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A IDENTIDADE DE PROFESSOR NO DISCURSO SOBRE O LIVRO DIDÁTICO DE INGLÊS NA ESCOLA PÚBLICA HOJE

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A IDENTIDADE DE PROFESSOR NO DISCURSO SOBRE O LIVRO

DIDÁTICO DE INGLÊS NA ESCOLA PÚBLICA HOJE

Maria Dolores Wirts Braga1

A correspondência direta entre o indivíduo e sua identidade consegue ainda transitar nos discursos de hoje, mas não sem levantar suspeitas. Segundo Zygmunt Bauman (BAUMAN, [2004] 2005, p. 22), a era moderna escondeu “a verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade” muito mais facilmente. Hoje, nessa era chamada por alguns de pós-moderna e por Bauman de “líquido-moderna”2, não há mais interesse em se camuflar a fragilidade nem a natureza de cunho provisório da identidade3.

A partir do posicionamento pós-moderno, a noção de identidade começa a ser definida pelo seu caráter histórico e não mais biológico, como na modernidade4. Com isso, a questão da identidade se afasta de uma ligação direta à concepção de indivíduo, como ser biológico, unificado e estabilizado, e aproxima-se à noção de sujeito fragmentado, ou nas palavras de Stuart Hall (HALL, [1992] 2003, p. 12), “sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente”. É possível pensar, então, em identidade como processo de identificação e relacionada à noção de sujeito, como o indivíduo interpelado pela ideologia, conforme os preceitos da Análise do Discurso pecheutiana (AD), linha deste trabalho.

Entender a identidade como processo significa admitir a incompletude, a fragmentação e a heterogeneidade do sujeito em seu percurso de identificação/desidentificação à ideologia. Segundo Bauman (BAUMAN, [2004] 2005, p. 21-22), a identidade é uma construção que, para durar, deve ser defendida, protegida:

[...] a ‘identidade’ só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, ‘um objetivo’; como uma coisa que ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la lutando ainda mais – mesmo que, para que

1 Doutoranda do Programa de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês – FFLCH-USP;

pesquisa sob o financiamento da CAPES.

2 BAUMAN, [2004] 2005, p. 22.

3 Cf. ibidem.

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essa luta seja vitoriosa, a verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade deva ser, e tenda a ser, suprimida e laboriosamente oculta.

Também para Hall5, a identificação não é um processo automático – pode

ser obtida ou perdida, dependendo do modo de interpelação ideológica – e, na pós-modernidade, o sujeito “está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas”.

Talvez possamos entender essa contradição como ocupando o espaço das incongruências gerado pelas filiações ideológicas do sujeito que pode ocupar várias e/ou diversas formações ideológicas. Michel Pêcheux6 define formação ideológica (FI) como sendo a posição ideológica sustentada pelo sujeito numa conjuntura “determinada pelo estado da luta de classes”. As formações ideológicas estabelecem as formações discursivas (FDs), ou “aquilo que determina [...] o que pode e deve ser dito” (PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 147). Para a AD, o discurso, como o encontro entre a materialidade histórica e a materialidade linguística, é a dispersão produzida por um sujeito – como o indivíduo interpelado pela ideologia e atravessado pelo inconsciente - que se ilude sobre a unicidade de seu dizer e acredita ser a origem desse dizer7.

Uma vez que o trabalho do inconsciente e também da ideologia – definida por Pêcheux como sendo práticas e não ideias – “é o de dissimular sua própria existência no interior mesmo do seu funcionamento, produzindo um tecido de

evidências ‘subjetivas’” (PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 139) em que o sujeito se

constitui, para a AD, não há nada a ser desvendado. Ao contrário, o trabalho do analista do discurso é precisamente perceber os efeitos de “evidência”, ou seja, perceber os efeitos daquilo que se coloca como evidência no discurso e que constitui o sujeito.

Entendendo identidade como uma construção que, através de linguagem e práticas, trabalha no sentido de estabilizar aquilo que é naturalmente constituído pela incompletude e pela heterogeneidade, este estudo propõe refletir sobre a identidade do professor de língua inglesa a partir da análise discursiva de dizeres desses professores sobre a adoção do livro didático de inglês na escola pública a partir de 2011.

Pela primeira vez desde a criação da cadeira de inglês no Brasil em 1809, o livro didático de língua inglesa, juntamente com o livro didático de língua espanhola, passa a ser adotado para os últimos anos do Ensino Fundamental, do 6º

5 Op. cit., p. 21.

6 PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 147.

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ao 9º ano da escola pública, em todo o território brasileiro através do Programa Nacional do Livro Didático - PNLD 2011. Pela primeira vez, também, esses livros didáticos de língua estrangeira estão sendo adquiridos e distribuídos pelo governo federal a todas as escolas da rede pública.

Com o objetivo geral de investigarmos alguns dos possíveis impactos dessa medida governamental no ensino de língua inglesa na escola pública brasileira, colhemos as respostas de dezessete professores, num total de quinze escolas da rede pública em três estados brasileiros, a um questionário sobre a adoção do livro didático de inglês. Para o presente trabalho, analisaremos as respostas de quatro professores a uma das perguntas do questionário. Buscamos as características identitárias do professor de língua inglesa na escola pública brasileira que podem ser percebidas nos dizeres desses professores.

Nossa análise se apoia nos preceitos da Análise do Discurso de vertente pecheutiana e considera, como dissemos, o discurso como materialidade linguística e materialidade histórica e como dispersão do sujeito. A noção de poder, em sua relação com a produção da verdade como saber, será observada segundo a conceitualização foucaultiana, ou seja, como um conjunto de ações sobre outras

ações8 (FOUCAULT, 1982), para pensarmos sobre o modo de funcionamento do discurso sobre o livro didático de inglês. De acordo com o pensamento do filósofo francês, a relação entre saber e poder não ocorre em um único sentido, de cima para baixo, mas em movimentos circulares, agindo na microfísica e implicando a impossibilidade de estabilização do poder e também da verdade. Acreditamos, pois, que o discurso sobre o livro didático de inglês produz o efeito de estabilização (ilusória) do poder e da verdade.

Até este momento da pesquisa9, a análise dos dizeres parece delinear uma representação de professor cuja ação pedagógica é apenas determinada pelos materiais didáticos, submetida ao poder de verdade do livro didático. Esses resultados parciais da análise corroboram nossa hipótese de pesquisa de que o discurso sobre o livro didático de inglês tem papel primordial na construção da representação desse material como um lugar de verdade.

Análise dos dizeres sobre o livro didático de inglês

8 Nossa tradução. Cf. FOUCAULT, 1982, p. 220.

9 A pesquisa de doutorado, em andamento, sob o título provisório de O discurso sobre o livro

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A análise do discurso sobre, nosso objeto de pesquisa, observa a ilusão do sujeito que, ao falar sobre algo, crê não falar sobre si. Portanto, mesmo as respostas à pergunta específica sobre a adoção do livro didático de inglês (LDI, de agora em diante) adotado através do PNLD 2011 nos possibilitarão tecer observações sobre a identidade do professor de inglês.

É importante situar que os professores responderam ao questionário por escrito e durante o ano de 2010, antes de terem acesso aos resultados sobre as escolhas dos livros. Vejamos a primeira das cinco perguntas do questionário e as respostas de quatro professores (P1, P2, P3 e P4).

Pergunta: A partir de 2011, as escolas públicas adotarão livros didáticos para o

ensino de inglês para o Fundamental II, do 6º ao 9º ano. Qual é sua opinião sobre essa medida?

P1:

Acho ótima, pois nunca se deu muita importância para o ensino do inglês e a falta de recursos é realmente um problema para o professor que necessita, constantemente, procurar material para suas aulas. O caderno do aluno que usamos tem facilitado muito nossa vida. (É recente a distribuição). O inglês ficou esquecido por muito tempo.

Vemos que P1 associa a adoção de livros didáticos à importância atribuída à disciplina de língua inglesa. Nesse caso, poderíamos dizer que o inglês, contando a partir da data da criação da cadeira de língua inglesa em 1809, permaneceu por mais de duzentos anos no currículo sem ter importância; nas palavras finais de P1, “o inglês ficou esquecido por muito tempo”. Podemos, já, delinear algumas características identitárias do professor de inglês da escola pública nos dizeres desse sujeito. Isto é, o professor de inglês é aquele que admite lecionar uma disciplina pouco reconhecida, considerada sem “muita importância” e, por isso, convive “constantemente” com o problema de encontrar materiais para trabalhar. P1 estabelece uma relação direta entre o pouco reconhecimento atribuído à disciplina e a falta de materiais. O professor de inglês é aquele, então, que por longos anos convive com o “problema” da “falta de recursos” e com o peso de trabalhar uma disciplina pouco reconhecida e há muito tempo esquecida. É ainda aquele que, diante da “falta de recursos” e do esquecimento do inglês “por muito tempo”, se vê na necessidade de buscar em algum lugar materiais para suas aulas. O professor de inglês, diferentemente dos professores de outras disciplinas

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que não foram esquecidas ou desprovidas de importância, deve sair em busca de seus próprios recursos. A busca é percebida por P1 como “um problema” e não como um desafio que poderia contribuir a um ensino que valorizasse o contexto em que esse mesmo professor se insere.

Assim, o LDI é considerado por P1 como aquilo que coroa o ensino de inglês, reconhecendo-o oficialmente e dando-lhe a importância necessária. É certo que P1 não faz comparações diretas, mencionando outras disciplinas. Porém, ao recortar o inglês em seu discurso, as demais disciplinas da grade escolar desse segmento educacional ficam silenciadas. Esse silêncio não parece funcionar exatamente como o apagamento dessas disciplinas; ao contrário, ele contribui para reforçar a imagem tradicional do estatuto do inglês na escola pública. Isto é, as outras disciplinas, ao serem silenciadas, provocam a memória sobre quais são – diferentemente do inglês – consideradas importantes e não são esquecidas, fortalecendo e, talvez, justificando o enunciado que circula socialmente de que não se aprende inglês na escola pública. Em outros termos, nos dizeres de P1, a medida governamental de adoção do LDI eleva o ensino de inglês à condição já experimentada por outras disciplinas – aquelas disciplinas que, diferentemente do inglês, receberam “muita importância” e que não ficaram esquecidas por muito tempo.

Ao considerar “a falta de recursos”, a falta do LDI, como “um problema” para o professor, P1 aponta o LDI como a solução. Sem o LDI, o professor “necessita, constantemente, procurar material para suas aulas”. Percebemos, então, que a ação governamental de adotar o LDI tem impacto direto sobre a ação do professor em aula; pois, se sem o LDI, ele necessita buscar materiais para suas aulas, com o LDI, ele não mais precisará fazê-lo. Ao afirmar que “o caderno do aluno10 tem facilitado muito” a vida dos professores de inglês, P1 sugere que o LDI também facilitará sua rotina, pois não necessitará procurar materiais para suas aulas.

A adoção do LDI, então, age diretamente na ação do professor, facilitando sua vida. Portanto, podemos dizer que percebemos, nesses dizeres de P1, o movimento de uma ação (neste estudo, a ação governamental para a adoção do LDI) sobre outra ação (a ação de facilitar a vida do professor) que, segundo Foucault11, é a própria definição de poder.

10 Em referência ao material didático apostilado distribuído pelo Governo do Estado de São

Paulo, através do Programa São Paulo Faz Escola.

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Com os seguintes dizeres12, P2 responde à primeira pergunta do questionário:

P2

Muito Bom. O livro para e o dicionário são materiais de apoio e consulta que pode ajudar bastante.

Mesmo nessa resposta concisa, podemos perceber que P2 aprova com entusiasmo a medida governamental. Porém, devido à sua brevidade, essa resposta não nos permite a imediata percepção da identidade de professor para além das indagações que suscita.

Inicialmente, o termo riscado de seu dizer (para) não nos permite estabilizar algum efeito de sentido, ao menos momentaneamente, para a análise. Mesmo assim, esse termo não foi apagado do dizer e continua, portanto, a produzir efeitos. Há aí um jogo de possibilidades. Seria o termo recusado por P2 a preposição para, retomando, assim, parte do texto da pergunta “livros didáticos para o ensino de inglês para o Fundamental II”? Se assim for, talvez, ao livro didático estaria sendo atribuída a função de material de apoio, e, respectivamente, ao dicionário (que compõe, juntamente com o CD, os materiais do PNLD 2011) a função de material de consulta. Apesar de não ser possível precisar exatamente qual seria o material de consulta e o de apoio nesse dizer, o professor estaria, de todo o modo, sendo representado como aquele que utiliza os materiais adotados para complementar suas aulas e, talvez, para que contribuam pontualmente ao plano de aula por ele elaborado. Mas, com o termo riscado, o dizer de P2 não permite a validação dessa análise.

O termo recusado por P2 pode ainda remeter ao prefixo da palavra

paradidático. Apesar de esse tipo de material não compor o pacote do PNLD 2011

para língua estrangeira, o paradidático é constantemente referido no questionário por alguns professores participantes da pesquisa e, até, confundido com o livro de sala (course book). Nesse caso, a relação entre o livro (paradidático) e sua função (apoio) produziria um efeito de correspondência, entre material e função, mais

12 As sequências discursivas serão transcritas aqui de acordo com o questionário respondido

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direta no dizer e mais facilmente reconhecível. Isto é, o livro paradidático é mais comumente usado como material de apoio do que o livro de sala. Apesar de o paradidático não ser o foco da pergunta, é aquele que, na resposta, mais se enquadra como material de apoio. Porém, ao riscar e recusar o termo, P2 nos impede de prosseguir também nessa linha de análise. Portanto, assim como o termo riscado, nossas duas tentativas de análise devem também ser recusadas. No entanto, podemos perceber o efeito de uma ação sobre outra no momento em que P2 faz a associação imediata entre a ação governamental de adoção dos materiais (livro e dicionário) cujas funções (apoio e consulta) atuarão sobre a ação do professor (ajudar bastante).

Apesar de a resposta inicial (“Muito Bom”) produzir, como efeito, o otimismo e o entusiasmo de P2 em relação à adoção dos materiais, o uso de “pode”, em “pode ajudar bastante”, ameniza a expectativa de P2 em relação ao que pode o LDI. Apesar de não alterar o efeito de uma ação sobre outra ação percebido nesse dizer, temos novamente, nos dizeres de P2, o mesmo efeito produzido pelo termo riscado. Isto é, o entusiasmo inicial do dizer “Muito bom” sofre enfraquecimento, como se fosse também riscado, pelo dizer modalizado “pode ajudar”. P2 não afirma com convicção que o livro ajudará muito; simplesmente, diz que o livro pode ajudar. Ou seja, quando algo é considerado muito bom, esperamos que ele ajude muito e não simplesmente que possa ajudar.

Além disso, não sabemos exatamente quem será ajudado. Aqui, aquele que poderá ser ajudado pelos materiais (o professor, o aluno, ambos ou outros?) marca ainda sua presença no dizer como um não-dito13, deixando em aberto o objeto que

complementaria o verbo transitivo, ajudar. Esse complemento não é algo que simplesmente não existe, mas que existe em sua falta, pois persiste no dizer, marcando seu lugar no discurso como aquilo que, ali, falta. Desta vez, P2 não risca a palavra que complementaria o verbo ajudar, nem tampouco se utiliza de um termo que enfraqueceria ou anularia o efeito do dizer; porém, do mesmo modo, o sentido de ajudar sem saber a quem permanece tão incompleto quanto o termo riscado e o “Muito bom” amenizado.

Nos dizeres de P2, podemos perceber que os traços identitários de professor parecem subjazer apagados num pano de fundo, sob a opacidade discursiva, como se também o professor fosse riscado, incompleto e enfraquecido. De todo o modo, acreditamos que o professor fica representado nesse dizer como aquele que se entusiasma com o novo (a oferta de materiais), mas que, ao mesmo

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tempo, não sente a segurança desse novo garantida e não tem, ao menos, a certeza a quem o novo irá realmente ajudar. Essas incertezas, percebidas como efeitos nos dizeres de P2, podem ser compreendidas como traços identitários do sujeito fragmentado e fragilizado pelas incongruências ideológicas em que ele se constitui.

Vejamos agora a resposta de mais um professor à primeira pergunta do questionário.

P3

A algum tempo atrás, trabalhei com livros didáticos, e percebi um interesse muito maior por parte dos alunos. Aprender outra língua, é dificil para eles, eles são muito visuais, e o livro propiciava esse tipo de linguagem à eles, o entendimento se torna mais fácil.

Ao contrário de P1 (“Acho ótima”) e P2 (“Muito Bom”), que responderam à pergunta, opinando diretamente sobre a adoção do LDI, P3 narra brevemente sua experiência com livros didáticos. A resposta de P3 coloca o foco no aluno em relação ao aprendizado de inglês. De acordo com P3, o livro didático facilita o aprendizado (“o entendimento”) por oferecer (“propiciava”) uma linguagem visualmente interessante aos alunos.

Percebemos no dizer de P3 que o professor sai de cena quando entra o LDI. Isto é, ao narrar sua experiência, P3 fala da relação entre aluno, livro didático e aprendizado de língua estrangeira, mas não se inclui nesses dizeres. Os únicos momentos em que o professor participa dessa narrativa são percebidos nas terminações de primeira pessoa do singular dos verbos trabalhei e percebi. Mesmo assim, há o distanciamento crescente do professor nessas ações. Ou seja, o professor agiu, trabalhando com os livros didáticos, colocando-os em funcionamento, poderíamos dizer. Em seguida, o professor se afasta da narrativa, assumindo a postura de observador, percebendo o interesse dos alunos. Depois desse momento, o professor é elidido; a narrativa prossegue apenas com o LDI e os alunos. Notamos, também, que P3 não apenas percebe o interesse dos alunos, mas nota que esse interesse é “muito maior” e o “entendimento se torna mais fácil” do que quando não havia LDI; ou seja, quando o professor protagonizava a cena. Uma cena um tanto deprimente, poderíamos dizer; pois, sem o LDI, o professor é representado como aquele que não consegue instigar o interesse dos alunos, não consegue explorar as habilidades visuais dos alunos e não consegue facilitar a compreensão. Aqui, o LDI é fortemente investido de poder pelo discurso sobre ele.

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Em relação à aprendizagem, podemos dizer que, para P3, aprender é ter “o entendimento”, a compreensão através da linguagem visual propiciada pelo LDI. Ou seja, o aluno é também distanciado do processo de aprendizagem; pois, a ele cumpre obter esse “entendimento” que o LDI propicia. Poderíamos dizer que, para P3, o LDI ocupa o lugar central nos processos de aprendizagem e de ensino. Há a desconsideração dos agentes desses processos, como sujeitos que garantem a não estabilização do sentido, a incompletude e a heterogeneidade. Também o aspecto ideológico do LDI é desconsiderado, como se a introdução desse material na escola pública nesse momento fosse apenas para suprir visualmente o ensino de inglês no Brasil.

Observamos, portanto, o efeito de movimento de uma ação sobre outra ação nos dizeres de P3; pois, a ação governamental de adotar o LDI, levará ao aumento “muito maior” do interesse dos alunos e, por fim, o aprendizado será facilitado. Além dessa sequência de ação sobre ação, notamos nesses dizeres de P3 que a presença do LDI afasta o professor do processo de aprendizagem e atrai o aluno para a aprendizagem fácil e visualmente interessante, atribuindo poder de verdade ao LDI. É preciso dizer que essas ilusões mascaram a necessária implicação de ambos, professor e aluno, no processo de aprendizagem.

Vejamos agora os dizeres de P4 em resposta à mesma pergunta.

P4

Existem dois lados da questão; acredito que para os outros Estados, que não possuem nenhum material didático, é uma evolução – finalmente algo será fornecido aos alunos para a disciplina de língua inglesa; no entanto, para o Estado de São Paulo, surgem muitas dúvidas – nós recebemos o Caderno do Aluno, que dependendo da escola, pode ser tanto uma obrigatoriedade, como material de apoio; como o professor trabalhará os dois materiais, se na maioria das vezes, o professor mal dá conta dos conteúdos dos cadernos? O que considero positivo é que esse tipo de material traz CD, o que vem a acrescentar e muito às aulas.

P4 inicia sua resposta à primeira pergunta do questionário acreditando que existam apenas dois lados da questão sobre a medida governamental: o caso de São Paulo e o caso dos demais estados brasileiros; ou ainda, de um lado, as escolas amparadas pelo estado que provê materiais, de outro, as escolas que “não possuem nenhum material didático”. Para essas, a chegada do LDI é uma “evolução”, pois o LDI virá “finalmente” tirar os alunos da “disciplina de língua inglesa” da condição de desprovidos. Temos, novamente, o LDI como responsável

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pela transformação resultante do movimento de uma ação sobre outra; pois, a adoção levará, através do LDI, à evolução.

O responsável por essa “evolução” é, no entanto, nomeado como “algo”; isto é, “algo será fornecido aos alunos para a disciplina de língua inglesa”. Uma representação de LDI pouco precisa: algo qualquer, desde que seja diferente de nada (diferente de “nenhum material didático”), é já suficiente para tirar os alunos da disciplina de língua inglesa da condição de desprovidos e levá-los à “evolução”. Vemos aqui o alto valor simbólico dado ao LDI. Não é preciso conhecê-lo, ler sua proposta, trabalhar seus conteúdos nem exercitar suas atividades com os alunos para saber que ele é capaz de levar a “evolução” para a escola, ao menos às escolas de “outros Estados”.

É preciso dizer que P4 não considera ou desconhece o trabalho dos professores de inglês de outros estados brasileiros, que se dedicam à coleta e à elaboração de seus próprios materiais, adaptando-os à realidade de seus alunos e obtendo também ótimos resultados. Apenas como suporte para esse nosso comentário, cito parte da resposta de um professor do estado de Pernambuco (P13) que também respondeu ao questionário (Pergunta 2: Que tipo de material você

utiliza atualmente? Há quanto tempo você utiliza esse material?).

O material utilizado foi sempre adaptado por mim, coletava dinheiro nas salas para comprar folhas sulfite e xerocava para eles. Era dependioso eu confecionava e selecionava os conteúdos junto a coordenação pedagógica e atividades para as crianças deveriam ser variadas não ser cansativo. [...] E as experiências foram reconhecidas, registradas pela escola em 2008 consegui o primeiro lugar nos projetos escolares. E a partir disso a escola decidiu inserir a disciplina de inglês no 3° e 4° e novamente conduzi o barco levando para eles atividades lúdicas e projetos infantis em inglês passando um período de dois anos com essas crianças vindas tanto da zona rural quanto da zona urbana deu muito certo, a escola aprovou meu trabalhou e foi aceito pela comunidade escolar. [sic]

Não estamos com isso desejando que sejamos todos desprovidos de materiais para que nossa criatividade aflore; porém, não podemos depositar toda esperança, nem todo o fracasso, em um material, seja ele fornecido pelo estado ou não, e desconsiderar a necessidade de agência, como a ação do professor diante de seu trabalho e inserido em seu contexto sócio, político e cultural.

Retomando os dizeres de P4, a situação no estado de São Paulo é, então, descrita como o outro lado da questão. Repetimos, aqui, parte da sequência discursiva de P4.

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[...] no entanto, para o Estado de São Paulo, surgem muitas dúvidas – nós recebemos o Caderno do Aluno, que dependendo da escola, pode ser tanto uma obrigatoriedade, como material de apoio; como o professor trabalhará os dois materiais, se na maioria das vezes, o professor mal dá conta dos conteúdos dos cadernos? O que considero positivo é que esse tipo de material traz CD, o que vem a acrescentar e muito às aulas.

Em São Paulo, há a abundância de materiais; tanto que P4 não sabe como o professor dará conta dos conteúdos. P4 menciona as apostilas, ou cadernos, da proposta curricular do Estado de São Paulo: São Paulo Faz Escola. A preocupação de P4 parece concernir à possibilidade de o professor não conseguir cumprir ou cobrir todos os conteúdos de ambos, do caderno da proposta e do livro didático, desconhecendo ou não se atentando ao fato de que, pela proposta do PNLD, o LDI substitui esses cadernos.

De todo o modo, os dizeres de P4 apontam à preocupação com os conteúdos programáticos, presentes nos cadernos do São Paulo Faz Escola e no LDI do PNLD ou ainda na falta desses conteúdos, como no caso dos outros estados, como vimos. A pergunta de P4, que não quer resposta – apenas reclama as consequências da abundância de materiais, da suposta “evolução”, ou seja, reclama a impossibilidade de trabalhar os dois materiais –, acaba por fornecer uma representação redutora de professor como aquele que deve, idealmente, dar “conta dos conteúdos” dos materiais.

Nesses dizeres, o LDI fica, então, representado como o conjunto de conteúdos a serem cobertos; porém desta vez, não totalmente isento de valor ideológico, histórico e cultural, uma vez que ele representa a “evolução”. Sendo um objeto que apresenta conteúdos suficientes para serem trabalhados, o LDI é uma “evolução” para quem não possui materiais didáticos e um problema para quem já os tem (os cadernos da proposta do estado de São Paulo). Vemos que, nesses dizeres, os conteúdos dos diferentes materiais são saberes que não se excluem, nem se sobrepõem, sejam eles “uma obrigatoriedade” ou “material de apoio”. São verdades que se complementam, pois, para P4, o professor deve dar conta tanto dos conteúdos do LDI quanto dos conteúdos do caderno. Os conteúdos, então, equivalem à matéria presente no livro, ou seja, eles não são vistos como pertencentes ao programa do curso. Se os conteúdos fossem considerados a partir do programa delineado pelo professor ou pela escola, poderiam ser selecionados, buscados em outras fontes e adaptados ao programa de ensino. Porém, aqui, o LDI e também o Caderno do Aluno ditam ao professor o que deve ser ensinado,

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igualando-se ao programa de curso a ser ministrado. O professor é, então, aquele que deve seguir e cumprir os conteúdos do LDI.

Apesar de P4 se preocupar com o acúmulo de materiais e não saber como administrará a carga de conteúdos, o CD, embora acrescente ainda muito mais (“vem a acrescentar e muito às aulas”), não é um problema; ao contrário, é o aspecto “positivo” do LDI. Porém, P4 não informa como o CD acrescenta às aulas. Portanto, o CD não é considerado como um material que tenha conteúdos. Há a desconsideração de que esse material pode ser utilizado para o ensino de aspectos orais da língua, como pronúncia, entonação, linking, sotaques, sons individuais e muitos outros. Não se considera que o contato com esse material poderá provocar nos alunos muitos estranhamentos e, então, gerar oportunidades para uma prática de ensino mais significativa àqueles alunos, partindo de suas próprias indagações.

A não consideração dos aspectos orais que poderiam ser explorados com o CD e, consequentemente, a não consideração do CD como sendo um material que também oferece conteúdos acabam por render mais poder ao LDI. Ou seja, o LDI é o material que traz os conteúdos a serem ensinados e não o CD. Isso nos lembra que a representação de livro como sendo “carregado de sacralidade, mesmo quando é profano, porque que ensina o essencial” (CHARTIER, R. [1945] 1996, p. 86) parece sobreviver ao tempo e voltar nesse dizer de P4. Desse modo, o livro em papel produz o efeito de ter mais autoridade do que o CD, mesmo que este seja mais “positivo”, como disse P4. Parece-nos, então, que a preocupação de P5 não é exatamente com o acúmulo de conteúdos linguísticos, mas com a necessidade de ter de cumpri-los, dando conta da quantidade de matéria que o livro encerra em sua forma material, em papel, e que deve ser coberta nas aulas.

Para percebermos outros traços identitários que marcam a representação de professor nos dizeres de P4, temos ainda que retomar o valor que ele atribui aos conteúdos a serem ensinados. Assim, P4 representa o LDI como um conjunto de conteúdos, como dissemos acima. Os conteúdos dos cadernos se acumulam com a chegada dos conteúdos do LDI e P4 não sabe “como o professor trabalhará os dois materiais”. Vemos que o professor se orienta pelos conteúdos e a aula é regida também por eles. O professor se coloca numa posição submissa aos conteúdos que o dominam e, com a chegada de novos conteúdos, ele se atrapalha, não sabe como trabalhar, não sabe a qual conteúdo se submeter. Os conteúdos o governam. O LDI, como um conjunto de conteúdos, é o que governa o professor, que dita o que fazer na aula. O poder de verdade do LDI, e também dos cadernos, é tão supremo para P4 que ele não vê seu próprio poder de escolha, seu lugar nesse processo,

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nem sua agência, como se a aula não fosse sua e ele não tivesse controle algum sobre ela.

Assim, o investimento de poder no LDI pode ser percebido nesses dizeres através da própria submissão de P4 ao LDI. Por isso, os professores de outros estados, que não tem o LDI nem os cadernos mencionados, irão, com o LDI do PNLD, evoluir. De todo o modo, a adoção do LDI repercute diretamente sobre a ação do professor, resultando na “evolução” daqueles que não tem material algum ou na indecisão sobre o que fazer diante da abundância de materiais.

Conclusão

A análise desses dizeres do discurso sobre o livro didático de inglês se valeu da ilusão do sujeito do discurso sobre que acredita não falar de si enquanto fala sobre algo. Ao responderem à pergunta do questionário sobre a adoção do livro didático de inglês na escola pública através do PNLD 2011, os professores participantes teceram representações de professor através de traços identitários discursivisados em seus dizeres.

Observamos, através da análise, que é frequente o estabelecimento de uma relação direta entre a identidade do professor e a questão dos materiais. P1 atribuiu à falta de materiais o problema do professor de inglês na escola pública, cuja solução será o LDI do PNLD 2011. A adoção desse material marca, para P1, o fim da falta experimentada pelo professor de inglês da escola pública: a falta de importância dada ao ensino de inglês e a falta de recursos. O fim dessas faltas resolve, para P1, os problemas do professor: é o fim da procura por materiais para as aulas e, de modo mais profundo, o fim do longo esquecimento do inglês. O LDI do PNLD 2011 é a solução que vem preencher essa falta, dando completude imaginária à falta real.

A resposta concisa de P2 não foi obstáculo para a percepção dos efeitos discursivos que nos auxiliaram a delinear a representação de professor no discurso desse sujeito. A análise dos dizeres de P2 nos possibilitou a percepção de traços que marcam a identidade desse professor de inglês da escola pública como um sujeito fragmentado, fragilizado e, diríamos, lacunar; traços que podem ser relacionados ao sujeito da época “líquido-moderna”14. Apesar das incertezas percebidas nos dizeres de P2, a adoção do LDI é recebida com certo entusiasmo. Nos dizeres de P3, o LDI parece ocupar o centro nos processos de ensino e de aprendizagem, como se as relações intrínsecas a esses processos prescindissem

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da participação de sujeitos. Notamos que o LDI não é percebido em sua dimensão ideológica; apenas seu apelo visual é considerado e, mesmo assim, como se não houvesse, aí, ideologia. O trabalho do professor é delegado ao LDI; pois, segundo P3, o livro é mais atraente e visualmente mais interessante do que o ensino que o professor poderia traçar com outros recursos. O professor é representado como aquele que, sem o LDI, não consegue interessar os alunos para o aprendizado nem facilitar a compreensão. Com o LDI, o professor sai de cena; é apagado.

Em seus dizeres, P4 atribui aos materiais a função soberana de estabelecer os conteúdos do programa de ensino, enfatizando a preocupação do professor em conseguir cumpri-los. O professor é representado como aquele que deve seguir e cumprir os conteúdos programáticos, como se cumprem leis. Percebemos, nos dizeres de P4, que o poder supremo dos conteúdos estabelecidos pelos órgãos públicos, sejam aqueles do LDI ou do Caderno do Aluno, ofusca a possibilidade de o professor se identificar como agente no processo de ensino. Isto é, surpreende-nos que esse poder supremo, sendo mesmo uma construção que habita o imaginário de P4, consiga tal controle sobre o sujeito de modo a não permitir que ele (re)veja sua posição no contexto do ensino e considere também seu próprio poder de escolha a partir de sua capacitação profissional e em relação ao seu contexto de trabalho, seus alunos, seus objetivos, suas crenças etc.. É importante lembrar que P4 não se justapõe a um indivíduo específico; posto que P4 é um sujeito, assim como os demais participantes que responderam ao questionário. Portanto, a voz desse sujeito que se submete ao poder supremo de que falamos ecoa em muitos outros professores e em nossa sociedade em geral, funcionando como um dito, ou um enunciado, que iguala lecionar a cumprir conteúdos programáticos pré-estabelecidos.

Resumidamente, nos dizeres desses sujeitos, o LDI é aquilo que completa o professor de inglês da escola pública. Os sujeitos cujos dizeres analisamos percebem a existência de uma falta e acreditam que essa falta será preenchida pelo livro didático. Nesse momento em que o LDI ainda não era conhecido pelo professor, a referência a esse material é produzida em discurso através da representação imaginária daquilo que seria um livro didático de inglês para esse professor.

Bibliografia

BAUMAN, Z.; VECCHI, B. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, [2004] 2005.

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CHARTIER, R. Práticas da leitura. São Paulo: Editora Estação Liberdade, [1945]1996; trad. Cristiane Nascimento.

FOUCAULT, Michel. The subject and power. In: DREYFUS, H. & RABINOW P.,

Michel Foucault: beyond structuralism and hermeneutics. Nova Iorque: Harvester

Wheatsheaf, 1982.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A editora, [1992] 2003.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Campinas: Editora da Unicamp, [1975] 2009.

Referências

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