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Leituras de Maquiavel. Volume 45 - número ISSN.BL Fortaleza

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Academic year: 2021

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de Maquiavel

Volume 45 - número 2 - 2014 ISSN.BL 0041-8862 Fortaleza

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Departamento de Ciências Sociais

Programa de Pós-Graduação em Sociologia

Revista de

Ciências Sociais

ISSN.BL 0041-8862. Fortaleza, v. 45, n. 2, p. 06 - 245, jul./dez., 2014 ISSN, v. eletrônica 2318-4620. Fortaleza, v. 45, n. 2, p. 06 - 245, jul./dez., 2014

Leituras de Maquiavel

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Revista de Ciências Sociais – periódico do Departamento

de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará – UFC

n. 1 (1970) – Fortaleza, UFC, 2014 Semestral

ISSN.BL. 0041- 8862 ISSN, v. eletrônica 2318-4620

1. Maquiavel; 2. Política; 3. Poder; 4. Conflito; 5. Modernidade. I- Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades

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Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes, Antônio Cristian Saraiva Paiva, Irlys Alencar Firmo Barreira, Isabelle Braz Peixoto da Silva e Jakson Alves Aquino.

Conselho Editorial Bela Feldman-Bianco (UNICAMP), Boaventura de Sousa Santos (Universidade de Coimbra), Céli Regina Jardim Pinto (UFRGS), César Barreira (UFC), Fernanda Sobral (UnB), François Laplantine (Universidade de Lyon 2), Inaiá Maria Moreira de Carvalho (UFBA), Jawdat Abu-El-Haj (UFC), João Pacheco de Oliveira (UFRJ), José Machado Pais (ICS, Universidade de Lisboa), Linda Maria de Pontes Gondim (UFC), Lucio Oliver Costilla (UNAM), Luiz Felipe Baeta Neves (UERJ), Manfredo Oliveira (UFC), Maria Helena Vilas Boas Concone (PUC-SP), Moacir Palmeira (UFRJ), Ruben George Oliven (UFRGS), Ralph Della Cava (ILAS), Ronald H. Chilcote (Universidade da Califórnia), Véronique Nahoum-Grappe (CNRS).

Projeto gráfico: Vibri Design & Branding Editoração eletrônica: Vibri Design & Branding Organização:

Maria Francisca Pinheiro Coelho Revisão: Sulamita Vieira

Endereço para correspondência Revista de Ciências Sociais Departamento de Ciências Sociais

Centro de Humanidades – Universidade Federal do Ceará Av. da Universidade, 2995, 1º andar (Benfica) 60.020-181 Fortaleza, Ceará / BRASIL Tel./Fax: (85) 3366-7546 E-mail: rcs@ufc.br www.rcs.ufc.br Publicação semestral Solicita-se permuta / Exchange desired

Revista de Ciências Sociais Volume 45 – número 2 - 2014 Publicação do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Centro de Humanidades da Universidade Federal do Ceará Membro da International Sociological Association (ISA) ISSN.BL 0041-8862 ISSN, v. eletrônica 2318-4620

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Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45 n. 2, 2014

// DOSSIÊ: LEITURAS DE MAQUIAVEL

Leituras de Maquiavel (apresentação) Maria Francisca Pinheiro Coelho

Perfis da modernidade: Maquiavel e Hobbes sobre política e moral

Karlfriedrich Herb

Maquiavel: os segredos do mundo da política Maria Tereza Sadek

E se Norbert Elias fosse um leitor de Maquiavel? Andréa Borges Leão

A dialética do desejo e o conflito no republicanismo de Maquiavel

Marilde Loiola de Menezes

Maquiavel na soleira da modernidade Paulo Nascimento e Martin Adamec

Hannah Arendt: uma leitora de Maquiavel Maria Francisca Pinheiro Coelho

11 19 31 47 65 83 103

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“Sociologia ou imaginação”: aspectos da recepção do livro O estrangeiro, de Plínio Salgado

Alexandre Pinheiro Ramos

O poder (in)visível da violência sexual: abordagens sociológicas de Pierre Bourdieu

Alba Jean Batista Viana e Eduardo Sérgio Soares Sousa

Federalismo no Brasil e o debate sobre o rateio das receitas do petróleo

Denise Cunha Tavares Terra, Joseane de Souza e Leonardo Camisassa Fernandes

Matreirice e discurso político: a moral da política mineira durante a Primeira República

Luciano Senna Peres Barbosa

RESENHAS

Lowy, Michael. La cage d´acier. Max Weber et le marxisme wébérien e Lowy, Michael (org.). Max Weber et les paradoxes de la modernité André Haguette 155 185 125 241 211

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// DOSSIER: READINGS OF MACHIAVELLI

Readings of Machiavelli (presentation) Maria Francisca Pinheiro Coelho

Profiles of modernity: Machiavelli and Hobbes on politics and moral

Karlfriedrich Herb

Machiavelli: The secrets of the world of politics Maria Tereza Sadek

What if Norbert Elias was a reader of Machiavelli? Andréa Borges Leão

The dialectics of desire and the conflict on Machiavelli’s republicanism

Marilde Loiola de Menezes

Machiavelli at the threshold of modernity Paulo Nascimento and Martin Adamec

Hannah Arendt: A reader of Machiavelli Maria Francisca Pinheiro Coelho

Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45 n. 2, 2014 11 19 31 47 65 83 103

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“Sociology or imagination”: Aspects of the reception to the book “O estrangeiro”, by Plínio Salgado

Alexandre Pinheiro Ramos

The (in)visible power of sexual violence: sociological approaches of Pierre Bourdieu

Alba Jean Batista Viana and Eduardo Sérgio Soares Sousa

Federalism in Brazil and the debate on the allotment of oil revenue

Denise Cunha Tavares Terra, Joseane de Souza and Leonardo Camisassa Fernandes

Matreirice and political discourse: the moral of Minas Gerais politics during the First Republic

Luciano Senna Peres Barbosa

REVIEW

Lowy, Michael. La cage d´acier. Max Weber et le marxisme wébérien and Lowy, Michael (org.). Max Weber et les paradoxes de la modernité André Haguette 155 185 125 241 211

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(apresentação)

Grandes pensadores – a lista é signifi cativa e aberta – não apenas nos possibilitam um deslocamento no tempo ao descreverem fi gurações e processos de uma determinada época, como também nos provocam com questões e inquietações sobre o presente. Evidentemente, o plural aqui “nos possibilitam” é impreciso porque as leituras e o diálogo com o pensamento de um autor, além de incomensuráveis, são irredutíveis a um todo, pois são próprios de um olhar particular.

Por sua vez, o autor sobre o qual se faz a leitura está em uma comunhão de localização e tempo histórico. Hipoteti-camente, se pudesse se manifestar no debate contemporâneo, talvez não se reconhecesse nas reconstruções de suas ideias ou até mesmo mudasse suas concepções, diante das diferenças de contextos e experiências.

Certamente, na galeria de grandes pensadores, e alvo de muitas interpretações, se inclui Niccolò Machiavelli. Referir-se a Maquiavel como um homem que compartilha do espírito de uma época (o Zeitgeist) não deixa de ser um elogio pela grandeza do período em que viveu, o Renascimento italiano; porém, não é sufi ciente para classifi car o alcance de seu pensamento político.

Atribuir a ele a expressão de Pinder “a não contempo-raneidade do contemporâneo”, citada por Mannheim em seu brilhante ensaio O problema das gerações, também não se adéqua porque o hábito de Maquiavel de conversar com os antigos e aprender com seus escritos e experiências não era para imitá-los, mas constituía uma fonte de ensinamentos, um método para compreensão do presente. A leitura e o retorno aos clássicos também foram um costume do período.

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Talvez o mais apropriado seja classifi cá-lo como um contemporâneo do futuro por ser ele precursor de uma série de mudanças que viriam a acontecer na sociedade. Sua concepção da história como uma combinação entre contingências e ação, movida essa pela necessidade ou escolha, bem como sua análise da natureza da política como uma esfera pertinente aos assuntos do mundo, é inaugural no pensamento político moderno e encerra uma epistemologia do conhecimento social. Sua obra, ao mesmo tempo que conversa com tradição, constitui-se absolutamente original e de ruptu-ra ao se remeter às truptu-ransformações do presente e antever as revoluções na modernidade.

A preocupação central de Maquiavel é com as coisas do mundo (cose del mondo), coisas humanas (cose umane) – mundo esse retratado, à sua época, como de instabilidade política marcada por invasões, disputas territoriais e guerras entre estados. O pano de fundo de suas refl exões é a luta pela reunifi cação da Itália, fragmentada pelas disputas entre estados.

Ao se tentar abranger o leque mais amplo das contribuições do autor – uma tarefa nada fácil porque nem sempre existe uma harmonia em seus escritos –, pode-se identifi car na arquitetura do seu pensamento uma inter--relação entre três grandes teorias: da história, do confl ito e do poder. Em termos de uma teoria da história, seu pensamento se volta para a percepção da ‘verdade’ objetiva, a realidade; para ele, nada mais do que a verdade fac-tual, a veritá effetuale, que orienta as ações dos homens. Maquiavel procura apreender a história nua e crua, sem uma visão evolutiva, nem teleológica.

Em geral, utiliza o termo “história” com referência a eventos e experiências individuais específi cas. Para ele, as histórias são fontes dos exemplos, tanto do passado como do presente. Os fatos são transmitidos e reconstruídos por meio dos relatos. Os conselhos que dá aos Príncipes valem para os homens em geral: as pessoas reais e não imaginárias são avaliadas segundo os traços que lhe valem elogios ou vitupérios.

A história baseada na veritá effetuale, a verdade da experiência, não contém uma visão preconcebida nem determinista dos fatos. A combinação extremamente perspicaz e inteligente que faz entre a fortuna (acaso, sorte, circunstâncias) e a virtù (qualidades e virtudes) expressa com clareza sua compreensão da história, que envolve tanto a realidade, o momento objetivo, quanto o sujeito, o momento subjetivo. Em outras palavras, a história abarca as noções de circunstância e ação.

Desse modo, em sua concepção da história está implícita uma teoria da ação, do sujeito como agente, nos moldes posteriormente tematizados pelas ciências sociais como ciências interpretativas e não positivistas. Maquiavel

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antecipa questões epistemológicas que envolvem a relação entre sujeito e objeto, que serão trabalhadas por Max Weber em sua refl exão sobre a escolha pelo sujeito do sentido social da ação.

Há em Maquiavel um sujeito responsável pelas suas escolhas, pelo menos das ações não movidas pela necessidade, cujo sentido único é inevi-tável. O livre arbítrio responderia pela metade dos nossos atos, cabendo às circunstâncias responder pela outra metade. No entanto, só são boas, seguras e duráveis as defesas que dependem de nossa própria capacidade. De acordo com o autor, considerando as circunstâncias e escolhas individuais, é feliz quem age de acordo com as necessidades de seu tempo.

Profundamente inter-relacionada com uma teoria da história baseada nas experiências, há em Maquiavel uma compreensão do confl ito como imi-nente às interações sociais e à sociedade, dividida entre os que dominam e os que são dominados. Existe na sociedade uma relação de luta permanente pelo poder. A modernidade de Maquiavel, como vai argumentar Karfriedrich Herb, em artigo deste dossiê, não alimenta qualquer esperança de uma superação política do confl ito.

Não só o homem, mas também a república está condenada a viver arriscadamente. As dissensões conservam a liberdade. As leis a favor da liberdade nascem da desunião. A essência verdadeira de uma sociedade livre está não no consenso, mas no confl ito. A condição de saúde dos es-tados não reside na harmonia forçada, mas no confl ito que corresponde à primeira proteção da liberdade. Em síntese, Maquiavel defende uma ordem republicana que acredita na participação dos cidadãos e que se aproveita de forma produtiva do confl ito social.

Ao elaborar uma concepção da história e do confl ito, como parte integrante das interações sociais, o foco de Maquiavel é o estudo do poder, concretamente da luta pela conquista e manutenção do poder. À dupla anti-tética virtù-fortuna, Maquiavel vai adicionar a de violência-consentimento – ambas categorias-chave da análise do poder. Segundo ele, o poder pode ser conquistado pela virtù, pela fortuna, pelas armas ou pelo consentimen-to dos concidadãos. Em O Príncipe, na exposição sobre cada uma dessas formas, a análise de Maquiavel é clara: a virtù prevalece sobre a fortuna; e o consentimento, sobre a violência. No entanto, cada uma dessas formas deve ser analisada de acordo com as circunstâncias.

Em sua visão, a violência pode conduzir ao poder, mas não à glória. O conceito de “glória” compreende a noção de reconhecimento público. A perpetuação da violência leva à ruína do poder. Como nos antigos, para ele, a glória é o critério para se avaliar a política. Do mesmo modo, a coragem,

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e não a bondade, constitui a virtude do político. Essas considerações são importantes para avaliar o papel da violência no pensamento de Maquiavel como uma característica comum na luta pelo poder, mas não um fator isolado e predominante em relação a outros fatores.

Em sua teoria do poder, voltada para a conquista do poder do Estado, como principado ou república, Maquiavel se refere às virtudes e caracterís-ticas do homem de ação política. A visão do político como homem de ação que mede seus atos em função dos objetivos almejados e das consequências previsíveis da ação orienta sua refl exão sobre a natureza laica da política.

Nesse sentido, no percurso de uma concepção da história, do confl ito e do poder, há também elementos no pensamento de Maquiavel para se pensar as origens do conceito de vocação política – como distinta de outras vocações –, sendo sua insistência, à época, na separação entre as esferas política e religiosa. De acordo com ele, aqueles que estão preocupados com a salvação da alma não deveriam ter lugar na vida pública, voltada aos interesses das cose del mondo.

Esses esboços da compreensão de vocação política – embora Ma-quiavel não use o termo – vão se expressar em suas histórias fl orentinas quando menciona que seu amor por Florença é maior do que a salvação de sua alma, trecho citado por Weber em seu ensaio sobre a vocação política. A partir dessas distinções das motivações das ações, pode-se pensar outras vocações, como a ciência, analisada por Weber. Maquiavel é uma referência tanto de Weber, em seu ensaio sobre a política como vocação, quanto de Hannah Arendt, em sua diferenciação das atividades do pensamento e ação, conquanto essas separações sejam conceituais.

1. A ideia da elaboração deste dossiê surgiu por ocasião da Sessão Especial “Os 500 anos de O Príncipe: refl exões sobre poder e violência”, no XVI Congresso Brasileiro de Sociologia, em setembro de 2013, em Salvador. A sessão tinha como objetivo debater a importância inaugural dessa obra no pensamento político moderno. Na oportunidade, foram discutidas, com grande interesse do público presente, as contribuições desse autor franzino, preso acusado de traição e censurado por séculos pela Igreja Católica por se voltar contra os modelos das virtudes cristãs.

O Príncipe esteve no Index Librorum Prohibitorum (Índice dos Livros

Proibidos) da Igreja Católica, de 1559 a 1929. Ainda que o opúsculo tenha circulado nas cortes absolutistas da Europa e no meio literário, o reconhe-cimento da obra de Maquiavel veio tardiamente, quase como um pedido de perdão em seu epitáfi o, citado no fi nal do artigo de Tereza Sadek, na Igreja

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de Santa Cruz, em Florença: “Tanto nomini nullum par elogium” (“Não há elogio que esteja à altura de sua reputação”). Também só tardiamente foi alcançado o objetivo que tanto moveu suas refl exões: a unifi cação do Estado-nação na Itália, só concretizada na segunda metade do século XIX, em 1861.

Desde a publicação de O Príncipe, o pensamento político dialoga com essa obra precursora da modernidade, tanto pelas refl exões que suscita sobre a natureza da política quanto pela sua concepção de poder. A partir das contribuições de Maquiavel, o pensamento político identifi cou o conceito de “poder” com o Estado, que, de uma maneira ou de outra, sempre esteve vinculado ao exercício da dominação.

As contribuições do autor fl orentino certamente são signifi cativas para uma rica refl exão sobre a relação entre poder e violência. Há nuances no tratamento dessa problemática e ambiguidades geradas em situações que envolvem poder e violência, considerando as possíveis aproximações e distâncias entre esses dois fenômenos. Nos termos do autor, a violência é um instrumento da política, mas não o único instrumento possível, tampouco um fator inexorável.

Enfi m, várias questões são suscitadas nos artigos que compõem este dossiê: em que as leituras de Maquiavel de autores como Claude Lefort e Hannah Arendt trazem novas dimensões de sua obra e ampliam suas con-tribuições? Qual a representação de Maquiavel na literatura da época sobre o poder e nos costumes das cortes, a ponto de infl uenciar hábitos e gostos? Em que as formulações de Maquiavel, comparadas com as de autores como Hobbes e Weber, motivam o aprofundamento do pensamento político sobre o poder no contexto dos modelos democráticos na atualidade?

2. O nome do dossiê – “Leituras de Maquiavel” – foi escolhido pelo diálogo que alguns artigos constroem com o pensamento do autor, mediado por interpretações de sua obra advindas de outros autores. Abre o dossiê o artigo de Karlfriedrich Herb, que discute os perfi s da modernidade em Maquiavel e Hobbes. De acordo com o autor, Maquiavel e Hobbes são considerados pensadores políticos modernos par excellence, mas, malgrado a premissa cética da política, ambos oferecem orientações políticas opostas. Enquanto Maquiavel defende uma ordem republicana, que aposta na participação dos cidadãos e que se aproveita de forma produtiva do confl ito social, Hobbes localiza a liberdade privada no silêncio das leis e alimenta a esperança da unidade do corpo político.

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O artigo de Maria Tereza Aina Sadek apresenta um Maquiavel como analista político, e assinala caminhos para a interpretação do autor que visam escapar de algumas encruzilhadas presentes em seus escritos e a fi m de salientar suas propostas consideradas cruciais para a interpretação da realidade política. A autora destaca em Maquiavel importantes paradigmas para uma análise política realista, centrada na separação entre as esferas pública e privada, nos efeitos da correlação de forças e na distinção entre aparência e essência.

O foco do texto de Andréa Borges Leão é situar O Príncipe na longa história que orienta o processo de civilização no Ocidente. Partindo do con-texto de produção e recepção do livro, a problemática apontada entre poder e violência, contingências sociais e psiquismo humano é reintroduzida na teoria do processo de civilização, de Norbert Elias. A autora sustenta que, no contexto de formação dos Estados e monopólio da violência, O Príncipe evoca o problema sociológico e histórico comum às fontes usadas por Elias.

Em seu artigo, Marilde Loiola de Menezes reconstrói a leitura de Maquiavel realizada por Claude Lefort em sua importante obra Le travail de

l’oeuvre Machiavel. Baseada em Lefort, a autora discorre sobre a oposição

irreconciliável identifi cada em Maquiavel entre o desejo dos Grandes de comandar e oprimir e o desejo do povo refratário à dominação. Tendo como referência analítica a dialética do desejo explorada por Lefort nos Discorsi, o artigo demonstra que o sonho iluminista de uma sociedade reconciliada, ausente de confl ito signifi caria, para Maquiavel, a eliminação da liberdade.

Paulo Nascimento e Martin Adamec discutem a proximidade das ideias políticas de Maquiavel com o pensamento moderno, por meio de uma comparação entre sua concepção sobre o Estado e a ação política com a sociologia de Max Weber e seus tipos de dominação. O artigo destaca ainda a importância que Maquiavel atribui a valores da Antiguidade clássica como a glória, mas coloca-o na soleira da modernidade pelo seu realismo e sua compreensão do poder.

O artigo de Maria Francisca Pinheiro Coelho explora a presença do legado de Maquiavel no pensamento de Hannah Arendt. Reporta-se ao inte-resse e à leitura de Hannah Arendt de Maquiavel, a partir de uma reconstrução das referências e interpretação das ideias do autor nos escritos de Arendt. O objetivo do artigo é dimensionar a recepção do pensamento de Maquiavel em formulações analíticas de Hannah Arendt, a partir da construção, pela autora, dos conceitos de fundação: esferas pública e privada; política e ação; pensamento e ação.

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A reconstrução das leituras de intérpretes de Nicolau Maquiavel neste dossiê e a contribuição própria dos autores aqui reunidos que mantiveram um intercâmbio de ideias sobre o autor fl orentino demonstram a abrangência e a riqueza da refl exão que o seu pensamento continua a suscitar. Quinhentos anos se passaram da redação do De Principatibus (Dos principados), título original em latim de O Príncipe, e dos Discorsi sopra la prima deca di Tito

Livio (Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio), e sua obra continua

provocando inquietações que se remetem diretamente à política contem-porânea. Todavia, a preocupação com as cose del mondo, tão constante no pensamento de Maquiavel, nem sempre se constitui um horizonte para os que atuam na esfera política.

Maria Francisca Pinheiro Coelho (organizadora do dossiê)

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Hobbes sobre política e moral

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Karlfriedrich Herb

Estudou Filosofi a, Psicologia e Ciência Comparativa da Religião na Universidade de Bonn, Alemanha. Em 1986, foi promovido a Dr. phil. com a obra intitulada Filosofi a do Estado em Jean-Jacques Rousseau. Em 1997, fez Habilitação na Universidade de Munique com uma investigação sobre Conceitos Modernos de Liberdade. É autor dos seguintes livros: Hobbes ueber die Freiheit, Wuerzburg (Koenigshausen und Neumann, 1988, em parceria com G. Geismann), Rousseaus Theorie legitimer Herrschaft Wuerzburg (Koenigshausen und Neumann, 1989) Buergerliche Freiheit. Politische Philosophie von Hobbes bis Constant, Muenchen / Freiburg (Alber Verlag, 1999), Tocqueville, Frankfurt (Campus Verlag, 2005, em parceria com O. Hidalgo), Rousseau-Brevier. Schluesseltexte und Erlaeuterungen, Paderborn (Fink Verlag, 2012, em parceria com B. Taureck) Rousseaus Zauber. Lesarten der Politischen Philosophie, 2013, Wuerzburg (Koenigshaus und Neumann, 2013, em parceria com M. Scherl). Desde 2001, ocupa a cátedra de Filosofi a Política e História das Ideias na Universidade de Regensburg. Foi professor visitante nas universidades de Paris, Brasília, Recife, Campinas e São Paulo.

Endereço eletrônico: Karlfriedrich.Herb@politik.uni-regensburg.de

PRETENSÃO E LEGADO

Na história do pensamento político, Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes são vistos como fundadores da Modernidade. Seu legado é tão rico quanto difícil. Heróis e descobridores para alguns; sedutores e facínoras para outros, com suas obras Maquia-vel e Hobbes escreveram uma história de escândalos. As quali-dades comumente atribuídas ao fl orentino são de conhecimento geral. Foi chamado de Galileu da política (CASSIERER, 1966,

1 Texto traduzido do alemão para o português por Markus Hediger e revisado por Gerson Brea.

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p. 130), de Curandeiro do poder (KÖNIG, 1979, p. 338) e de Mestre do

mal (STRAUSS, 1958, p. 9). O Leviatã, de Hobbes, vem sendo perseguido

desde sempre: como símbolo do despotismo (ROUSSEAU, 1762) e como exemplo do regente totalitário (ARENDT, 1951). Em histórias das ideias [Ideengeschichten] menos exaltadas, o nome de Maquiavel é vinculado à ideia moderna da autonomia do político, enquanto Hobbes representa o projeto moderno da política como ciência de rigor. Ambos se viram como inovadores em tempos de crise: em Maquiavel, é a luta pela unidade da Itália que o leva a abandonar o idealismo do pensamento político clássico; em vista da guerra civil em seu próprio país, Hobbes se vê literalmente obrigado a ocupar-se com a fi losofi a política, escreve o Leviatã com a intenção de encerrar, de uma vez por todas, a guerra fi losófi ca das espadas (De Cive, 1640). Ambos os pensadores estão cientes de que os desafi os de sua era só podem ser vencidos por meio da refutação da tradição. Hobbes vincula essa refutação à pretensão de ser o primeiro a praticar a teoria da política como ciência. Na verdade, a scientia civilis não seria mais antiga do que seu De

Cive. E também Maquiavel se vê como inovador, reclama para si um novo

tipo de verdade, baseada na experiência:

Como é meu desejo escrever coisa útil para aquele que a entende, mais conveniente me pareceu buscar a verdade das coisas, do que aquilo que delas se venha a supor. E muita gente imaginou repúblicas e principados que jamais foram vistos e nunca tidos como verdadeiros. Tanta diferença existe entre o modo como se vive e como se deveria viver, que aquele que se preocupar com o que deveria ser feito em vez do que se faz, antes aprende a própria ruína do que a maneira de se conservar (Il Principe, XV, I).

Já aqui se evidencia que, por trás do gesto compartilhado do novo e revolucionário, transparecem fi sionomias teóricas distintas. Em Maquiavel, domina a tensão entre Il Principe e os Discorsi, ou seja, entre a tecnologia do poder e o renascimento do republicanismo clássico. Em Hobbes, a mo-derna lei natural rivaliza com a invenção do Leviatã, à nova reivindicação da soberania estatal. Ambos se ocupam com a pergunta sobre a origem e a preservação do poder estatal – fazem-no, porém, de modos bem distintos. Na reinstituição da fi losofi a política – esta a tese deste estudo –, ambos se-guem perspectivas e intenções divergentes, até contrárias. Ao pensamento político dominante em Maquiavel, o republicanismo, o Leviatã de Hobbes opõe uma teoria genuinamente antirrepublicana e liberal.

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VIDA ARRISCADA – A VIRADA ANTROPOLÓGICA

Malgrado as diferenças marcantes, existe uma premissa antropológica comum que garante a modernidade de ambas as obras e descreve um ponto de partida idêntico. Estamos falando do famoso pessimismo antropológico, que incita a aversão de ambos os pensadores à tradição e desde sempre é considerado um prefi xo da fi losofi a política da Modernidade. Tanto Maquiavel quanto Hobbes acreditam que concepções antigas e medievais do homem não servem para criar um Estado. O homem é mau, afi rma Maquiavel de forma apodíctica. O homem é lobo do homem, constata Hobbes em vista da Natural Condition of Mankind (Leviathan XIII). E de fato, para ambos, a visão desconfi ada da natureza humana resulta em uma impressionante lista de máculas humanas. Não há dúvida: Maquiavel e Hobbes dão a mesma resposta à famosa pergunta de Carl Schmitt, que indaga “se o homem é um ser perigoso ou não-perigoso, um ser que traz riscos ou é inofensivo, sem riscos” (1963, p. 59). Perigo e risco descrevem a tonalidade fundamental do novo sujeito político. Aparentemente, esse desencantamento do mundo moral do homem é o preço a ser pago pelas novas teorias de Estado e política. Aqui, Maquiavel deixa sua marca com Il Principe. Seus conselhos ao dominador sedento de poder documentam a profunda desconfi ança diante das predisposições morais do homem. Há muito, o homem não é mais o ser pacífi co e sociável imaginado pelos fi lósofos da Antiguidade. Não é um

zoon politikon, mas um indivíduo orientado por seus interesses com cobiça

insaciável. A palavra-chave dessa antropologia pessimista é ambizione. Esta orienta a ação do homem por propósitos os mais diversos: ambição, fama, posse, lucro e poder são motivos do desejo humano. Nas palavras do autor:

A causa deste fenômeno se encontra no fato de que a natureza criou os homens de tal forma que, apesar de cobiçarem tudo, não conseguem alcançar tudo. Visto que o desejo de adquirir algo sempre é maior do que a capacidade de alcançar tal fi m, surge disso uma insatisfação com aquilo que se possui e também o reconhecimento de quão pequena é a satisfação concedida pela posse (Discorsi I, 37).

O que se evidencia aqui não é, de forma alguma, o vício dos podero-sos, mas a constante fundamental da natureza humana como tal. Cada um procura dominar o outro para não ser dominado por ele. “Pode-se afi rmar dos homens em geral que são ingratos, inconstantes, insinceros, hipócritas, temerosos e avarentos; e enquanto lhes demonstrares algum favor, eles

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per-manecerão completamente submissos.” (Il Principe, XVII). Ou seja, quem quiser preservar seu poder político precisa levar em conta essas grandezas negativas. “Precisa partir do pressuposto segundo o qual todos os homens são maus e sempre cedem às suas tendências más, assim que se lhes oferecer uma oportunidade.” (idem). Como já foi dito: a maldade da natureza humana não é nem hipótese pessimista nem representação momentânea da crise, é antes o triste fato que, aos olhos de Maquiavel, determina toda política.

Para demonstrar esse pessimismo, Maquiavel não precisa recorrer à doutrina cristã do pecado original do homem como a fonte de todo mal humano. Seu argumento não transcende este mundo: como disposição funda-mental, o terror terreno é completamente sufi ciente. Na política, vale contar com o pior e apostar na produtividade do mal. O protagonista de Maquiavel, o príncipe, libera a fertilidade do mal. Ele cultiva as fl ores do mal.

No que diz respeito aos fundamentos, a antropologia de Hobbes apa-renta, à primeira vista, consistir do mesmo material. Sua teoria De Homine serve, sobretudo, para desmascarar a concepção tradicional da pacifi cidade da natureza humana. Nem refl exos sociais nem a razão comum conseguem unir os homens. Homo Homini lupus est – o homem é o lobo do homem – é a fórmula escandalosa da antropologia hobbesiana, mas à qual Hobbes contrapõe imediatamente a fórmula Homo Homini Deus (De Cive). Assim, ele remete a triste verdade sobre o homem, a evidente natureza lupina, de modo inequívoco ao estado natural, ou seja, ao convívio do homem fora da sociedade burguesa. Ali domina a guerra de todos contra todos.

Na verdade, Hobbes não fala aqui do homem como tal, mas da rela-ção primordial dos homens em sua comunidade meramente natural. O que aparenta ser um essencialismo moral é, em Hobbes, de natureza estrutural. O diagnóstico não revela um escândalo moral, mas um estado de emergên-cia judiemergên-cial, que pode e deve ser superado com a ajuda da razão humana. O pessimismo de Hobbes pode ser remetido à ideia fundamental segundo a qual, por natureza, os homens precisam ter medo uns dos outros. Não importa se o homem tem medo de perder sua vida nua ou se seu direito à vida permanece precário – em todo caso, vive em confl ito constante em sua relação natural com seus próximos. O que determina a conditio humana não é a harmonia mútua, mas confl itos por toda parte.

É na base dessa ideia originária que Hobbes constrói sua fi losofi a política. A partir daqui ele defi ne a função mais fundamental do Estado: a delimitação, até mesmo a resolução do confl ito. Disso resulta a meta mínima liberal do Estado: sua obrigação não é a realização do summum bonum, mas o impedimento do summum malum, da morte violenta. Com o commonwealth

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by institution, ou seja, a legitimação contratual do Estado moderno, Hobbes

desdobra como podemos pensar a gênese desse Estado sob pontos de vista normativos. Até hoje debate-se se o Leviatã apresenta traços liberais ou se ele serve como precursor do totalitarismo. Existem, porém, bons motivos para reconhecer nas determinações fundamentais do Leviatã a matriz do Estado democrático. Pois a mensagem democrática se manifesta em voz alta e clara. Por mais poderoso e absoluto que o soberano possa ser, ele deve sua legitimidade única e exclusivamente ao autocomprometimento do indivíduo. Assim, Hobbes postula de modo paradigmático a primazia incondicional da liberdade individual sobre a dominação do geral.

HISTORIOGRAFIA COM INTENÇÃO LIBERAL E REPUBLICANA

A narrativa de Hobbes sobre a instituição do Estado segue, desde o início, propósitos normativos. Trata da questão de validade da dominação estatal, que proíbe qualquer recurso a gêneses históricas. Na opinião de Hobbes, a história não fornece lições políticas. No cânone da civill science, a civill history não tem lugar. Aqui se manifesta uma diferença fundamen-tal em relação à descoberta da política moderna de Maquiavel. Apesar de Hobbes contemplar a Antiguidade com competência e paixão semelhantes às de Maquiavel, sua retrospectiva não revela qualquer potencial normativo ou saudade nostálgica. Hobbes se revela antes como crítico intransigente da imitação da Antiguidade. Aquele que recorre à Antiguidade em questões políticas cometeria um fatal acte manqué. O recurso às antigas fontes do republicanismo evocaria apenas o perigo da anarquia:

Através da leitura desses autores gregos e latinos, os homens passaram desde a infância a adquirir o hábito (sob uma falsa aparência de liberdade) de fomentar tumultos e de exercer um licencioso controle sobre os atos de seus soberanos. E por sua vez o de controlar esses controladores, com uma imensa efusão de sangue. E creio que em verdade posso afi rmar que jamais uma coisa foi paga tão caro como estas partes ocidentais pagaram o aprendizado das línguas grega e latina (Leviathan XXI, 9).

Assim, Hobbes refuta decisivamente a historiografi a republicana de Maquiavel. O legado do republicanismo clássico serve ao Leviatã no máximo para um distanciamento polêmico.

Há muito tempo, os escritos principais de Maquiavel têm sido lidos como diagnósticos concorrentes da crise. E realmente o autor reage ao

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fra-casso da república fl orentina com duas opções distintas. No Principe, sugere a Lorenco di Medici a construção de uma ordem estatal estável, capaz de se impor tanto para dentro quanto para fora. Aquisição e preservação de poder ocupam aqui o primeiro plano. A intenção dos Discorsi é completamente diferente: eles incentivam – bem no espírito do humanismo – a imitatio

an-tiquorum. Recorrendo ao exemplo do Estado romano, Maquiavel verbaliza

a origem e as regularidades do governo republicano e identifi ca a possibi-lidade de fortalecer a república em termos institucionais e mentais: a razão do Estado deve ser expressa com o vocabulário da política do cidadão. Aqui e ali, o conceito da virtude ocupa uma função central.

MORAL POLÍTICA E PAIXÃO REPUBLICANA

Maquiavel enriquece o discurso da modernidade sobre a virtude duplamente: por um lado, enfraquece o conceito tradicional; por outro, confere-lhe um novo signifi cado duplo. Por trás da reinterpretação cínica da virtus antiga, no sentido de uma pura política de poder, transparece um novo conceito republicano da virtude. Este se encontra além dos tradicio-nais valores do bem e do mal. É evidente que Maquiavel, também sob as condições da Modernidade, se atém à virtude burguesa como fermento da ordem republicana. O ceticismo antropológico do Principe de forma alguma está ausente nos Discorsi. Os argumentos de Maquiavel se apoiam num fundamento antropológico idêntico. Nos Discorsi ele não conta com a boa vontade dos envolvidos, mas sim com sua teimosia e seu antagonismo. O confl ito natural deve ser controlado e preservado no interior da república. Mais do que isso, o confl ito entre os cidadãos se manifesta como lei inte-rior da política. Muito longe de pretender delimitar e suspender o confl ito, Maquiavel o torna fértil dentro do corpo político. Hobbes é atormentado por um medo-pânico de que o confl ito natural dos homens possa irromper novamente no estado burguês. Consegue perceber o antagonismo social apenas como ameaça mortal do Leviatã, como frustração da fi nalidade do estado burguês. O ideal da unidade não tolera o pensamento de um confl ito social permanente. Em comparação com Maquiavel, Hobbes se apresenta aqui como mais radical e, ao mesmo tempo, mais convencional. Pois por mais absoluta e inovadora que a soberania do Leviatã possa ser, esta continua a se movimentar dentro dos limites das leis naturais, dentro da esfera do autocomprometimento moral. Apesar de o Leviatã ser o autor exclusivo de direito e lei e, portanto, legibus solutus em virtude da autorização contratual, ele permanece preso moralmente – in foro interno – por sua consciência.

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A autonomia do político vale aqui apenas em termos jurídicos; em termos morais, o soberano permanece sujeito à lei natural. O Leviatã de Hobbes não possui a mesma liberdade do Príncipe de Maquiavel. Hobbes retém o direito natural como impedimento interior à liberdade do soberano. Evidentemente, sua autorrestrição moral é imprescindível: afi nal de contas, deve compensar a ausência de uma restrição institucional ao poder estatal. Onde se ausenta o direito, deve intervir a moral.

A comparação com Hobbes revela o radicalismo com que Maquiavel já se liberta das delimitações tradicionais da política. Ele está disposto a pagar pela autonomia do político com a banalização de todas as normas morais. Ele pode agir sem se preocupar com quaisquer exigências morais – sua única obrigação é seu sucesso pessoal. Bom e certo é tudo aquilo que serve ao seu poder e garante sua preservação. O fi m justifi ca todos os meios políticos. A subversão moral se realiza sob o manto de conceitos tradicionais. Na imagem do uomo virtuoso de Maquiavel, o conceito da virtude perde seu matiz mo-ral. Aos olhos da tradição, era evidente que a virtù do regente representava a boa ação política. Utilidade e justiça se harmonizam aqui. O Príncipe de Maquiavel destrói essa harmonia; ele abandona a orientação pelo bem-estar e pela justiça. Decisivo é unicamente o sucesso da ação política. Tudo serve à vontade de poder. “Trate, portanto, um príncipe de vencer e conservar o Estado. Os meios que empregar serão sempre julgados honrosos e louvados por todos, pois o vulgo se deixa levar por aparências e pelas consequências dos fatos consumados, e o mundo é formado pelo vulgo” (Il Principe). A nova política de poder também se apodera do conceito tradicional de pru-dência. Agora, a prudentia obedece a fi ns contingentes. Prudente é aquilo que serve aos fi ns. A prudência do príncipe ignora tabus morais. O cálculo do poder se transforma em nova virtude do principe nuovo.

VIRTUDE EM VESTES REPUBLICANAS

A reinstituição da república vive do gênio do uomo virtuoso, mas no dia a dia republicano agem outras regularidades. Tendo em vista a vida interior da república, Maquiavel verbaliza também a dimensão normativa da política. Nisso se revelam novamente diferenças marcantes em relação a Hobbes. Aquilo que é banido do Estado do Leviatã deve agora fornecer duração ao regime republicano: a dominação das leis e as instituições. Maquiavel se revela como antípoda de Hobbes, quando ele faz da partici-pação dos cidadãos a condição fundamental da existência da república. A constituição republicana só é duradoura se muitos contribuírem para isso

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(Discorsi I, 9). O apelo à participação deixa claro: para Maquiavel, o cál-culo do poder e o da política republicana dependem um do outro; política de poder e política civil se entrelaçam. Em tempos de crise, a dominação de um indivíduo pode muito bem ser apropriada como medida provisória, mas, sob condições normais, a república depende de uma ampla participação por parte dos cidadãos. Ela depende essencialmente da virtù dos muitos. Os

Discorsi desdobram o vínculo indispensável entre república, participação,

virtude e liberdade. Em longo prazo, a república não consegue sobreviver sem a liberdade do cidadão; nem a liberdade, sem a virtude do cidadão.

Vivere civile – esta é a fórmula para a política civil republicana (POCOCK,

1975; DESCENDRE, 2014).

Em sua acepção mais geral, a liberdade para a república e para seus cidadãos é idêntica. Trata-se da liberdade de coação exterior, ou, em pala-vras positivas: trata-se da reivindicação de governo e dominação próprios. Apenas aquele que domina a si mesmo e que está sujeito às próprias leis pode ser livre. Para a república como um todo, essa condição é evidente e essencial. Apenas quando a cidade está – desde o início – livre de qualquer dependência exterior (Discorsi 12), ela pode crescer e fl orescer. A república é o berço privilegiado da liberdade civil. Maquiavel está convencido de que a liberdade do cidadão encontra suas maiores chances de desenvolvimento na república. Pois aqui os cidadãos desfrutam não só das vantagens da segu-rança – que também podem ser oferecidas pelos monarcas legítimos –, mas também do direito de participar da vida pública e de assumir cargos políticos.

Hobbes se oporá com veemência a ambas as condições fundamentais. Sem maiores problemas, a sua crítica fundamental à imitação do conceito antigo da liberdade pode ser aplicada também a Maquiavel. Essa crítica já se manifesta nas primeiras obras de Hobbes. Já em De Cive, nega que a democracia possua qualquer primazia sobre outras formas de Estado em questões de liberdade. A crítica de Hobbes possui peso sistemático e consequências de longo alcance: para a liberdade do cidadão, a forma es-pecífi ca de Estado é absolutamente irrelevante. Já Aristóteles teria ignorado a essência da liberdade (De Cive X, 8). Hobbes se recusa insistentemente a reconhecer a participação na legislação como indicador positivo para a liberdade individual. Assim, ele já antecipa o paradigma do conceito liberal da liberdade civil negativa (cf. CONSTANT, 1819; BERLIN, 1969). Como para os liberais dos séculos XIX e XX, a participação de forma alguma re-presenta uma garantia para a liberdade do cidadão. Por vezes, a participação dos cidadãos em assembleias populares pode até impedir que eles sigam seus interesses privados. É evidente que a preocupação com a commodity

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of living (Elements of Law II, 28, 4) representa já para o Hobbes inicial a

verdadeira vocação do cidadão como ser humano. O cidadão de Hobbes é, por assim dizer, um bourgeois segundo o modelo de Rousseau. Por isso, Hobbes está apenas sendo consequente quando se recusa a demonstrar en-tusiasmo pela liberdade da Antiguidade. A essência de sua crítica consiste em reconhecer a liberdade da Antiguidade não como liberdade do cidadão individual, mas exclusivamente como liberdade do Estado em suas relações externas. Assim, a liberdade dos atenienses se transforma simplesmente em liberdade da polis: “Os atenienses e romanos eram livres, quer dizer, eram Estados livres. Não que qualquer indivíduo tivesse a liberdade de resistir a seu próprio representante: seu representante é que tinha a liberdade de resistir a um outro povo, ou de invadi-lo” (Leviathan XXI, 8).

Para Hobbes, a orientação pela Antiguidade perdeu sua inocência. Os danos políticos causados pela imitatio antiquorum são evidentes. Ela é fatal para a subsistência da ordem estatal. “É coisa fácil os homens se deixarem iludir pelo especioso nome de liberdade [...]. E quando o mesmo erro é confi rmado pela autoridade de autores reputados por seus escritos sobre o assunto, não é de admirar que ele provoque sedições e mudanças de governo”. (Leviathan, XXI, 9).

MOMENTOS MAQUIAVÉLICOS E HOBBESIANOS

Hobbes utiliza sua interpretação polêmica da Antiguidade para apoiar a intenção sistemática de sua teoria política: a despotencialização radical da participação política e a alergia sistemática a qualquer confl ito dentro da comunidade estatal. Como que de passagem, Hobbes se livra do conceito clássico do republicanismo: o sucesso do Estado do Leviatã já não depende mais da virtude política como fator de motivação subjetiva. A identifi cação com o todo político é substituída pelo terror of punishment. O Leviatã precisa administrar bem esse recurso escasso. Para o Estado hobbesiano, já vale o que Kant postulará para a república moderna: ela precisa ser realizável até mesmo para um povo de demônios (KANT, Zum Ewigen Frieden, 1795, AA VII, 366). No entanto, Hobbes se despede da virtude política apenas timidamente. No que concerne aos cidadãos, está disposto a abrir mão com-pletamente de suas disposições morais; mas, no caso do soberano, depende de sua virtude – pois apenas assim os fi ns da dominação liberal podem ser alcançados. Podemos entender esse conceito de cidadão com perfi l inferior também como consequência de suas premissas liberais. Aqui, uma preten-são menor realmente promete mais. Certamente Hobbes teria desdenhado a

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interioridade do republicanismo moderno. E certamente não teria chegado a um acordo com Maquiavel.

Ao longo dos debates pós-modernos, pós-nacionais e pós-democráti-cos, nós nos acostumamos a reconhecer a essência verdadeira da democracia contemporânea não no consenso, mas no confl ito. Deste ponto de vista, o pensamento de Maquiavel certamente nos oferece mais critérios de conexão do que o autor do Leviatã. No sentido de uma atualização, o machiavellian

moment poderia ser fi xado novamente no pensamento político da

Moder-nidade. Esse momento consistiria em uma nova história topográfi ca e ideal do republicanismo, e também na descoberta da divisão primordial e impres-cindível da sociedade. Claude Lefort reconheceu a ação dessa dimensão na obra de Maquiavel (LEFORT, Le Travail de l’œuvre Machiavel, 1972).

Nem Maquiavel nem Hobbes deram muita importância à natureza do homem. Tudo indica, porém, que com seu pessimismo, Maquiavel penetrou mais profundamente na fi sionomia do pensamento político do que Hobbes com seu mal-estar com a natureza. Enquanto Hobbes aposta na autodisci-plina do soberano, Maquiavel pretende civilizar a natureza antagônica do ser humano dentro do campo de forças da república. A modernidade de Maquiavel nos compele a desistir de qualquer esperança de uma superação política do confl ito social. Evidentemente, não só o homem – mas também a república – é condenado a viver arriscadamente:

Digo que os que censuram as dissensões contínuas dos grandes e do povo parecem desaprovar as próprias causas que conservaram a liberdade de Roma, e que eles prestam mais atenção aos gritos e aos rumores que essas dissensões faziam nascer, do que aos efeitos salutares que produziam. Essa gente não quer notar que existem em cada governo duas fontes de oposição: os interesses do povo e os interesses dos grandes; que todas as leis que se fazem a favor da liberdade nascem dessa desunião. (Discorsi I, 4).

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BERLIN, Isaiah. Four essays on liberty. Oxford, 1969.

CASSIRER, Ernst. The myth of the state. Londres: New Haven, 1966. CONSTANT, Benjamin. De la liberté des Anciens compare à celle des

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STRAUSS, Leo. Thoughts on Machiavelli. Glencoel: The Free Press, 1958.

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Resumo

Com seu pessimismo antropológico, Maquiavel e Hobbes são considerados pensadores políticos modernos par

ex-cellence. Malgrado essa premissa cética da política, ambos

oferecem orientações políticas opostas. Maquiavel defende uma ordem republicana, que aposta na participação dos cidadãos e que se aproveita de forma produtiva do confl i-to social. O Leviatã, de Hobbes, por sua vez, dispensa o conceito clássico do cidadão; localiza a liberdade privada no silêncio das leis e alimenta a esperança da unidade do corpo político. Ao contrário, em Maquiavel, a participação e o confl ito só podem ser compreendidos como patologias do político.

Abstract

With their anthropological pessimism, Maquiavelli and Hobbes are considered modern political thinkers par

excellence. Despite this sceptical premise about politics,

both offer opposing political orientations. Maquiavelli defends a republican order which encourages citizens‘ participation and views social confl ict with positive eyes. Hobbes‘ Leviathan, on the other hand, puts aside the classic concept of citizenship. He considers private liberty only exists when not curbed by laws, and puts his hopes on the unity of the political body. Contrary to Machiavelli, participation and confl ict for him are considered political pathologies.

Palavras-chave: antropologia; repúbli-ca; liberdade; participação; Antiguidade.

Keywords: Anthropology, republic, freedom, participation, Antiquity.

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política

1

Maria Tereza Aina Sadek

Graduada em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); mestre em Ciência Política pela mesma instituição; doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Fez pós-doutorado na Universidade da Califórnia e na Universidade de Londres. É professora de pós-graduação na USP, diretora de pesquisas do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ) e professora em Escolas da Magistratura, do Ministério Público e da Defensoria Pública. Possui livros e artigos sobre teoria política, poder judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, sistema de justiça e acesso à justiça. Endereço postal: Rua Maranhão, 251, apto. 21. CEP: 01240-001, São Paulo–SP. Endereço eletrônico: tesadek@usp.br

Ler, reler, voltar a ler as obras p olíticas de Maquiavel, especialmente O Príncipe, é um desafi o. Um desafi o porque o caminho é tortuoso, repleto de armadilhas. Escapar de ciladas é recompensador: equivale à possibilidade de ingressar no mundo da política. Não o mundo do dever ser; não o mundo de verdades absolutas; não um mundo de perfeições e boas intenções; mas um universo repleto de incertezas.

Com efeito, não é tarefa tranquila defrontar-se com confl i-tos, crises, violência, interesses, instabilidade. Tampouco é banal

1 Retomo aqui muitas das ideias desenvolvidas em meu livro Maquiavel: a Política

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assumir que o poder sempre esteve, está e estará em toda parte. Mais grave ainda é admitir que o poder seja multifacetado; ao mesmo tempo, visível e invisível, destruidor e também fi ador da convivência entre os homens. En-fi m, é-se levado a aceitar que o poder é um fato absolutamente necessário, irrevogável, sendo, pois, aniquilados sonhos de suprimi-lo, ou a possibilidade de uma sociedade absolutamente harmoniosa, sem poder.

Revelar o que está oculto; discorrer sobre o que não se ousa enunciar; desvendar artimanhas; questionar supostos vistos como verdadeiros; des-mistifi car preceitos; interpelar valores tradicionais; antepor-se a argumentos de autoridade – eis os propósitos, nem sempre explícitos, de Maquiavel.

Esse conjunto de traços impõe a referência a Maquiavel para muito além de seu tempo. Suas refl exões não exprimem apenas a realidade do século XVI; ao contrário, são ensinamentos que embasam a análise políti-ca. Maquiavel torna-se imprescindível, indutor do realismo na análise da realidade política, na consideração da política tal como ela é.

Este artigo propõe apresentar uma contribuição para a leitura de Maquiavel – analista político –, destacando seus supostos, como escapar de algumas das muitas encruzilhadas e salientar variáveis cruciais da realidade e da análise política. Antes, porém, uma rápida nota sobre a vida de Maquia-vel, para contextualizar seus achados, ainda que as lições maquiavelianas ultrapassem barreiras geográfi cas e de tempo.

MAQUIAVEL: NOTA BIOGRÁFICA

Nicolau Maquiavel nasceu em Florença, na segunda metade do século XV (1469). A península itálica encontrava-se, então, inteiramente fragmentada, marcada por confl itos, instabilidade política, e extremamente vulnerável às invasões de estrangeiros. Apesar da agitação política, a vida cultural e a atividade econômica eram bastante expressivas. O fl orescimento das artes e das letras, ao lado do desenvolvimento do comércio, dos bancos e das indústrias, propiciava um esplendor inigualável à região. Um número notável de artistas e literatos compunha esse cenário. Dentre eles, bastaria citar Leonardo da Vinci, Botticelli, Rafael, Michelangelo.

Maquiavel recebeu uma educação clássica; com apenas doze anos, já redigia no melhor estilo clássico e dominava a arte da retórica greco-ro-mana. Cresceu durante o poderio dos Médici, tendo assistido à expulsão dessa família devido à invasão francesa e à proclamação da República sob a liderança de Savonarola – esse monge permaneceu no poder por quatro anos, até ser deposto e queimado vivo.

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Com a queda de Savonarola, Maquiavel, com 29 anos, conseguiu um cargo no governo, como Secretário da Segunda Chancelaria. Em tal posição, foi encarregado de missões diplomáticas na península e fora dela. Nessa oportunidade, teve contato com importantes lideranças europeias e locais – aproximou-se de César Bórgia, duque de Valentino, fi lho do Papa Alexandre VI.

Essa fase de intensa atividade, contudo, não foi duradoura. Devido a uma nova mudança política, Maquiavel foi afastado do governo, preso, torturado e, por fi m, exilado. Proibido de abandonar o território fl orentino e de ter acesso a qualquer prédio público, passou a viver na área rural. Em 1513, foi considerado suspeito e acusado de ter participado de fracassada conspiração contra o governo dos Médici. Além de obrigado a pagar uma pesada multa, foi novamente torturado – desta vez, também condenado à prisão. Naquele momento, os Médici viviam sua melhor fase: um deles se tornou chefe da Igreja católica, sob o nome de Papa Leão X.

Graças à intervenção de seu amigo Francesco Vettori, embaixador em Roma e ligado aos Médici, Maquiavel conseguiu a libertação, mas não o retorno à vida pública. Exilado em sua própria terra e impedido de exercer sua profi ssão, passou a viver na propriedade que havia herdado de seu pai e seus avós, em San Casciano. Foi nesse período que produziu a maior parte de suas obras.

Nunca desistiu, entretanto, de voltar às funções públicas. Chegou, inclusive, a acreditar que o seu O Príncipe poderia abrir as portas para tal seu retorno. Seus esforços, porém, não foram bem-sucedidos; só em 1520 conseguiu um emprego, não em funções políticas, como tanto almejava, mas como historiador. Foi, então, encarregado pela Universidade de Florença, presidida pelo cardeal Júlio de Médici, de redigir anais e crônicas sobre a cidade. Sua obra Histórias fl orentinas resultou dessa tarefa.

A vida política de Florença sofreu nova mudança com a morte de Lourenço II. A queda dos Médici e a restauração da República propiciaram condições para Maquiavel retornar à atividade pública. Suas funções, contudo, se restringiram a missões diplomáticas de menor importância, muito distintas daquelas que exercera antes da prisão. Não permaneceu, entretanto, no posto por muito tempo. Os republicanos julgaram que, porque havia trabalhado como historiador para os Médici, teria ligações com os governantes depostos.

Afastado, uma vez mais, da vida pública, dedicou-se exclusivamente às atividades de escritor. Frustrado, faleceu aos 58 anos, em 22 de junho de 1527.

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NOVOS SUPOSTOS E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Na construção de sua interpretação, Maquiavel rejeita a tradição idea-lista de Platão, Aristóteles e São Tomás de Aquino. Distancia-se igualmente de seus contemporâneos, elegendo a realidade concreta como seu ponto tanto de partida quanto de chegada. Busca os fundamentos de suas análises em historiadores antigos, como Tácito, Políbio, Tucídedes e Tito Lívio.

A verdade efetiva das coisas – verittà effettuale – constitui o princípio máximo para a análise da realidade. Nesse sentido, há uma substituição ra-dical dos preceitos que orientavam a fi losofi a anteriormente. O domínio do

dever ser é subjugado pelo império do ser. Maquiavel sustenta existir uma

radical diferença entre a aparência e a essência, entre aquilo que os homens, especialmente os governantes, dizem e o que de fato fazem. Essa oposição também se refl ete no contraste entre o ideal e o real; entre a imaginação e a realidade; entre a ideologia e o mundo das relações concretas.

As profundas mudanças tanto nos diagnósticos quanto nas terapias referentes ao universo das relações políticas constituem as consequências mais signifi cativas dessas orientações. Há claramente um questionamento das explicações convencionais, sejam elas de autoria dos considerados “sá-bios” ou provenientes do senso comum. Assim, Maquiavel estabelece como princípio para uma análise realista a desconfi ança de respostas fáceis ou de dogmas. Em decorrência, argumenta, torna-se imperioso buscar a essência dos fatos, ainda que essa busca provoque a ira ou a indignação por parte dos poderosos ou do saber dominante.

Maquiavel tem consciência da revolução decorrente de suas opções. De fato, “enveredando por um caminho ainda não trilhado”1, suas ideias

provocam uma reinterpretação do poder, das relações entre dominados e dominantes, da constituição do Estado. Ele observa que as relações de poder resultam de feixes de forças, provenientes de ações concretas dos homens em sociedade, salientando que nem todas as suas facetas têm origem na racionalidade e são reconhecíveis de imediato.

A crença de que nada é natural e de que nada é permanente compõe os pilares da análise. Esses fundamentos sustentam a questão central de sua proposta: descobrir como poderia ser resolvido o ciclo inevitável de estabilidade e de caos.

Nesse sentido, a ordem se transforma em uma possibilidade – não é natural, nem eterna, nem fruto do acaso e menos ainda a materialização de

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uma vontade extraterrena ou divina. A ordem resulta da atividade política, de ações deliberadas, é uma construção humana.

A política passa, pois, a ser uma atividade de primeira grandeza. A vida em sociedade, o convívio entre os homens, depende da atividade política. O homem, devido às suas possibilidades de agir e de optar entre alternativas, transforma-se em sujeito da história. Deixa de ser uma mario-nete que se movimenta de acordo com vontades estranhas a ele, reagindo a imposições que não consegue controlar. Esse sujeito não é, contudo, um senhor absoluto, dotado de uma vontade que tudo pode. A realidade impõe limites. A política encontra restrições determinadas pela realidade. Assim, Maquiavel rejeita simultaneamente tanto a visão baseada na predestinação quanto o voluntarismo.

NATUREZA HUMANA E HISTÓRIA

Guiado pela busca da “verdade efetiva”, Maquiavel faz uma leitura inovadora da história. A partir da análise das diferentes formas de manifes-tação do poder, conclui que são permanentes alguns fatores associados à história e à natureza humana.

Seu diálogo com os textos da Antiguidade Clássica e sua experiência como homem público levam-no a sustentar que, por toda parte, e em todos os tempos, os homens apresentam os mesmos traços, a despeito de se tratar de diferentes sociedades ou de distintas épocas.

Com efeito, afi rma ele, em O Príncipe, capítulo XVII: “Dos homens, em realidade, pode-se dizer genericamente que eles são ingratos, volúveis, fementidos e dissimulados, fugidios quando há perigo, e cobiçosos” (MA-QUIAVEL, 2012, p. 81). Na mesma direção, escreve nos Discursos sobre

a primeira década de Tito Lívio, livro I, capítulo III:

Como demonstram todos os que escreveram sobre política, bem como numerosos exemplos históricos, é necessário que quem estabelece a forma de uma Estado, e promulga suas leis, parta do princípio de que todos os homens são maus, estando dispostos a agir com perversidade sempre que haja ocasião (Idem, 1994, p. 29).

Os atributos associados à natureza humana provocam confl itos e instabilidade. Desse ângulo, o que existe de natural é a desordem, já que o desentendimento entre os homens resulta de sua própria natureza.

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Por outro lado, a constância dessas qualidades negativas transforma a história em preciosa fonte de ensinamentos. Em consequência, o estudo do passado não é entendido como mero exercício de erudição, mas visto como um recurso valioso à compreensão de causas e à análise de soluções para enfrentar a instabilidade. Maquiavel extrai do exame do suceder de fatos os fundamentos de sua visão da história: um movimento no qual haveria uma repetição cíclica dos acontecimentos, com a alternância de situações de ordem e de situações de desordem.

As repetições cíclicas provêm do fato de não haver meios absolutos ou defi nitivos para “domesticar” a natureza humana. Situações de ordem ou de estabilidade são sucedidas por situações de desordem ou de instabili-dade. As variações estão inteiramente contidas nas possibilidades de acerto decorrentes da atividade política. Em outras palavras, um tempo mais longo de estabilidade depende de escolhas políticas adequadas; escolhas erradas geram instabilidade. Nesse sentido, a análise da história contribui para a construção de diagnósticos e de soluções.

Maquiavel escreveu nos Discursos, livro I, capítulo XXXIX:

Quem estudar a história contemporânea e da antiguidade verá que os mesmos desejos e as mesmas paixões reinaram e reinam ainda em to-dos os governos, em toto-dos os povos. Por isto é fácil, para quem estuda com profundidade os acontecimentos pretéritos, prever o que o futuro reserva a cada Estado, propondo os remédios já utilizados pelos antigos ou, caso isto não seja possível, imaginando novos remédios, baseados na semelhança dos acontecimentos (1994, p. 129).

PODER POLÍTICO

O poder político tem, pois, para Maquiavel, uma origem mundana; nasce das próprias características da natureza humana. Em sua concepção, a atividade política se reveste de uma qualidade de primeira grandeza: trata-se da possibilidade de enfrentar o confl ito, de estabelecer a ordem, de garantir estabilidade.

Para Maquiavel, o poder político não é artifi cial, mas uma característica básica, uma virtualidade presente em todo e qualquer agrupamento humano. Ignorar a onipresença do poder redunda em engano, em uma ilusão perigosa, uma vez que impede o conhecimento da realidade e, em consequência, a possibilidade de se buscar soluções para enfrentar a desordem resultante dos traços defi nidores da natureza humana.

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Aos traços negativos presentes em todos os homens e em todos os lugares, Maquiavel acrescenta um importante fator responsável pela instabili-dade: a presença, inevitável, em todas as sociedades, de duas forças opostas: os grandes e o povo. Afi rma, em O Príncipe, capítulo IX: “(...) em qualquer cidade se encontram estas duas disposições contrárias, as quais decorrem de que o povo não deseja ser comandado nem oprimido pelos grandes e de que estes desejam exatamente o inverso” (2012, p. 47). A mesma oposição entre as duas forças está nos Discursos, no capítulo IV: “(...) há em todos os governos duas fontes de oposição: os interesses do povo e os da classe aristocrática” (1994, p. 31).

Essa divisão é de natureza social. O confronto entre os dois grupos não encontra solução na força, já que um deles quer dominar e o outro não quer ser dominado. Se todos quisessem o domínio, o mais forte venceria e se imporia. Porém, Maquiavel sublinha que a maioria não quer ser domi-nada. Esse choque tem alto potencial para provocar a instabilidade. Daí a necessidade imperiosa da política, para que se encontre uma alternativa com capacidade de lidar com a correlação de forças presente em um determinado momento, em uma dada sociedade.

Ademais, infere-se da existência dos dois grupos que a sociedade não é homogênea; os homens não são todos iguais, ainda que todos sejam marcados pelas mesmas características impressas pela natureza humana. As divisões marcam todas as sociedades. A origem das diferenças pode ser diversa: religiosa, social, econômica, militar etc. A despeito da base que dá origem à diferença entre os dois grupos, dela decorrem a cisão política e, consequentemente, a instabilidade.

O problema político, por excelência, será, pois, encontrar mecanismos que imponham a estabilidade das relações sociais e sustentem a correlação de forças.

Maquiavel extrai de suas concepções a respeito da natureza huma-na, da história, do confronto entre os que querem dominar e os que não querem ser dominados os parâmetros que indicarão as alternativas vividas pelas sociedades: a anarquia ou a desordem; o Principado; e a República. A anarquia resulta da total ausência de soluções; signifi ca deixar a natureza humana e o confl ito se manifestarem livremente, sem nenhum tipo de lei ou de instituição com capacidade de estabelecer regras de convivência e de cercear abusos. Quanto à escolha entre Principado e República, não se trata de mero ato de vontade ou de considerações de natureza abstrata, mas da opção pela alternativa condizente com a situação concreta. Não cabe, pois, a discussão sobre o Estado ideal.

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Um Principado, afi rma Maquiavel, é necessário quando a nação se encontra ameaçada de deterioração, quando a corrupção se alastra, quando a instabilidade impede o convívio social. Nessa situação, é indispensável um governo forte, que crie e utilize seus recursos de poder para inibir a livre manifestação das forças desagregadoras e centrífugas. Já a opção pela República só se torna possível quando reina a estabilidade no jogo de forças que compõem a sociedade.

O Príncipe, na concepção do pensador fl orentino, não é um ditador. Como dirigente máximo de um principado, é, mais propriamente, um fundador do Estado, um agente de transição, essencial em uma fase em que a nação se encontra ameaçada de decomposição. Por essa razão, quando a sociedade já encontrou formas de equilíbrio, a estabilidade permitiu a construção de instituições, a República se transforma em uma opção. Nesse regime – que, por vezes, Maquiavel chama de liberdade –, o povo é virtuoso, as instituições são estáveis e contemplam a dinâmica das relações sociais.

A República se caracteriza por possuir um grau signifi cativo de institucionalização das relações sociais. A institucionalização não implica a inibição ou o abafamento dos confl itos, mas a sua manifestação por meio de canais apropriados.

Maquiavel, diferentemente de seus contemporâneos, percebe os confl itos como fonte de vigor, sinal de uma cidadania ativa – portanto, são até mesmo desejáveis. Escreveu no capítulo IV dos Discursos:

Os que criticam as contínuas dissensões entre os aristocratas e o povo parecem desaprovar justamente as causas que asseguraram (...) a liberdade de Roma, prestando mais atenção aos gritos e rumores provocados por tais dissensões do que aos seus efeitos salutares (1994, p. 31).

A FORÇA E A LEI

A “verdade efetiva” indica que o poder funda-se basicamente na força. Essa é a sua essência. Na aparência, o poder pode se manifestar com roupagens douradas, episcopais, cavalheirescas, com ou sem espada. Com essa asserção, Maquiavel se contrapõe frontalmente ao saber dominante, segundo o qual haveria uma história regulada pela providência ou, ainda, um suceder impulsionado pelo acaso. Ao considerar a força como elemento integrante de todo e qualquer domínio político, contesta a crença de gover-nantes ungidos ao poder por direito divino.

Referências

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