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O STF e o caso Mensalão : articulando expertise jurídica e convicção no processo de decisão dos ministros na esfera criminal.

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Academic year: 2021

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O STF e o caso “Mensalão”: articulando expertise jurídica e convicção no processo de decisão dos ministros na esfera criminal.

Humberto Massahiro Nanaka (UNEMAT)1

Maria da Gloria Bonelli (UFSCar)

Resumo: O trabalho amadurece reflexões de tese de doutorado sobre o comportamento do Supremo Criminal, concernente ao núcleo político do caso “Mensalão”. A pesquisa mostra como os ministros no julgamento do acórdão hibridizam expertise e política nos votos majoritários e contramajoritários. Neste artigo nosso foco recai sobre o mandato moral, um atributo do profissionalismo cívico muito mobilizado nos votos na Ação Penal 470, no processo de justificação da formação de convicção, pondo luz à relevância do tipo de expertise que é o saber jurídico, no exercício das atribuições no âmbito criminal.

Palavras-chave: Profissionalismo cívico, processo decisório, Supremo Criminal.

INTRODUÇÃO: DEFININDO O PROBLEMA

Várias são as pesquisas que analisam o processo decisório de ministros das cortes superiores. Oliveira (2020) sintetiza as perspectivas que orientam os estudos sobre a dinâmica das decisões judiciais em três modelos: a) o atitudinal, traçando o perfil ideológico do julgador, de sua carreira e características sociodemográficas; b) o estratégico, no qual a decisão do voto resulta de cálculos e interesses; c) e o neo-institucional, que prioriza olhar a instituição e suas circunstâncias a influenciar a pessoa do juiz. Ampliando o ângulo de visão para além do âmbito individual, foco frequente nos modelos atitudinais e estratégicos, a autora aponta como a abordagem dos fluxos relacionais nos quais circulam os ministros tem mostrado a influência dessa política informal no processo de deliberação judicial.

Este paper toma por base os votos dos ministros do STF durante o julgamento dos réus do denominado núcleo político2 no caso “Mensalão”. O recorte aproxima nossa

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Humberto Massahiro Nanaka (UNEMAT/UFSCar) é licenciado em Letras e literatura pela Universidade do Estado de Mato Grosso, advogado, Mestre pela Universidade Federal de Mato Grosso e Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos; Professor de Direito Civil da Universidade do Estado de Mato Grosso e pesquisador do Grupo de Estudos da Sociologia das Profissões.

Maria da Gloria Bonelli (UFSCar). Professora titular aposentada do Departamento de Sociologia e

docente sênior no Programa de Pós-Graduação em Sociologia. 2

Integravam este núcleo José Dirceu, José Genoíno e Delúbio Soares, entre outros envolvidos na ação penal. Não foi a atitude isolada de um único partido político brasileiro os crimes descritos no

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análise do modelo atitudinal, mas seu propósito não é explicar o processo decisório no chamado Supremo criminal, e sim refletir sobre o emprego do profissionalismo cívico nesse julgamento. Embora predomine naquele modelo o foco no ministro individualmente, e este tenha sido o caminho tomado na tese de doutorado, saltou aos olhos no conjunto do material reunido a recorrência de conteúdos de justificação da convicção enfatizando os valores morais. Amadurecendo reflexões sobre a ideologia do profissionalismo, refinamos nosso entendimento argumentando que esses conteúdos não constituem um ethos que paira acima dos grupos profissionais, como uma cultura sendo internalizada e aplicada de forma fixa. A AP 470 torna-se assim, uma oportunidade para desenvolvermos essas ponderações, porque ela nos permite ver como a expertise e o mandato moral fornece uma gama de ferramentas a serem postas em circulação conforme os enquadramentos que os ministros fazem do processo e de seu encaminhamento. São recursos criativamente manuseados em redes de negociação, em uma ordem negociada (STRAUSS, 199, p. 27) 3.

Na Corte, o profissionalismo cívico ganhou centralidade na produção de respostas públicas, respaldando os embates entre os julgadores televisionados pela TV Justiça. Neste sentido, destacamos a dimensão coletiva desses recursos e repertórios disponíveis ao mundo do Direito, que situado no âmbito da AP 470 foram selecionados e mobilizados pelos ministros no primeiro julgamento criminal do STF, que envolveu o alto escalão do Poder Executivo e lideranças político-partidárias de sustentação do governo. Assim, nosso enfoque introduz a análise sociológica da justificação moral dos votos e como o profissionalismo cívico se torna um repertório produtivo de moralidades nessas circunstâncias.

O conteúdo dominante do profissionalismo cívico enfatiza a neutralidade e o apoliticismo. Segundo Halliday (1999) os custos da politização para as profissões foram elevados, e fazendo uma política própria elas se caracterizam como antipolíticas. O profissionalismo cívico, conceituado por este autor, protege as profissões jurídicas da política convencional mediante a expertise e a autonomia. A habilidade em converter autoridade moral em expertise é a forma do mundo do Direito exercer poder, com legitimidade social, apoiando-se nos valores do formalismo legal, do procedimentalismo e do conhecimento técnico-jurídico. As profissões jurídicas não conseguiriam combinar a politização e essa autoridade moral, sem perder a legitimidade (BONELLI, 2006).

“Mensalão”, mas da integralidade deles, como o PPS, o PTB, o PR, o PSB, o PRP e o PP, além do caso “tucanoduto”, do mensalão do DEM e da Lava Jato. Contudo, por uma questão de recorte de pesquisa, este estudo se limitou ao chamado núcleo político petista.

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Para Halliday (1987, p. 36) as profissões de tipo normativo perdem em termos de autoridade científica, mas ganham um mandato mais amplo para atuar sobre questões morais. As profissões jurídicas conseguem combinar a autoridade técnica do conhecimento do Direito com a autoridade moral que é exercida em nome da expertise, ampliando o espectro de sua influência profissional.

Nosso argumento é que sendo esse julgamento uma situação inédita na agenda da Corte, os ministros combinaram em seu repertório de ação o conhecimento jurídico e o mandato moral produzindo criativamente os sentidos da expertise e das moralidades, para reforçar a legitimidade e a efetividade da decisão4. O recurso a essas ferramentas revela tanto as especificidades do tipo de judicialização criminal da política, como a potência do uso de tais aparatos para gerar convicções diversas como respostas públicas acompanhadas pela TV Justiça, dando popularidade ao STF. Os dispositivos morais movimentados jogam luz sobre a definição da situação5 pelos julgadores, como agiram para tentar viabilizar resultados e contornar os riscos para sua efetivação.

Nessa concepção, os valores morais não são reduzidos a uma orientação normativa sobre como agir: “eles são ao mesmo tempo os meios para se representar e julgar as ações dos outros e para negociar essas representações e julgamentos” (SCHUCH, 2014, apud BAUMARD e SPERBER, 2007).

Alguns estudos relacionam direito e política na atuação do STF apontando uma conformação do jurídico ao político, seja pelos cálculos estratégicos de ministros, pela cooptação, baixa de autonomia, pelas relações interpessoais, entre outros aspectos. Nosso trabalho detém-se nos conteúdos da expertise e da justificação moral como produtor tanto da legitimação dos votos dos dez protagonistas que participaram da deliberação, quanto da atuação deles conformando uma ordem pública negociada.

Metodologicamente, este paper toma como base a análise dos votos na AP nº 470, realizada na tese de doutorado6. Esse material foi coletado no portal do STF, que disponibiliza digitalizado o acórdão, contendo os argumentos, os debates e a construção da decisão para condenar, absolver e delimitar a pena dos réus. Também foi tomado

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Para uma compreensão sociológica dos sentidos plurais das moralidades, da mobilização criativa de justificativas morais como uma atividade situada e negociada, na qual atores selecionam recursos e repertórios disponíveis para ação, ver Werneck e Oliveira (2014) em especial os capítulos da primeira parte que situam o debate sociológico e antropológico sobre o tema.

5 Sobre o conceito de definição da situação na interação e na ação coletiva ver Blumer (1969 70-77). 6 O STF e o caso “Mensalão”: hibridismo, expertise e política, de Humberto Massahiro Nanaka.

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como base de dados os vídeos do julgamento do “Mensalão”, sendo que vinte deles constituíram o material de análise. Este procedimento permitiu uma melhor compreensão do acórdão selecionando os votos sobre o núcleo político do Mensalão, sem nos determos nas votações sobre os outros dois núcleos operacionais financeiros que compunham o processo, o publicitário e o bancário. Procuramos identificar trechos que exprimiam o sentido do voto quanto à expertise e o mandato moral para compor a tese. As imagens em questão foram televisionadas pela TV Justiça e, disponibilizadas no canal “Youtube”, com duração de uma hora e meia a duas horas e meia cada um.

PRODUÇÃO DO CASO MENSALÃO E JULGAMENTO DA AÇÃO PENAL 470

O início do que se tornou o Mensalão ajuda a entender como esses episódios foram mobilizando moralidades, a partir da descoberta de um esquema de corrupção nos Correios. A delação inicial em 2005 parte de um dirigente dos Correios flagrado recebendo propina para o deputado federal Roberto Jefferson, do PTB, que o tinha indicado para o cargo. Da corrupção nos Correios, Roberto Jefferson amplia a denúncia da existência de um esquema no alto escalão do governo de compra e venda de votos parlamentares para obtenção de apoio político. As apurações na Comissão Parlamentar de Inquérito dos Correios e da Compra de Votos, no Congresso Nacional, pararam no final de 2005 aprovando-se o relatório na Câmara Federal em abril de 2006. O inquérito policial no. 2245 foi encaminhado e o procurador geral da República ofereceu a denúncia contra 40 pessoas, em crimes de formação de quadrilha, desvio de recursos, lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta, corrupção ativa e passiva, peculato e evasão de divisas em março de 2006. Mais de um ano depois o STF acolhe parcialmente as denúncias e instaura a AP 470, em agosto de 2007, sob a relatoria do ministro Joaquim Barbosa.

Apesar da pressão decorrente da cobertura midiática 7 ao longo de 2005, construindo a crise como um “desvio” petista no cumprimento de regras legais e das normas morais, demandando a investigação e a punição dos culpados, nesses primeiros anos havia a expectativa que ela fosse esvaziada. Dos doze parlamentares denunciados no esquema do Mensalão (PT, PL, PMDB, PTB, PP), quatro deputados renunciaram ao mandato em 2005 para se recandidatar na eleição de 2006, três tiveram o mandato

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Sobre a cobertura dos principais jornais brasileiros sobre a crise do mensalão, ver Miguel e Coutinho (2007). Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-62762007000100004. Acesso em 25/10/2020.

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cassado pela Câmara Federal nesse período (José Dirceu, Roberto Jefferson e Pedro Corrêa) e cinco foram absolvidos8. Depois que o Mensalão virou a AP 470, as circunstâncias mudaram. Ao longo dos vários anos da fase de instrução, o relator foi transformando o escândalo de corrupção em processo criminal no âmbito da administração pública, partindo da narrativa da acusação, de que se tratava de:

uma organização criminosa estruturada para a prática de um crime politicamente orientado – a compra de votos parlamentares – especialmente capaz de alcançar os agentes políticos, colocados como agentes do esquema, mas sobre os quais as evidências materiais eram justamente as mais frágeis (ARANTES, 2018, p. 350).

A apreensão em torno dos poderes da República levou Joaquim Falcão e coautores a pesquisarem o que chamaram de “Supremo Criminal”, em seus estudos sobre esta corte. A visibilidade que o Mensalão teve dá a impressão de que o STF se debruça muito sobre os processos criminais, mas não é isso que os dados da pesquisa de Falcão et al (2018) constatam. Eles mostram que do total de processos ajuizados no Supremo entre 1988 e 2017, 7,3% foram criminais e 0,5% de improbidade administrativa, mas quando observam apenas o período de 2013 e 2017 registram o crescimento dos processos criminais para 14.7% e de improbidade administrativa para 1.3%.

Trata-se de uma experiência mais recente, na qual o Mensalão ganhou destaque não só na visibilidade, mas também no “aprender fazendo”, em circunstâncias que envolvem uma composição da Corte com todos os membros sendo de carreiras jurídicas, sem a presença de ministros com carreiras políticas eletivas prévias9, como houve até 2006 com a aposentadoria de Nelson Jobim. Em termos da trajetória profissional pregressa à nomeação para o STF, dois dos dez10 julgadores que votaram na AP 470 percorreram a carreira da magistratura, sendo Rosa Weber, proveniente da Justiça do Trabalho do Rio Grande do Sul e posteriormente do TST (Tribunal Superior do Trabalho), e Luiz Fux da Magistratura do Rio de Janeiro, indo depois para o STJ (Superior Tribunal de Justiça). Ricardo Lewandowski ingressou na magistratura

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Ver Arantes (2018). Mensalão: um crime sem autor? 9

Fontainha (2018) aponta passagens esporádicas em cargos políticos no percurso anterior à posse no STF de Celso de Mello, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Rosa Weber. Arantes (2018) identifica passagens em cargos da administração pública, com característica jurídica, mas cuja nomeação é por confiança, tal como a AGU (Advocacia Geral da União), como componente político e classifica nesse tipo Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Ayres de Brito.

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Antônio Cezar Peluso que compôs o STF proveniente da Magistratura de São Paulo aposentou-se em 31 de agosto de 2012 antes da deliberação da Corte. Isso reduziu o total de votantes a dez, em vez de onze votos. Teori Zavascki tome posse depois de votada a AP 470.

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paulista pelo quinto constitucional indicado pela OAB-SP. Outros três vieram do Ministério Público (MP): Joaquim Barbosa, do MP Federal; Celso de Mello do MP de São Paulo e Marco Aurélio Mello, do MP do Trabalho, indo para o TRT 1ª Região pelo quinto constitucional. Foram procuradores Gilmar Mendes e Carmen Lúcia. Ele foi Procurador da República chegando a Advogado Geral da União (AGU). Ela foi Procuradora do Estado de Minas Gerais. Ayres de Britto foi Procurador do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe e advogado. Dias Toffoli foi advogado e, Advogado Geral da União. Quase todos exerceram também a carreira acadêmica.

O julgamento da AP 470 ocorreu no segundo semestre de 2012, referente aos crimes da administração pública, envolvendo a Casa Civil da Presidência da República, lideranças políticas de partidos da base de apoio do governo epersonagens do núcleo publicitário e bancário, perfazendo um total de 69 sessões até o julgamento dos embargos infringentes, a última ratio dos condenados. Embora o núcleo político tenha sido condenado nos crimes de corrupção ativa e formação de quadrilha, o conjunto denunciado envolveu também corrupção passiva, peculato, gestão fraudulenta, lavagem e dinheiro e evasão de divisas.

A experiência anterior do ministro Joaquim Barbosa na acusação, como procurador foi relevante nas formas como mobilizou os repertórios disponíveis – entre eles oitivas, doutrina, jurisprudência, códigos penal e de processo penal, regimento interno, procedimentos de votação e dosimetria da pena estabelecida apenas pelos votos condenatórios - construindo o enquadramento da instrução do processo ao longo de quatro anos, elaborando o voto de relator, a justificação de sua convicção. Para sustentar que havia uma organização criminosa politicamente orientada para a prática de crimes contra a administração pública, ele apoiou-se na articulação formulada na denúncia da Procuradoria Geral da República (PGR) que apontava a prática de formação de quadrilha. Além disso, acionou a teoria do domínio do fato11, que consiste num debate técnico para se dissipar a exigência de provas para uma eventual condenação no âmbito penal. Também deu encaminhamentos para a votação em plenário alterando o encadeamento dos crimes da peça da PGR, ao fatiar e inverter a sequência de acusações levadas a julgamento, tornando-as mais consistentes para a condenação do núcleo político por corrupção ativa e formação de quadrilha.

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Segundo Arantes (2018, p. 365), essa teoria considera “possível reconstruir uma teia de ações, relações e de responsabilidades entre agentes a partir do fato criminoso”.

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Já o ministro Ricardo Lewandowsky que foi o revisor enquadrou o processo e seu voto de maneira bem diversa, buscando desconstruindo a argumentação da acusação a partir do encadeamento apresentado pela PGR, destacando as fragilidades fáticas e de expertise da peça. Opôs-se às propostas de encaminhamento do relator para a votação, argumentando que havia se debruçado por seis meses sobre a denúncia e que as alterações do relator prejudicavam tal organização.

Os embates entre relator e revisor não se restringiram às distintas formas de julgar as ações dos outros e representar a expertise e o mandato moral, acionando representações nas críticas mútuas às ações dos julgadores na AP 470, produzindo um arsenal para as negociações no plenário. As lutas discursivas para constituição ou destruição de sujeitos morais revela a dimensão produtiva das moralidades não só no julgamento dos réus, mas gerando uma ordem negociada entre os ministros. É neste sentido que o profissionalismo cívico não é um bloco monolítico a sustentar coesão, mas possibilita o manuseio criativo de seus recursos e dos respectivos repertórios que dispõem para que a rede de negociação produza tal ordem.

A votação para o crime de corrupção ativa foi de oito a dois, pela condenação de José Dirceu, e unânime no caso de Delúbio Soares; apenas Ricardo Lewandowski absolveu José Genoíno deste crime. Para o crime de formação de quadrilha, que analisa as ações conjuntas dos réus, o resultado foi de seis votos a quatro, com uma maioria mais apertada condenando, o que posteriormente possibilitou pedidos de revisão da dosimetria da pena e sua redução. Em regra, os pareceres condenatórios no acórdão para o crime de corrupção ativa foram os votos de Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Gilmar Mendes, Celso de Mello, Marco Aurélio Mello, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Ayres Britto, e os votos contramajoritários foram os de Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski. Para o crime de formação de quadrilha os votos majoritários foram os de Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Ayres Britto; os que não viram demonstrada a formação de quadrilha foram os pareceres de Ricardo Lewandowski, Rosa Weber, Cármen Lucia e Dias Toffoli.

O resultado da votação neste acórdão mostrou a variabilidade das formas como os pareceres dos ministros articularam expertise e justificação moral. Se a condenação e a absolvição são bastante fundamentadas na expertise jurídica e se os embates entre os ministros esgrimando suas formas de enquadrar a situação mobilizam críticas e acusações mútuas, nos votos condenatórios o caráter produtivo da moral está mais

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presente e nos votos contramajoritários a fundamentação contrasta a expertise do julgador com a falta desta na peça da acusação para demonstrar a materialidade delitiva. Os votos põem em circulação o kit de ferramentas do profissionalismo cívico que o ministro e sua equipe mobilizam em termos de legislação constitucional e infraconstitucional, como o código penal, processo penal, legislação penal especial, a jurisprudência, os princípios do direito e doutrinas que preconizam a exegese do ordenamento jurídico brasileiro.

DOS ARGUMENTOS MAJORITÁRIOS

O Mensalão ilustrou significativas mudanças na atuação do Supremo, seja por lidar com um processo criminal envolvendo o alto escalão político, seja por espelhar uma composição profissional jurídica, com mais presença de procuradores do que magistrados de carreira - seja ainda por combinar uma decisão dos votos dos ministros amplamente enraizados nos discursos técnicos jurídicos e, no mandato moral. Ênfases distintas na justificação revelam como eles mobilizaram o profissionalismo cívico, priorizando a expertise ou o repertório normativo para produzir sentidos morais. A visibilidade do julgamento na mídia elevou a popularidade do STF, tornando o processo decisório uma resposta pública sobre como a judicialização criminal da política produziu esta forma de “fazer o bem contra o mal da corrupção”.

As votações no geral mostraram-se relativamente diluídas, indo de ampla maioria, passando por votos majoritários, contramajoritários, e até mesmo inusitadas situações de empates. Excepcionalmente, no caso desta AP, em razão do princípio Constitucional da presunção da inocência, estes empates beneficiaram os réus, em detrimento ao voto de minerva que caberia a Ayres Britto, e contrário senso ao voto do ministro Marco Aurélio Mello.

O relator Joaquim Barbosa iniciou o seu voto em relação ao núcleo político através do depoimento de Marcos Valério. Nele, o publicitário ratificou que o tesoureiro do partido organizava a divisão de numerários entre os envolvidos. A seu turno, o corréu providenciaria os empréstimos em dinheiro perante instituições bancárias e o repassaria ao Partido dos Trabalhadores, por intermédio de suas empresas:

O Sr. Delúbio (...) propôs que as empresas do declarante tomassem empréstimos e os repassassem ao Partido dos Trabalhadores, que restituiria os valores com juros e acréscimos legais. (...) naquele momento, o declarante alertou o Sr. DELÚBIO sobre o risco da operação proposta, especialmente de

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quem garantiria o pagamento no caso da saída de DELÚBIO do partido ou qualquer outro evento, visto que se tratava de uma operação baseada na confiança, já que não seria e não foi documentada. O Sr. DELÚBIO esclareceu que o então Ministro JOSÉ DIRCEU e o secretário SÍLVIO PEREIRA eram sabedores dessa operação de empréstimo para o Partido e em alguma eventualidade garantiriam o pagamento junto as empresas do declarante; (...) também que SÍLVIO [PEREIRA] havia dito ao declarante que o então Ministro JOSÉ DIRCEU tinha conhecimento dos empréstimos (fls. 1210/1215, vol. 5). (AP 470, JOAQUIM BARBOSA, p. 4.637).

Como se observou do depoimento ilustrado, o Mensalão consistia em uma práxis que não deixaria vestígios a uma eventual investigação policial, tais como documentos, requerimentos, ofícios, notas ou recibos impressos. Desta feita, todos os atos empregados para a compra de votos tinha como alicerce nuclear apenas a confiança entre os integrantes dos grupos.

Posteriormente, o relator narrou a função do Presidente do PT, o réu José Genoíno, enquanto avalizador de novas concessões bancárias para garantir a compra de apoio em favor da votação de propostas de interesse do governo.

O acusado JOSÉ GENOINO ocuparia a função de negociação de valores com alguns parlamentares, além de ter assinado empréstimos simulados, em nome do Partido dos Trabalhadores, que não seriam pagos, junto ao Banco Rural e ao Banco BMG, tendo por avalistas o corréu MARCOS VALÉRIO. A denúncia, parcialmente recebida, afirmou que: “JOSÉ GENOÍNO, como Presidente do partido dos Trabalhadores, participou dos encontros e reuniões com os dirigentes dos demais Partidos envolvidos, onde ficou estabelecido o esquema de pagamento de dinheiro em troca de apoio político” (AP 470, JOAQUIM BARBOSA, p. 4615).

Percebe-se que o relator faz uso da denúncia do MPF, mas também introduz esclarecimentos acerca dos fatos que potencializam o sentido da proposta do órgão acusador. Méritos do relator ou uma herança de outrora, na antiga cadeira de procurador federal? Com efeito, trata-se da expertise do ministro, em se valer de provas testemunhais e documentais para legitimar o seu voto condenatório. Neste contexto, o conhecimento técnico é parte essencial do princípio ocupacional, mas ainda mais fundamental é a exclusividade deste conhecimento, traduzida no controle desde o recrutamento, formação e realização do trabalho de criação, divulgação e aplicação do conhecimento (FREIDSON, 1984).

Neste sentido, o relator busca no depoimento de parlamentares envolvidos oriundos de outras agremiações políticas como Valdemar Costa Neto, as evidências de que José Dirceu e Delúbio Soares respectivamente articulavam e distribuíam somas em

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dinheiro na prática, por meio de encontros com líderes de outros partidos políticos com vistas à compra de apoio no Congresso. Enfim, os encontros pessoais não trazem o inconveniente dos grampos telefônicos.

Que as reuniões para tratar de assuntos políticos ocorriam com a presença do DECLARANTE e JOSÉ ALENCAR, pelo PL, e JOSÉ DIRCEU, DELÚBIO SOARES, JOÃO PAULO CUNHA e LUIZ DULCI pelo PT, sempre na residência de JOSÉ DIRCEU; (...) QUE o senador JOSÉ ALENCAR solicitou ao DECLARANTE que aguardasse, pois voltaria a ligar em 10 minutos: QUE, retomada a ligação, JOSÉ ALENCAR solicitou o cancelamento da nota, uma vez que o candidato LULA estaria se dirigindo a Brasília para dar prosseguimento às negociações; QUE no dia seguinte, na residência do deputado PAULO ROCHA, PT/PA, foi realizado uma reunião entre LULA, JOSÉ ALENCAR, o DECLARANTE, JOSÉ DIRCEU, DELÚBIO SOARES, MARIA DO CARMO LARA e NILMAR MIRANDA; (...) QUE DELÚBIO SOARES convidou o DECLARANTE para uma conversa reservada em um dos aposentos (...); QUE se retiraram então DELÚBIO SOARES e o DECLARANTE, tendo dito que – lutara durante quatro anos para montar uma chapa para atingir os 5%, e não seria justo inviabilizar o partido pela aliança, e a única saída seriam recursos; QUE DELÚBIO SOARES tentou fazer com que a negociação ficasse em patamares abaixo dos R$ 10 milhões solicitados, pois tinha preocupação com a obtenção de recursos para financiamento de campanha; (...) (AP 470, VALDEMAR COSTA NETO , p. 6139, grifo nosso). Notem que há certo zelo por parte do declarante, ao deixar explícito que o presidente Lula não participou da conversa reservada entre ele e Delúbio Soares. Apesar de o Mensalão ser intitulado petista, notadamente outros partidos como o Partido Liberal, Partido Popular Socialista, Partido Trabalhista Brasileiro, Partido da República, Partido Socialista Brasileiro, Partido Republicano Progressista e Partido Progressista estão envolvidos no caso de corrupção, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, evasão de divisas entre outras infrações contra a administração pública.

Demonstrando a sua expertise, o relator questionou as alegações finais da defesa de Delúbio Soares, que mesmo diante de diversos testemunhos, depoimentos e provas técnicas comprometedoras em relação a José Dirceu e José Genoíno sob o crivo do contraditório, insistiam na inexistência de um grupo organizado para aquisição de votos de deputados de outras agremiações políticas.

Diante de tão vasto acervo probatório, é no mínimo fantasiosa a afirmação constante das alegações finais de DELÚBIO SAORES de que não haveria uma única prova a demonstrar a acusação de formação de quadrilha, notadamente e porque o relacionamento que DELÚBIO mantinha com JOSÉ DIRCEU, JOSÉ GENOÍNO E SILVIO PEREIRA (membros dirigentes do PT) bem como com MARCOS Valério (de quem era amigo) não teria finalidade ilícita (fls.48.928-48.930-48.944-48.945). Como visto, os autos apontam justamente o contrário! Isto é, há provas mais do que consistentes de que DELÚBIO SOARES, além de

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funcionar como o principal braço operacional do chamado núcleo político, era também o principal elo entre este “núcleo político” e o (núcleo publicitário). Já JOSE GENOÍNO, conforme resume acusação, “era o interlocutor político do grupo criminoso. Cabia-lhe formular as propostas de acordos aos líderes do grupo criminoso. Cabia-lhe formular as propostas de acordos aos líderes dos partidos que comporiam a base aliada do governo” (AP 470, Joaquim Barbosa, p. 45144).

Por conseguinte, a ministra Rosa Weber acompanhou o relator para condenar Delúbio Soares, José Genoíno e José Dirceu pelo crime de corrupção ativa, todavia não deu provimento para a votação no crime de quadrilha envolvendo os acusados do núcleo político. Posteriormente, durante a exposição dos votos contramajoritários abordaremos os argumentos da ministra no sentido da absolvição dos acusados do núcleo político deste último delito.

Cármen Lúcia se disse surpresa quanto à estratégia de defesa, ao confessar o crime de caixa dois praticados pelos seus clientes e réus na AP 470.

Quanto a Delúbio Soares, faço primeiro um registro, Senhor Presidente. Farei as referências porque considero devidamente comprovada a prática da corrupção ativa, mas digo que, a despeito da defesa apresentada, causou-me especial atenção a circunstância de, quer na defesa, quer na apresentação feita da tribuna desta Casa –talvez, pela primeira vez, eu tenha visto isso nos meus anos de advogada e aqui como juíza -, haver a afirmativa de que houve o ilícito, de que houve o ilícito de fatos exatamente referentes, neste caso, à corrupção ativa, e que o dinheiro tinha sido arrecadado e que o dinheiro não tinha sido comprovado. Nas anotações feitas no dia 6 de agosto, houve expressa afirmativa do advogado de que o Procurador-Geral mostrava estranheza porque havia fatos que não tinham sido devidamente esclarecidos quanto à obtenção dos recursos : “Se aconteceram é porque foram ilícitos, e ilícitos aconteceram. Porque não eram mostrados? – pergunta-se ao Procurador. ”Porque eram ilícitos. O PT não tinha como repassar um dinheiro que não entrou em seu caixa. Operou-se caixa dois de campanha (AP 470, CÁRMEN LÚCIA, p.02).

Gilmar Mendes e Luiz Fux participaram da exposição do voto da ministra, e contribuíram para elucidar que a confissão dos réus possuía nítido escopo de levar o argumento de caixa dois ao plenário, na medida em que se trata de um crime menos gravoso que o da corrupção ativa, regulamentado por legislação específica diversa da criminal, no caso a eleitoral, e intempestivamente já se encontrava prescrito. Razão pela qual esta estratégia de defesa empregada pelos advogados dos réus não encontrou guarida entre os julgadores. Os ministros articularam a expertise e a autoridade moral para legitimar os votos condenatórios, seguindo a premissa do relator.

A nosso ver, a expertise jurídica permite essa autonomia de fazer o diagnóstico próprio dos ministros, articulando o conhecimento técnico e o mandato moral. Não se

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trata aqui de uma verdade absoluta, mas sim de um convencimento informado, influenciado por princípios diversos que orientam o processo decisório do julgador.

Em seguida, Luiz Fux mencionou em seu voto que: “é sabido que o reforço da base aliada era atribuição direta do acusado JOSÉ DIRCEU, à frente da Casa Civil [...]”. Para conferir legitimidade ao seu voto, Fux reproduziu um fragmento do próprio depoimento do réu durante a investigação no inquérito 2245, que antecedeu a AP 470, na qual o depoente definiu a sua função na chefia da Casa Civil:

O papel do articulador político do Governo é levar que o Governo tenha uma maioria na Câmara e no Senado, que aprove os seus projetos, que haja uma interlocução com os líderes dos partidos, com as bancadas (...). A minha atividade, como articulador político, era receber, fazer reuniões, ir ao Congresso com os líderes, com os líderes do Governo, com os líderes dos partidos, (...) para que o Governo aprovasse, no Congresso nacional, ou prestasse esclarecimentos, ou fosse fiscalizado, ou respondesse a questionamento, a denúncias, esse era o papel que eu tinha (...) (JOSÉ DIRCEU, fls. 16.639/16.640).

Segundo Fux, o próprio réu afirmou que orientava os votos da base aliada: O acusado JOSÉ DIRCEU afirmou que os encontros para orientar o voto da base aliada eram mantidos, especialmente, com os líderes parlamentares e Presidentes dos partidos. Estes eram exatamente, os beneficiários dos elevados pagamentos efetuados por meio de DELÚBIO SOARES e MARCOS VALÉRIO e que, simultaneamente, vinham recebendo orientações de JOSÉ DIRCEU sobre o sentido que o Governo pretendia imprimir às votações (LUIZ FUX, p. 16.640).

O ministro Gilmar Mendes, em que pese já ter se desentendido com o relator em seções pretéritas, seguiu integralmente o voto de Joaquim Barbosa. E, citou o depoimento de integrantes do núcleo financeiro que corroboravam o envolvimento do chamado núcleo político do Mensalão:

No mesmo interrogatório judicial, KÁTIA RABELLO confirma que “um dos assuntos tratados com o Ministro José Dirceu foi o tema referente à suspensão da liquidação do Banco Mercantil de Pernambuco pelo Banco Central” (fls. 16.326, – original sem destaques). Isso porque, segundo a própria KÁTIA, o banco Rural “possuía 20% das ações do Banco Mercantil de Pernambuco”, tendo o banco Rural, portanto, interesse em “adquirir a massa liquidanda” do banco mercantil de Pernambuco (fls. 16.326, – original sem destaques). KÁTIA RABELLO, então, para satisfazer esse interesse do Banco Rural, que já havia levado tal pleito ao Banco central, resolveu procurar o ministro-chefe da Casa Civil à época, sito é, JOSÉ DIRCEU, como “forma de agilizar uma eventual decisão por parte do governo” (fls. 16.326 - original sem destaques) (KÁTIA RABELLO apud GILMAR MENDES, p. 5820).

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Marco Aurélio Mello, conhecido pelo voto isolado em plenário, desta vez seguiu integralmente o voto do relator, acompanhando o colega Gilmar Mendes:

Presidente (Ayres Britto) restou demonstrado, não bastasse a ordem natural das coisas, que José Dirceu realmente teve participação acentuada, a meu ver, nesse escabroso episódio. Peço vênia ao revisor e ao ministro Dias Toffoli para acompanhar o relator. Com isso, creio que chego ao final do voto, já que, em relação aos acusados, em que não houve dissenso entre relator e revisor, acompanho ambos (AP 470, MARCO AURÉLIO MELLO, p. 5172).

Celso de Mello seguiu o voto do relator, de modo a consagrar uma maioria relativa entre os ministros presentes. Mobilizando o repertório do profissionalismo cívico, o ministro ainda lamentou que tivesse de fazer atuar neste contexto, as normas do direito penal:

Na realidade, o Supremo Tribunal Federal, na linha de sua longa e histórica tradição republicana, está julgando a presente causa da mesma forma como sempre julgou os demais processos penais que foram submetidos à sua alta apreciação: com independência, com isenção e com fundamento em elementos informativos e licitamente produzidos sob a égide da garantia Constitucional do contraditório. Isso significa dizer, nunca é demasiado reafirmá-lo, que a Suprema Corte está a decidir o litígio penal em questão com apoio em prova validamente produzida nos autos do processo criminal, respeitando sempre, como é da essência do regime democrático, os direitos e garantias fundamentais que a Constituição da República assegura a qualquer acusado, observando, ainda, neste julgamento, além do postulado da impessoalidade e do distanciamento crítico em relação a todas as partes envolvidas no processo, os parâmetros jurídicos que regem, em nosso sistema legal, qualquer procedimento de índole penal (AP 470, CELSO DE MELLO, p. 4476).

Todavia, uma dúvida pairou sobre o plenário do STF, afinal contra os vários acusados como José Genoíno, Delúbio Soares ou Marcos Valério havia provas orais e periciais, como testemunhos, depoimentos, aval e fiança nos contratos de empréstimos de faz de conta, que sequer exigiam garantias reais aos avalistas ou fiadores. E, quanto a José Dirceu?

O relator fez emprego da teoria alemã sobre o domínio do fato para condenar o réu. E, apesar de constituir um tema abstrato no meio jurídico, Celso de Mello não se furtou em discutir a teoria em plenário:

Cumpre rememorar, Senhor Presidente (Ayres Britto), algumas premissas sobre as teorias examinadas por nossos doutrinadores quanto ao concurso de pessoas para fins de constatação – e identificação – de quem pode ser autor, coautor ou partícipe de uma determinada ação delituosa, notadamente sob a perspectiva da “Teoria do Domínio do Fato”. DAMÁSIO E. DE JESUS, em sua “Teoria do

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Domínio do Fato” no Concurso de Pessoas (p. 13/17, item n. 3, 2ª ed., 2001, Saraiva), destaca as teorias que considera mais importantes sobre o conceito de quem deve ser considerado autor da conduta punível, fazendo menção à teoria extensiva, à teoria restritiva (objetivo-formal e objetivo-material) e, finalmente, à teoria do domínio do fato. Para os adeptos da teoria extensiva, é considerado autor (sem qualquer distinção quanto ao partícipe) aquele que produz o resultado, não importando em que consistiu a conduta. Ressalta-se, porém, que a doutrina penal refuta essa teoria. Quanto à teoria restritiva, tem-se como autor do delito aquele que executa materialmente o fato, que pratica a conduta expressamente tipificada no ordenamento positivo (AP 470, CELSO DE MELLO, p. 5681).

Nesse pressuposto, seria possível responsabilizar o dolo no jargão penal, a intenção ou vontade de cometer o ilícito, na figura do acusado José Dirceu, desde que o agente atuasse na produção do resultado (a orientação e compra dos votos da base aliada), independentemente de como se deu a conduta (se por intermédio de terceiros como Delúbio Soares e Marcos Valério). Como ressaltou o decano do tribunal, tal responsabilização no campo criminal não é remansosa em nosso ordenamento jurídico brasileiro, não havendo consenso entre os juristas na aplicação da referida teoria no caso concreto. Entrementes, Joaquim Barbosa deu ênfase ao profissionalismo cívico (HALLIDAY, 1999), empregando a sua expertise ao condenar José Dirceu, configurando um mandato da sociedade para que esses profissionais atuem na defesa dos interesses sociais:

O acervo probatório destes autos forma um grande mosaico no qual o acusado JOSÉ DIRCEU é revelado como o negociador da obtenção de recursos utilizados no esquema criminoso. Para isso, o então Ministro utilizou os serviços do Banco Rural e do Banco BMG, que, mediante supostos empréstimos, disponibilizaram R$ 55 milhões na conta das empresas vinculadas a MARCO VALÉRIO e seus corréus do núcleo publicitário. Com efeito, percebemos, no julgamento do capítulo V, que os ditos “empréstimos” não foram cobrados e, ao contrário, foram sucessivamente renovados, até que vieram a público as denúncias sobre a existência do mensalão. Uma vez disponível o numerário nas contas movimentadas por MARCOS VALÉRIO, CRISTIANO PAZ, RAMON HOLLERBACH e ROGÉRIO TOLENTINO, esses réus atuaram de modo que os recursos por eles desviados de contratos públicos fossem distribuídos, com aparência lícita, às pessoas selecionadas pelo então Ministro JOSÉ DIRCEU, que contou, na execução dessas ordens, com a colaboração direta de seu principal representante no esquema criminoso, Sr. DELÚBIO SOARES. Assim, os parlamentares da base aliada cujos diálogos eram mantidos com o acusado JOSÉ DIRCEU no período dos pagamentos receberam os pagamentos efetuados por indicação de DELÚBIO SOARES a MARCOS VALÉRIO, sob a ordem e o comando do ex-ministro. A meu sentir, a autorias do acusado JOSÉ DIRCEU ESTÁ BEM LASTREADO (AP 470, Joaquim Barbosa, p. 4649).

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Em que pese condenarem a prática de tais atos ilícitos sob a ideia de limpeza moral (FONTAINHA, 2018), eles [os ministros] se respaldaram no formalismo que a lei e a jurisprudência criminal delimitam aos réus para impor as sanções a estes criminosos com prerrogativa de função, e também a aqueles atraídos pela via processual da conexão de crimes na AP 470.

Destacou-se, portanto, um momento no julgamento em que prevaleceu uma composição significativa de julgadores com passagens pela acusação. Não afirmamos com esta premissa que o perfil de cada ministro justificaria o seu voto pela condenação dos réus, uma vez que tal assertiva não se sustenta ao longo desta pesquisa. Apenas corroboramos que houve uma relevante passagem de julgadores do Supremo pelo órgão do MP e, que em algum momento estes profissionais reuniram forças marcadas por um ethos profissional com larga experiência acusatória.

Na literatura sobre os estudos do STF, precisamente no caso da AP 470, não se pode olvidar os estudos de Arantes (2018). Para o autor, o emblemático caso culminou em um crime sem autoria. A mobilização da teoria do domínio do fato mostrou a fragilidade das provas contra o acusado José Dirceu no tribunal. Com isso, observa-se que havendo um ruído político, o fundamento dos votos à luz da referida teoria ganhou o enquadramento da expertise jurídica e da autoridade moral para condenar de forma majoritária os réus, pelo crime de corrupção ativa.

Neste sentido, corroboramos com o autor no sentido de que o julgamento em apreço hibridizou com as fronteiras da política convencional, na medida em que o Supremo Criminal condenou o núcleo partidário petista, todavia, posteriormente se arrefeceu.

DOS ARGUMENTOS CONTRAMAJORITÁRIOS

Durante o julgamento do núcleo político, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli absolveram José Dirceu dos crimes de corrupção e quadrilha. O revisor condenou apenas Delúbio Soares pelo crime de corrupção ativa. Dias Toffoli ainda condenou José Genoíno pelo crime de corrupção, além do tesoureiro do PT.

Analisamos como a expertise dos ministros também pode desenvolver argumentos jurídicos em outro extremo deste julgamento, neste caso, concernente a absolvição dos acusados do núcleo político.

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Dias Toffoli votou em sessão de julgamento do processo do Mensalão no STF pela absolvição do acusado José Dirceu, do crime de corrupção ativa e pela condenação, em razão do mesmo crime, do corréu José Genoíno, bem como do então tesoureiro do partido dos Trabalhadores, o réu, Delúbio Soares.

Em junho de 2012, antecedendo o início da instrução criminal em plenário, a participação do julgador despertou dúvida, especificamente da mídia em concomitância com partidos de oposição ao governo. O ex-chefe da AGU foi indicado pelo presidente da República Lula, tendo atuado enquanto advogado-geral da União durante o governo do presidente, e trabalhou como assessor jurídico de José Dirceu na Casa Civil, à época em que teria ocorrido o suposto e depois ratificado esquema de compra de votos de parlamentares.

Sob o crivo dos votos proferidos, observou-se que o voto de Dias Toffoli foi lastreado em sua expertise, fundamentando-se no garantismo penal e na alegação de ausência de provas no caso de José Dirceu. Notem que o julgador absolveu Dirceu, mas, condenou José Genoíno e Delúbio Soares no crime de corrupção ativa.

Já Ricardo Lewandowski absolveu todos os integrantes do núcleo político dos crimes de formação de quadrilha, e corrupção ativa, a exceção de Delúbio Soares, quanto ao último delito.

Pode-se discutir que houve uma conotação garantista no voto dos dois julgadores em face do núcleo político, contudo ela não foi decisiva a ponto de reverter a condenação dos réus em plenário. Como nosso foco aqui não é analisar as razões do voto, não podemos afirmar que o cerne desta deliberação se deu por trajetória profissional, afiliação partidária ou outra motivação. O que nos interessa destacar é como os ministros mobilizam repertórios do profissionalismo cívico, fundamentando sobre as balizas técnicas a repreensão da inépcia acusatória do MPF, pela sua natureza genérica viabilizando os argumentos da defesa. Segundo o revisor, havia inclusive equívocos de interpretação da teoria proposta por Claus Roxin pelos pares em relação a literatura especializada, sem a devida produção de provas nos autos que lastreassem a condenação aos réus.

Durante a votação do crime de formação de quadrilha, os dois ministros também votaram pela inexistência do tipo penal em relação aos acusados integrantes do núcleo político, afirmando em seus votos a existência de mera coautoria entre os réus, em detrimento a configuração de um delito autônomo.

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Para Dias Toffoli, e neste momento reafirmando o entendimento da ministra Rosa Weber, não houve a formação de quadrilha, mas uma espécie de coautoria. E, para tanto citou o voto da ministra:

Digo, por outras palavras, que não vislumbro associação dos acusados para delinquir, como disse para praticar indeterminadamente crimes. Entendo que houve aqui mera coautoria, ainda que envolvendo a prática de vários crimes. Por isso eu absolvo todos os acusados da imputação do crime de quadrilha, sem prejuízo da condenação pelos demais crimes praticados (ROSA WEBER, vídeo nº 0112).

Cumpre ressaltar, o voto do ministro e do revisor Ricardo Lewandowski em momento algum atestaram a inocência de José Dirceu, mas afirmam com base na falta da expertise acusatória do MPF, que não há provas suficientes para a condenação do acusado.

Analisando os argumentos dos dois julgadores, nota-se o uso de sua expertise articulada ao mandato moral, com bastante ênfase nessa atribuição, o que confere mais elasticidade às interpretações. Posições políticas acabam nuançadas por esses valores constituídos como bem público.

Neste caso em específico, a via criminal do Supremo, percebeu-se que a expertise jurídica foi complementada pelas moralidades, permitindo um amplo espectro de formação de convencimento dentro do que se coaduna com o profissionalismo. Por isso, o poder profissional sobrevive com legitimidade, por conseguir se distinguir da afiliação partidária. São formas de se produzir resultados políticos sem as características da política convencional:

Em face de todo o exposto, constato que não existem elementos suficientes para condenar o réu JOSÉ DIRCEU pelo crime tipificado no art. 333 do Código Penal, razão pela qual se mostra de rigor a sua ABSOLVIÇÃO, nos termos do art. 386, VII, do Código de Processo Penal, mantidos, em consequência, os seus direitos políticos (AP 470, RICARDO LEWANDOWSKI, p. 4954).

Segundo o revisor, respaldando a sua decisão absolutória em alusão ao presente acusado, o MP não descreveu as condutas do réu, que supostamente tenha vindo a praticar um fato delituoso. Em sua exegese, a exemplo da denúncia oferecida a José Genoíno, o órgão acusador restringiu-se a fazer meras suposições desenhando

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simplesmente um figurino genérico no qual poderia encaixar-se qualquer personagem que ocupasse o alto cargo do governo central. E, no caso de Genoíno, foi acusado mais por ser presidente do PT, do que por evidências ou provas, segundo o revisor.

Quando o julgador mencionou os votos condenatórios ao acusado em questão diz que as imputações foram de cunho “mais político do que jurídico”. Em seu exame sobre a exordial acusatória, o revisor apontou os cinco fatos que em abstrato caracterizariam José Dirceu como líder da organização criminosa dedicada a prática dos crimes que lhe foram imputadas na denúncia. A saber, conceder suposta vantagem ao Banco de Minas Gerais por intermédio do presidente do INSS; influenciar para que os órgãos de controle financeiro não fiscalizassem as operações que seguissem a acusação de configuração de lavagem de dinheiro; controlar as ações dos dirigentes da cúpula do PT; coordenar as ações de repasse de valores para compra de votos alegadamente praticados por Marcos Valério, Delúbio Soares, José Genoíno e Sílvio Pereira; e, finalmente decidir acerca das indicações para nome pra cargos públicos do governo federal.

O revisor impugnou os cinco fatos apresentados pela acusação que em tese caracterizariam José Dirceu como líder da organização criminosa. Em sua análise, o primeiro fato apontado pela PGR foi abandonado nas alegações finais. Conforme a visão do julgador, o MP desistiu de fazer prova a respeito da concessão de suposta vantagem ao banco mineiro pelo acusado. Conforme a nota de rodapé número quatorze, citada pelo ministro Lewandowski, a ação referente ao Banco BMG tramita em outra instância. O segundo fato imputado ao acusado referente à sua omissão na fiscalização, também foi negligenciado pelo denunciante.

O revisor citou depoimentos de Delúbio Soares em juízo para constatar que José Dirceu afastou-se da direção do PT ao assumir o cargo na Casa Civil no Palácio do Planalto. Nesse pressuposto, o acusado não teria responsabilidade pelos atos praticados pelo antigo partido. Ainda, as enfáticas declarações do tesoureiro do PT são corroboradas por várias testemunhas comprovando que jamais agiram sob a influência ou subordinação a José Dirceu, ou qualquer outro membro do governo federal. Para o revisor, os juízes devem julgar conforme o que está nos autos (RICARDO LEWANDOWSKI, vídeo nº 0213).

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Segundo o entendimento do revisor, o MP não produziu provas suficientes sobre a relação de subordinação entre o acusado José Dirceu e Delúbio Soares. Este ministro ressaltou a falta de competência do MP, demonstrando a fragilidade da expertise acusatória.

Neste contexto, o acervo probatório dos autos conduzia a ideia de que o tesoureiro agia com total independência no que concerne às finanças do partido político. Mais ainda, que o então caixa do partido agia com plena autonomia, sendo que o investigado não tinha a eventual ingerência sobre os fatos em questão (RICARDO LEWANDOWSKI, vídeo nº 02).

O ministro Lewandowski contraditou o depoimento de Roberto Jefferson confirmando a participação do ministro da Casa Civil no esquema de compra de votos. O relator Joaquim Barbosa argumentou esta prova oral ao condenar o réu por corrupção ativa, em seu voto na relatoria do caso. O revisor alegou que o declarante desmentiu o seu testemunho na Polícia Federal, fato esse que eliminaria os elementos de prova contra o acusado José Dirceu.

Atento ao que se discutia em plenário, neste momento, o presidente do Supremo Ayres Brito retifica essa informação. Na verdade, Roberto Jefferson não desmentiu, mas ratificou o seu depoimento junto ao órgão investigativo federal. Este momento acabou se tornando constrangedor em plenário, na qual o revisor atacava o depoimento de Jefferson, contudo, ele se desculpou e acabou reconhecendo o seu equívoco.

No que se refere à reunião entre o acusado José Dirceu, Marcos Valério e presidentes de instituições financeiras no Hotel Ouro Minas, o revisor questionou o teor desconhecido do colóquio e, que não há nos autos a precisão de que o acusado se fizesse presente.

O Parquet não se vale de nenhuma prova obtida em juízo, contentando-se em mencionar que a esposa de Marcos Valério falou que ouviu de seu marido, que por sua vez disse que ouviu de Delúbio Soares que o tal encontro no citado hotel teria contado com a presença de José Dirceu para discutir empréstimo junto ao banco Rural para o PT. Trata-se de questionável prova obtida com “ouvi” dizer. Ainda mais colhido em fase extrajudicial (Idem, vídeo nº 02). O revisor concluiu dizendo que não há provas contra o acusado, e fundamentou o seu argumento técnico, reforçando que a teoria do domínio do fato não se aplica ao

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caso presente, nem mesmo se Claus Roxin fosse intimado ao STF para prestar esclarecimentos acerca de seus estudos.

Percebemos que os ministros usam mais facilmente do seu conhecimento, da sua expertise consubstanciada também na linguagem jurídica para justificar as suas decisões que estão muito no calor do contexto político.

Imediatamente, Ayres Brito e Celso de Mello discordaram da visão do revisor. Eles também deram enfoque à técnica jurídica, mas em reação deram outro sentido a ela. O decano manifestou-se a favor da discussão das várias vertentes da teoria, para além do domínio do fato, tal qual o domínio da vontade, o domínio funcional e o domínio da organização que envolve aparatos organizacionais e não apenas empresas, e consequentemente aparelhos governamentais. Ayres Britto corroborou esta premissa e, sugeriu a análise no caso em questão, sobre qual dos personagens envolvidos seria infungível ou insubstituível para o deslinde da articulação de compra de votos de parlamentares, para se chegar ao seu responsável. E, este no plano concreto, seria o acusado José Dirceu.

Para alguns críticos, dentre eles o próprio revisor, a teoria do domínio do fato consiste num debate técnico para se dissipar a exigência de provas para uma eventual condenação no âmbito penal.

No resultado do seu voto, o revisor adotou uma abordagem distinta do relator e absolveu o acusado José Dirceu da tipificação do delito previsto no art. 333 do CP. E, a fez fundamentando nos termos do art. 386, VII do CPP, quando não há prova suficiente para o juiz condenar o réu.

Entretanto, o revisor admitiu não afastar a possibilidade de que José Dirceu tenha de fato participado desses eventos narrados na peça acusatória e, mencionou não descartar inclusive a possibilidade de que o acusado tenha sido até mesmo o mentor desta trama criminal. Mas, a questão é que na visão dele, faltou competência técnica para provar os fatos imputados ao acusado.

Prontamente, Gilmar Mendes pediu venia para debater a decisão do revisor pertinente ao acusado José Dirceu:

Vossa Excelência, no seu voto – tenho aqui até a tabela – condena alguns deputados por corrupção passiva, entendendo que houve repasse de recursos para a prática de algum ato, aparentemente o ato de apoio ou de participação. Também Vossa Excelência, no seu voto condena Delúbio Soares como

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corruptor ativo. Não parece que esta havendo uma contradição nessa manifestação de Vossa Excelência? (AP 470, GILMAR MENDES, p. 4964). O embate entre as duas vertentes pode ser ideologicamente motivado por visões políticas conflitantes, mas se constrói enquanto técnica. Destarte, o revisor em resposta a Gilmar Mendes afirmou estar apenas seguindo a orientação do próprio plenário do STF, no sentido de esclarecer que basta a oferta ou a percepção da vantagem indevida por alguém que ocupe um cargo público para restar caracterizado o crime de corrupção.

Eu tenho impressão que Vossa Excelência não ouviu, então, claramente o que eu disse nas minhas manifestações anteriores. Eu disse que estava seguindo orientação deste egrégio Plenário no sentido de dizer que basta a oferta ou a recepção da vantagem indevida por alguém que ocupe um cargo público para que fique configurado o crime de corrupção passiva. Não é necessário identificar o ato de ofício (AP 470, RICARDO LEWANDOWSKI, p. 4964).

E, que o revisor somente não havia encontrado tais provas nos autos em face dos acusados José Dirceu e José Genoíno.

Outro voto contramajoritário foi o de Dias Toffoli. O julgador concluiu em alusão ao denunciado José Dirceu, que este respondeu pelo delito de corrupção, mas no tocante a materialidade delitiva nesta hipótese, entendeu estar ausente o chamado elemento subjetivo do tipo essencial, quer seja, a configuração do delito imputado ao réu. Uma vez que não restou demonstrado para ele, a vontade livre e consciente do acusado dirigida ao oferecimento ou promessa de vantagem indevida, conforme narrada no tipo do artigo 333 do CP.

O argumento técnico de Dias Toffoli também questionou a expertise da PGR ao demonstrar o dolo na conduta do acusado em questão. Ele destacou que mesmo em relação aos atos praticados pelo administrador público, não se pode meramente imputar-lhe a responsabilização de atos praticados em virtude de seu subordinado, ou ainda de pessoas a ele próximas.

Toffoli expressou o seu foco no garantismo, concluindo que o direito penal brasileiro adotou conceitualmente um direito penal da culpabilidade. Em seguida afirmou que a condenação da responsabilidade se dá pelo resultado e, essa exigência pela culpabilidade veio como produto de um processo longo de criação jurídica que ainda não chegou a seu termo. Dias Toffoli comparou que nas origens da humanidade

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houve uma fase da pura responsabilização objetiva e, que na atualidade tal acepção não encontra ressonância ante a prevalência dos direitos humanos.

Notem que o ministro absolveu José Dirceu do crime de corrupção respaldando o seu voto em plenário com a jurisprudência do próprio tribunal e, menção a doutrina penal brasileira autorizada, numa demonstração de sua expertise para legitimar o seu voto. Destarte, para absolver também é necessário que o juiz fundamente o seu voto (art. 93, IX, da CF).

Os embates entre os ministros revelam como nesta experiência de criminalização de membros do alto escalão político no Executivo e no Legislativo, o repertório do profissionalismo cívico foi a forma dos ministros do STF produzirem resultados políticos, reforçando as disputas pela legitimidade de seus argumentos jurídicos e morais.

Pode-se afirmar que, quanto mais normativo é o núcleo epistemológico do conhecimento profissional, mais preparada estará a profissão para exercer a autoridade moral em nome da expertise, e assim, maior será o potencial de sua amplitude e influência (HALLIDAY, 1987, p. 41).

Segundo Halliday (1987), as profissões normativas, na qual se materializam nosso objeto de estudo, se distanciam daquelas profissões denominadas científicas, como a Biologia, por exemplo, na medida em que agregam as formas técnicas e morais de autoridade profissional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do trabalho foi destacar as formas como o profissionalismo cívico e os recursos que disponibiliza como a expertise e o mandato moral foram mobilizados pelos ministros do STF no julgamento da primeira ação penal contra membros do alto escalão do Poder Executivo, além de lideranças político-partidárias na sustentação do governo petista.

Embora vários sejam os aspectos abordados nos estudos que buscam analisar o processo decisório, procurando compreender os fatores que influenciam a deliberação, nosso foco ateve-se apenas a esse ideário, para desconstruir a visão que o imagina como um código fixo internalizado pelos operadores do Direito. Ao contrário, o que argumentamos é que ele se assemelha mais a um conjunto de ferramentas manuseado pelos profissionais que selecionam dispositivos para sua ação, inseridos em uma rede de

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negociação. No caso da Ação Penal 470, os repertórios disponíveis no âmbito da expertise jurídica, como a Constituição, doutrina, jurisprudência, código penal e de processo penal, regimento interno do STF e diversos outros materiais formaram kits para a fundamentação do voto e para os embates na Corte. No âmbito do mandato moral, as moralidades postas em circulação representaram e julgaram a corrupção das autoridades e do funcionamento político, justificando a convicção pela condenação. No outro sentido, negociaram essas representações e julgamentos criticando a incriminação sem provas, afrontando o devido processo legal e o amplo direito de defesa do cidadão. Nos conflitos entre os ministros durante o julgamento, a ordem pública como um bem comum revelou-se uma ordem negociada, com as ferramentas disponíveis no profissionalismo cívico.

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Faperj/ Casa da Palavra.

Vídeos Consultados:

01 -Ação Penal 470 - 22/10/12, duração de 2:44:31, 1/2 com vídeo contendo o voto dos ministros Rosa Weber, Cármen Lúcia, Luiz Fux, Dias Toffoli e Gilmar mendes sobre o crime de formação de quadrilha, conforme o item dois da denúncia,

https://www.youtube.com/watch?v=-ai9WH1E370&app=desktop, acesso em

20/07/2019.

02- Ação Penal 470 - 04/10/12, duração de 51:44, 2/3 com vídeo contendo a conclusão do voto do ministro Ricardo Lewandowski sobre o crime de corrupção ativa do núcleo político, conforme o item seis da denúncia,

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