48 3.2.3. A invocação pela Argentina do princípio de desenvolvimento sustentável……….49 3.2.4. A decisão do Tribunal……….51 3.2.5. A aplicação do conceito de desenvolvimento sustentável………..53 4. DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO PRINCÍPIO DE DIREITO INTERNACIONAL ...55 7.1 Os principais elementos do Desenvolvimento Sustentável……….55 7.2 Os princípios gerais de Direito……….56 7.3.O desenvolvimento sustentável como princípio geral de Direito...61 7.4 A crise do direito : evolução ou mutação noutra coisa………..65

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CONCLUSÃO………68 BIBLIOGRAFIA………71

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3

ABREVIATURAS

AIA- Avaliação de Impacto Ambiental

ETIJ- Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça ONG- Organizações não governamentais

ONU – Organização das Nações Unidas

OGM- Organismos geneticamente modificados

PNUA - Programa das Nações Unidas para o Ambiente TIJ – Tribunal Internacional de Justiça

TFUE- Tratado sobre o funcionamento da União Europeia

UNCED- United Nation Conference on Environment and Development (Conferência das nações unidas sobre desenvolvimento e ambiente – Conferência Rio 1992)

WCED- World Commission on Environment and Development

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4

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento sustentável é apanágio das sociedades contemporâneas nas quais a incompatibilidade do desenvolvimento com a sustentabilidade da vida na Terra impõe-se de forma premente. Tendo surgido, precisamente, como um compromisso entre o desenvolvimento e a preservação ambiental, os quais, juntamente com a luta contra a pobreza, constituiriam os seus pilares, este conceito permanece ainda um conceito polissémico e de geometria variável.

Malgrado a sua imprecisão, assistiu-se nas últimas décadas à sua inclusão em inúmeros instrumentos jurídicos no seio da comunidade internacional, devendo-se a esta, e no mais ao papel da Organização das Nações Unidas, a sua grande disseminação e divulgação. Não faltaram vozes que apontassem a imprecisão deste conceito como uma fraqueza, surgindo expressões que o definiam como “caixa vazia”, “mantra”, “oxímoro”, entre outros.

Com efeito, o conceito de desenvolvimento sustentável traduz uma realidade multidimensional e transversal que pressupõe precisamente que os ecossistemas e as sociedades humanas são sistemas complexos e abertos. Assim este conceito não se trata propriamente de uma caixa vazia mas será ele flexível, adaptável e evolutivo, podendo esta faceta revelar-se não a sua fraqueza mas a sua força. É desta forma necessário que ele seja peneirado pelo contributo de outras ciências, não sendo compatível com uma noção positivista de um conhecimento científico infalível, cuja função seria a de proporcionar um controlo crescente sobre a natureza. Impõe-se, uma abordagem multidisciplinar, a qual tentamos lograr com este trabalho, contrariamente às abordagens reducionistas e unilaterais resultantes da hegemonia positivista das ciências naturais, que estiveram na base da crença do progresso ilimitado e que por sua vez se encontra na origem da degradação ambiental.

Foi precisamente a percepção do profundo impacto da nossa representação da natureza e do reducionismo na abordagem das questões ligadas quer ao desenvolvimento quer ao ambiente assim como a natureza multidisciplinar da abordagem subjacente ao conceito de desenvolvimento sustentável que suscitaram o meu interesse neste trabalho.

(10)

5 possibilitaram grandes melhoria no plano do desenvolvimento humano para a maior parte das pessoas na maioria dos países, sendo possível afirmar que no cômputo geral, a globalização propiciou grandes avanços no desenvolvimento humano, inclusive- onde esse desenvolvimento se imponha como mais necessário - em muitos países do Sul. Contudo, é possível constatar um sentimento generalizado de precariedade no que diz respeito aos meios de subsistência. As fragilidades económicas colocam ainda uma enorme pressão sobre as populações que se prevêem virem a ser as mais expostas às potenciais consequências das alterações climáticas, pondo, novamente, em perspectiva, toda a questão ética subjacente.

Durante muito tempo as respostas aos desafios económicos e sociais, na senda daquilo que postulava o pensamento neoclássico, iam no sentido do crescimento económico, que se imponha num primeiro momento num mundo pós colonialista e posteriormente numa Europa pós segunda guerra mundial.

Os anos 70 trouxeram os ventos da mudança com as suas poluições e catástrofes naturais que, mediatizadas e com a aquiescência da comunidade científica, rapidamente encontraram eco numa sociedade anti-regime. Já no fim dos anos 80, o relatório Brundtland apresenta-nos o conceito de Desenvolvimento Sustentável. Este conceito apresentou-se então como um compromisso, por excelência, entre o crescimento económico e a preservação ambiental, sem comprometer as gerações futuras – foi nesta equidade intergeracional que residiu a inovação desta definição e muito provavelmente ao qual se deveu o seu “sucesso” por maior que seja a sua controvérsia.

Adoptou-se então este umbrella term para nunca mais o deixar, um conceito que tem passado por inúmeras metamorfoses bem ao “estilo kafkaesco”. Apesar da sua imprecisão ele tem sido sistematicamente utilizado no seio da comunidade internacional e o direito internacional tem participado largamente à divulgação deste conceito. Esta adesão à escala internacional foi tanto maior quanto as interpretações e sentidos que daí resultaram. Levanta-se então a questão de saber qual é o valor normativo desta conceito? Um conceito, um princípio jurídico?

O juiz internacional contribui para definir o escopo das normas de direito internacional do ambiente, sendo também o garante da sua execução, no entanto, a intervenção do juiz foi durante muito tempo marginalizada no domínio do ambiente.

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6 Escolheu-se assim a jurisprudência do Tribunal Internacional de Justiça na qual ele teve a oportunidade de se pronunciar sobre o conceito de desenvolvimento sustentável como suporte à estas questões.

Dada uma tendência para uma abordagem pragmática desta questão, bem como do Direito em geral, onde parece já não se questionarem os fundamentos do Direito, procuramos com este trabalho uma reflexão mais profunda.

O desenvolvimento impõe-se a uma sociedade em plena mutação, não apenas de ordem económica, social e cultural mas também institucional onde já muito se tem falado, por exemplo, no declínio do Estado. Com efeito consideramos que o paradigma apresentado pelo desenvolvimento sustentável diz respeito às escolhas fundamentais da sociedade pelo que concomitante à reflexão que passa pela normatividade do conceito é a reflexão sobre a questão que vai também no sentido do direito, de saber se são as contigências sócio-culturais decorrentes da evolução das sociedades actuais, onde como sabemos o direito encontra os seus referentes axiológico e normativo de validade, ainda compatíveis com o sentido universalmente

fundante do direito e a imprescindível e muito particular racionalidade implicada pela sua normatividade1

. Não se fala já, afinal, numa crise do direito moderno, de

uma evolução da racionalidade do direito onde os conceitos evolutivos, indeterminados e adaptátveis encontram finalmente o seu lugar ao preço da segurança jurídica? Não estará o desenvolvimento sustentável em linha com esta renovação das lógicas jurídicas tradicionais.

Este trabalho de investigação não tem a pretensão de dar uma resposta, tout

court, a todas as questões levantas, considera-se, apenas que o debate académico é de

crucial importância em domínios de grande complexidade como é, para nós, o desenvolvimento sustentável. A procura de soluções ligadas ao direito, não deveria perder de vista os seus fundamentos e não pode ser feita sem a discussão de questões de fundo, devendo sempre ser acompanhada por uma reflexão mais intelectualizada. É nesta linha de raciocínio que uma divagação sobre os paradigmas da ciência nos pareceu necessária, pela qual começaremos este trabalho, passando posteriormente

1 Esta é já uma questão levantada pelo professor CASTANHEIRA NEVES em “O atual problema metodológico da realização do direito”. Boletim da faculdade de Direito, Coimbra, n.esp.3 (1991), Estudos em homenagem ao Professor Doutor Antonio de

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7 aos aspectos jurídicos e internacionais do conceito de desenvolvimento sustentável.

1. O Desenvolvimento sustentável como novo paradigma

Repetidas vezes o conceito de desenvolvimento sustentável tem sido referido como um novo paradigma, esta ideia de ruptura com o sistema, revolucionária ou pelo menos de ambientalismo reformista (shallow ecology) 2

encontra facilmente eco numa sociedade como a dos dias de hoje3

. O modelo do homem neoliberal, guiado pela razão e por incentivos económicos, regulado pelo mercado e pelo direito ocidental globalizado, assim como a felicidade prometida pela aplicação generalizada da ciência estão em crise. Na busca incessante de soluções para os problemas aos quais agora se acrescentam os ambientais, este conceito seduz, sobretudo a quem quer ser portador da boa nova quase em jeito messiânico. Contudo, esta ideia salvírica, como todas as ideias salvíricas, pode reflectir uma ausência de reflexão4

. Ora o desenvolvimento sustentável representa um momento de ruptura e, de facto, do que se trata é antes de mais da relação fundamental do homem com a natureza5

e de uma mudança na forma como representamos o mundo e nesse sentido acreditamos também que ele tem vocação para representar uma ruptura com a ideologia do progresso ilimitado reposicionando, assim, o lugar da natureza-objecto. Posto isto, não quer dizer que tenhamos de ir para a outra extremidade da questão, extremidade essa onde transformamos a natureza em sujeito. Dito de outra forma, uma ruptura com a forma como temos vindos a representar o mundo e a natureza não impõe que adoptemos uma visao naturalista, “condenando o homem à imanência absoluta da ecosfera, recusando-lhe toda a possibilidade de libertação”6

e tornando impensável e impossível “a expansão da moralidade e do conhecimento que reclamam a ética e o direito por parte do indivíduo responsável”7

. Pois se o perigo é o homem, é também o homem o que salva.

O “retorno das coisas” que a deep ecology pretende operar não é, portanto, um

2 OST, François. A natureza à margem da lei : A Ecologia à prova do Direito, Lisboa : Instituto Piaget, 1998.

3 GARCIA, Maria da Glória. O lugar do direito na protecção do ambiente. Coimbra: Almedina , 2007. 4 Idem Ibidem.

5 Smouts, Marie Claude. Droit international et développement durable. in prieur M (éd.), les hommes

et l’environnement, en hommage à A. Kiss, Paris, Frison Roche.

6 OST, François. A natureza à margem da lei...,cit. 7 OST, François. A natureza à margem da lei...,cit.

(13)

8 retorno justo das coisas”8

. Um desenvolvimento sustentável não pretende o retorno às origens nem é, embora, alguns assim o quisessem uma pretensão escondida de economização do ambiente. É precisamente para evitar a perversão deste conceito, seja em que sentido dos extremos for, que é indispensável mostrar que as lógicas contemporâneas (nas quais se incluem as jurídicas) podem permitir pensar o multidimensional, sem, por enquanto, o reduzir à alternativa binária dominação ou subjugação.

1.2. Os paradigmas da ciência

Foi Thomas Kuhn quem fez o uso sistemático e consciente do termo “paradigma” na ciência. Com este conceito Kuhn, pretendia sugerir que certos exemplos da pesquisa científica reconhecida – como leis, teorias, dispositivos experimentais – fornecem modelos que por sua vez dão origem a certas tradições coerentes de pesquisa científica9

. Cientistas cuja pesquisa é fundamentada em paradigmas comuns se submetem às mesmas regras e padrões da prática científica. Este consenso que ele produz, constitui pré-requisito para a ciência normal, isto é, a pesquisa solidamente fundada numa ou mais descobertas científicas anteriores, descobertas estas que um dado grupo científico considera como suficientes para servirem de base a trabalhos posteriores10. A força de um paradigma reside,

precisamente, neste consenso de determinada comunidade científica, em certa época e diz-nos muito sobre a forma como essa mesma comunidade avalia e interpreta os resultados das suas experiências11

. Tal como alguns autores12

consideramos que o estudo dos paradigmas da ciência permite-nos perceber as relações do homem com o seu meio ambiente através das diferentes atitudes que resultaram desses paradigmas. Já que o objectivo último da ciência é o conhecimento e este pressupõe uma compreensão daquilo que entoura o homem, do mundo e portanto, - da natureza. De

8 Idem Ibidem

9 KUHN, Thomas S. La structure des révolutions scientifiques, Éditions Flammarion, 1970 p. 30. 10 Idem Ibidem,p.28.

11 LEVEQUE, Christian. Recherche et Développement Durable: l’utopie d’une approche systémique? em B. Villaba (éd). Appropriations du développement durable, Émergences, diffusions, traductions, Villeneuve-d’Ascq: Presses Universitaires du Septentrion, 2009.

12 LEVEQUE, Ibidem, F.CAPRA em CAPRA, Fritjjot. Ponto de Mutação, Bantam, 1982; R. PASSET em PASSET, René “L’Économique et le vivant”, 2ª Edição, Paris: Économica, 1996; S. FAUCHEUX e J.F.NOEL em FAUCHEUX, Sylvie e NOEL, Jean- François. Economia dos Recursos Naturais e do Meio Ambiente, Lisboa: Instituto Piaget, 1995;F.Ost em OST, François . A natureza à margem da lei : A Ecologia à prova do Direito”, Lisboa : Instituto Piaget, 1998.

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9 facto o homem é o único ser capaz de uma “desvinculação perante o seu mundo circundante, em ruptura daquela continuidade ou assimilação própria da conduta animal com o meio e numa específica transcensão – pelo que livre e distante assim relativamente ao mundo, (...)o homem é “excêntrico ao mundo””13

. Podemos ver aqui a base antropológica para a compreensão geral da existência humana, pelo que não admira que a noção de ambiente seja ela também antropocêntrica. Sem querer entrar na questão de saber se a defesa do ambiente deve partir de uma ética antropocêntrica ou ecocêntrica permitimo-nos apenas aferir que, em nossa opinião, ela é forçosamente antropocêntrica uma vez que em última análise a Terra manter-se-á ainda que sem nós, pelo que toda a problemática ambiental visa garantir a sobrevivência da espécie Humana14

. O que não implica que essa visão antropocêntrica não tenha sido levada ao extremo pelo humanismo moderno15. Desde logo, o direito – produto cultural que

tendo por objecto ordenar o funcionamento da sociedade enquanto sistema social global, sendo aí um subsistema, é ele mesmo produto da natureza das relações sociais prevalecentes numa dada época16

- ocidental foi um direito que legitimou, como o demonstra François Ost17

a relação de domínio do homem sobre a natureza. Um direito que mesmo quando se destinou a proteger o meio ambiente, não foi capaz de se libertar da sua lógica de domínio e fê-lo tendo em conta os interesses do homem. Curiosamente um direito que ao querer redimir-se da sua postura de dominador atribui direitos à mãe natureza e às espécies que a constituem é também um direito vítima da lógica do binário (cartesiano) – falso/verdadeiro, proibido/permitido18

- de que a recusa de um postulado científico supõe a apresentação de um outro19

. Consideramos, com François OST, que o problema, é um problema de limite e um

13NEVES, A. Castanheira “Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito : ou as condições da emergência do direito como direito In: Estudos em homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço / organizado por Rui Manuel de Moura Ramos.. [et al.] . - Coimbra : Almedina, 2002. - 2.v., p.837-871.

14 FERRER, Gabriel Real Calidad de vida, meio ambiente, sostenibilidad y ciudadanía¿Construimos

juntos el futuro?, Revista NEJ - Eletrônica, Vol. 17 - n. 3 - p. 305-326, set-dez 2012 (Disponível em:

www.univali.br/periodicos) 15 OST, François, “A natureza ...cit.

16 OST, François apud NEVES, A. Castanheira.

O actual problema metodologico da realização do direito, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra,

n.esp.3(1991), p.11-58

17 OST. François, “A natureza ...cit.

18 KERCHOVE, Michel Van de, e OST. François. Le systeme juridique entre ordre et desordre, Paris : PUF, 1988, p.15.

19 MENEZES CORDEIRO, António em CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e

conceito de sistema na ciência do Direito, introdução e tradução A. MENEZES CORDEIRO 4ºEdição,

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10 problema de vínculo das relações do homem com a natureza20

, que como veremos é

uma consequência do discurso da ciência. Faremos então uma resenha pelos paradigmas 21

para percebermos como os paradigmas da ciências conformaram o pensamento ocidental, assim como a excessiva ênfase no método científico e no pensamento racional analítico conduziram a atitudes profundamente antiecológicas.

1.2.1 O paradigma mecanicista

Na idade média a visão do mundo dominante na Europa, assim como na maioria das outras civilizações, era orgânica. A concepção à qual se pode chamar

naturicista22

, atribui um papel preponderante à natureza mas uma natureza de essência metafísica. A ética, particularmente sob a forma de uma moral natural, estava no primeiro plano das relações do homem e do universo, uma ética que remonta a Aristóteles23

.

Os fisiocratas iriam retomar esta visão do mundo, tentando dar como fundamento para a economia a realidade física da natureza, fundando as primeiras bases do liberalismo24

. Desta ideia ressai uma economia como atividade regida por

20 OST, François: “Perdemos o sentido de relação com a natureza. O homem não se reduz à natureza, e que a sua libertação em relação a esta é sinal mais seguro da sua humanidade; mas fizeram mal em esquecer que o limite, se por um lado separa e distingue, é também aquilo que nos liga. O limite é uma “diferença implícita”. Retendo apenas a diferença e ocultando a implicação, os modernos conduziram-nos pela via da ilimitabilidade e da irresponsabilidade” em Natureza..., cit, p. 13.

21 Neste trabalho adoptou-se a divisão dos paradigmas de Sylvie FAUCHEUX e Jean-François NOEL em Economia dos recursos..., cit, como explica Kuhn em La structure des révolutions scientifiques ..., cit, p. 30 os paradigmas não são atribuídos pela ciência, são descritos pelos historiadores, dandos como exemplos de paradigmas a “Astronomia de Ptolomeu” (do francês “astronomie de Ptolémée”) ou “Dinámica aristotélica” (do francês “dynamique aristotélicienne”).O nome que se dá aos paradigmas ainda que refere ao mesmo período difere na doutrina, assim por exemplo para Rene Passet fala em paradigma do relógio (paradigme de l’horloge) para aquele que nós demos o nome de paradigma mecanista e paradigma da máquina a vapor (paradigme de la machine à vapeur) para aquele que nós demos o nome de paradigma termodinâmico ou mecânica newtoniana. François Ost também recorre a outras designações para descrever os paradigmas em A natureza à margem da lei...,cit.

22 FAUCHEUX, Sylvie e NOEL, Jean-François. Economia dos recursos ..., cit, pag. 27.

23 A ética, assunto presente tanto em Aristóteles como nos humanistas Sismondi a Schumacher, diz principalmente respeito à equidade intrageracional. A sua importância é, obviamente, inegável na óptica do “desenvolvimento sustentável”, permanecendo porém insuficiente, já que a dimensão intergeracional se encontra aí ausente por falta da integração do factor tempo. Por outra via, de modo bastante paradoxal, a tradição “humanista” pode revelar-se em oposição total, deste ponto de vista, com a visão do mundo oriunda das ciências naturais e da biologia. Assim, a acreditar em Lutz deve reter-se entre os princípios fundamentais da economia humanista “uma epistemologia que rejeita o naturalismo, entendido como a doutrina que sustém que as ciências naturais podem explicar todos os fenómenos deste género”. Idem, Ibidem, p. 28.

(16)

11 leis naturais, atividade cuja perenidade estava dependente da capacidade de reprodução do meio ambiente25

.

A perspectiva medieval mudou radicalmente nos séculos XVI e XVII. A noção de um universo orgânico, vivo e espiritual foi substituída pela noção do mundo como se ele fosse uma máquina, e a máquina do mundo converteu-se na metáfora dominante da era moderna. Esse desenvolvimento foi ocasionado por mudanças revolucionárias na física e na astronomia, culminando nas realizações de Copérnico, Galileu e Newton e que deram origem ao universo mecanicista do qual resulta um conhecimento racional que abre as portas à ação sem limite do homem sobre o universo físico26

. Esta exigência de racionalidade leva a conceber “um modelo único”,

para a explicação dos fenómenos físicos, dos sistemas vivos e dos fenómenos económicos e sociais2728.

O método analítico de Descartes consistia em decompor pensamentos e problemas nas suas partes componentes e em dispô-las de forma lógica29

. Esta forma de pensamento tornou-se característica do pensamento científico moderno e, para alguns autores, o facto do universo poder ser entendido como uma máquina e a natureza operar de acordo com leis mecânicas, esteve na origem de uma profunda alteração na relação do homem com a natureza3031

.

No plano epistemológico este reducionismo parte de um princípio simples: o comportamento do todo pode ser explicado a partir das propriedades dos seus componentes, tratando-se então de uma perspectiva que se foca na análise dos objetos

25 PASSET, René. L’Economique..., cit.

26 CAPRA, Fritjof. Ponto de Mutação.., cit. afirmando que o conhecimento científico podia ser usado para "nos tornarmos os senhores e dominadores da natureza”.

27 “O direito natural foi um produto do direito natural da modernidade apenas podia ser um Direito natural secularizado e ao mesmo tempo um direito natural iluminista que, de acordo com o modelo de René Descartes e Francis Bacon mas também dos empiristas John Locke e David Hume se limitava ao que é experimental.” KAUFMANN. Arthur. Filosofia do Direito, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkien, 2004.

28 KAUFMANN faz um paralelismo entre a física como os físicos reduziram as propriedades dos gases aos movimentos dos seus atómos Locke tentou reduzir os padrões observados na sociedade ao comportamento dos seus indivíduos então primeiro ele passou a estudar primeiro a natureza do ser humano individual e depois tentou aplicar os princípios da natureza humana aos problemas económicos e políticos. Ibidem

29 CAPRA, Fritjof. Ponto de...cit.

30 FAUCHEUX, Sylvie e NOEL. Jean-François. Economia dos recursos, cit, pag. 40.

31 O que segundo OST, François resultou precisamente na dominação da natureza pelo homem. A

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12 em detrimento das relações que se estabelecem entre eles32

. No fundo, o reducionismo refletia a esperança de que por detrás da complexidade da natureza se escondia uma bela simplicidade33

e que desta forma seria possível compreender o mundo.

Este método científico, ao qual se vêm juntar as descobertas de Newton, podendo então falar-se numa mecânica newtoniana ou paradigma termodinâmico.

1.1.2 O paradigma termodinâmico

O triunfo da termodinâmica nos séculos XVIII e XIX estabeleceu a física como o protótipo de uma ciência pela qual todas as outras ciências eram medidas. Essa tendência para adotar a física newtoniana como modelo para teorias e conceitos científicos tornou-se evidente nas ciências sociais34

. Estas têm sido tradicionalmente consideradas como “o parente pobre” das ciências, e os cientistas sociais tentaram aficadamente adquirir a mesma respeitabilidade adotando o paradigma cartesiano e os métodos da física newtoniana. Trata-se igualmente de compreender o universo a partir das leis da física, porém estas últimas também mudaram em relação ao caso precedente: aplicam-se agora a fenómenos (a energia) mal representados pela mecânica clássica que fazem entrar no campo do quantificável. A explicação proposta baseia-se fundamentalmente num tempo irreversível. Esta característica (a entropia) leva a considerar os limites da ação humana sobre o mundo físico preferencialmente à sua expansão infinita. Entretanto, a representação que daí resulta é tão racionalista e determinista como a precedente: aplica-se tanto aos fenómenos físicos como à atividade económica do homem e aos seus resultados

A influência da mecâninca newtoniana sobre a análise económica clássica, e como não poderia deixar de ser, posteriormente sobre a neoclássica vai conduzir a uma apreensão “economicista” da natureza35

. Estas vão procurar descobrir, sobre o modelo newtoniano, a lei que governa a economia, tornando assim autónoma a esfera

32 PASSET, René. L’economique...,cit, LEVEQUE, Christian. Recherche et Développement

Durable...,cit.;NETO, Benedito Silva e BASSO David. A ciência e o desenvolvimento sustentável: para além do positivismo e da pós-modernidade. Revista Ambiente & Sociedade, Campinas v. XIII, n.

2 , p. 315-329, jul.-dez. 2010 (disponível em http://www.scielo.br/). 33 LEVEQUE, Christian. Recherche et Développement Durable...,cit.

34 MENEZES CORDEIRO “no fundo, afloram aqui duas grandes cepas do pensamento jurídico moderno e contemporâneo: o jusracionalismo, ele próprio manifestação exarcebada do jusnaturalismo tradicional e o cientismo, transposição para as humanísticas das posturas intelectivas desenvolvidas perante as ciências da natureza.” Introdução à Pensamento sistemático..., cit. p.XVI

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13 económica36

. A mão invisível de Smith dotou a economia de uma “ordem natural”, específica separando-se do divino, do político e, inclusive, da natureza. A partir desta metáfora abriu-se caminho um conjunto de princípios fundamentais reguladores do comportamento económico.

A mecânica encontra-se, pois, na base da conceptualização da micro e da macro economia3738

e é a lei da mecânica que vai reger a natureza mecânica e física dos fenómenos39

. Enquanto que, para os naturicistas a economia devia submeter-se às leis do universo, com os neoclássicos “a economia vai debruçar-se sobre si mesma e procurar definir as suas próprias leis sem se preocupar com as do universo circundante, visto ser evidente que as suas leis são idênticas”40

.

Esta transição vai servir de base a visões utilitaristas e antropocêntricas do meio ambiente.

1.1.3.Consequências dos paradigmas mecanicista e termodinâmico

1.1.3.1 Um direito à imagem e semelhança do homem

O sistema jurídico vai também ele conhecer a sua “revolução copérnica”, que se traduzirá numa progressiva subjectivação do direito. Opera-se uma substituição da antiga ordem de privilégios por uma ordem atomizada e dinâmica levada a cabo pelo direito subjectivo de propriedade -prerrogativa do indivíduo soberano.

“Tal como os físicos reduziram as propriedades dos gases aos movimentos dos seus atómos Locke tentou reduzir os padrões observados na sociedade ao

36 A mecânica newtoniana conhece um renovamento graças a Hamilton, o qual, desde 1834, tinha completado o trabalho de Lagrange, tendo como resultado uma fórmula de maximização. É esse o momento escolhido pelo pensamento neoclássico para aderir explicitamente e o mais totalmente possível ao paradigma newtoniano. Idem Ibidem.

37 FAUCHEUX Sylvie e NOEL Jean François, Economia dos recursos..., cit. p. 43

38 “A economia é uma ciência social, tendo a pretensão de estudar a conduta humana nas suas interações colectivas, fazendo-o com distanciamento analítico, de um modo sistemático, recorrendo a uma metodologia explícita, com o objetivo de, com essa aproximação ao paradigma formal da ciência evitar, seja o entorpecimento nas suas categorias fáceis do “senso comum” (...)”ARAÚJO, Fernando.

Introdução à Economia, Almedina, 3ª Ed. 2005, p. 16

39 “Consideremos a teoria económica clássica. Na sua utilização do conceito de equilíbrio, esta imita a física newtoniana.”

SOROS, George, “O novo paradigma dos mercados financeiros: a Crise financeira de 2008 e o seu significado”, 2º Edição, Coimbra: Almedina, 2009, p.98.

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14

comportamento dos seus indivíduos então primeiro ele passou a estudar primeiro a natureza do ser humano individual e depois tentou aplicar os princípios da natureza humana aos problemas económicos e políticos. Quando Locke aplicou a sua teoria a natureza humana aos fenómenos sociais, foi guiado pela crença de que existem leis da natureza que governam a sociedade humana, leis semelhantes às que governam o universo físico. Tal como os átomos de um gás estabelecem num “estado de natureza”41

. Assim, a função do governo não seria impor as suas leis às pessoas mas

antes, descobrir e fazer valer as leis naturais que existiam antes de qualquer governo ter sido formado. Segundo Locke essas leis naturais incluíam a liberdade e a

igualdade entre todos os indivíduos, assim como o direito à propriedade, que

representava os frutos do trabalho de cada um.”. Estes direitos vão tornar-se na base do sistema de valores do iluminismo e vão favorecer o aparecimento dos mercados livres e a multiplicação de trocas. Progressivamente procura-se acabar com os entraves à livre circulação de bens e multiplicar os pequenos proprietários como forma de acabar com a sociedade desigual do antigo regime. Na concepção de Locke é do indivíduo, novo átomo social, que é preciso partir para se construir uma sociedade.

Como bem mostra François Ost42

as novas ficção jurídicas que começam então a construir-se vão servir de base para que o homem se aproprie do mundo biótico e abiótico que, pela atribuição de direitos civis e políticos (das liberdades individuais) e um progressivo desmantelamento aos entraves às trocas vai constituir as bases do liberalismo e do capitalismo.

1.1.3.2 As bases para o liberalismo estão lançadas

Da economia neoclássica herdou-se a ideia de que a procura do interesse individual conduz automaticamente ao interesse geral. O mundo seria concebido como um conjunto atomista de compradores e vendedores, todos do tipo homo

economicus, empenhados num comportamento egoísta com o intuito de melhorar o

seu bem-estar individual, acabando as necessidades individuais por se alinharem ao objetivo de bem estar-geral. Herdou-se, igualmente, a crença que o desenvolvimento

41 KAUFMANN Arthur, Filosofia do Direito..., cit, p. 55. 42 O direito à margem da lei...,cit.

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15 reduz as desigualdades e assegura o bem-estar geral, desenvolvimento este que por sua vez estaria dependente do cresimento industrial e (posteriormente) tecnológico geradores do crescimento económico. Os neoliberais defendem que a criação crescente de riqueza e da prosperidade em toda a economia mundial, para os quais a pobreza extrema e as desigualdades são vistas como estados transitórios que desaparecerão com a modernização global conduzida pelo mercado43

. Criam-se assim as condições propícias para a globalização, os Estados procuram novos mercados como forma de obtenção de riqueza. Assiste-se à proliferação de bloco económicos regionais e do comércio livre, concomitantemente à emergência de organizações e organismos internacionais, numa tendência de regulação supranacional das políticas económicas.

Sem dúvida a globalização propiciou grandes avanços no desenvolvimento humano, contúdo, existe ainda um sentimento generalizado de vulnerabilidade. Eis então um dos grandes paradoxos do nosso tempo: de um lado assiste-se à emergência, incrementação e salvagarda do comérico livre à escala mundial como motor de crescimento económico, e por outro lado a revelação das vulnerabilidades humanas e ambientais associadas ao desenvolvimento que implicam, cada vez mais, uma acção a nível local (o que não implica a coordenação de políticas ambientais ao nível regional/global).

1.1.3.3 Uma análise económica dos recursos naturais desprovida de ética

É possível constatar que a evolução das relações entre a economia e o ambiente se inscrevem numa visão positiva do progresso da espécie humana, à qual o desenvolvimento económico tem estado associado44

como forma de compreensão e de resolução de questões ambientais e sociais. Um olhar pela análise económica dos recursos naturais permite constatar a continuação deste paradigma.

43 É possível ver este raciocínio em Carlota PEREZ que explica como as instituições sociais apesar de mais lentas se adaptam a mudanças de paradigmas tecnológicos e tendem para a estabilização em

Techonological Revolutions, paradigm shifts and socio-institutional change. Reinert, Erik (ed)

Globalization, Economic Development and Inequality: An alternative Perspective, Edward Elgar, Cheltenham, UK ,Northampton, MA, USA, 2004, pp. 217-242 (disponível em http://www.carlotaperez.org/),

44 Neste sentido LEVEQUE, Chistian em Recherche et Développement Durable...,cit;CAPRA, Fritjof em Ponto de Mutação.., cit; PASSET, René em L’economique et le vivant..., cit, Tim Jackson em JACKSON, Tim. Prosperidade sem crescimento: Economia para um planeta finito , Tinta-da-China, 2013.

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16 A década de 70 pode ser apontada como a década em que se repensam as relações entre a economia e o meio ambiente45

ainda que, em bom rigor, as consequências indesejáveis do desenvolvimento se faziam já sentir anteriormente. Até então a economia e a natureza eram dois universos distintos46

. Os economistas interessavam-se pelas regras que governam a optimização e reprodução económica, ignorando, no entanto, o modo como a natureza assegurava espontaneamente a sua reprodução 47

. A constituição das relações entre estes dois universos “distintos” ocorreu com o risco de esgotamento dos recursos naturais e com o agravamento dos danos sofridos pelo meio ambiente, uma vez que essa mesma escassez poria em causa a própria economia, como bem demonstraram as crises do petróleo na década de 70. O surgimento do conceito do desenvolvimento sustentável surge assim, num ambiente cultural, económico e científico48 em plena evolução e apresenta-se como uma

extrapolação ao que até então era objecto da ciência económica.

A economia neoclássica acreditava no papel regulador do mercado com vista a assegurar o bem-estar49

. Para alguns economistas o receio do esgotamento de recursos naturais desapareceria se se deixasse actuar os mecanismos do mercado. À medida que os preços aumentassem, as estratégias de exploração e as investigações tecnológicas seriam simultaneamente estimuladas. Estas últimas permitiriam não só a substituição entre recursos, como também o aumento da eficiência destes, ou seja, uma diminuição do seu desperdício. Este ponto de vista gerou uma teoria económica de exploração óptima de recursos naturais, a qual determina uma trajetória óptima do esgotamento dos recursos e permite o crescimento económico não obstante esse potencial esgotamento. Na teoria económica neoclássica considera-se que os problemas do meio ambiente provêm do facto de muitos bens e serviços ambientais serem gratuitos. Tradicionalmente estes bens pertenciam à categoria dos bens

45 FAUCHEUX, Sylvie e NOEL, Jean- François. Economia dos recursos naturais...cit.bem como LEVEQUE, Recherche et développement durable...cit, identificam a década de 70 como a década onde se repensam as relações do homem com a natureza muito por conta do Clube de Roma (1968) mas esta consideração pode mudar segundo o autor.

46 Como bem o demonstra o facto de a política ambiental ter sido durante muito tempo confundida com a do domínio da saúde pública e da higiene. LEVEQUE. Recherche et développement durable...,cit(tradução nossa).

47 PASSET, René. Une approche multidisciplinaire de l’environnement, Paris: Économica, 1980. 48 LEVEQUE, Christian. Recherche et développement durable..., cit.

49 Rajendra RAMLOGAN explica que para os economistas o bem-estar é definido como a satisfação de preferências, onde maior o nível de satisfação das preferências maior o nível de bem estar. To economists “well-being” is defined as the satisfaction of wants or preferences, where the greater the preference satisfied, the greater the level of well-being experienced, Sustainable development:

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17 públicos, são portanto, consumidos “demasiados” serviços ambientais. Se a procura cresce, ultrapassa a capacidade dos bens e serviços ambientais para a satisfazer. Ocorrerá uma sobreexploração dos recursos, logo a solução, nesta perspectiva, é atribuir um preço a este bens e serviços ambientais, permitindo assim uma avaliação monetária do custo da sobreexploração de certos recursos naturais ou o da poluição.

Baseando-se na teoria neoclássica a análise económica do ambiente transformou-se numa análise custo-benefício procurando obter um instrumento que nos forneça os dados de uma comparação entre ganhos e perdas.50

Esta lógica é alheia a qualquer sentido de equidade porque aqui não importa quem suporta os custos ou quem benefícia dos lucros assim como também é alheia a qualquer sentido ecológico, visto que o ambiente é considerado como uma colecção de bens e serviços dotada de um valor “instrumental” para os homens. Neste sentido o valor de um bem ou serviço ambiental é obtido em função do uso efetivo que dele é feito pelo indivíduo51

. É-nos, então, possível constatar que a economia convencional do meio ambiente, na senda da economia clássica, é, em si, utilitarista. Ainda que a análise do custo-benefício nos permita chegar a uma conclusão de que os custos e benefícios futuros têm um peso mais fraco que os custos e benefícios presentes, o que por sua vez obsta a uma consciência ecológica porque justifica a visão tecnocêntrica e optimista a respeito das possibilidades de progresso técnico de substituição, favorecendo assim uma interpretação ética do crescimento económico, sendo este último suposto fornecer benefícios materiais que aumentem a escolha e a satisfação dos consumidores, e como tal, o bem-estar humano52

- esta é ainda uma ética utilitarista.

Uma interpretação ética nestes termos levaria a que, por exemplo, a poluição do ar não fosse assim tão preocupante se o ser humano pudesse respirar ar “puro” com recurso a uma aparelho ou mesmo se os lagos secassem se, em contrapartida, pudéssemos substituir os serviços que esses recursos naturais nos oferecem. Uma interpretação ética nestes termos é em nossa opinião sintomática de uma crise de representação do mundo53

. Toda a problemática relacionada com a necessidade de um

50 Idem Ibidem.

51 Idem Ibidem;FAUCHEUX, Sylvie e NOEL, Jean-François. Economia dos recursos..., cit.

52 Como nos explica Rute Saraiva na sua tese de doutoramento A Herança de Quioto em Clima de

Incerteza: Análise Jurídico-Económica do Mercado de emissões num quadro de desenvolvimento sustentado. Lisboa : FDUL 2008. Tese de doutoramento.

53 A este propósito citamos FAUCHEUX Sylvie e NOEL, Jean-François Economia dos recursos ..., cit. “Logo, basta respeitar a regra de Hartwick a qual estabelece que os rendimentos provenientes da exploração de um recurso natural devem ser investidos em ativos reproduzíveis capazes de se substituir

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18 desenvolvimento sustentável levanta questões de várias ordens, entre elas, de ordem estética54

, o que nos parece muitas vezes esquecido. “Que satisfação obteríamos de uma natureza artificial? A nossa humanidade existe numa relação de interdependência55

com a natureza, com o vivo. Que sabemos nós da existência humana sem serviços ecológicos? Uma ética subjacente à substituibilidade técnica dos recursos naturais é em si desprovida de ética (desde logo pelos limites de uma mesma substituibilidade). Pensamos que não é preciso ser adepto de um biocentrismo ou da atribuição de direitos às espécies vegetais e animais para se colocar a questão de com que direito destruímos as outras espécies.

1.1.3.4 Comportamentos económicos

Como vimos os modelos económicos padrão assumem que os agentes económicos procuram sempre maximizar os seus ganhos. Já vamos ver que talvez não seja sempre assim. A ciência económica tem uma visão verdadeiramente “optimista” sobre as capacidades humanas mas pessoas em geral não são Homo economicus, as pessoas também tomam decisões bastante erradas- decisões que não tomariam se tivessem prestado a devida atenção, se estivessem na posse de todas as informações, se tivessem capacidades cognitivas ilimitadas e se fossem detentores de um autodomínio perfeito5657

. Podemos considerar que a assunção de que os agentes tendem para a otimização permite fazer razoáveis aproximações do comportamento aos inputs de recursos naturais na função de produção. Nestas condições, o critério último de equidade intra e intergeracional reside na manutenção constante, ao longo do tempo, de um stock global de capital. A questão é saber o que se entende por stock global de capital. Efetivamente, a versão mais frágil da sustentabilidade, como faz notar Turner (1993), considera a constância do conjunto do capital tecnológico, humano e natural, enquanto que uma versão mais forte coloca esta condição unicamente sobre o capital natural. Esta divergência constitui uma importante linha de clivagem suplementar entre as abordagens influenciadas pelo paradigma mecanicista e as outras. As primeiras inclinam-se para a manutenção constante do stock global de capital ao longo do tempo, o que permite conservar uma visão optimista recorrendo às hipóteses de substituibilidade entre elementos constitutivos do stock global de capital e/ou do progresso técnico.” pags. 48 e 49

54 Já dizia Dostoievski “Seguramente não podemos viver sem pão,mas também é impossível existir sem beleza” em seu livro O Idiota.

55 O humanismo moderno quis emanicipar o homem e coloco-o no centro do mundo mas basta colocar-se a questão de saber colocar-se poderíamos viver colocar-sem electricidade para vermos questionadas as condições e imperativos básicos da nosssa existência que nos leva por sua vez a questionar a nossa verdadeira autonomia enquanto espécie.

56 A behavioral law and economics evidência, nomeadamente, as limitações cognitivas dos agentes económicos. Leia-se, a este propósito, por exemplo, SUNSTEIN, Cass R. & THALER Richard H.

Nudge, estímulo, empurrãozinho, toque, Academia do Livro SUNSTEIN, Cass R. Behavioral law and economics, Cambridge University Press, 2000.

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19 humano em certos contextos mas não em todos58

. Aliás, uma abordagem económica dos problemas ambientais, quando não acompanhada de uma consciência ecológica, pode resultar num comportamento que, precisamente por ser um comportamento racional, revela-se pouco ecológico. Vejamos aquele que não tem contentor de reciclagem perto de casa, para ele não é racional deslocar-se uns metros quando tem um contentor normal à porta de casa, se para ele não retira nenhuma vantagem desse comportamento “ambientalmente correto” porque na verdade está a ter um custo acrescido. Outro exemplo: uma pessoa que, apesar de ter optado por eletrodomésticos com poupança energética, vai utilizá-los mais do que seria desejável, uma vez que aquilo que gasta está dentro das suas possibilidades orçamentais (aquilo que se pode chamar de rebound effect).

Com certeza, o paradigma mecanicista e a mecânica termodinâmica estão superados mas o que queremos demonstrar com esta resenha sobre os paradigmas da ciência é que estes conformaram praticamente todas as áreas do saber, em especial, naquilo que mais nos interessa salientar, o pensamento económico, de um forma estrutural e influenciaram fortemente as relações entre o ambiente e natureza.

Muitas das abordagens económicas revelaram-se reducionistas no tratamento de questões de grande complexidade como as que se encontram relacionadas com o desenvolvimento. A crise social e ambiental veio questionar as bases que sempre impulsionaram e legitimaram o desenvolvimento e o crescimento económico, nos quais a natureza ficava em segundo plano. O desenvolvimento sustentável surge numa vaga de renovação que marca a reflexão contemporânea sobre o desenvolvimento e assim como uma ruptura com as abordagens anteriores, forjando uma espécie de novo paradigma. Os problemas que se abordam num quadro de desenvolvimento sustentável são os mesmos (ainda que talvez mais num clima mais agravado) a forma como este conceito leva a posar as questões é que é diferente, novas dimensões são integradas na noção de desenvolvimento: a ecologia, a equidade e a justiça social.

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20

1.2 Desenvolvimento sustentável – o paradigma que aproxima as ciências da sociedade

A incursão que acaba de se fazer tem um propósito na nossa análise. Esbouçou-se, grosso modo, os paradigmas da ciência porque considera-se que o desenvolvimento sustentável traz consigo antes de mais, como já o expressámos, uma nova representação antropológica do mundo e todo um questionamento filosófico. Nesse sentido ele tem a vocação de se impôr como paradigma.

Certamente o método científico é um método altamente bem sucedido no que diz respeito a adquirir conhecimento59

mas a forma como se procurou obter esse conhecimento deu origem a uma postura de domínio sobre a natureza. A hermenêutica pós moderna viria a demonstrar que a compreensão do mundo em que vivemos é inerentemente imperfeita, pois fazemos parte do mundo que tentamos compreender60

. A hermenêutica dirigiu-se contra o conceito objectivista de conhecimento, ela superou o esquema sujeito/objecto (o sujeito cognoscente conheceria o objecto na sua pura objectividade sem mistura de elementos subjectivos – conhecimento como “reprodução” do objecto na consciência) aplicado ao fenómeno da compreensão. A compreensão é, antes, sempre simultaneamente objectiva e

subjectiva; o intérprete insere-se no “horizonte da compreensão” e não se limita a

representar passivamente o objecto na sua consciência mas antes o conforma”61

. O paradigma proposto pelo desenvolvimento sustentável ao evidenciar que nas sociedades contemporâneas, o atual padrão dominante de desenvolvimento é

59 “Somos capazes de adquirir alguma perspectiva acerca da realidade, mas quanto mais entendemos, mais existe por compreender. Confrontados com este alvo em movimento, somos susceptíveis de sobrecarregar qualquer conhecimento que tenhamos adquirido ao estendê-lo para áreas onde já não é aplicável. Desta forma até mesmo interpretações válidas da realidade serão certamente interpretações distorcidas. George Lakoff, entre outros, mostrou que a linguagem emprega metáforas em vez de lógica rígida. As metáforas funcionam através da transferência de observações ou atributos de um conjunto de circunstâncias para outro, e é quase inevitável que o processo seja levado demasiado longe. Isto pode ser facilmente visto no caso do método científico. A ciência é um método altamente bem sucedido no que diz respeito a adquirir conhecimento. (...). Mas o processo foi demasiadamente longe.” SOROS,George. O novo paradigma dos mercados financeiros...,cit.p.97.

60 NETO B. e BASSO D. A ciência e o desenvolvimento sustentável…,cit. George Soros, Ibidem, pags 66 e 67, descreve como o cérebro humano não é capaz de assimilar a realidade directamente mas apenas a informação que deriva dela, recorrendo, no processamento dessa informação a generalizações, comparações, hábitos, etc. Aquilo a que THALER e SUNSTEIN, obra citada, descrevem como heurísticas no processo de gestão e organização de informação no cérebro, como por exemplo a ancoragem, a disponibilidade e a relatividade. A este propósito também Rute Saraiva, obra citada, pags 42 e ss e 972 e ss.

(26)

21 incompatível com aquela representação do mundo e com um conhecimento científico infalível, cuja função seria a de proporcionar um controlo crescente sobre a natureza apresenta-se, assim, como a emergência de um novo campo interdisciplinar que aproxima a ciência da sociedade. De um lado fá-lo pela real aproximação da comunidade dos cientistas à sociedade civil, precisamente por uma democratização do conhecimento em virtude também do desenvolvimento da internet e dos suportes digitais. O que aliás possibilita uma maior acessibilidade em tempo útil a esse conhecimento científico, sendo, muitas vezes inclusive, os próprios cientistas que se recorrem das plataformas virtuais para partilhar os frutos das suas investigações. Fá-lo por outro lado, e directamente ligada com a primeira, porque os cientistas desçem agora do seu pedestal de únicos detentores do conhecimento e a sociedade acaba por desempenhar um papel de “escrutínio” das novas descobertas. Pense-se, por exemplo, na oposição social que os OGM enfrent(ar)am sob a égide de algumas ONG. De uma forma geral, a sociedade civil tem vindo cada vez mais a desempenhar um papel muito importante no quadro de um desenvolvimento sustentável- podendo falar-se inclusivamente numa democracia ambiental que não só é representativa como também participativa62

.

Certamente não somos ainda todos cientistas e nesse sentido temos de confiar em estudos científicos63

. Isto é, a “identificação da questão ambiental” cabe em primeiro lugar aos cientistas64

, assim como qualquer tomada de decisão deve ser cientificamente fundada. A premissa de um conhecimento cientificamente fundado65

procura obter uma maior segurança e certeza dos riscos que enfrentamos mas, como

62 A participação ambiental desdobra-se no acesso à informação ambiental, à participação nas decisões públicas e no acesso à justiça, como decorre da Convenção Arhus. Embora esta Convenção seja de aplicação limitada na prática, ela foi um importante passo em matéria ambiental estabelecendo uma relação estreita entre direitos ambientais e direitos humanos. O autor Jorge Viñuales propõe um modelo de environnemental gouvernance que assenta sobre participação, diferenciação, descarbonização e inovação e difusão tecnológica. Dentro destes ele destaca o papel da participação. VIÑUALES, Jorge. E. The Rise and fall of sustainable development, Review of European Community & International environnemental Law, 22 (1), 2013.

63 SARAIVA, Rute. A herança...,cit: “qualquer trabalho sobre a economia do carbono pressupõe a aceitação de uma condição de base: um aquecimento global real ou potencial responsável por alterações no padrão climático terrestre conhecido, sustentado por vários estudos científicos.”, p. 42. 64 GARCIA, Maria da Glória. O lugar do direito na protecção do ambiente..., cit.

65 Atente-se na redação do art. 191º/3 do TFUE : “Na elaboração da sua política no domínio do ambiente, a união terá em conta:

- os dados científicos e técnicos disponíveis,

- as condições do ambiente nas diversas regiões da União,

- as vantagens que podem resultar da actuação ou da ausência da ausência de actuação,

- o desenvolvimento económico e social da União no seu conjunto e o desenvolvimento equilibrado das suas regiões.

(27)

22 bem ilutra a professora Rute Saraiva66

, a recolha de dados científicos pode revelar-se, ela própria, problemática. As dificuldades prendem-se, desde logo, pelo facto de o cientista não ser imune a pré-juízos e enviusamentos cognitivos que transporta para o seu trabalho6768

. As pesquisas podem, também como identificado pela professora

Rute Saraiva, estar enviusadas à partida pela pretensão do cientista de chegar a um determinado resultado.

Um outro problema é um problema de independência, a investigação depende de financiamento de entidades terceiras que faz com que a pesquisa não vá propriamente ao encontro da “verdade científica” mas dos interesses daqueles que a financiam e que a pesquisa sirva, por exemplo, propósitos políticos69

. Rute Saraiva explica ainda como a heurística do medo, pela apresentação de cenários extremos apelando à emoção, é mais eficaz a mudar a opinião pública, o que pode contribuir para uma mais rápida consciencialização ecológica mas pode também servir os objectivos de regulação dos ecologistas mais conservadores ou mesmo a procura de receita pela comunicação social70

.

A este propósito parece-nos interessante invocar algumas ideias que decorrem da teoria desenvolvida por Boaventura de SOUSA SANTOS71

, na sua obra um “Discurso sobre a ciência”, na qual para além de identificar um paradigma dominante e um paradigma emergente, enuncia os quatro postulados sobre os quais se assentaria

o conhecimento científico pós moderno: 1) todo o conhecimento científico-natural é científico-social, 2) todo o conhecimento é local e total, 3) todo o conhecimento é autoconhecimento, 4) todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso comum72

. Alguns aspectos desta teoria vão ao encontro do que se disse. Do primeiro postulado decorre a ideia de que a diferença dicotómica entre ciências naturais e ciências sociais perdeu sentido e utilidade e nesse sentido o paradigma emergente

66 SARAIVA, Rute. A herança...,cit, pags 42 e ss. 67 Idem Ibidem.

68 Ver nota 55.

69 Rute SARAIVA dá o exemplo do Climategate o caso da descoberta de manipulações nos dados armazenados na Unidade de Investigação sobre o Clima da Universidade de East Anglia no Reino Unido. Obra citada p.40.

70 Para uma indagação mais profunda sobre os obstáculos à verdade científica em matéria ambiental consultar SARAIVA, Rute. A herança...,cit, pags 42 e ss.

71 Apud MOTTA LOSS, Mariana. MOTA LOSS, Marianna. Sustentabilidade a face oculta da

solidariedade. Revista do instituto de Direito Brasileiro. Ano 3. 2014 nº 10 pags. 7960

(28)

23

tende a ser complexo e não dualista como o paradigma dominante73

. Deste ponto decorreria a concepção de que ao invés de serem trazidos conceitos das ciências naturais para explicar o funcionamento das ciências sociais, são as ciências sociais que explicam ou atribuem características próprias às ciências naturais. No entender deste autor todo o conhecimento é então autoconhecimento o que seria o terceiro postulado da ciência pós-moderna. Assim a explicação científica dos fenómenos é um juízo de valor, é a autojustificação da ciência. O conhecimento como autoconhecimento revela que o objeto é uma extensão do sujeito. Esta postulado exprime aquilo que também já referimos neste trabalho, a ideia de que os valores e as crenças ultrapassam o investigador e são transpostos no objecto investigado. Segundo a teoria deste autor haveria ainda um quarto postulado o de que todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso comum. Desta forma, enquanto a ciência moderna salta qualitativamente do conhecimento do senso comum para o conhecimento científico, a ciência pós-moderna parte do conhecimento científico para o senso comum, como o reconhecimento de virtualidades que podem completar a relação da pessoa com o mundo.

Esta representação (teórica) é tanto mais interessante quanto mais ela é acompanhada da compreensão das complexidades e interrelacionamento de fenómenos e seus condicionamentos, o que aumenta drasticamente a incerteza do que cientificamente se conhece e a failibilidade dos instrumentos e metodologias de que tecnicamente se dispõe74

. Se a pessoa humana foi colocada no centro do conhecimento pelo Humanismo, hoje, no paradigma emergente, a natureza é posta no centro da pessoa na medida em que se reconhece que o homem pertence à natureza e faz parte dela. Esta recolocação do papel das ciências sociais/humanas e a conquista de que o homem faz parte do objecto que tenta compreender é um dos pontos fulcrais deste novo paradigma : não sendo o conhecimento científico (sempre) seguro e nem a técnica infalível, só o questionamento filosófico poderá sustentar as soluções encontradas, na sua incerteza e falibilidade75

.

Este novo paradigma apresenta-se assim como uma espécie de reintrodução da dúvida (metódica) mas desta vez em prol de uma abordagem holística, ligando aquilo que o método postulado pela ciência separou, a começar pelo homem da natureza. Um

73 Idem Ibidem p. 7961

74 GARCIA, Maria da Glória. O lugar do direito na protecção do ambiente...cit. 75 Idem Ibidem

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24 paradigma que é o das interdependências da relação que o homem estabelece com o seu mundo76

.

Segue-se então a necessidade de mobilizar o pensamento para ultrapassar as contradições e a complexidade. Cabe aos juristas a apreensão de novos fenómenos e de novas lógicas jurídicas, como bem ilustra por exemplo o princípio de precaução

que desafia as lógicas jurídicas tradicionais77

, o qual vive, também ele, de constantes ponderações. Perante a evolução do mundo ficamos em alerta, acometidos ao papel de reavaliar os princípios, os conceitos e as ferramentas do direito moderno já bem nossos conhecidos e solidificados, pensavámos nós. Esses conceitos manifestam cada vez mais os limites da sua pertinência e da sua capacidade de capturer o objecto e a lhe fazer compreender. Somos então obrigados a repensar as classificações e as categorias mas essa é uma tarefa de gigante que nos leva a repensar a normatividade ou mesmo o Direito.

A primeira dificuldade é, desde logo, a confusão conceptual que marca os nossos tempos, da qual o conceito de desenvolvimento sustentável é provavelmente o supra-sumo dos exemplos. Já dizia Levy Strauss “a tarefa essencial de quem consacra a sua vida às ciências humanas é de se lancer naquilo que parece o mais arbitrário, o mais anárquico e mais incoerente e tentar encontrar uma ordem subjacente ou, pelo menos, ver se existe uma ordem subjacente”78

76 Emilie GUILLARD: passa-se de um humanism de separação para um humanism das interdepências em GUILLARD,Emilie. Vers un nouvel humanisme? Entre un humanisme de séparation et un

humanisme d’interdependance, transnational et transtemporel (générations futures). In

DELMAS-MARTY, Mirelle L’environnement et ses métamorphoses. Edition Hermann, Paris 2015, pag. 227 77 Onde as lógicas jurídicas tradicionais requerem uma certitude absoluta de perigo o princípio de precaução impõe uma dever de vigilância. Idem Ibidem p. 227

78 Citação retirada de FRYDMAN, Benoît. Comment penser le droit global? Working Papers du Centre

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