O JUÍZO SOBRE O JUIZ (O)
OS JUÍZES NÃO TÊM HONRA?
ANA LÚCIA SOARES GOMES
___________________________________________________
Dissertação de Mestrado em
Comunicação,
Media
e Justiça
ii
Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do
grau de Mestre em Comunicação, Media e Justiça, realizada sob a orientação científica do senhor Professor Doutor Hermenegildo Ferreira Borges e co-orientação da senhora
iv
Aos orientadores, diz Eco, não deve agradecer-se, no pressuposto de que não
terão feito mais do que a sua obrigação. No entanto, o agradecimento impõe-se pois
sem a sua colaboração o caminho teria sido trilhado com muito menos confiança.
Ao senhor Procurador e Professor convidado Plácido Conde Fernandes que deu
estímulo à primeira reflexão quando, entre outros, apresentou para exploração o texto
do autor espanhol Jesus Morate, também juiz, sob o título «El juez como objeto de la
critica por los medios de comunicación. Adecuación y extralimitación de la critica.
Formas de reacción frente a las extralimitaciones».
Ao senhor Professor Rogério Ferreira de Andrade que, na parte letiva,
apresentou a matéria atinente às organizações e comunicação estratégica, abrindo
uma janela cheia de perguntas.
Ao Conselho Superior da Magistratura que colaborou na viabilização da
divulgação pelos destinatários do link de acesso ao questionário elaborado.
v
RESUMO: Este trabalho tem por tema o juiz como objeto de crítica na sociedade contemporânea, democrática, maxime, europeia, marcada pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que tem dado ênfase à liberdade de expressão. Tem início, porém, com a análise de conceitos prévios como o de Justiça e o de ”bom juiz”, a organização do sistema de justiça em Portugal e da própria liberdade de expressão, para analisar, depois, os juízos formulados sobre o juiz (pessoa, procedimento) ou sobre o seu juízo (decisão). Partindo então da afirmação do princípio da liberdade de expressão, desenvolve-se o trabalho tendo por referência um dos fins das limitações que o art. 10.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem contempla, a saber, a garantia da autoridade e imparcialidade do poder judicial, além da honra. São enunciadas algumas decisões judicias nacionais e analisadas outras europeias e, regressando ao contexto nacional, referem-se as reações aos abusos da liberdade de expressão, com especial relevo para a dimensão criminal do fenómeno, adiantando possíveis caminhos quer neste domínio, quer no campo da reputação dos tribunais e juízes, objeto do exercício da liberdade antes afirmada.
ABSTRACT: This work is about the judge as an object of criticism in contemporary European society. The European Court of Human Rights has set freedom of speech as a top priority. After reviewing the concept of justice, as well as the assumptions on what a good judge might be, I analyse the Portuguese judicial system take on the freedom of speech. My goal is to measure how the freedom of speech is manipulated by the Portuguese press regarding court decisions. Finally, I suggest ways of framing freedom of speech within the Portuguese judiciary system in regard to the Portuguese press and the handling of verdicts.
O JUIZO SOBRE O JUIZ(O) – OS JUÍZES NÃO TÊM HONRA ? PUBLIC OPINION AND JUSTICE: IS THE JUDGE UNTOUCHABLE?
ANA LÚCIA SOARES GOMES
PALAVRAS-CHAVE: autoridade do poder judicial; crime; crítica; democracia; direito de resposta; honra; imparcialidade; indemnização; jornalista; juiz; Justiça; lei; liberdade de expressão; media; reputação; separação de poderes; tribunais; verdade.
vi
ÍNDICE
ÍNDICE
NOTA PRÉVIA
INTRODUÇÃO
I. A JUSTIÇA
1.1.A VIRTUDE, O VALOR E O RESULTADO DA AÇÃO DOS HOMENS
1.2.A DEMOCRACIA E A SEPARAÇÃO DE PODERES
1.3.A ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA DE JUSTIÇA: OS TRIBUNAIS
1.4.A VERDADE PROCESSUAL
II. O JUIZ
2.1.AS FUNÇÕES EM GERAL E O ATO DE JULGAR EM PARTICULAR
2.2.O JUIZ E A LEI
2.2.1.A perpetuidade das leis vs. a inflação legislativa 2.2.2. A lei clara vs. a lei embrulhada
2.2.3. O dever de obediência à lei vs. a lei injusta
2.3.O JUIZ PERFEITO: CARACTERÍSTICAS DO BOM JUIZ
2.3.1. A pessoa
2.3.2. O procedimento: cumprindo os princípios do contraditório, da imediação e da imparcialidade
2.3.3. A decisão: Como fundamentar? Como comunicar?
III. A JUSTIÇA E OS MEDIA E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO
3.1.A LIBERDADE DE PENSAMENTO E DE EXPRESSÃO E O DIREITO AO INSULTO
3.2.LIBERDADE DE EXPRESSÃO: UM VALOR ABSOLUTO?O ART.10.º, N.º 1, DA CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM
3.3.MEDIA VS.JUSTIÇA/JUIZ VS. JORNALISTA ?
IV. O JUÍZO SOBRE O JUIZ(O)
4.1.A CRÍTICA EM GERAL E A HONRA
4.2.A CRÍTICA AO JUIZ
4.2.1. A pessoa
4.2.2. O procedimento: alguns problemas como a lentidão excessiva, a televisão na audiência e fatores conexos à independência
4.2.3. A decisão
4.3.A CRÍTICA INTERNA – INFORMAL E INSTITUCIONAL (OS RECURSOS E AS INSPEÇÕES)
4.4.A CRÍTICA PÚBLICA (ATRAVÉS DOS MEDIA)
4.5.ACONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM: A AUTORIDADE E A IMPARCIALIDADE DO PODER JUDICIAL PREVISTA NO N.º 2 DO ART.10.º DA CONVENÇÃO
4.6.A JURISPRUDÊNCIA
4.6.1. Alguns exemplos nacionais
4.6.2. Jurisprudência europeia: casos velhos, novos ou históricos
V. OS ABUSOS DA CRÍTICA
vii 5.2.A VIOLAÇÃO DO DIREITO DE PERSONALIDADE E A INDEMNIZAÇÃO POR DANOS
5.3.OUTRAS REAÇÕES
5.4.UMA POSIÇÃO RELATIVAMENTE À CONDUTA DO JORNALISTA
VI. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A REPUTAÇÃO DOS JUÍZES
6.1.DA DEFERÊNCIA À DESQUALIFICAÇÃO
6.2.DA DESQUALIFICAÇÃO AO RESPEITO
6.3.DO RESPEITO À CONFIANÇA.A ACCOUNTABILITY
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS
ANEXOS
ANEXO I–O QUESTIONÁRIO: NOTA EXPLICATIVA
viii LISTA DE ABREVIATURAS
Art. — Artigo
ASJP — Associação sindical dos juízes portugueses
CC — Código Civil
CCJE — Consultative council of european judges
CEDH — Convenção Europeia dos Direitos do Homem
CEJ — Centro de Estudos Judiciários
CP — Código Penal
CPC — Código de Processo Civil
CPP — Código de Processo Penal
CRP — Constituição da República Portuguesa
CSM — Conselho Superior da Magistratura
DUDH — Declaração Universal dos Direitos do Homem
EMJ — Estatuto dos Magistrados Judiciais
ERC — Entidade Reguladora para a Comunicação Social
LOFTJ — Lei de organização e funcionamento dos Tribunais Judiciais
ONU — Organização das Nações Unidas
RC — Tribunal da Relação de Coimbra
RE — Tribunal da Relação de Évora
RG — Tribunal da Relação de Guimarães
RL — Tribunal da Relação de Lisboa
RP — Tribunal da Relação do Porto
STJ — Supremo Tribunal de Justiça
ix
Nota prévia
A presente dissertação constitui a componente não-letiva do mestrado em
“Comunicação, Media e Justiça”, organizado em parceria científica e pedagógica pelas Faculdades de Ciências Sociais e Humanas e de Direito, ambas da Universidade Nova
de Lisboa.
Mas do que aqui se trata é, além do espírito de colaboração entre as
Faculdades de uma mesma universidade, a união de saberes que permitiu que
licenciados em direito e de comunicação se encontrassem e aprendessem mais, sem
deixar de interpelar quem à partida estava do outro lado: um encontro feliz ainda que
o caminho se afigure trabalhoso e arriscado, porque é sempre mais fácil permanecer
em “zonas de conforto”, o mesmo é dizer, que nos são mais familiares.
Optámos por traduzir os autores cujas obras consultámos, com a clara noção
de que a tradução não deixa de ser uma interpretação e recriação do que o autor terá
pretendido transmitir, como salienta Joana Aguiar e Silva na obra Para uma teoria hermenêutica da justiça – Repercussões jusliterárias no eixo problemático das fontes e da interpretação jurídicas.
Por razões de ordem prática (em concreto, o acompanhamento do filho mais
velho que ingressava no 1.º ano, exatamente no ano em que as regras foram aplicadas
nas escolas e nos manuais) adotámos no quotidiano o acordo ortográfico. Como disse,
foi uma escolha sem convicção, mas foi uma escolha que também está refletida no
trabalho agora apresentado.
Por outro lado, sem deixar de fazer referência às regras legais pertinentes em
vigor, optámos por integrá-las em nota de rodapé. Não que a incursão em outras áreas
do saber signifique uma subalternização da lei (como pode ser interpretado), mas,
mais uma vez, por razões de ordem prática, permitindo assim uma leitura corrida e
mais facilmente apreensível, no fundo o que qualquer autor, no domínio académico ou
1
INTRODUÇÃO
“Human beings flourish in seeking conditions of justice, freedom,
equality, and community with each other.”1
O tema desta dissertação é o seguinte: o juiz como objeto de crítica.
A justiça é parâmetro fundamental da vida em sociedade: a injustiça gera
resignação ou indignação mas seguramente sempre infelicidade.
Por outro lado, é inegável a afirmação da liberdade e da liberdade de expressão
em Estados de direito democrático. Neste contexto, os titulares de órgãos de
soberania, em concreto, os juízes (que administram a justiça), não escapam à crítica.
Há o juiz perfeito? Que características tem? A que regras deve obedecer o
procedimento? Pode ou não ser o juíz objeto de crítica?
A crítica interna até faz parte do sistema.2 Todavia, quais serão os argumentos
mais usados para pôr em causa a pessoa, a decisão ou o procedimento do juiz? A
crítica tem, porém, maior visibilidade e perdura através dos media. A crítica pública do juiz através dos media existe? E será a liberdade de expressão um valor absoluto?
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no art. 10.º, n.º 2, prevê
limitações àquela liberdade, como a que é imposta pelo valor da honra mas também
pelo princípio da autoridade e imparcialidade do poder judicial. Propomo-nos analisar
alguma jurisprudência nacional (das Relações e do Supremo Tribunal de Justiça)3 e
europeia sobre a matéria e apurar em que medida aqueles valores se sobrepõem ao
da liberdade.
1
Hugh Heclo, On thinking institutionally, p. 153.
2 Cf. os recursos e os relatórios de inspeção.
3 Deixamos de parte jurisprudência da primeira instância (não existe uma base de dados que permita a
2
Equacionando o cenário de abuso da crítica (não tutelado pela liberdade de
expressão?), enunciamos as possíveis reações (criminal, civil, administrativa e outras)
do ordenamento jurídico português e questionamos a coerência de algumas soluções
nele previstas.
Mas a investigação preliminar permite supor que a liberdade de expressão, na
vertente da crítica, tem maior valia, se não pelo resultado das decisões (em alguns
acórdãos do TEDH é dada prevalência ao n.º 2 mas com votos de vencido
consistentes), tê-la-á, possivelmente, pela força dos argumentos. Então, qual pode ser
a repercussão dessa crítica na reputação da instituição Tribunal e dos juízes? Qual a
perceção dos juízes portugueses? E de que modo tal pode influenciar o sentimento da
comunidade de que vive numa sociedade mais justa ou injusta, sobretudo num tempo
de “crise de autoridade”?
Sobre a concreta perceção dos juízes quanto às matérias que analisamos,
realizámos um inquérito por questionário cuja “ficha técnica” consta do anexo I.
Apesar da expressão, não se trata de método a ser apreciado à luz do rigor da
estatística e de critérios científico-sociológicos (não temos aqui margens de erro ou
perguntas codificadas). Não era esse o objeto principal de estudo nem tínhamos nós
conhecimentos ou meios para realizar tal tarefa. Com isso, cremos não estar a pôr em
causa a pertinência do método ou dos seus resultados. Apenas para que fique claro,
não pretendemos fazer qualquer extrapolação relativamente aos “não respondentes”;
daí a constante referência aos “juízes inquiridos”, como os efetivamente inquiridos e
respondentes, no fundo, o objeto disponível, as respostas dadas (como consta do
anexo II).
Pedimos às senhoras juízas e senhores juízes que exprimissem a sua opinião e
aqueles que aceitaram colaborar deram-na de forma participativa, acrescentando
respostas suas, comentários ou explicações.
3
Talvez porque “[o] leitor que está no livro não consegue ler o livro que está no
livro”4 e porque “[o] livro que está no livro não conta [não pode contar, ou não pode
só contar] a história do leitor que está ali”. A tentação de contar histórias é imensa,
mas neste trabalho não se pretendeu expressar a experiência da autora. Por isso, e
porque não pode ser esse o objeto de um trabalho académico, optámos por ouvir os
outros que diariamente cumprem a função de administrar a justiça em nome do povo.
Dos que ouvimos, dizemos agora, findo o trabalho, com confiança, que “o leitor
que está no livro pretende ser o leitor que está ali”. Explicando: os juízes inquiridos
manifestaram ter uma ideia muito concreta do que é ser (e não ser) “bom juiz”, quer
quanto às características pessoais e técnicas quer quanto ao posicionamento do
tribunal em face da comunicação social e, em concreto, das posições críticas que sobre
os mesmos podem incidir, além de se manifestarem no sentido de que é muito
importante que os juízes e os tribunais gozem de reputação na sociedade, dentro das
hipóteses que, no início, equacionámos.
I. A JUSTIÇA
“(…) l’object propre de la philosophie est l’étude de ces
notions prestigieuses, fortemente colorées au point de vue émotif,
que constituent les valeurs les plus hautes, de sorte que l’accord sur
leur sens conceptuel est presque irréalisable. Car ses notions, à
cause de leur sens émotif bien caractérisé, constituent le champ de
bataille de notre monde spirituel.”5
1.1. A virtude, o valor e o resultado da ação dos homens
De entre as notions prestigieuses, para Perelman (1990: 17), a noção da justiça “parece ser, além das mais eminentes, a mais irremediavelmente obscura.”
4 Adaptação da fórmula usada por Italo Calvino, em Se numa noite de inverno um viajante (trad. de
Maria de Lurdes Sirgado Ganho e José Manuel de Vasconcelos, 2.ª ed., Lisboa, Veja, 1993), na p. 253 (apêndice I), de onde constam também as referências seguintes.
4
Porventura, como afirma o mesmo autor6, por ser considerada por muitos como a
principal virtude, a fonte de todas as outras7, um valor universal8, ainda que com
vários sentidos, e alvo – assim como o seu contrário, a injustiça – de tanta atenção
cuidada, a ponto de mais de dois mil anos passados, a Ética a Nicómaco9, de Aristóteles (384 a. C. – 322), se manter objeto de estudo e de citação.
No propósito de contribuir para a dilucidação do conceito em presença,
António Hespanha refere: “Devemos afirmar que, como é dito pelo Filósofo
[Aristóteles] no livro V da Ética, a equidade é uma justiça melhor do que a justiça legal, que se conforma com as palavras da lei. De facto, embora a justiça legal seja uma
espécie de justiça, não é a melhor de todas” (Hespanha, 2001: 1196).
Mas eis que nos é dado descobrir Ricoeur10 que verbaliza a experiência
ontogenética do injusto que todos vivemos – “a injustiça antes da justiça” - evocando
as lembranças da infância, uma experiência concreta clarificadora. O autor afirma que
«a nossa primeira entrada na dimensão do direito foi marcada pelo grito É injusto! Este grito é o da indignação», uma “palavra de protesto”11 provocada por “partilhas
desiguais”, “promessas não cumpridas”, “punições desproporcionadas em relação às
nossas supostas faltas” e “retribuições não merecidas”.
Que soluções? A resignação? A violência? “(…) Em certas circunstâncias, a
violência – o agir sem argumento ou discurso e sem atender às consequências – é a
única forma de restabelecer o equilíbrio da justiça (Billy Budd12 que matou o homem
que contra ele prestara falso testemunho é o exemplo clássico). Neste sentido, o ódio
e a violência que algumas vezes – nem sempre – o acompanha estão entre as emoções
humanas “naturais”, e retirar ao homem tais características significaria desumanizá-lo”
(Arendt, 1970: 64).
6Idem, ibidem.
7 Cf. Platão, República, 6.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1990, 513 p. 8 Perelman, op. cit., no capítulo I, ponto 5 “cinc leçons sur la justice” (1990: 179). 9
Entre outras, cfr. a 3.ª ed/reimp. de 2009, Quetzal editores, Lisboa, 320 p.
10
Na sua obra O Justo ou da essência da Justiça, pp. 10-11.
11 Lucas, J.R., On Justice , Oxford: Oxford University Press, 1980, citado por Moura (1996: 4).
12 Conto com o mesmo nome de Herman Melville (1819-91) publicado postumamente em 1924 que
5
Ocorre que a pretensão de fazer justiça por si mesmo tem o risco de se juntar a
violência à violência13, o sofrimento ao sofrimento. Daí a instituição de um terceiro que
não seja nenhum dos protagonistas,14 imparcial, equidistante em relação às partes,
que afirma o que é justo em cada caso, o juiz, e afirmando-se a proibição da
autotutela. Daí a multiplicação de tribunais nos Estados, nas organizações (como o
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem15) e na comunidade internacional (Tribunal
Internacional de Justiça16 e Tribunal Penal Internacional17).
Como no-lo faz notar Hannah Arendt, “[o] fim da guerra – entendido num
duplo sentido – é a paz ou a vitória; mas à pergunta “E qual é o fim da paz?” não há
resposta. A paz é um absoluto (…)” (Arendt, 1970: 51).
A verdade é que a indignação face à injustiça permanece, quer no domínio
familiar (como exemplo, as partilhas desiguais entre os irmãos, as promessas que os
pais não cumprem), quer em campos mais alargados. Quando em outras paragens se
não cumprem os mais elementares direitos fundamentais (desde logo, o direito à vida,
através da execução da pena de morte após um julgamento justo18 ou processo marginal, no âmbito de organizações mafiosas) e não existe reação formal sobre os
seus autores… Quando aqui perto se desenvolve uma administração poderosa a que
não se reage porque “não vale a pena”.
Esta sofrida experiência conduz, como vimos, a um desejo de vingança e à
multiplicação da violência, a uma «ordem estremecida» (para fazermos nossa a
expressão de Habermas, 2001: 575), ou a um estado de resignação – “an era of
13
A mesma convicção está presente na frase eloquente de Hanna Arendt (1970:80): “A prática da violência como todas as ações, transforma o mundo, mas a transformação mais provável é num mundo mais violento.”
14 Ricoeur, op. cit., p. 11.
15 Um dos organismos criado pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem para assegurar, além do
mais, o respeito pelos direitos dos indivíduos que os Estados contratantes se vincularam a observar.
16 Órgão da ONU que exerce, entre outras, a função jurisdicional, condicionada porém por um ato de
aceitação (que pode ser prévia ao conflito) do Estado que se submete a tal jurisdição.
17 Foi precedido nos anos 90 por Tribunais especiais para julgamento de crimes ocorridos na
ex-Jugoslávia e no Ruanda. Em 1998, 120 países adotaram o Estatuto de Roma, lançando as bases para um tribunal permanente. Entrou em vigor em 2002 após ratificação por 60 países.
6
supercivilized monkeys” ou “man turned into a chichen or a rat”19, em ambos com
muito sofrimento.
*
Ao longo dos tempos têm sido elaboradas e difundidas várias conceções de
justiça, afirmando a mesma como valor e a injustiça como o seu contrário.
“A justiça é, em primeiro lugar, condição de existência da sociedade política”
(Homem, 2003: 132).
Longe vão os tempos em que o poder de quem afirmava o que era justo era
atendido sem questões ou dúvidas, o tempo em que a principal função dos reis era
entendida como um dever de fazer justiça. “Uma ideia geral de infalibilidade do poder
dos reis que actuam como julgadores justifica que se atribua ao príncipe que não
conhece superior o que se nega aos julgadores: julgar segundo a consciência e não
segundo o estritamente alegado e provado poder justificado com a afirmação teórica
de superioridade do príncipe à lei” (Homem, 2003: 133).
Sobre a soberania da Lei, emanada do Príncipe legislador único e soberano, e
sobre o lugar discreto do juiz na sua aplicação, peroravam já as Ordenações Filipinas
nestes termos: “… E assi dê [o julgador] a sentença definitiva, segundo que ahar
aleegado e provado de huma parte e da outra, anda que lhe a consciência dicte outra
cousa, e elle saiba a verdade ser em contrario do que no feito for verdade; porque
somente ao Príncipe, que não conhece Superior, he outorgado per Direito, que julgue
segundo a sua consciencia, não curando de allegações, ou provas em contrario, feitas
pelas partes, por quanto he sobre a Lei, e Direito nã presume, que se haja de
corromper por affeição”20.
Também não vivemos dominados pelos ordálios da Alta Idade Média, em que
se submetia “o acusado à prova do ferro em brasa ou da água gelada (ou outras
numerosas formas de prova previstas pelos usos locais)” (Prodi, 2002: 50). O resultado
manifestava a culpabilidade ou inocência.
7
Hoje, além das regras substantivas, o juiz percorre um caminho pré-definido na
lei (que vai dizendo qual o próximo passo) até ao momento da decisão final. E se um
mau processo pode condicionar a justiça do caso concreto, a decisão final, não há
dúvida de que a finalidade última de qualquer atividade judicial é a da sentença justa e
equitativa, adequada ao caso concreto, a concretização de uma regra de justiça.
A esta luz, “[a] questão da justiça está no cerne das questões que as sociedades
contemporâneas se colocam: sobre o seu funcionamento e sobre o seu futuro, bem
para além das opiniões sobre a justiça ou dos recursos efetivos à justiça” (Commaille,
2009: 104).
1.2. A democracia e a separação de poderes
Democracia: vocábulo com origem na Grécia antiga (demos-kratein) que significa governo ou poder do povo. Ao longo dos tempos o conceito foi sendo
densificado, de tal modo que, num sistema democrático vigora o princípio da
igualdade (entre todos os cidadãos, e destes perante a lei) e o da liberdade.
Hannah Arendt sustenta que “não é necessário justificar a existência do poder
já que é inerente à existência das comunidades políticas; do que precisa é de
legitimidade” (Arendt, 1970: 52).
Dada a impossibilidade de todos e cada um dos cidadãos exercerem o poder
em toda a sua extensão e complexidade (democracia direta), afirmou-se então a
democracia representativa, nos termos da qual o povo escolhe por eleição os seus
representantes que tomarão decisões políticas.
E, no caso português, a partir da Constituição de 1822, foi afirmado o princípio
da independência entre os poderes, distinguindo entre: poder legislativo = feitura de
leis21; poder executivo = governo22; poder judicial = administração da justiça. Essa
21 É a Assembleia da República e o Governo que têm competência legislativa – arts. 161.º, 164.º, 165.º e
198.º da Constituição da República Portuguesa.
22
8
tripartição de poderes foi importada pela generalidade dos sistemas democráticos e
refletida e densificada nas Constituições dos Estados.
Hoje, o art. 2.º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe Estado de direito democrático, reafirma isso mesmo23.
Trata-se, sem dúvida, de uma aquisição civilizacional ainda que um conceito
diluído no atual constitucionalismo reduzido a um critério genérico de uma limitação
do poder do Estado24, no sentido em que são atribuídos poderes a diferentes órgãos
daquele.
Para melhor compreender a natureza do poder e a função do Estado importa
ter presente a seguinte advertência de António Hespanha:
“Mas é, na verdade, ao Estado (na sua acepção larga de «centro do exercício do poder politico») que compete definir os detentores do poder legislativo e judicial (…) Esta definição é feita, em primeiro lugar, através das normas jurídicas que estabelecem o elenco das fontes de direito, as quais legitimam certos sujeitos-agentes para a tarefa de criar ou declarar o direito.
Em segundo lugar, a definição dos detentores do poder jurídico-normativo é feita através das normas que estabelecem o sistema de «aplicação» do direito e que
correspondem, grosso modo, às que estabelecem a organização judiciária”
(Hespanha, 1977: 41).
Como afirmou, mais recentemente, Ferrajoli (2008: 13) “a separação de
poderes é sobretudo uma separação que deve ser estabelecida entre duas classes: as
funções representativas, de governo, legislativas, e as funções de garantia. As funções
de garantia devem ser independentes, seja por serem actividade cognoscitiva (…) seja
por serem uma actividade de tutela dos direitos fundamentais.”
23 A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no
pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.
24 Silva (2011:191), citando Rafael Agapito Serrano (Libertad y división de poderes: el “contenido
9
Numa conceção primária de democracia, o poder legislativo está legitimado
pelo facto de os seus titulares, representantes do Parlamento, serem eleitos e
controlados por eleições gerais e livres. Segundo Alexy (2006:14), estamos perante um
modelo de democracia puramente decisionista25.
Assim, conclui-se com facilidade que os juízes, ao não serem eleitos, não
contam com qualquer legitimação democrática direta tendo em conta o critério acima
avançado.
Mas o art. 202.º da Constituição26 prevê que os tribunais administram a justiça
em nome do povo.
Robert Alexy fala em representação argumentativa.
Sobre esta incontornável questão da legitimação dos juízes, Ferrajoli (2008: 12),
em entrevista concedida à revista Julgar, e assim de forma coloquial e perfeitamente apreensível, afirmou:
“[a] legitimação dos juízes – a legitimação política dos juízes – não tem nada que ver com a representatividade política, isto é, não é uma legitimação do mesmo tipo da exigida para funções de governo ou legislativa, precisamente porque a jurisdição é uma função de garantia secundária, que intervém para protecção do Direito e dos direitos, mesmo perante os poderes públicos (…) a legitimação política – política no sentido representativo – justifica-se quanto às actividades que dizem respeito àquilo que chamei a esfera do “decidível”, ou seja, àquela função que a política tem de inovar, produzir normas, dentro dos limites e com os vínculos estabelecidos pelas leis sobre a produção jurídica, no respeito do legislador pela Constituição (…)”.
Tomando como ponto de partida a obra e o pensamento de Sherwin,27 em
When law goes pop, Hespanha (2010: 217) refere-se à forma como o equilíbrio
25 Não é aqui o espaço de discussão de matérias como o grau de abstenção nas eleições, a
responsabilidade política ou jurídica dos titulares de cargos políticos, etc.
26 Art. 202.º 1.Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em
nome do povo. 2. Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.
27
10
constitucional dos poderes permite a interação de diferentes narrativas: “(1) o senso
comum da opinião pública (doxa) no conhecimento adquirido no curso de nossa experiência ordinária de vida (na tela e fora dela), ou (2) a prudência da interpretação
judicial baseada no conhecimento jurídico especializado e em habilidades de
interpretação e persuasão relativas à aplicabilidade e ao sentido de regras jurídicas,
politicas, e princípios jurídicos fundamentais específicos ou (3) as competências de
formulação especializada dos membros do legislativo (…)”. Acrescenta o autor
português que “o perigo surge quando o equilíbrio é quebrado”.
Em Portugal, um deputado pode em determinado período da vida contribuir
para a feitura de uma lei - por definição, geral e abstrata - susceptível de afetar
milhões de pessoas; um ministro pode tomar outras tantas decisões que afetem outras
tantas noutro período de tempo. Os juízes ingressam numa carreira28 e transformam a
sua vida em dirimir em cada dia conflitos entre as pessoas nos mais diversos planos:
condenam um empreiteiro na reparação de defeitos num edifício, condenam o ladrão
a sete anos de prisão, decidem com quem vive a criança de cinco anos, condenam o
empresário a pagar uma indemnização a um seu trabalhador ilicitamente despedido,
mas também condenam as vedetas, mas também condenam uma grande empresa a
pagar uma indemnização por danos ambientais… E fazem-no durante toda a vida ativa.
Trata-se, pois, de uma fonte de poder indiscutível e daí se temer, de quando
em vez, o “governo dos juízes”; “(…) as expressões “judiciarização da sociedade” e
judiciarização da política” são cada vez mais utilizadas para designar o que seria a
extensão do papel da justiça na gestão das relações sociais, no tratamento dos
28 O ingresso está regulado pela lei n.º 2/2008, de 14 de janeiro e prevê que o candidato seja licenciado
11
“problemas da sociedade”, no tratamento das transgressões (da delinquência comum
à delinquência política, da corrupção aos “crimes contra a humanidade”), na regulação
das trocas económicas” (Commaille, 2009: 104).
Esta “judiciarização” é desde logo definida como um crescimento do poder dos
tribunais face ao poder legislativo e executivo29, suscitando questões como a que
coloca Guarnieri (2003:13) ao dar o nome a um capítulo [h]ow to guard the guardians.
Se é certo que na sua génese “[a] representação da justiça como instituição foi
inspirada pela natureza fora do comum das funções cumpridas com uma referência
implicitamente ligada à ideia de transcendência (ver, por exemplo, a arquitectura
judicial, os rituais….)” (Commaille, 2009: 10130), importa referir o surgimento, no
tempo presente, de uma tendência de novo tipo que também se verifica em Portugal:
a tendência para alinhar a justiça e outras instituições públicas, como que incluindo
aquela numa nova administração pública, com preocupações de quantidade, de
“otimização organizacional” que se sobrepõem à finalidade de fazer justiça.
Esta visão não é partilhada pelos juízes que colaboraram no nosso inquérito.
Dos 110 inquiridos, nenhum indicou a produtividade numérica31 como o critério único
para dar corpo à ideia do “bom juiz”. É verdade que 15, nos comentários que fizeram,
incluíram tal indicador de entre outros, considerados de forma conjugada. Isto leva a
supor que os juízes sobrepõem regras de procedimento e resultado das ponderação à
produtividade numérica, ao presidir a uma audiência, a despachar processos ou
elaborar sentenças.
29Idem, ibidem.
30 Citando entre outros autores, Antoine Vauchez e Laurent Willemez, La justice face à ses réformateurs
(1980-2006). Paris, PUF, 2007.
12
Questão diferente é a de anomalias no sistema que permitem que o Estado
Português tenha sido condenado por várias vezes32 por violação do art. 6.º da
Convenção33 por não ter sido respeitado o “tempo razoável”34.
1.3. A organização do sistema de justiça: os tribunais
Não pode existir justiça na sociedade sem tribunais para a fazer aplicar
(Homem, 2003: 132).
A institucionalização no que toca à realização da justiça responde, por um lado
e desde logo, a uma necessidade de organização das atividades humanas.
W. Richard Scott35 define instituições como “as estruturas e actividades
cognitivas, normativas e reguladoras que dão estabilidade e sentido ao
comportamento social”. Por seu turno, Rogério Ferreira de Andrade36 faz-nos notar
que “institucionalizar é produzir uma distinção de sentido, a qual se repete como
procedimento organizado e, ao repetir-se, sedimenta-se e adquire um estatuto, uma
legitimidade consentida aos olhos de comunidades existentes ou dos próprios
indivíduos, implicando ainda - para além da duração, da diferenciação e da
organização de sentido - que, mediante regras, se normalizem e sancionem os desvios
ao instituído”.
32
Computando o período de 1959-2011, foram 90 as condenações do Estado Português por lentidão – cf. “table of violations 1959-2011” disponível no sítio do TEDH (www.echr.coe.int). Os números apresentados são absolutos e não ponderam a data de início da jurisdição do TEDH sobre cada Estado nem a sua representatividade tendo em conta o número de habitantes por país. De todo o modo, e tendo em conta os números, Portugal está muito à frente da Polónia (412 condenações), Turquia (493), Ucrânia (259) e Grécia (403), Itália (1155) ou França (281) e muito atrás do Reino Unido (26), Paises Baixos (8), Espanha (12) ou Montenegro (1) e Noruega (2).
331. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num
prazo razoável (sublinhado nosso) por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.
34
Cf. 4.2.2.
35
Cf. Rogério Ferreira Andrade (2003:2)
13
É verdade que, além dos tribunais comummente conhecidos como tal (os
tribunais judiciais), existem formas de resolução de litígios que não passam por estes
tribunais (vide, por exemplo, os tribunais arbitrais ou os julgados de paz37). Acresce
que, sem prejuízo da função de controlo do juiz, a execução das decisões cíveis tem
hoje como protagonista o agente de execução, solicitador, profissional externo ao
tribunal38.
No entanto, iremos deter-nos nos tribunais enquanto órgãos do Estado e de
soberania39 e nestes nos tribunais judiciais40 e enunciar regras em vigor que,
necessariamente, comportam exceções que não apreciaremos.
Uma das características destes tribunais lembradas por Guarnieri
(2003:151-152), é a de a sua ação não estar dependente da vontade de ambas as partes em
litígio, como acontece na mediação ou na arbitragem. Isto é, o procedimento é
configurado em geral como uma disputa, uma parte contra a outra.
Os tribunais judiciais são41 por ordem crescente de hierarquia, os Tribunais
Judiciais de primeira instância, os Tribunais da Relação (Porto, Guimarães, Coimbra,
Lisboa e Évora) e o Supremo Tribunal de Justiça. Em regra, um certo caso começa por
ser submetido à apreciação do tribunal de primeira instância. Este tribunal pode ter
uma competência genérica (situações de todas as áreas são julgadas por um mesmo
juiz) ou competência especializada (consoante a matéria assim é distribuído o processo
no tribunal respetivo: instrução criminal, crime, família e menores, trabalho, comércio,
propriedade intelectual, assuntos do mar, execução de penas, execução, cível).
37«Estes representam de todo o modo uma solução “de reserva”, se não de “série B”» (Taruffo,
2009:199).
38 Veja-se o art. 808.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que prevê que cabe ao agente de execução (…)
efectuar todas as diligências do processo de execução.
39 Sem atender, porém, às particularidades do tribunal constituído por juízes sociais (áreas dos menores
e do trabalho) ou por jurados (área criminal).
40 Excluindo o Tribunal de Contas e os Tribunais Administrativos e Fiscais a que o art. 209.º, n.º 1, da
Constituição também alude.
41
14
Após decisão na primeira instância, não se conformando alguma das partes
com o resultado, então, pode recorrer. O recurso visa a alteração ou revogação da
decisão antes proferida42.
Quando não é possível recorrer uma vez mais – por ausência de instância
superior ou por decurso do prazo de recurso – diz-se que a decisão judicial transitou
em julgado e torna-se, sem dúvida, obrigatória43.
1.4. A verdade processual
Na fundamentada opinião de Ibáñez, “[e]xercer a jurisdição é dizer
imparcialmente o direito numa situação controvertida ou de conflito. Portanto, com
referência a um estado de coisas que se apresenta ao juiz como problemático para que
decida mediante a aplicação da norma que lhe corresponda” (Andrés Ibáñez, 2006:
19).
O processo judicial é definido como uma sequência de atos praticados pelas
partes e restantes sujeitos processuais com a finalidade de vir a ser proferida uma
decisão e que culmina, justamente, com a decisão do juiz: primeiro, decisão sobre se
certo facto aconteceu e que se enuncia e, numa segunda fase, a decisão de qual a
consequência para os autores ou vítimas desse acontecimento.
Parece, pois, que o conceito de processo está intimamente ligado ao de
verdade. Sucede que raros são os casos em que o juiz tem conhecimento direto dos
factos (prova direta em sentido estrito). O julgador deve ser um terceiro imparcial e,
portanto, algum ponto de contacto pessoal com a situação pode gerar incidente de
recusa ou suspeição44. Por isso, a verdade processual não coincide necessariamente
com a verdade ontológica45. Quem esteja fora do meio com certeza que ouve esta
42 Cf. 4.3.
43 Art. 205.º, n.º 2, da Constituição e art. 677.º do CPC quanto à noção de trânsito em julgado. 44
Ver os arts. 122.º a 136.º do CPC.
45 Talvez as situações em que o juiz se aproxime do facto ontológico seja aquela em que, investigando-se
15
afirmação com choque e apreensão. Até porque as decisões dos tribunais também
fixam a história: as câmaras de gás existiram … É que a busca da verdade está sujeita a regras procedimentais previstas na lei e por outro lado, não é infinita46.
Há um momento em que são alegados enunciados de facto juridicamente
relevantes (no sentido em que da sua prova se extrai uma consequência jurídica), o
momento em que é cumprido o princípio do contraditório, o outro em que são
indicadas as provas, em que são admitidas essas provas (e não admitidas outras por
legalmente inadmissíveis47) outro em que são apresentadas e discutidas para depois o
tribunal decidir, primeiro, quais os enunciados que julga demonstrados (que tenham
ocorrido ou que ainda sejam dados no presente como certos) e quais os que julga
como não provados48 e, depois, que consequências jurídicas extrai dos primeiros.
A verdade absoluta alcançável mediante meios cognitivos ilimitados é
totalmente imaginária. Isto não vale só para a verdade que se estabelece no processo
e por isso ela não deve ser considerada menor. Qualquer atividade cognitiva está
limitada pelos meios que podem ser usados para estabelecer a verdade, no caso, a
verdade possível (Taruffo, 2005: 74-75).
Como diz o autor, “a justiça do procedimento pode considerar-se certamente
como uma condição da justiça da decisão (ao menos no sentido de que não estamos
dispostos a aceitar como justa uma decisão tomada na sequência de um processo
injusto, no qual, por exemplo: não foi produzida prova, o juiz decidiu lançando os
dados ou baseando-se numa confissão obtida por tortura) mas não pode ser
46 Sem prejuízo da válvula de segurança conferida pelo recurso de revisão no processo civil e penal (arts.
771.º do CPC e 449.º e ss. do CPP), em regra o trânsito em julgado de uma decisão marca, como vimos, o momento em que a mesma se torna definitiva, em que se cristaliza a verdade no processo. Exceção para os chamados processos de jurisdição voluntária (de que se destaca a área atinente aos menores) – art. 1411.º do CPC.
47 O art. 32.º, n.º 8, da Constituição quanto a Garantias de processo criminal determina a nulidade de
todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. Por outro lado, apesar do princípio de livre apreciação das provas, no processo civil também existem outros constrangimentos – cf. os arts. 513.º e ss. do Código de Processo Civil, no capítulo da instrução do processo.
48 Em qualquer processo vigoram regras de distribuição do ónus da prova. Assim, no processo penal,
16
considerada como a única condição ou como condição suficiente para a justiça da
decisão” (Taruffo, 2009: 56).
Por outro lado, Garapon (1994: 86) afasta expressamente, e em termos que
estão hoje adquiridos nas regras dos países ocidentais, a conceção de uma verdade
superior que seria alcançada sem necessidade do contraditório e com recurso a
métodos inquisitórios bárbaros, por exemplo, com vista à obtenção de confissão,
acrescentamos.
Mas o direito não pode “prescindir da sua relação com a verdade (por mais
imperfeita que se afigure a sua realização) sob pena de abdicar de assumir a justiça
como fim último: pois, que justiça se pode construir sobre a mentira ou com
indiferença relativamente à verdade?” (Carvalho, 2008: 72).
No processo civil, ao nível da factualidade relevante, o juiz só pode usar aquela
que tenha sido alegada pelas partes49. E o princípio do inquisitório surge como
residual50. No momento de concluir pelas consequências jurídicas, o juiz ainda que não
esteja vinculado à qualificação jurídica dos factos51 também está limitado pelo pedido
formulado52. No processo penal o poder do juiz é mais lato mas, também ele, se
49 Art. 264.º do CPC: 1— Às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que
se baseiam as excepções. 2— O juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos artigos 514.º [factos do conhecimento geral e factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções] e 665.º [convicção segura do juiz de que o autor e o réu se serviram do processo para praticar um acto simulado ou para conseguir um fim proibido por lei] e da consideração, mesmo oficiosa, dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa. 3— Serão ainda considerados na decisão os factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório.
50 Art. 265.º, n.º 3, do CPC: Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as
diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
Quanto às críticas à limitação do inquisitório não cabe aqui discutir.
51O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das
regras de direito (…) – art. 664.º do CPC;
52
17
confronta com limitações que impedem o exercício discricionário e arbitrário do poder
que lei lhe confere53.
Pode questionar-se se o sistema assim criado não faz emergir necessariamente
a verdade, isto é, não há a certeza de que o método referido conduza a que por via dos
diversos meios de prova (documental, confissão das partes, pericial, inspeção judicial e
testemunhal, no caso do processo civil e outras mais no processo penal) seja apurada
factualidade exactamente coincidente com o que se passou. Mas como do que se
trata, a maior parte das vezes, é de analisar situações que ocorreram (sendo que
muitas não permanecem) não havendo uma câmara ou outro instrumento que
permita captar os sons, todos os ângulos de imagem possíveis e as motivações dos
intervenientes, então é a partir dos elementos trazidos pelas provas e fazendo uso de
uma cadeia de inferências justificadas (indução probatória) (Andrés Ibáñez, 2006: 35)
que se conclui que certo acontecimento ocorreu ou não, ainda que com a
particularidade de os resultados da prova não poderem garantir uma certeza absoluta
mas um certo “grau de certeza”, o de probabilidade, sobre a verdade do enunciado
dado por provado (Gascón Abellan, 2005: 128).
II. O JUIZ
“ - Por isso – prossegui – o bom juiz não deve ser novo, mas
idoso, tendo-se apercebido tarde o que é a injustiça, tendo-se
apercebido dela sem a ter alojado na sua própria alma, mas tendo-a
observado como coisa alheia nos outros, durante muito tempo, para
que, servindo-se do saber, e não da experiência própria,
compreenda o mal que ela é.”54
53 Art. 379.º, n.º 1, do CPP: É nula a sentença: (…) b) Que condenar por factos diversos dos descritos na
acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º
[Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia] e 359.º [Alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia]; sobre o que seja a alteração dos factos, v. art. 1.º, al. f) do CPP: aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis;
18
2.1. As funções em geral e o ato de julgar em particular
O que faz um juiz? Um juiz julga. “¿ Que significa juzgar?”55 “O juiz apreende
diversas situações através dos sentidos e através do seu discernimento racional
estabelece o que o direito propõe para resolver um conflito, reconhecer um direito ou
impor uma obrigação. A decisão judicial exige, portanto, um ato de vontade do juiz
através do qual se põe fim a um processo.” (Pérez Luño, 2009: 170).
O ato de julgar é apresentado como uma experiência jurídica, política, social e
pessoal que encontra a sua expressão num quadro institucional (Poullard, 1999:13)
que não se reduz à aplicação da lei ao caso através de silogismo(s)56, mas também
como atividade criativa, presente no preenchimento de normas em branco e conceitos
indeterminados, conceitos legais abertos relativamente aos quais não estão
previamente definidas todas as situações que se integrarão naquela previsão, ou, no
limite, na interpretação abrogante ou revogatória de uma norma57, acrescentamos.
De entre os elementos de interpretação consolidados estão o elemento literal,
sistemático, histórico, e lógico ou teleológico, não hierarquizados entre si como
salienta Silva (2011: 377), sendo que a sua combinação está dependente da afirmação
de uma posição por parte do julgador (destacando um dos elementos) visando a
reconstrução do pensamento efetivo ou hipotético do legislador. Mesmo a
interpretação evolutiva ou atualista – que atende às transformações sociais – não
deixa de lado a intenção do legislador.
Mas grande parte do dia de trabalho do juiz passa por “despachar no processo”
sem decidir a questão fundamental que lhe é apresentada, ainda que esta seja a meta,
o “dizer a sentença”, a declaração do direito no caso concreto.
No processo civil: profere despachos escritos ou oralmente que, mesmo nesse
caso, ficam registados e fazem parte da cadeia de atos até à decisão final. Assim, um
juiz decide se o réu está ou não regularmente citado, se a contestação foi apresentada
55 Título do artigo de Antonio-Enrique Pérez Luño (2009).
56 Sobre o raciocínio dedutivo, cf. MacCormick, sob o título sugestivo “La argumentación silogística: una
defensa matizada” (2007).
19
em tempo, se a petição (articulado que uma vez entrado no tribunal dá origem ao
processo) contém as alegações necessárias à conclusão extraída pelo autor ou se para
tal se impõe completar a narração dos enunciados de facto; nesse caso, o juiz profere
um “despacho de aperfeiçoamento”; depois decide quais os enunciados de facto
alegados pelas partes que são relevantes para a resolução do caso concreto e se um
certo meio de prova é pertinente; designa data para a audiência, condena em multa
quem faltou injustificadamente e pode mandar deter o faltoso, preside à audiência
onde são apresentadas as provas, ainda que não constem do processo, e as alegações
dos advogados das partes. No seu trabalho diário, o juiz mais parece personificar,
muitas vezes, o famoso mito de Sísifo no desempenho de uma tarefa que parece não
ter fim. Mas cabe-lhe ainda:
Proferir a decisão sobre a matéria de facto: dizer quais os enunciados que
considera provados e não provados e dizer porquê. E, usando esses enunciados de
facto julgados provados, apurar qual a lei aplicável58 e, interpretando-a, resolver o
litígio, condenando ou absolvendo o réu (do pedido). É neste momento que se cumpre
a finalidade da atuação do juiz: não obstante se manter imparcial, toma posição sobre
os enunciados de facto e sobre a respetiva consequência jurídica segundo as regras em
vigor na comunidade.
Nesse momento, é posto fim à incerteza e resolve-se o conflito entre as partes,
não no sentido de vizinhos desavindos se tornarem amigos, por exemplo, mas no
sentido de afirmar que o vizinho António não pode fazer obras em casa à noite, altura
em que o vizinho Manuel descansa.
No entanto, estes caminhos nem sempre se fazem com a subsunção direta de
uma situação ao artigo “X” do Código Civil. Essas são as situações fáceis e que
culminam muitas vezes com a resolução do litígio em momento anterior ao julgamento
58 Corresponde às situações mais comuns. Como advertimos acima, não teceremos considerações sobre
20
através de um acordo59. Aí, fica cumprida a finalidade primeira da decisão, a de pôr fim
ao conflito e pela prevenção de outros casos semelhantes, a “finalidade longa”, a paz
social, “prosseguindo o prosélito caminho de erodir toda a violência da sociedade”
(Borges, 2005: 167).
Como afirma Alexy (2001: 21) “a tese de que a jurisprudência não passa sem os
julgamentos de valor não significa que não existam casos, em que não haja nenhuma
dúvida sobre como se deve decidir, seja com base nas normas válidas pressupostas,
seja com referência a proposições da dogmática ou os precedentes. Pode-se inclusive
aceitar que esses casos são muito mais numerosos do que os duvidosos.”
Mas existem, os outros: os casos em que têm de ser ponderados valores. É que
mesmo que esse seja o cerne da atividade do juiz, os dados empíricos são sempre
novos e, portanto, obrigam a atenta apreciação e mais completa fundamentação. E o
fim da pacificação torna-se tão mais alcançável quanto a decisão e as suas razões
forem apresentadas, compreendidas e aceites como tal pela comunidade. Como nos
dá conta Tito Cunha, “a perspectiva metodológica, ou mesmo epistemológica, que nas
ciências sociais se aplicava a partir das ciências da natureza, pelo menos nas versões
predominantes, se caracterizava pelo esquecimento do auditório. Isto é, uma vez
assegurada a certeza e rectidão do método o interlocutor a quem o discurso dito
“científico” se dirigia era como se não existisse” (2005a: 349). Se isso deixou de ser
assim entendido, nunca foi assim no campo do judiciário. Por um lado, porque a
decisão judicial é dirigida a alguém que solicitou a intervenção do tribunal e por outro,
porque as decisões são públicas. Acresce que os media começaram a interessar-se por dar cobertura noticiosa a informações e opiniões sobre alguns casos e decisões,
transformando o auditório virtual em auditório real.
No entanto: “[o] papel dos tribunais enquanto instâncias de informação e de
comunicação social foi drasticamente alterado a partir do séc. XIX com a consolidação
do Estado moderno, o movimento da codificação, o monopólio estatal da justiça e a
59 No início da audiência, o presidente procurará conciliar as partes, se a causa estiver no âmbito do seu
21
profissionalização da função judicial. A partir daí, o conhecimento técnico passou a
dominar a informação e a comunicação, ao ponto de estas se transformarem, elas
próprias, em artefactos discursivos técnicos de que são excluídos todos os que não
dominam o conhecimento especializado que lhes subjaz” (Santos, 2005: 82).
Quererá isto significar que o emissor da mensagem, neste caso, o juiz não
consegue alcançar o seu auditório (as partes e a comunidade)? A sua decisão
(obrigatória) não chega aos destinatários? Estes não compreendem a mensagem e, por
isso, não ficam convencidos do dispositivo que a mesma contém?
Com alguma ironia, Perelman adverte-nos de que “normalmente é preciso
alguma qualidade para tomar a palavra e ser ouvido” (1996: 21).
Veremos.
2.2. O juiz e a lei
Pelo que ficou dito acima, a lei constitui, ainda hoje, um dos objetos
incontornáveis de trabalho do julgador.
Para 5,5% dos juízes inquiridos60, é a interpretação objetiva da lei que faz um
“bom juiz”.
Uma referência apenas para a circunstância de os juízes mais novos não terem
assinalado o item “Interpretação objetiva da lei” e de nas especificações só 9,1% (dos
mais novos) ter referido a questão da interpretação objetiva da lei (“desde que não
demasiado apegada ao formalismo, mas sim integrada no contexto do caso concreto”).
Tal escolha em geral (apesar de diminuta) pode não estar só associada a uma
preocupação por uma “fidelidade (formal) ainda largamente manifestada por grande
parte dos agentes envolvidos na prática judiciária em relação a modelos tradicionais”
(Aguiar, 2011: 414). Esta fidelidade não vale por si; pressupõe a utilização de uma
regra de igualdade entre os cidadãos, tão cara à democracia e também reconhecida
22
pela citada autora. Até porque esta percentagem insignificante aumenta para 26,4%61
quando está em causa a “arbitrariedade na aplicação da lei” como parâmetro do “mau
juiz”, de alguma forma, permitindo destacar a importância do princípio da igualdade62
na aplicação da lei.
Na sua tese, Para uma teoria hermenêutica da justiça: repercussões jusliterárias no eixo problemático das fontes e da interpretação jurídicas, Joana Aguiar e Silva abre caminho para uma clara emancipação do juiz em relação à lei, para a imparcialidade e
outras características conjugadas que, nesta sua obra, ganham particular destaque.
2.2.1.A perpetuidade das leis vs. a inflação legislativa
Constitui um tópico do pensamento jurídico de todos os tempos a reclamação
contra o excesso de leis (Homem, 2003: 224).
As regras que disciplinam a sociedade não podem ser imutáveis pois que dessa
forma não cumpriam o seu objetivo, o de regular a vida social.
Mas também não pode chegar-se ao ponto de uma produção legislativa frívola,
sem sentido finalístico. “As propostas permanentes de reforma são um sinal da crise
de identidade da democracia portuguesa e do seu sistema de justiça” (Homem, 2007:
12).
Partilhe-se ou não do pensamento de Tomás Moro, em particular o que é
expresso na sua obra A Utopia63 quanto à conceção de sociedade por si imaginada, o diagnóstico pelo mesmo feito quanto às leis64 que regulam a vida de todos e cada um
61 Representados também a cor-de-rosa - cf. anexo II, gráfico 3.
62 Não é necessário expender sobre uma exigência básica da justiça que corresponde ao tratamento
igual das situações iguais e tratamento diferente das situações diferentes, em função de diferença relevante.
63 Trad. de José Marinho, 7.ª ed., Lisboa, Guimarães editores, 1990.
64 “São as leis em pequeníssimo número e bastam no entanto para as instituições utopianas. O que os
23
mantém-se atual. E a falta de estabilidade de leis fundamentais como o Código de
Processo Civil ou o Código de Processo Penal revelam isso mesmo. Atentemos, em
particular, nas múltiplas alterações de dois códigos estruturantes do sistema de justiça
como são o Código de Processo Civil e o Código de Processo Penal65.
É verdade que até na ciência mais exata não há verdades absolutas nem
eternas. Mas aquilo que distingue em termos ideais a sociedade de um estado
selvagem é, entre outras, a submissão a regras que, a mudarem, devem ser cada vez
melhores. E quando é o próprio legislador que se corrige, que volta atrás, que
reconhece que as soluções legais apresentadas não foram as melhores, então, não é
necessário apontar mais críticas.
Por outro lado, as legislações têm avançado numa pretensão clara de regular
domínios que antes eram do foro privado ou familiar (direito da família e dos menores)
ou nos quais o Estado não intervinha, como a bioética ou o ambiente. A multiplicação
de temáticas abrangidas pela lei, com a pretensão de disciplinar todas as áreas da vida
faz com que se crie a ideia de que matéria que não foi objeto de lei não pode ser
dirimida. Será assim?
De todo o modo, a ampliação do raio de ação da lei solicita do julgador
decisões. É que o juiz não pode optar por não decidir (como um médico decide não
sujeitar alguém a uma intervenção cirúrgica, por exemplo)66.
de cada um, fazendo-o com bom senso e boa-fé; defende a ingenuidade do homem simples contra as calúnias do patife (…) Muito difícil seria praticar tal justiça nos outros países que jazem enterrados sob um montão de leis tão embrulhadas e equivocas. Toda a gente, aliás, na Utopia, é doutor em direito; pois, repito, as leis são lá em muito pequeno número e a sua interpretação mais simples e material aceita-se como a mais razoável e a mais justa (…) uma lei nitidamente formulada, cujo sentido não é equívoco e ocorre naturalmente ao espírito, está ao alcance de todos (…). Que importa à massa, isto é, à classe mais numerosa e que mais precisa de regras, que lhe importa que não haja leis ou que as leis estabelecidas sejam de tal modo embrulhadas que para obter uma significação verdadeira seja necessário um génio superior, longas discussões e estudos intermináveis ? O juízo vulgar não é bastante metafísico para penetrar tais profundezas; aliás, tal não poderia pedir-se nunca ao que está ocupado constantemente em granjear o pão de cada dia” - p. 129-130.
65
O Código de Processo Civil (considerando o decreto-lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro) vai na 42.ª versão (última alteração dada pela lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro); o Código de Processo Penal (considerando o decreto-lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro) vai na 23.ª versão (última alteração da lei 26/2010, de 30 de agosto) – cf. informação pormenorizada no sítio da Procuradoria-Geral de Lisboa no endereço www.pgdlisboa.pt
24
2.2.2. A lei clara vs. a lei embrulhada
No que respeita ao acesso dos cidadãos à justiça, o mesmo passa por essas
regras poderem ser entendidas por todos. “Para que o direito seja democrático não
basta que ele surja da vontade popular; é ainda necessário que ele se mantenha ao
alcance do povo, tanto num plano cognitivo, como no plano prático: que seja
conhecido do povo e que seja actuável pelo povo para a resolução dos conflitos”
(Hespanha, 2009: 361). É cada vez mais insustentável o princípio de que a ignorância
da lei não aproveita a ninguém e que ainda hoje está plasmado no Código Civil
Português67. E a alteração sucessiva das regras prejudica, mais ainda, a conformação
do senso comum a essa presunção legal.
Assistimos ao paradoxo de numa era de comunicação em que se sabe o que se
passa no outro lado do mundo ao segundo, não conhecemos as leis que regulam o
nosso dia-a-dia – por serem muitas (desde legislação comunitária como são os
regulamentos aplicáveis diretamente, as leis a decretos-lei, a posturas municipais, etc.)
muitas por serem extensíssimas e outras tantas de difícil compreensão, na medida em
que o estabelecimento da regra se faz acompanhar de uma multiplicidade de
exceções que quase anulam a regra68.
Veja-se a recente introdução na publicação on-line do DR com um resumo em linguagem clara69. Não podem ser aprovadas leis, à partida, mais claras? Uma maior clareza das leis, ainda que no domínio europeu, é expressamente requerida por Martin
Cutts na sua obra Clarifying Eurolaw - How European Community directives could be written more clearly so that citizens of Member States, including lawyers, would understand them better70.
67 Art. 6.º.
68 Por exemplo, o art. 86.º do CPP quanto à publicidade do processo penal.
69 Medida em funcionamento entre 13 de outubro de 2010 e 31 de dezembro de 2011, com
reconhecidos méritos, que consistiu na disponibilização de resumos em linguagem clara, em português e inglês, de todos os decretos-lei e decretos regulamentares publicados em Diário da República.
70Disponível em
25
O impacto de comunicações e de obras desta natureza pode, de facto, ajudar a
sensibilizar o Legislador a produzir leis cada vez mais ao alcance da compreensão
atécnica do homem-médio.
2.2.3. O dever de obediência à lei vs. a lei injusta
O juiz está sujeito à lei cuja existência confere previsibilidade às consequências
de certos comportamentos e, por essa via, segurança. Mas um juiz como a boca que pronuncia as palavras da lei71 ou a lei como limite da vontade do arbítrio de um juiz? 72
Ultrapassado o positivismo jurídico, aceita-se que “o direito e a justiça não
dependem do critério do legislador” (Alexy, 2002: 6).
Mas as palavras de Perelman também devem sofrer uma atualização, quando,
referindo-se aos juízes e às leis, diz que “eles devem aplicá-las num espírito de
equidade, conforme as tradições da comunidade onde exercem a função” para depois
contrapor que “o filósofo não está, como o juiz, vinculado a fazer respeitar a ordem
estabelecida»” (1990:233).
A ciência jurídica desenvolveu métodos de interpretação da lei e
preenchimento de lacunas que determina que se distinga entre legalidade estrita e
justiça, entre a lei “A” e princípios e valores que integram a ordem jurídica situados ao
nível constitucional ou supra-constitucional.
Aarnio faz-nos notar que “nem todas a normas jurídicas que são formalmente
válidas são dotadas de (…) uma garantia de aceitabilidade axiológica” (1991: 83).
Nos termos do art. 204.º da CRP, qualquer juiz pode não aplicar uma norma por
inconstitucional. E na própria Constituição, o art. 21.º prevê o direito de resistência.
Os casos mais difíceis em que estão em causa direitos fundamentais
(plasmados diretamente na Constituição ou em princípios na mesma previstos73)
71 “La bouche qui prononce les paroles de la loi”, formulação de Montesquieu (1689-1755) em De
l’Esprit des Lois, Paris, Gallimard, 1995.