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REDES AMBIENTAIS NO CURSO TÉCNICO EM MECÂNICA: DIÁLOGOS ENTRE EDUCAÇÃO AMBIENTAL E CURRÍCULO

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REDES AMBIENTAIS NO CURSO TÉCNICO EM MECÂNICA: DIÁLOGOS ENTRE EDUCAÇÃO AMBIENTAL E CURRÍCULO

Ana Raquel de Souza Rodrigues - Ifes1 Mariluza Sartori Deorce - Ifes2

Repensando a escola e seus praticantes em tempos de transição paradigmática

Ao pensar o mundo moderno e os processos de padronização sociais e tecnológicos que permitem a geração de fenômenos estáveis, Najmanovich (2001) auxilia-nos a entender o discurso do “corpo maquínico” produzido pela modernidade e que serve de metáfora para a formação profissional técnica e para pensar sujeitos disciplinados. Assim como o mundo é regido por leis matemáticas e manipulado por processos regulares, fixos, sistemáticos e previsíveis, o homem é também uma máquina mecânica, cujos movimentos são também previsíveis.

A partir dessa perspectiva, o corpo é um mecanismo: substância extensa regida por leis mutáveis, em que cada efeito é um produto necessário de uma causa. A mente é concebida unicamente como atividade racional e como uma substancia independente (p.20).

A concepção de um corpo descolado de sua mente é o discurso norteador da pedagogia das competências e da pedagogia tecnicista, que sustentam e validam as práticas docentes no ambiente da educação profissional.

No entanto, cabe ressaltar que esse discurso “absoluto” da modernidade que enquadra o professor e sua prática em modelos previamente estabelecidos na tentativa de reduzir os

saberesfazeres3 cotidianos e a capacidade criativa dos sujeitos escolares é problematizado

1 Mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo. Pedagoga do Instituto Federal de Educação,

Ciência e Tecnologia do Espírito Santo.

2 Doutoranda em Educação pela PUC/SP. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do

Espírito Santo.

3 Assumimos esta forma de escrita com Alves, Garcia, Ferraço e Oliveira e outros pesquisadores do cotidiano

que, ao unirem as palavras, tentam mostrar que esses processos ocorrem enredados, “tudo junto”, no sentido em que empregamos aqui. É uma tentativa também de expressar novos modos de pensar e fazer diferentes da fragmentação herdada da modernidade.

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pela dinâmica da vida cotidiana4 que, por não possuir elementos controláveis que sejam regulados por “leis”, é considerada cientificamente irrelevante.

Assim, são pelas artes de fazer5 (CERTEAU, 1994) que a monocultura do saber técnico que impregna o currículo e o pretensioso engessamento de corpos e mentes produzidos na modernidade são problematizados por meio de outros valores e racionalidades que põem em xeque o paradigma dominante da ciência moderna.

Santos (2010) discorre sobre quatro condições que, por fazerem desmoronar o mundo cartesiano-newtoniano, constituem a crise do paradigma dominante: a relatividade de Einstein, que constituiu um rombo no tempo e espaço absolutos de Newton; o princípio da incerteza de Heisenberg, no campo da física quântica; as investigações de Godel sobre o rigor da matemática e seu estudo sobre o teorema da incompletude; e os avanços do conhecimento nos domínios da microfísica, da química e da biologia que recuperam alguns conceitos aristotélicos tais como potencialidade e virtualidade que a revolução científica do século XVI tinha excluído do campo da ciência.

Como a crise da ciência moderna é resultado de um saber/existir fragmentado, Santos (2010, p.72) reforça que “[...] a ciência pós-moderna deve descobrir categorias de inteligibilidade globais, conceitos quentes que derretam as fronteiras da ciência moderna”. Partindo dessas reflexões iniciais, surgem as inquietações e reflexões deste artigo: Em tempos de transição paradigmática, como pensar uma educação profissional mais solidária e creditar maneiras de subversão aos modelos pretensiosamente engessados da “pedagogia das competências”? Ou melhor: que outras ecologias de saberesfazeres são engendradas pelo professor e invisíveis ao olhar totalizante que potencializam uma formação profissional emancipatória e prudente?

4 O cotidiano de que falamos tem sua riqueza constituída nas ações de seus sujeitos ou praticantes ordinários,

como prefere Certeau (1994). Segundo o autor, os praticantes ordinários são pessoas comuns que, silenciosamente, vão escapando ao lugar que lhes são atribuídos pelas astúcias nas artes de fazer. A reapropriação do espaço e o uso que fazem dos objetos e códigos impostos pela ordem dominante permitem aos praticantes ordinários a invenção anônima do cotidiano, numa tentativa de viver, da melhor forma possível, a ordem social e a violência das coisas.

5 As “artes de fazer”, “astúcias sutis”, “táticas de resistência” (CERTEAU, 1994) são maneiras pelas quais o

“homem ordinário” inventa o seu cotidiano, alterando os objetos e os códigos impostos e estabelecendo uma (re)apropriação do espaço e do uso ao jeito de cada um. Assim, há um deslocamento da atenção: dos produtos recebidos para a criação anônima.

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Embora ciente de que a pedagogia tecnicista6 é mais um modelo que visa a explicações generalistas da educação profissional, pautadas no discurso hegemônico da ciência moderna, a intenção deste artigo é potencializar os saberesfazeres cotidianos do professor da escola técnica e as possibilidades de reinvenção da escola profissional por meio das redes em EA7.

Do ponto de vista epistemológico, a EA8 como campo híbrido de saberes abre horizontes para novos espaços e desenhos cognitivos, em que as polarizações entre educação geral e educação técnica, conhecimentos científicos e conhecimentos profissionais, pensar e executar, corpo e mente, entre outras, sejam problematizadas e superadas. Tristão (2004) afirma:

A dimensão ambiental configura-se como um fator mobilizador, atribuído ao seu poder de partilhar, agregar com diferentes atores e atrizes os mais diferentes contextos e ações com princípios éticos e humanistas numa perspectiva que transcende fronteiras. Sem qualquer pretensa hierarquia, transforma-se em uma questão vital, inter-relacionada com todas as outras dimensões. Não possui territórios demarcados (p. 1).

Assim, podemos inferir neste artigo, que o sujeito encarnado da educação profissional, imbricado nas redes curriculares ambientais, contribui para o rompimento de compartimentos estanques nos quais a modernidade nos encerrou. Nessa perspectiva, o professor, ao invés de ser um mero burocrata no exercício de sua função, busca navegar pelo mar da complexidade, considerando o erro, o caos, a instabilidade, a multidimensionalidade, as redes que se tecem continuamente, o imprevisível e as possibilidades de criação do cotidiano.

Quanto aos saberesfazeres dos professores que problematizam o modelo tecnicista, podemos considerar a produção ativa de não existências, originadas pela invisibilidade daquilo que não corresponde ao esperado, ao previsto. De acordo com Santos (2004), “o que não existe é, na verdade, activamente produzido como não existente, isto é, como alternativa não credível ao que existe” (p. 787). Assim, as invenções anônimas de professores e alunos têm desinvisibilizado e legitimado outros saberesfazeres, antes invisíveis.

Assim, o sujeito praticante encarnado da educação profissional é um sujeito complexo,

[...] se sabe partícipe e co-participe do mundo em que vive, um mundo em interação, de redes fluidas em evolução, um mundo em que são possíveis tanto o determinismo

6 Alves e Oliveira (2012) afirmam que a generalização das práticas ou a identificação dos fazeres pedagógicos

com um ou outro modelo são problemáticas, pois esses saberesfazeres são, na verdade, produtos de enredamentos entre normas, circunstâncias e características dos grupos e locais em que estamos inseridos.

7 Devido à ocorrência expressiva do termo Educação Ambiental no artigo, este será abreviado para EA.

8 No tocante ao relevo dado à EA, buscamos um saberfazer que aglutinasse os demais saberespráticas escolares

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como o acaso, o vidro e a fumaça, acontecimento e linearidade, surpresa e conhecimento (NAJMANOVICK, 2001, p. 95).

Esse sujeito complexo da educação profissional introduz, no cotidiano de nossas escolas, novos espaços cognitivos que se ampliam continuamente pelas redes de afetos e de solidariedade. O conhecimento técnico necessário ao desempenho profissional não é abstrato e neutro, mas contextualizado a uma dinâmica cognitiva em que se relacionam outras racionalidades mais éticas e estéticas.

E, na tentativa de apresentar as narrativas9 dos professores e alunos do curso técnico em Mecânica, a proposta aqui apresentada é dialogar os fragmentos das narrativas desses praticantes ordinários em interlocução com pensamentos freireanos. A justificativa pelo autor se deve ao reconhecimento de seu legado na reflexão do homem e seu compromisso com a sociedade. Assim, o ideário de uma EA crítica e problematizadora aposta no poder humano de transformação das condições de vida existentes rumo a estéticas de vidas mais sustentáveis e emancipatórias.

A Educação Ambiental em diálogo com Paulo Freire

A partir das vivências e práticas de gestão ambiental, professores e alunos expressaram sentimentos e perspectivas por melhores condições de vida e justiça social. Apesar da EA no cotidiano da escola técnica pesquisada estar reduzida a apenas uma de suas dimensões, que é a gestão ambiental de resíduos sólidos e efluentes, reforçamos que não podemos desqualificar os saberes e práticas associados a esse gerenciamento, visto que a destinação desses resíduos é um desafio que se apresenta no cotidiano desses professores e alunos.

Em um contexto escolar de formação técnica para o mundo do trabalho em que valores como competitividade e individualismo são enaltecidos por serem vetores de empregabilidade, os

discursospráticas solidários com o meio ambiente e com o próximo são potencializadores de atitudes e ações socioambientais emancipatórias. Assim, o esforço de categorização residiu na articulação dos fragmentos textuais dos dados produzidos que sustentam conceitos freireanos de educação e que, por isso mesmo, estão em sintonia com a formação de cidadãos críticos,

9 As narrativas que enriquecem este estudo foram produzidas por professores e alunos do curso técnico em

Mecânica do Ifes do campus Vitória por meio de entrevistas e de grupos focais. Os professores serão identificados pelos componentes curriculares da matriz do curso.

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conscientes e transformadores das condições sociais e ambientais das realidades por eles vividas.

Sem pretender engessar os movimentos constituintes do cotidiano escolar, mas na tentativa de comunicar as energias emancipatórias e utópicas que circulam nas redes de saberesfazeres ambientais, organizamos didaticamente as categorias em cinco dimensões, assumindo as relações de complexidade e abrangência inerentes à EA: Conscientização, Prática dialógica,

Práxis transformadora, Ética e Utopia10. Devido à limitação da extensão deste artigo, as categorias serão apresentadas de forma enredada a fim de permitir uma visão mais articulada dos discursospráticas.

As categorias não pretendem e não encerram a totalidade e a complexidade dos ideais freireanos, mas carregam em si a estética potencializadora de formação de paisagens curriculares mais emancipatórias.

Iniciemos pelo que Freire (2001) entende acerca do termo consciência:

A consciência de, a intencionalidade da consciência, não se esgota na racionalidade. A consciência do mundo que implica a consciência de mim no mundo, com ele e com os outros, que implica também a nossa capacidade de perceber o mundo, de compreendê-lo, não se reduz a uma experiência racionalista. É como uma totalidade - razão, sentimentos, emoções desejos -, que meu corpo consciente do mundo e de mim capta o mundo a que intenciona (p.75-76, grifos do autor).

É na integração do ser humano ao seu contexto que o mundo é problematizado, decodificado pelos homens que se descobrem instauradores do próprio mundo. Ao objetivar o mundo, o ser humano historiciza-o, desmitifica-o, e, por assim fazer, vai superando a consciência ingênua de leitura da realidade e avançando na consciência crítica de compreensão do mundo, em que a natureza, a ciência e a tecnologia não são dimensões autônomas e neutras, mas interconectadas. No cotidiano da escola pesquisada, os problemas ambientais são “temas geradores” que levam educadores e educandos a problematizarem a realidade para compreendê-la.

A palavra consciência aparece em quase todas as respostas dos docentes relativas à indagação da importância da EA no Ifes. A conscientização ambiental dos educandos é o objetivo a que aspira os professores quando transmitem informações acerca da destinação correta de resíduos

10 As categorias foram selecionadas em função dos discursospráticas dos professores e alunos. Os conceitos de

libertação, autonomia, criticidade, emancipação e democratização, centrais nas obras freireanas, perpassam as categorias elencadas, sendo apresentadas ao longo de toda análise.

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sólidos e efluentes nas práticas de sala de aula. Essa abordagem é necessária porque o ambiente de trabalho também exige hábitos e atitudes ecologicamente corretos. A resposta abaixo é bastante elucidativa das demais.

Considero importante o tema EA, principalmente numa escola de ensino profissional onde nós temos vários cursos tanto voltados para o meio industrial quanto voltados para as atividades que estão diretamente relacionadas com ambiente, tanto o ambiente de trabalho quanto o ambiente social que a gente tem. Então não dá para dissociar essas coisas (Prof. Hidráulica).

Na percepção do professor, o ambiente de trabalho não está dissociado de outros contextos sociais, o que facilita a compreensão de uma EA mais ampla, não restrita ao ambiente escolar e ao mercado.

Em outra narrativa, a EA está associada à cidadania do educando e não apenas à formação técnica. Complementando com as ideias de Freire (2001), “o domínio técnico é tão importante para o profissional quanto a compreensão política o é para o cidadão. Não é possível separá-los” (p.27, grifos do autor).

[...] aqui nós temos que formar não apenas o técnico, mas também o cidadão. Então, nesse caso, é de grande importância sempre estar ligando o assunto da disciplina com o meio ambiente (Prof. Mecânica Técnica).

De fato, a EA tem um compromisso ético-político com o exercício de uma cidadania

ampliada ou planetária (LOUREIRO, LAYRARGUES; CASTRO; 2005), não restrita aos

padrões tradicionalmente associados ao Estado-nação, pois se articula com todos os contextos sociais nos quais estamos inseridos. Dessa forma, a conscientização por via das práticas em EA visa à superação da consciência ingênua do educando, conduzindo-o a leitura crítica e problematizadora do mundo. Como exemplificação, citamos dois comentários de alunos do curso acerca das consequências de uma formação profissional alijada de temáticas ambientais:

Imagine um técnico em manutenção, se ele não tiver essa conscientização que o óleo ou a graxa que ele vai trocar vai prejudicar o ambiente de trabalho dele, ele vai fazer o trabalho relapso. Não é nem por maldade, mas porque ele não tem conhecimento. Se você for hoje fazer uma dinâmica de grupo na Vale, na CST ou em qualquer lugar, eles perguntam sobre a questão ambiental e se você não tiver noção você trava porque você não consegue dialogar a respeito da exploração de uma jazida e sobre reflorestamento.

A abordagem de uma EA crítica num contexto de formação profissional técnica fomenta a criticidade dos educandos. Com Freire (1980, 1987) podemos entender que a consciência ambiental não se reduz ao acúmulo de informações ecologicamente corretas porque carrega em si não apenas a razão, mas sensibilidades éticas e estéticas de ser/estar no mundo. A

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conscientização crítica exige, sobretudo, o questionamento da nossa relação com a natureza. Essa reflexão implica uma postura epistemológica questionadora de uma visão utilitarista e mecanizada da natureza.

E aí quando a gente faz uma análise sobre a Revolução Industrial, falamos que havia essa total despreocupação histórica [preocupação com o meio ambiente]. Você tinha recursos abundantes. Então quando você tem essa evolução e essa sofisticação do mundo do trabalho, passa a ter essa preocupação maior. Aqui no plano [de ensino] está Evolução dos Sistemas de Trabalho; não está escrito EA porque eu entendo que na minha prática esse é um tema abordado de forma universal, como se fosse o tema Ética. Você não vai ver o tema Ética abordado ali, você tem que falar isso (Prof. Administração).

O discurso do professor é relevante porque relaciona crescimento econômico e problemática ambiental, e também pelo reconhecimento da transversalidade dos saberes ambientais. No âmbito da EA, não podemos dissociar o técnico do político-social sob a pena de reduzirmos a práxis educativa à lógica mercantil-privatista.

Em relação à prática dialógica, o diálogo é categoria das mais essenciais para pensar e construir um mundo solidário, com base na vida comunitária e na reciprocidade universal, pois implica abertura ao novo e ao imprevisto, relações autênticas, reflexividade, contextualização e diversidade. Nesse sentido, requer o reconhecimento do outro como legítimo outro (MATURANA, 1998) e aspira a um mundo onde caibam todos (ASSMAN, 1998).

A complexidade da crise socioambiental exige o diálogo e a conexão entre os diferentes saberes e sujeitos a fim de problematizar as consequências de um progresso desordenado. A superação da educação bancária por vias da EA está no diálogo entre educador e educando que problematiza as “verdades absolutas” e o paradigma dominante da ciência moderna. Para isso, o professor tem de assumir uma postura de abertura ao novo e ao imprevisto.

Nosso grande problema é quebrar os paradigmas. Muitas pessoas se amarram no tempo e querem ficar do jeito que estão eternamente. Eu não sou assim! Eu sou uma pessoa que gosta de evoluir, gosto de mudanças e não gosto de ficar fazendo muito tempo a mesma coisa (Prof. Solda).

Ao perceberem a necessidade da gestão ambiental nos espaços de aulas e no ambiente de trabalho do aluno, os professores incluem em suas aulas a questão ambiental, a segurança e a saúde do trabalhador. Embora o foco seja na segurança do trabalhador, por meio do ensinamento de normas regulamentadoras, os docentes conseguem perceber a interlocução dessas dimensões na EA.

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Você não pode mais dissociar, separar meio ambiente, qualidade e segurança da sua produção. É uma coisa integrada. Não existe a possibilidade de dar certo se não for associado. Tem que ser integrado. Faz parte do processo (Professor SMS).

A percepção da conexão entre diferentes saberes em EA alimenta o movimento de diálogo entre os sujeitos e entre as disciplinas curriculares. Assim, a educação tradicional vai cedendo lugar à educação libertadora, problematizadora das condições de vida a que estamos submetidos. E como exemplo de uma bela prática dialógica que aconteceu na interação de sala de aula, merece destaque a longa citação, rica em seus desdobramentos políticos e emancipatórios.

Por exemplo, eu trabalhei com Mecânica Técnica. Quando eu falava do assunto energia, eu sugeria aos alunos calcular o consumo de energia de uma lâmpada incandescente num mês, quantos watts por dia dentro daquela empresa. Aí eu falava assim: “Vamos trocar agora por outra lâmpada que tem o mesmo efeito de luminosidade, que é mais econômica e a partir dessa nova prática, qual é o custo da empresa?” Então com isso eles perceberam que houve uma redução de custos. Mas a questão toda não é só redução de custos, e sim a redução do consumo de energia. Redução do consumo de energia elétrica significa o quê? Você desgastar menos o meio ambiente. Então isso é uma forma de chamar atenção do aluno através de números que essa ou aquela prática ajuda a preservar o meio ambiente (Prof. Mecânica Técnica).

O estímulo à pergunta, a reflexão crítica sobre a própria pergunta e o respeito pelas respostas dos educandos vão deslocando os sujeitos aprendentes de sua passividade e abrindo caminhos para a comunhão de saberes. O educador ambiental, independente de sua formação acadêmica, compartilha o desafio gerado pela complexidade das questões ambientais. Isso implica investigação, curiosidade e atitude dialógica com outros saberes.

Como não há neutralidade no ato educativo e na materialidade do espaço, o currículo da Mecânica é também enriquecido pela práxis transformadora forjada e alimentada pela reflexão-ação no/do contexto concreto. “Há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço” (FREIRE, 1996, p.45). Vejamos a narrativa abaixo:

Nos corredores da Mecânica a gente não vê lixo, a gente não vê desperdício de água, a gente não vê depredação. Nas oficinas a gente vê certa organização, então eu acho que tem um efeito sim, principalmente para o aluno ter uma noção do espaço que está usando (Prof. Ensaios de Materiais).

A citação de Freire sobre a materialidade do espaço dialoga e reforça os discursospráticas dos professores por meio da valorização do cotidiano e da contextualização. Valorizar o cotidiano dos sujeitos como espaço de criação e contextualização das práticas pedagógicas é uma forma de tornar o conhecimento mais compreensivo e íntimo.

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Por meio de olhares críticos sobre a materialidade do espaço físico do Ifes e sobre as contradições inerentes ao processo ambiental do entorno, os professores exemplificam situações didáticas em que a EA é contextualizada. “Quem pensa certo está cansado de saber que as palavras a que falta corporeidade do exemplo pouco ou quase nada valem” (FREIRE, 1996, p. 34).

[...] a Mecânica trabalha com muitos processos de reciclagem e dentro dessa direção o aluno tem que ter a consciência que uma latinha, por exemplo, pode ser reciclada. Ela não é jogada fora. [...] Eu tenho um lixo orgânico numa vasilha e a parte de metais em outra vasilha. Inclusive eu separo alumínio de aço. Só tem um detalhe: como a Escola não tem a política dessa reciclagem, quem é que faz essa reciclagem? É o menino que mexe na manutenção aqui, ele pega e vende. Ele não é um funcionário da Escola, ele é um terceirizado. Onde que eu vou jogar o lixo? A Escola não tem a política de onde eu vou jogar isso e eu já procurei saber (Prof. Solda).

Através desses estudos de casos recentes são formuladas questões e eles se interessam. Por quê? Normalmente nesses grandes acidentes, principalmente acidentes químicos, eles têm a oportunidade de conhecer a realidade, viver essa realidade palpável. Está ali do lado dele. Pode ter uma empresa perto de onde ele mora, pode ter uma empresa no caminho do colégio... (Prof. SMS).

Como se pode evidenciar, as práticas ambientais dos professores da Mecânica se articulam à preocupação que os desafios do cotidiano lhes impõem: o descarte correto de efluentes líquidos, a gestão de resíduos sólidos, a reciclagem, a organização e limpeza dos espaços, entre outros. Mesmo que esses temas não estejam explicitados nos planos de ensino, os professores percebem a necessidade de trabalhar a EA nas diferentes situações didáticas.

Em um mundo atravessado pelas desigualdades e injustiças sociais e ambientais, cabe a todos os cidadãos planetários o resgate de uma ética universal que incorpora a valorização de todas as formas de vida, o respeito pelos diferentes saberes, a denúncia de quaisquer formas de exploração e dominação, as relações de solidariedade e a estética da diversidade. Esse exercício só é possível em relações de formação baseadas na ética – outra categoria freireana que perpassa as redes ambientais do currículo da Mecânica.

A ética a que se refere Freire não se baseia numa ética restrita ao mercado e aos ditames econômicos, mas naquilo que ele nomeou universal ou da solidariedade humana, ou seja, inspirada na relação “ser no mundo com os outros”. Como presença consciente no mundo, o homem não pode escapar à responsabilidade ética de seu mover-se no mundo.

Voltando a Freire (1996), quando de sua recusa à ética restrita ao mercado, ressaltamos que todos os docentes do curso de Mecânica consideram importante a EA por esta ser também

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uma exigência da empresa, da indústria. Mas sob que ótica o sistema econômico percebe a EA? As respostas dos docentes deixaram transparecer uma certa ingenuidade ou falta de criticidade quanto às relações entre mercado e EA. No entanto, a lógica utilitarista e pragmática dessa relação é denunciada pelos alunos do curso.

Porque hoje as empresas pensam mais em produtividade e lucro e não pensam muito na parte de prevenção, enfim, na questão ambiental. Eu acho que a principal mudança que tem que ocorrer é repensar essa maneira de introduzir a parte ambiental em cada setor da manutenção (Aluno).

Indagado se as empresas seguiriam as normas ambientais se não fossem multadas, um aluno prontamente respondeu:

Não, com certeza não. É hipocrisia você dizer que elas seguiriam. Elas deixariam de lucrar. Porque uma empresa quanto mais ela expandir, melhor pra ela. Às vezes essa expansão não é autorizada justamente por sofrer medidas ambientais. Empresas hoje ganham incentivos fiscais devidos alguns prêmios, algumas ISOs ambientais que elas recebem. A única função das empresas seguirem essas normas ambientais é devido às punições. Senão, de maneira nenhuma eles iriam seguir (Aluno).

As potencialidades emancipatórias por meio da ética ambiental também se fizeram notar pela preocupação dos docentes não só com a presente geração como também com as gerações futuras. As redes de solidariedade representadas pelo cuidado com o próximo problematizam as relações de dominação e de domesticação. Assim, a busca por uma ética parceira da EA desloca o antropocentrismo, o individualismo e os determinismos da ciência e da tecnologia de seus territórios consolidados. A ética é o fundamento das sensibilidades ecológicas e dos valores emancipatórios que sustentam as práticas educativas ambientalmente sustentáveis, pois favorece a religação do homem ao seu entorno e ao seu semelhante.

Então os alunos pegam isso muito rápido: que esse cuidado com o resíduo tem que ser levado a sério porque ele vai voltar a usar o laboratório. Às vezes o pai dele já utilizou e é bem provável que os filhos vão usar (Prof. Ensaios de Materiais). Mineração, por exemplo, é uma indústria importante e ela é uma indústria que agride o meio ambiente e às vezes vai embora. Ela vira as costas e os problemas atravessam várias gerações (Prof. SMS).

Os discursospráticas ambientais de professores e alunos no contexto de formação técnica para o trabalho emergem devido às necessidades do cotidiano mais próximo, mas podem ser ampliados para contextos socioambientais mais amplos. O compromisso com a vida e a utopia por melhores condições existenciais problematizam os valores de uma sociedade hegemonizada pela lógica de mercado e favorecem a inserção da ética ecológica nos mais diversos espaçostempos cotidianos. A EA desponta como cartografia de futuros possíveis e como formação de subjetividades inconformistas já que “[...] enquanto nova psicologia, a

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utopia recusa a subjetividade do conformismo e cria a vontade de lutar por alternativas” (SANTOS, 2003, p. 324). Há de se lutar tanto por alternativas viáveis quanto por condições concretas mais favoráveis aos sonhos e esperanças. “Na verdade, a educação precisa tanto da formação técnica, científica e profissional quanto do sonho e da utopia” (FREIRE, 2001, p.29).

Eu espero que ele [o aluno] entenda a questão ambiental não sendo uma coisa regrada e simplesmente imposta. E que não é um conhecimento apenas de Escola, é um conhecimento de mundo, é um conhecimento de necessidade da humanidade. E que ele aplique, exija, faça a sua parte (Prof. Pneumática).

E, para finalizar, vale uma mensagem de Paulo Freire que merece ser repetida de geração a geração para que o ser humano não se esqueça de sua capacidade criadora de intervenção no mundo. Que a mensagem possa soar como uma melodia no ouvido de todos os educadores ambientais que se colocam sensíveis ao Outro e ao planeta e, que dessa forma, seguem construindo um cotidiano escolar mais solidário e ético. Eis a mensagem pela qual se faz valer o cultivo da utopia: “O mundo não é. O mundo está sendo” (FREIRE, 1996, p.76).

Referências

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Pedagogia: diálogos entre didática e currículo. São Paulo: Cortez, 2012. p.61-73.

ASSMAN, Hugo. Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da Libertação – uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 3. ed. São Paulo: Moraes, 1980.

______. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

______. À sombra desta mangueira. 6. ed. São Paulo: Olho d’Água, 2001.

LOUREIRO, Carlos Frederico Bernardo; LAYRARGUES, Philippe Pomier; CASTRO, Ronaldo Souza de (Org.). Educação ambiental: repensando o espaço da cidadania. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

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NAJMANOVICH, Denise. O sujeito encarnado: questões para pesquisa no/do cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

SANTOS, Boaventura Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2003.

______. Por uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In:

Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez, 2004.

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TRISTÃO, Martha. Os contextos da educação ambiental no cotidiano: racionalidades da/na escola. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO, 27., 2004, Caxambu. Anais eletrônicos... Disponível em: < http://www.recea.org.br/acervo/Martha%20Trist%E3o.rtf>. Acesso em: 03 jun.2013.

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