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12º Encontro da ABCP. 18 a 21 de agosto de Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa (PB)

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12º Encontro da ABCP

18 a 21 de agosto de 2020

Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa (PB)

Área Temática 13: Política, Direito e Judiciário

A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO CHILE E O PAPEL DO JUDICIÁRIO:

CONSIDERAÇÕES SOBRE O “EFEITO PINOCHET”

Autor: Christian Jecov Schallenmüller

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Resumo: O principal objetivo deste working paper é reconstituir criticamente o percurso dos processos judiciais relacionados às graves violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura de Pinochet no Chile. De acordo com boa parte da literatura, o famoso “efeito Pinochet” teria desencadeado a busca por “justiça” naquele país (e em outros países da América Latina). Embora sem contestar integralmente esta interpretação, um olhar mais de perto sobre o processo chileno nos leva a compreender que o desencadeamento das ações judiciais naquele país também foi antecedido por importantes precedentes judiciais sobre graves violações aos direitos humanos, por uma reforma na Suprema Corte chilena e por outras políticas de justiça de transição, que prepararam o terreno para que a “cascata de justiça” pudesse afinal ocorrer.

Palavras-chave: Efeito Pinochet; Chile; Justiça de Transição; Direitos Humanos; Reforma do Judiciário.

Abstract: The main objective of this working paper is to critically reconstruct the course of the

legal proceedings on serious human rights violations that occurred during the Pinochet dictatorship in Chile. According to the most part of literature, the famous “Pinochet effect” would have triggered the search for “justice” in that country (and in other countries in Latin America). Without fully contesting this interpretation, a closer look at the Chilean process leads us to understand that the initiation of legal actions in that country was also anticipated by important judicial precedents on serious human rights violations, by a reform in the Chilean Supreme Court and by other transitional justice policies, which set the stage so that the “justice cascade” could finally take place.

Key words: Pinochet effect; Chile; Transitional Justice; Human rights; Judiciary reform.

Introdução

Em 1973, o governo democraticamente eleito do socialista Salvador Allende sofreu um golpe encampado pelas Forças Armadas do Chile. Na ocasião, com o Palácio de La Moneda cercado e bombardeado por tropas chilenas (que contavam com o respaldo material e logístico dos Estados Unidos), o presidente se suicidou em um ato de desespero que marcaria o início de tempos sombrios naquele país. A ditadura militar comandada por Pinochet, uma das mais violentas da América Latina, duraria até 1989, quando novas eleições foram finalmente marcadas e o ditador perdeu o pleito, por uma margem apertada, para o democrata cristão Patricio Aylwin.

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A Constituição de 1980, editada ainda sob os auspícios do governo Pinochet, determinava que os chilenos decidiriam, por meio de um plebiscito futuro, se concederiam mais oito anos de poder ao general ou se optariam pelo fim do regime militar com a consequente convocação de eleições presidenciais. Em 1988, contrariando a expectativa de Pinochet, a sobrevida de seu governo autoritário foi derrotada nas urnas, tendo obtido (ainda que uma marca expressiva) 44% dos votos no plebiscito. As eleições presidenciais foram então marcadas para dezembro do ano seguinte e delas saiu vitorioso, com 55% dos votos, o advogado Patricio Aylwin, um dos fundadores do Partido Democrata Cristão e candidato da Concertación. No Congresso, esta coalizão alcançou 72 das 120 cadeiras na Câmara e 22 das 38 vagas disponíveis pelo voto no Senado (Cf. Collier e Sater, 1996, p. 379-382).

Desde a campanha de Aylwin à presidência, estava entre suas principais propostas de governo a criação de mecanismos de acertos de contas com o passado de autoritarismo e violações sistemáticas aos direitos humanos coordenadas pelo terrorismo de Estado da ditadura de Pinochet. A principal iniciativa neste sentido foi a criação de uma Comissão que daria conta de investigar os casos mais relevantes de violações, os quais foram classificados como morte (homicídio) e desaparecimento. O escopo da comissão seriam justamente os anos de domínio militar no poder, de 11 de setembro de 1973 a 11 de março de 1990. Tortura, encarceramento arbitrário, exonerações do serviço público, exílios e outras formas de perseguições políticas ficariam de fora do escopo das investigações.

O relatório final da chamada Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação (CVR) documentou milhares de casos de desaparecimento forçado, homicídio e sequestro.1 A

maioria dos desaparecimentos foi realizada entre 1974 e 1977 como estratégia planejada e coordenada pelo governo militar em sua visão sobre o “estado de guerra” contra as guerrilhas do país, o que justificaria o permanente estado de sítio. A Diretoria de Inteligência Nacional (DINA), a polícia política chilena, foi a responsável pela coordenação da maior quantidade de violações aos direitos humanos no curso do regime. Ao apresentar o relatório ao país, o então presidente Patricio Aylwin pediu desculpas às vítimas e suas famílias em nome do Estado. Augusto Pinochet e os líderes das forças armadas rejeitaram as conclusões do relatório. Todos os indivíduos que testemunharam para a Comissão receberam correspondência assinada pelo presidente e uma cópia do relatório (Cf. Hayner, 2011).

Conforme recomendado pela Comissão, o governo Aylwin também elaborou o projeto de lei que estabeleceria a Corporação Nacional de Reparação e Reconciliação, que ficaria a cargo de dar apoio financeiro contínuo às famílias das vítimas reconhecidas pelo relatório. Outros programas de reparação econômica e simbólica seriam desenvolvidos nos governos

1 O relatório final também ficou conhecido como “Informe Rettig”, em função do nome do presidente da Comissão,

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seguintes, de modo a compor uma dimensão importante da pretendida reconciliação entre os chilenos. Se a princípio, especialmente com o relatório da primeira Comissão de investigação, a reconciliação estaria especialmente ligada à ideia de verdade, com o desenvolvimento das políticas de justiça transicional no país ficaria claro que tal objetivo não poderia prescindir de uma outra dimensão ligada a um reconhecimento profundo dos suplícios sofridos pelas vítimas de graves violações aos direitos humanos cometidas durante o período do regime militar chileno, isto é, a concessão de compensações econômicas, homenagens simbólicas e políticas educacionais e de memória.

Depois da prisão de Pinochet na Grã-Bretanha em 1998 em função de um pedido de extradição formulado por um juiz espanhol, entretanto, uma nova dimensão dos mecanismos de justiça de transição ganhou força no Chile: os processos penais contra agentes públicos envolvidos em graves violações aos direitos humanos durante o período ditatorial (Cf. Evans, 2006). Em poucos anos, mesmo se comparado à Argentina (comumente reconhecida como uma espécie de hard case em termos de accountability penal sobre antigos perpetradores), o Chile se tornaria o país com o maior número de ex-agentes públicos cumprindo sentença na América Latina em decorrência de condenações por crimes praticados em favor da repressão e da perseguição política no curso de uma ditadura militar no subcontinente (Cf. Universidad Diego Portales, 2010).

A partir de maio de 2000, centenas de membros antigos ou ativos das forças de segurança passaram a ser submetidos a investigações sobre várias formas de graves violações aos direitos humanos nos Tribunais chilenos. A grande maioria desses casos havia sido arquivada anos antes, restando paralisados no sistema judicial chileno até serem reativados por juízes e Organizações Não-Governamentais (ONGs). Alguns casos inteiramente novos também foram levados aos Tribunais após a prisão de Pinochet.

Além disso, como reconhece a literatura, o caso do ditador chileno inspirou juízes em várias partes do mundo a responsabilizar chefes de Estado e de governo por violações passadas. De fato, o chamado "efeito Pinochet" nos processos jurídicos internacionais e nacionais recebeu ampla atenção acadêmica. Alan Angell (2007, p. 153) observa que "o Supremo Tribunal chileno, bastante insular, tomou conhecimento da questão quando os Lordes do Direito britânico mostraram que um judiciário normalmente considerado como conservador e tradicional poderia, no entanto, responder positivamente às acusações de abusos dos direitos humanos". Ou, nas palavras de Roht-Arriaza (2009, p. 91): "Processos judiciais transnacionais baseados fora de um país podem ter um impacto profundo na mudança da dinâmica política interna".2

2 Outras obras que ajudaram a constituir o paradigma do chamado “efeito Pinochet” na literatura internacional são

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No entanto, como procuraremos demonstrar ao longo do texto, a “cascata de justiça”3

que se seguiu à prisão de Pinochet no Reino Unido, embora de fato tenha sido desencadeada pela repercussão deste caso no Chile, contou com uma “preparação de terreno” fundamental para que isso pudesse ocorrer. Os principais elementos ou antecedentes desta “preparação de terreno” foram três precedentes de julgamentos de graves violações aos direitos humanos praticadas pelas forças de repressão da ditadura chilena, uma reforma em sua Suprema Corte e a articulação de outras políticas de justiça de transição que vinham se desenvolvendo desde o primeiro governo civil pós-ditadura militar no país.

Da anistia à Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação

Muitos anos antes de se operar a transição política de fato para um poder civil, já em 1978, o governo Pinochet saiu-se com um Decreto, redigido pela então ministra da Justiça, Mônica Madariaga, prima do ditador, sem qualquer participação dos grupos de relevância social ou política do país (Cf. Loveman e Lira, 2005, p. 81). Trava-se de uma formulação bastante parecida com a que se poderia encontrar na mensagem que o então presidente Figueiredo encaminharia um ano depois ao Congresso Nacional brasileiro para a aprovação do anteprojeto da chamada Lei de Anistia. O Decreto chileno dispunha que, considerando-se a pretensa tranquilidade geral, paz e ordem que supostamente triunfavam no país naquele momento, seria imperativo superar todas as hostilidades do passado, tornadas carentes de sentido.

O artigo primeiro do Decreto concedia anistia a todas as pessoas que, na qualidade de autores, cúmplices ou acobertadores, tivessem incorrido em ações criminosas durante a vigência do estado de sítio, compreendido entre 11 de setembro de 1973, quando o golpe de Estado foi levado a efeito, e 10 de março de 1978, data da publicação do Decreto. Mas a isenção de responsabilidade penal só aproveitaria às pessoas nestas condições, desde que elas não estivessem respondendo a processo ou tivessem sido condenadas. Por volta de mil militantes da esquerda política que estavam presos foram imediatamente beneficiados pelo dispositivo. A maioria deles, entretanto, foi expulsa do Chile, incrementando assim o contingente de exilados (Cf. Constable e Valenzuela, 1991).

Legalmente, a anistia de 1978 promoveu efetivamente a impunidade de agentes da repressão chilena por infrações criminais, incluindo desaparecimentos forçados, execuções extrajudiciais e tortura. Mas ficaram de fora dos benefícios do dispositivo legal – além de todos

3 O termo ficou conhecido na literatura sobre responsabilização internacional por violações aos direitos humanos

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os envolvidos no assassinato de Orlando Letelier4 – também integrantes da oposição

armada chilena acusados de crimes como sequestro, roubo, tráfico e malversação de dinheiro público, entre outros.

A mensagem que acompanhava a anistia do governo procurava desde então deitar as bases para um certo sentido de reconciliação, que mais tarde, já no primeiro governo civil depois da transição, seria abandonado. Nos termos da mensagem pronunciada em junho de 1978 pelo então Ministro do Interior: “A anistia compreendeu também os delitos que foram cometidos por pessoas pertencentes ao Regime da Unidade Popular, de forma que a autoridade a apresentou, por esta razão, como um gesto de reconciliação” (CVR, 1996, p. 1120). E mais adiante: “Ao que nos referimos anteriormente se agrega a recente anistia geral. [...] Tal determinação constitui um eloquente testemunho do espírito de reconciliação nacional que inspira o Governo [...].”

Além de pretender ligar a ideia de um reencontro geral entre os chilenos à concessão benevolente e unilateral pelo governo de uma anistia (parcial) aos antigos inimigos políticos que davam corpo ao movimento que elegeu o presidente deposto Salvador Allende, a mensagem também procuraria vincular a reconciliação não só a um esquecimento do passado. Mas, mais do que isso, a um acobertamento pautado na mentira:

“Frente ao tema dos corpos desaparecidos a que atualmente se tem reduzido o problema, declaro categoricamente que o Governo não tem antecedentes que comprovem a detenção de nenhuma destas pessoas, pelo que rechaço de modo veemente a sugestão de que eles poderiam ter estado detidos de forma oculta pelas autoridades”.

E mais adiante:

“... Considerando que a grande maioria dos corpos desaparecidos corresponde precisamente a ativistas comunistas, socialistas e miristas, é muito plausível não só que estas pessoas tenham passado à clandestinidade, mas também que possam ter sucumbido em enfrentamentos com as forças de segurança, sob as identidades falsas que portavam, o que impediu sua oportuna individualização real” (Ministro do Interior Sérgio Fernández Fernández apud CVR, 1996, p. 1121).

Após as revisões de 1989, a Constituição chilena ainda passou a garantir que o general Pinochet poderia permanecer em sua posição de comandante em chefe do Exército até 1998, e poderia se tornar também senador vitalício. Como parlamentar, ele desfrutaria de imunidade ao longo da vida sob a lei chilena. Além disso, para garantir a presença de políticos leais a ele no Senado, as reformas de 1989 garantiram que oito senadores seriam designados por ele. Quando estes senadores nomeados por ele uniram forças com senadores eleitos de partidos de direita na transição, o resultado foi uma maioria consistente capaz de vetar

4 Orlando Letelier foi um diplomata chileno assassinado em Washington em setembro de 1976 por agentes da

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qualquer proposta de reforma constitucional que ameaçasse erradicar a posição privilegiada dos militares na nova democracia chilena. Isso incluiu qualquer possível tentativa de anulação ou alteração da anistia de 1978 (Cf. Roht-Arriaza, 2005).

Neste sentido, o equilíbrio de poder não era propício para prosseguir com julgamentos no curso do primeiro governo de Patricio Aylwin. Apenas alguns anos depois, no governo do segundo presidente eleito, Eduardo Frei, as aberturas políticas e legais permitiriam algum progresso em retribuição penal. Ainda assim, na medida em que boa parte dos mais importantes marcos legais do governo civil – a Constituição de 1980 e a anistia de 1978 – haviam sido elaborados ainda sob os auspícios da ditadura de Pinochet, as antigas prerrogativas das forças de segurança ainda se encontravam razoavelmente intactas. Nos primeiros governos civis, os principais avanços em termos de justiça transicional poderiam ser feitos no terreno da memória e da revelação da verdade sobre o passado de autoritarismo e repressão. E foi justamente nesta direção que o governo Aylwin se empenhou com prioridade desde o início de seu mandato.

Um dia depois de sua posse, Aylwin discursou no Estádio Nacional, onde milhares de pessoas estiveram presas e sofreram tortura. O público no estádio girou em torno de 70 mil pessoas. Nesta ocasião, o primeiro presidente civil depois do golpe de Estado em 1973 ressaltou que entre os principais objetivos de seu governo estaria o estabelecimento da verdade sobre as violações aos direitos humanos ocorridas no passado; a reparação das pessoas atingidas pelo arbítrio; e a busca de condições legais, sociais e políticas adequadas à garantia de não repetição.

A política de maior destaque em seu governo, inclusive no âmbito internacional, foi certamente a instalação da Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação (CVR). Seu objetivo era contribuir para o esclarecimento global dos fatos que diziam respeito às mais graves violações aos direitos humanos, fosse em solo nacional ou no exterior, desde que relacionadas com o Estado chileno ou com a vida política do país. Tal desígnio teria como finalidade maior ser uma das balizas para a reconciliação de todos os chilenos, ainda que sem prejuízo dos procedimentos judiciais que poderiam tomar lugar a partir das investigações.

O relatório da Comissão foi publicado em fevereiro de 1991. Ele documentou 1.068 casos confirmados de execução sumária ou ilegal e 957 casos confirmados de desaparecimento forçado entre 1974 e 1990. Foram também listados 641 casos em que a Comissão não pôde constituir uma avaliação completa sobre o que se passou e 449 casos nos quais a Comissão não dispunha de informações suficientes para investigar de forma eficaz (CVR, 1996, anexo II).

O relatório final, com 1.800 páginas, apresenta uma abrangente descrição da repressão patrocinada pelo governo militar no Chile em três fases da ditadura de Pinochet: a

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primeira, que vai do golpe de Estado em 1973 até meados de 1974; a segunda, que cobre o período de 1974 a 1977, quando a polícia política DINA foi o principal instrumento de perseguição política e terror; e a última etapa, que vai de agosto de 1977 a março de 1990, quando a Central Nacional de Informações substitui a DINA e mais tarde a ditadura chega a seu fim com a eleição de um novo governo civil.

Ainda que a esmagadora maioria das violações aos direitos humanos, cerca de 95%, tenha sido creditada a agentes estatais encarregados da perseguição política de opositores do regime e militantes da esquerda política, o Informe Rettig reconheceu algumas condutas também reprováveis por parte de integrantes da luta armada. Constam do relatório narrativas envolvendo vítimas de grupos da oposição armada, esclarecimentos a respeito de casos emblemáticos, como a morte de Salvador Allende, e análises críticas sobre a atuação de algumas instituições, como o Poder Judiciário. Embora a Comissão não as tenha tornado públicas, todas as informações relacionadas a responsabilidades individuais atinentes a crimes cometidos entre 1973 e 1990 foram encaminhadas aos Tribunais competentes (Cf. Hilbink, 2007).

A mensagem de apresentação do relatório final da CVR pelo presidente Patricio Aylwin, em março de 1991, também articulou mais uma vez as ideias de verdade, justiça e reconciliação. Mas desta vez o presidente reforçou a importância da busca dos corpos dos desaparecidos e a necessidade de aplicação da justiça em seu aspecto retributivo: “A justiça não é vingança; pelo contrário, a exclui” (Aylwin apud CVR, 1996, p. 1314). Na medida em que a Comissão havia enviado a documentação pertinente para os Tribunais competentes, Aylwin aproveitava a ocasião para fazer nova cobrança ao Judiciário do país: “Espero que estes cumpram devidamente sua função e agitem as investigações, no que – em minha concepção – não pode ser obstáculo a lei de anistia vigente” (Aylwin apud CVR, 1996, p. 1315).

Também no seu governo foi criada a Corporação Nacional de Reparação e Reconciliação, que instituía um programa de reparações bastante abrangente para as famílias dos mortos e desaparecidos. Este órgão foi instaurado com o objetivo de encontrar os restos mortais dos desaparecidos, elucidar os casos ainda pendentes, organizar os arquivos da CVR para torná-los públicos e administrar um programa de reparações.5

Com as denúncias que já haviam sido submetidas à CVR, a partir do trabalho deste novo órgão de reparação chegou-se a um total de 4.750 denúncias, nas quais houve a identificação de 3.195 vítimas de morte e desaparecimento e 2.772 vítimas de outras violações aos direitos humanos. A legislação previa quatro benefícios básicos aos familiares de mortos e desaparecidos: o pagamento de uma pensão vitalícia, bolsas de estudos para os filhos das

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vítimas com menos de 35 anos, a isenção do serviço militar obrigatório e a incorporação ao Programa de Reparação e Atenção Integral à Saúde (PRAIS) de todos aqueles que foram de alguma forma atingidos por violações aos direitos humanos ou pela violência política do Estado durante o regime militar.

A Corporação Nacional de Reparação e Reconciliação ficou ainda encarregada de desenvolver programas de educação em direitos humanos nas escolas e universidades chilenas. Foi produzido um material de ensino e aprendizagem, além de jornadas de capacitação e formação de docentes. Também foram promovidos projetos de pesquisas e ensaios sobre o tema dos direitos humanos mediante a realização de concursos (Cf. Mezarobba, 2007, p. 268). O governo chileno ainda concordou com uma reivindicação da Agrupación de Familiares de Ejecutados Políticos (AFDD) de construir um memorial e um mausoléu no cemitério geral de Santiago, onde os restos mortais das vítimas da ditadura pudessem ser abrigados conforme fossem localizados.

Precedentes do “efeito Pinochet” no Judiciário chileno

Durante todo o período da ditadura de Pinochet, a Suprema Corte chilena aceitou a tese do governo acerca do estado de guerra e não se opôs ao estabelecimento de uma Justiça Militar completamente independente e sem qualquer mecanismo de controle externo, declarando invariavelmente não ter competência para rever as decisões da Justiça Militar. Nos termos desta interpretação e de acordo com a jurisprudência dos Tribunais militares, milhares de chilenos foram considerados prisioneiros de guerra, submetidos a interrogatórios e torturas durante a ditadura.

Consciente dos limites especialmente de uma Suprema Corte historicamente subserviente ao governo militar, Aylwin fez duas tentativas – mais tarde abortadas – de reformar o Poder Judiciário, a fim de torná-lo mais moderno e mais independente do regime autoritário anterior, e de quebra procurou também eliminar o Código Penal arcaico. Quando ficou claro que as reformas não passariam, um pacote de reforma mais limitado foi enviado ao Congresso em 1991. A proposta modificada incluía o estabelecimento de um conselho judicial nacional (Conselho da Magistratura) e um aumento no número de juízes na Suprema Corte.

Paralelamente a estas tentativas de reforma, pouco depois de chegar ao poder, Aylwin solicitou que a Suprema Corte reabrisse o caso do homicídio de Letelier. Orlando Letelier, ministro dos Negócios Estrangeiros durante o governo de Allende, e sua colega de trabalho Ronnie Moffitt foram assassinados em setembro de 1976 em Washington, DC (Cf. Pereira, 2005). Este caso ficou de fora da anistia de 1978 em resposta à pressão dos EUA neste

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sentido ainda durante o regime militar comandado por Pinochet. Depois da abertura do processo com a pressão do governo Aylwin, a decisão da Suprema Corte chilena para este caso foi emitida dois dias antes do prazo de 15 anos de prescrição do crime. Em novembro de 1993, os agentes Contreras e Espinoza foram condenados a sete e seis anos de prisão, respectivamente, pelas mortes de Letelier e Moffitt. O poder Judiciário provavelmente não teria começado a investigar o caso sem a pressão explícita do governo de Aylwin.

Em outro caso de accountability criminal antes da prisão de Pinochet, em 1993, um juiz do Tribunal de Apelação, Milton Juica, instaurou um caso contra 17 antigos policiais que teriam sido responsáveis pelo assassinato de três defensores dos direitos humanos e ativistas comunistas em 1985. O veredicto final no chamado Caso Degollados (referindo-se ao modo como as vítimas foram mortas) foi tornado público pouco depois de Aylwin entregar a faixa presidencial ao seu sucessor, Eduardo Frei, em 1994 (Cf. Skaar, 2011, p. 102).

O caso foi considerado um teste da capacidade do sistema judicial chileno de condenar os responsáveis por violações aos direitos humanos sob o domínio militar. Em uma decisão surpresa no ano seguinte, a Suprema Corte confirmou o veredicto do Tribunal de Apelação contra Contreras e Espinoza no caso Letelier (cf. Roniger e Sznajder, 1999, p. 118). Este episódio indicava que até mesmo a Suprema Corte, antes leal a Pinochet, estava gradualmente se tornando mais disposta a demonstrar um certo grau de independência em relação ao antigo ditador. Seja como for, é importante lembrar que ambos os casos – tanto o Letelier quanto o caso Degollados – não estavam cobertos pela anistia de 1978. O primeiro por ter sido expressamente excluído da anistia em função da pressão dos EUA neste sentido, e o segundo, ocorrido em 1985, por estar fora de seu escopo temporal.

Entre os anos de 1997 e 1998 a Suprema Corte do Chile passou por uma reforma em seu desenho institucional. Onze novos ministros foram adicionados aos seus quadros, incluindo cinco advogados de fora da hierarquia judicial. Com esta reforma, o perfil do Tribunal começou a mudar (Cf. Skaar, 2011, p. 103). O impacto mais notório da nova Câmara de Direito penal recém-constituída na Suprema Corte veio com a decisão histórica no longo caso de Poblete-Córdoba, em setembro de 1998.

Neste caso emblemático, a Corte, em uma decisão por cinco a um, declarou que o desaparecimento em que nenhum corpo é encontrado não pode ser considerado como homicídio. Enquanto os corpos das vítimas não são apresentados, o que há, tecnicamente, é o crime de sequestro. Diferente do crime de homicídio, portanto, que já seria considerado como consumado e consequentemente prescrito para este caso, o crime de sequestro, sendo um delito considerado como “permanente” (não consumado), não teria o seu prazo prescricional sequer iniciado e, neste sentido, não estaria abrangido pela anistia de 1978. Esta

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também foi a primeira vez em que o Supremo Tribunal aceitou o caráter vinculante (“cogente”) do direito internacional humanitário.

Nesse sentido, ainda que os casos cobertos pela anistia chilena continuassem gozando de imunidade criminal, já nos anos 1990 e mesmo antes da prisão de Pinochet no Reino Unido, começava a erodir a visão de que os crimes praticados em nome do terrorismo de Estado poderiam ser perdoados. Mais do que isso, estes três precedentes colocavam de forma contundente a afirmação de que os praticantes das graves violações aos direitos humanos cometidas em nome da repressão política no país mereciam ser julgados e condenados criminalmente.

O avanço das políticas de justiça de transição no país também contribuiu nesse sentido. Além dos antecedentes da Comissão da Verdade e Reconciliação e do programa chileno de reparação às vítimas no início dos anos 1990, já concomitantemente ao processo de extradição de Pinochet, foi instaurada, entre 1999 e 2000, a chamada Mesa de Diálogo.6

Ela foi implementada pelo governo Eduardo Frei com o objetivo primordial de localizar os corpos das vítimas de desaparecimento ou, nas hipóteses em que isso não fosse possível, ao menos obter informações que pudessem esclarecer seu paradeiro. A Mesa se desenvolveu em um período de grande tensão e polarização política por conta da detenção de Pinochet em Londres, em 1998, a pedido da Justiça espanhola.

Muitas entidades ligadas à temática dos direitos humanos criticaram o fato de a Mesa de Diálogo reunir em um mesmo comitê representantes da sociedade civil e integrantes das Forças Armadas e dos Carabineiros. Após dez meses de trabalho e oito rodadas de debates, chegou-se a um acordo final em que os militares se comprometeram a fornecer informações sobre o destino dos desaparecidos políticos. No prazo previsto para a entrega das informações, as Forças Armadas disponibilizaram ao governo um documento contendo dados de apenas 200 casos. Na maioria deles, as vítimas eram dadas como mortas ou lançadas ao mar (isto é, sem possibilidade de se encontrar seus despojos).

O relatório emitido pela Mesa em janeiro de 2001 revelou pouca informação nova (Cf. Lira, 2001). No entanto, vários avanços importantes foram alcançados. Primeiro, a mesa redonda conseguiu fazer com que os desaparecimentos se tornassem uma questão pública, ao invés de ser apenas uma preocupação das famílias das vítimas e da comunidade de direitos humanos. Além disso, pela primeira vez desde a transição, os militares admitiram culpa por terem cometido crimes inaceitáveis (Cf. Roht-Arriaza, 2005).

O resultado mais positivo da Mesa, porém, consistiu no fato de o presidente ter encaminhado à Suprema Corte a documentação fornecida pelas Forças Armadas. A Suprema Corte, por sua vez, designou nove juízes exclusivos que assumiram 49 casos de

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desaparecimentos e outros 51 juízes preferenciais para outros 65 casos. Inicialmente, os novos juízes dos Tribunais de Apelação tratariam apenas das informações sobre desaparecimentos que o relatório da Mesa de Diálogo havia disponibilizado. No entanto, seu mandato foi rapidamente expandido pela Suprema Corte, que exigiu registros e a reabertura de todas as investigações pendentes de direitos humanos de todos os Tribunais (Cf. Skaar, 2011).

O “efeito Pinochet”

Com o avanço de importantes eixos da justiça de transição no Chile (especialmente verdade e reparação) e com três precedentes de condenação judicial, ainda nos anos 1990, por violações aos direitos humanos praticadas por agentes da repressão da ditadura, a ideia de que a anistia para os militares pudesse desempenhar alguma forma de justiça se via cada vez mais comprometida no contexto chileno. Muito diferente do caso brasileiro, por exemplo, no final dos anos 1990, a sociedade chilena tinha não só a produção de um conhecimento público e chancelado por órgãos oficiais acerca do terrorismo de Estado dos anos de repressão política, como tinha também diante de si a condenação criminal de importantes agentes daquela repressão em casos emblemáticos e finalizados poucos anos depois da transição para a democracia. A mensagem de que o terrorismo de Estado não só precisaria ser revelado, mas também condenado por ser inaceitável, vinha se sedimentando de forma consistente ao longo daquela primeira década da redemocratização chilena.

Poucos meses depois da ratificação do Estatuto de Roma, Pinochet foi preso em Londres, em 1998, por conta de um pedido de extradição formulado por uma Corte espanhola ao governo britânico em função do comando do ex-presidente na condução de casos de genocídio, terrorismo, tortura e outros crimes internacionais praticados dentro e fora do Chile.7

A Câmara dos Lordes britânica considerou que Pinochet não tinha imunidade sobre casos de tortura e que esta consistia numa das possibilidades de extradição para a Espanha (Cf. Orentlicher, 2004, 1070-89).

A Corte espanhola baseara seu pedido na jurisdição universal dos crimes contra a humanidade. No curso do processo, depois de ficar alguns meses em prisão domiciliar no Reino Unido, Pinochet foi considerado inapto a encarar um julgamento por questões de saúde e, ao invés de ser extraditado para a Espanha, foi mandado de volta para o Chile. Mesmo assim, caíram por terra os tabus que cercavam sua personalidade antes tida como intocável.

7 Estatuto de Roma é o nome dado ao Tratado que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI) e a jurisdição

universal dos chamados crimes contra a humanidade. Sobre o TPI e a jurisdição universal dos crimes contra a humanidade, cf. Schabas (2001), Orentlicher (2004 e 2007) e Freeman (2009).

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Diante da prisão de Pinochet na Inglaterra, dois problemas haviam se colocado diante dos Tribunais chilenos: a questão da imunidade concedida a Pinochet na qualidade de senador vitalício e a questão da sua alegada debilidade física. Menos de uma semana depois que Pinochet aterrissou em Santiago, o juiz Juan Guzmán Tapia, para surpresa de muitos, solicitou ao Tribunal de Apelação que levantasse a imunidade de Pinochet em relação à chamada “Caravana de la Muerte”, episódio em que mais de 70 dissidentes do golpe teriam morrido em decorrência de uma operação clandestina capitaneada pelo próprio Pinochet pouco tempo depois de o então general ter assumido o poder, em 1973.

Este foi o caso escolhido porque nele a cadeia de comando era mais clara. Guzmán convenceu o Tribunal de Apelação de Santiago: a maioria (3-2) decidiu em favor do levantamento da imunidade de Pinochet em cinco de junho de 2000. A Suprema Corte, em uma decisão histórica de 8 de agosto, confirmou a decisão do Tribunal de Apelação. No entanto, algum tempo depois, esta mesma Corte suspendeu as acusações contra Pinochet com base na avaliação de que ele estaria clinicamente inapto para ser julgado de acordo com a lei chilena, porque sofria de uma forma leve de demência. Em 2003, Guzmán voltou a tentar retirar de Pinochet sua imunidade em dois casos separados: o assassinato do ex-vice-presidente chileno Carlos Prats e de sua esposa em Buenos Aires e o caso Calle Conferencia. O Tribunal de Apelação de Santiago, no entanto, negou ambos os pedidos por motivos de saúde.

O antigo ditador continuou a ser investigado por violações na Operação Condor, mas o Tribunal de Apelação de Santiago, em junho de 2005, voltou a determinar que ele estava muito doente para ser julgado. Por outro lado, o mesmo Tribunal despojou o ex-ditador de sua imunidade no episódio da infração financeira praticada no caso do Riggs Bank (Cf. Hilbink, 2007). Essa decisão provocou o advogado dos direitos humanos Eduardo Contreras a dizer certa vez que a Justiça chilena parecia sugerir que o dinheiro era mais importante do que o sangue no país. Neste caso, Pinochet foi acusado de fraude e destinado à prisão domiciliar em novembro de 2005.

Duas horas depois de ser libertado sob fiança no casoRiggs Bank, outro juiz, Víctor Montiglio, acusou-o como responsável em comando pelo sequestro praticado pelos serviços de segurança contra pelo menos três dissidentes em outro caso, a Operación Colombo, que dizia respeito ao desaparecimento de 119 membros de um grupo revolucionário armado em meados da década de 1970. A última ação legal contra Pinochet ocorreu ainda em outubro de 2006, quando um novo juiz, Alejandro Solis, acusou o general de sequestro, homicídio e tortura, dirigidos pela polícia secreta em Villa Grimaldi, onde milhares foram torturados entre 1974 e 1977.

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Em 10 de dezembro de 2006, Pinochet morreu de doenças cardíacas aos 91 anos. Ele estava sujeito a duas investigações separadas sobre fraudes financeiras e crimes relacionados a violações de direitos humanos. Embora nenhum julgamento contra ele tenha chegado à conclusão no momento da sua morte, ele faleceu como um ditador desacreditado e não como um salvador da nação chilena. Depois que Pinochet foi preso em Londres, a partir de maio de 2000, mais de 200 membros antigos ou ativos das forças de segurança passaram a ser submetidos a investigações sobre várias formas de graves violações aos direitos humanos nos Tribunais chilenos. A grande maioria desses casos havia sido arquivada nos anos anteriores, restando paralisados no sistema judicial chileno até serem reativados por juízes e ONGs.8 Muitos casos inteiramente novos também foram levados aos Tribunais após

a prisão de Pinochet.

Entre 1998 e 2001 ocorreu o aumento mais dramático no número de investigações e julgamentos contra agentes públicos envolvidos com a prática de crimes durante a ditadura militar chilena (cf. Evans, 2006). Pela primeira vez na história jurídica do país, os Tribunais militares já não rejeitavam automaticamente todos os casos de direitos humanos, como fizeram ao longo da ditadura, bem como durante os primeiros anos após a transição.

O governo de Lagos tentou colocar restrições em processos judiciais através de duas medidas diferentes. Primeiro, a Suprema Corte, supostamente sob pressão do governo, propôs um ponto final de estilo argentino na forma de um prazo de seis meses para todos os juízes que investigavam os casos de desaparecimento forçado completarem seus trabalhos de investigação (Cf. Skaar, 2011, p. 115).

Enquanto Lagos tentava interferir em processos judiciais, sua sucessora pelo mesmo partido, Michelle Bachelet Jeria, ofereceria aos Tribunais amplo apoio. Bachelet alçaria os direitos das mulheres e os direitos indígenas ao topo da agenda política no debate nacional. Filha de um ex-general da força aérea que morreu em 1974 depois de torturado sob os auspícios de Pinochet, Bachelet foi torturada também no infame centro de detenção de Villa Grimaldi e depois passou um tempo no exílio na Austrália e no leste europeu.

Antes de se tornar presidente, quando nomeada ministra da Defesa de Lagos em 2002, Bachelet conseguira "forjar uma ponte entre os mundos militar e político" (Angell, 2007, p. 117). Sendo a primeira ministra mulher da Defesa na América Latina e uma das poucas no mundo, ela promoveu atos de reconciliação entre militares e vítimas da ditadura. Estes atos

8 O Chile tinha uma das mais fortes redes não-governamentais de direitos humanos na América Latina durante o

período da ditadura. Grande parte da informação recolhida durante o regime militar por estas organizações foi apresentada primeiramente à Comissão da Verdade e Reconciliação entre 1990-91 e, mais tarde, à Comissão Valech, sendo usada depois em processos judiciais contra militares. A respeito, Roht-Arriaza (2009, p. 92) escreve que "a sociedade civil transnacional desempenhou um papel fundamental tanto para avançar esses processos transnacionais quanto para traduzi-los em catalisadores de mudanças domésticas.” Nos casos chilenos, os grupos de direitos humanos no país estavam profundamente envolvidos na preparação dos processos legais.

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culminaram na histórica declaração de 2004 do general Juan Emilio Cheyre Espinoza, de que as violações aos direitos humanos, nunca e para ninguém, podem ter justificativa ética. E nesta ocasião o general acrescentou que nunca mais os militares subverteriam a democracia no Chile. Vertentes significativas da população chilena ainda simpatizam com os militares. No entanto, há boas razões para se inferir que as forças de segurança já se encontravam plenamente subordinadas ao governo democrático quando Pinochet morreu em 2006.

Em contraste com a Argentina, que anulou suas leis do Ponto Final e da Obediência Devida, o Chile manteve o seu antigo Decreto sobre a anistia, ao menos formalmente.9 Houve

vários esforços nos níveis presidencial e parlamentar para que a Lei de Anistia fosse declarada nula e sem efeito, mas importantes setores do centro e da direita política bloquearam essas iniciativas. Embora as reformas constitucionais em 2005 tenham trazido importantes mudanças na composição do Senado, eliminando os nove senadores designados por Pinochet (e reduzindo o mandato presidencial de seis para quatro anos), ainda assim não foi possível revogar a anistia.

No entanto, embora o Decreto que a instituiu em 1978 tenha sido continuamente aplicado pelo sistema de justiça chileno no passado, houve uma mudança significativa na jurisprudência da Suprema Corte a partir de 1998. Como mencionado acima, no caso Poblete-Córdoba, o Tribunal se recusou a considerar a anistia como abrangendo casos de desaparecimento forçado, considerados como sequestro. A segunda linha de raciocínio que minou a cobertura da anistia de 1978 se relaciona com a adoção alguns anos depois, por parte expressiva do Judiciário chileno, da tese de que os chamados crimes contra a humanidade são insuscetíveis de anistia, perdão ou prescrição. Hoje a doutrina do desaparecimento forçado como crime permanente é aplicada quase universalmente em todos os Tribunais do país.

Os juízes chilenos também gradualmente se tornaram mais conscientes das obrigações internacionais juridicamente vinculantes, especialmente as emanadas do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (Cf. Basch, 2007 e Binder, 2011). O que mudou, portanto, não foi a legislação doméstica, mas sim a sua interpretação judicial interna, que expandiu o campo de hermenêutica jurídica em casos de violações aos direitos humanos.

O caso do ditador chileno, por sua vez, inspirou juízes em várias partes do mundo a buscarem a responsabilização criminal de chefes de Estado e de governo por violações do passado. De fato, o "efeito Pinochet" nos processos jurídicos internacionais e nacionais recebeu ampla cobertura da pesquisa acadêmica. No entanto, sem alguns antecedentes que consideramos aqui como essenciais – como as mudanças internas no Judiciário chileno,

9 Para uma comparação entre os desenvolvimentos das políticas de reparação e a jurisprudência sobre

responsabilização penal de agentes públicos envolvidos com a repressão em Chile, Argentina e Brasil, cf. Pereira (2005).

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alguns precedentes judiciais importantes e as medidas de justiça de transição feitas até então no país – também seria duvidoso que as alterações de curso na jurisprudência doméstica ocorreriam de forma tão profunda a partir da prisão do ex-ditador no Reino Unido.

Desde a prisão de Pinochet, o princípio de que ninguém está acima da lei – nem mesmo os chefes de Estado – tornou-se não só uma norma do direito internacional, mas uma realidade palpável. Existe uma crescente aceitação global da ideia de que alguns crimes são odiosos demais para permanecerem impunes: nesta lista se incluem a tortura, o desaparecimento forçado e o genocídio.

A opinião pública também se tornou um fator adicional que ajuda a moldar o comportamento dos juízes. No caso do Chile, embora em princípio independentes, os juízes não são imunes à opinião pública ou a mudanças nas atitudes políticas e sociais. O Judiciário chileno foi fortemente criticado publicamente quando o Informe Rettig, publicado em 1991, afirmou que os magistrados do país foram cúmplices das Forças Armadas e não cumpriram com seu dever de julgar os milhares de casos de direitos humanos que foram apresentados aos Tribunais durante o período da ditadura.

Doze anos depois da conclusão dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação, o governo chileno instituiu uma nova comissão destinada a tratar de um grupo de vítimas que havia ficado de fora das primeiras políticas de memória e reparações: aqueles que foram encarcerados, em sua grande maioria torturados, e que sobreviveram. Sergio Valech, um bispo conhecido pela defesa dos direitos humanos durante o regime militar, foi nomeado presidente da nova comissão, que tinha a atribuição de determinar quem havia sido preso ilegalmente e torturado por motivos políticos entre setembro de 1973 e março de 1990.10

O relatório de 1.200 páginas, finalizado em novembro de 2004, também foi apresentado à nação pelo presidente Lagos em um discurso televisivo (Cf. Hayner, 2011). Ao fim do processo, a Comissão identificou quatorze formas de tortura empregadas no Chile, e concluiu que, sobretudo na primeira fase da ditadura, a tortura era uma política de Estado, destinada a reprimir e aterrorizar a população (Cf. Comisión Nacional sobre Prisión Política y Tortura, 2004).11

Este relatório, assim como o Informe Rettig, mais uma vez deixou de individualizar os responsáveis pelas violações. Os detalhes dos testemunhos das vítimas foram considerados secretos por 50 anos. Um relatório complementar ainda foi publicado em maio de 2005, quando outras 1.204 pessoas seriam reconhecidas como vítimas de encarceramento ilegal

10 O órgão recebeu o nome oficial de Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura, mas teria seu relatório

final mais tarde informalmente conhecido como Informe Valech, conforme o nome daquele que presidiu a Comissão.

11 Foram identificados também 1.200 estabelecimentos onde tais detenções e as torturas tomaram lugar,

incluindo-se aí escolas e hospitais. O documento ainda descreveu as práticas adotadas e elaborou um perfil das vítimas, incluindo as sequelas provocadas pela violência, não apenas entre os presos, mas também em seus familiares.

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durante a ditadura. Ao término do processo, no total, foram reconhecidas 28.459 vítimas de prisão política e tortura (Cf. Mezarobba, 2007, p. 292). Uma vez encerrado o trabalho desta Comissão, o presidente Lagos colocou em prática um novo programa de reparações, que contemplaria também as novas vítimas reconhecidas pelo Estado chileno.

Considerações finais

Em termos comparados, a experiência chilena apresenta uma articulação bastante abrangente entre os diversos mecanismos da justiça de transição.12 O primeiro governo civil

eleito que assumiu o poder ao fim da ditadura de Pinochet colocou a pauta dos direitos humanos e do acerto de contas com o passado em posição central de sua plataforma de governo. A Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação esboçou um cenário contundente das violações do passado, seu aspecto estrutural e sistemático dentro da política de Estado no curso do regime militar e reconheceu assim o sofrimento e a injustiça da “guerra interna” patrocinada pelas forças de segurança no país. O chamado Informe Rettig, embora não tenha individualizado os responsáveis diretos pelas violações, contribuiu para a formação de um juízo de reprovação do passado de abusos cometidos pelo Estado. O Informe elaborou também uma avaliação crítica da atuação da luta armada no país, responsável por algo em torno de 4% das graves violações aos direitos humanos reportadas pela Comissão.

Relatórios complementares realizados por outras Comissões em diferentes gestões do Executivo nacional chileno, especialmente o chamado Informe Valech, ajudaram a completar a narrativa crítica sobre as mais variadas formas de perseguição política empreendidas pelo governo Pinochet. Além disso, um amplo programa de reparações também foi instalado ao longo de várias gestões, de forma incremental, até conformar-se, apesar de algumas falhas e críticas da sociedade civil, em um dos programas de reparações econômicas mais abrangentes do mundo. Praticamente todas as modalidades de reparações foram adotadas na experiência chilena: da compensação financeira (seja em parcela única ou em prestações vitalícias, a depender do caso) até a reintegração ao serviço, passando-se pela concessão de bolsas de estudo, atendimentos médicos e psiquiátricos e indenizações ou restituição de bens confiscados.

Com relação ao desenvolvimento do eixo da responsabilização criminal na experiência chilena, vimos que o chamado “efeito Pinochet” não foi o único responsável pela “cascata de justiça” desencadeada no país a partir dos anos 2000. Os principais elementos que prepararam o terreno para que aquele desencadeamento se tornasse possível foram:

12 Para uma perspectiva mais abrangente sobre o desenvolvimento da justiça de transição em perspectiva

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primeiro, as políticas de justiça de transição implementadas já nos anos 1990 no Chile (especialmente a sua Comissão da Verdade e Reconciliação e um primeiro programa de reparação); segundo, três precedentes judiciais de condenação de agentes da repressão não protegidos pela anistia de 1978; terceiro, uma reforma na Suprema Corte do país, que ampliou o número de juízes da Corte, tornando a instituição mais afinada com uma visão não só doméstica, mas também internacionalista do direito.

Nesse sentido, o principal argumento aqui defendido é o de que, para a “cascata de justiça” ser levada adiante, pelo menos tão importantes quanto os “casos de grande repercussão” são: a construção progressiva de precedentes jurídicos, reformas nas instituições judiciais e o entrelaçamento (ou interdependência) das políticas de justiça de transição. Assim, valendo-se de uma reflexão contrafactual, a “cascata de justiça” no Chile, ainda que impulsionada por um caso internacional de grande repercussão, para que fosse ativada, dificilmente poderia prescindir do forte desenvolvimento de outros eixos da justiça de transição e de precedentes e reformas judiciais que em alguma medida desarticulassem bloqueios de antigas elites judiciais formadas durante a ditadura de Pinochet.

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