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A PLANTA MESTRA: o daime como sujeito de conhecimento

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Academic year: 2021

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CURSO DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

FELIPE BOIN BOUTIN

A PLANTA MESTRA:

o daime como sujeito de conhecimento

Florianópolis

2016

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A PLANTA MESTRA:

o daime como sujeito de conhecimento

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Federal de Santa Catarina como requisito para obtenção do grau de Bacharel em Ciências Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Amurabi Pereira de Oliveira.

Florianópolis

2016

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Boutin, Felipe Boin

A planta mestra: o daime como sujeito de conhecimento / Felipe Boin Boutin ; orientador, Amurabi Pereira de

Oliveira - Florianópolis, SC, 2016. 78 p.

Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) -Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de

Filosofia e Ciências Humanas. Graduação em Ciências Sociais. Inclui referências

1. Ciências Sociais. 2. Santo Daime. 3. Ayahuasca. 4. Epistemologia. I. Pereira de Oliveira, Amurabi. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Graduação em Ciências Sociais. III. Título.

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Gostaria de agradecer, primeiramente, à minha família, que ofereceu todo o suporte financeiro e emocional necessários para a realização deste projeto, bem como de toda a graduação. Obrigado, Eliana, Jean Pierre e Lucas, por me ajudarem muitas vezes, até mesmo sem saberem.

Agradeço também à minha companheira, Bárbara, que me apoiou durante todo o processo de realização desse projeto, sendo sempre paciente e me fazendo sorrir nos momentos de tensão.

Agradeço ao professor Amurabi Oliveira, grande orientador e amigo. Sou grato por todas as aulas e conversas informais em que pude aprender algo. Sinto-me privilegiado por ser seu orientando e poder compartilhar as minhas ideias com você.

Agradeço ao professor Alberto Groisman e ao doutorando Carlos Eduardo Bao, por terem aceitado participar da banca de defesa do TCC e por trazerem ótimas e valorosas sugestões ao trabalho.

Gostaria de agradecer também aos professores Gabriel Coutinho Barbosa, Márnio Teixeira-Pinto e Jean Castro da Costa, pelas constantes euforias intelectuais que tive o prazer de sentir em suas aulas.

Aos amigos e amigas que caminharam junto comigo durante a graduação, Artur, Beatriz, Heloísa, Larissa, Luiz e Murilo: obrigado por contribuírem para o meu desenvolvimento acadêmico e, principalmente, como pessoa. Sem vocês a faculdade teria sido bem menos divertida.

Agradeço a comunidade do Céu do Patriarca São José por ter permitido a realização dessa pesquisa. A todos os meus amigos do Santo Daime que contribuíram para a realização desse trabalho, obrigado pela ajuda. Sem vocês esse trabalho não seria possível.

Por fim, agradeço à Universidade Federal de Santa Catarina pela oportunidade de ter participado do PIBIC durante a graduação e à CAPES pela bolsa concedida. Sem dúvida participar desse programa foi essencial para o meu desenvolvimento como acadêmico.

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O que significa conhecer. – Não rir, não lamentar nem detestar, mas compreender!

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Procurei investigar nesse trabalho como ocorrem os processos de produção e transmissão dos conhecimentos do daime, uma ressignificação religiosa da bebida indígena de nome ayahuasca. Essa bebida possui caráter psicoativo e é utilizada nas cerimônias realizadas dentro do Santo Daime, movimento religioso fundado em 1930. Partindo do pressuposto que o daime é um sujeito de saber, indago que conhecimento seria esse que a bebida transmite e como ele é transmitido. De forma a responder essas perguntas, investigo diferentes tipos de conhecimento e adentro no debate epistemológico sobre considerar o conhecimento científico como o único modelo válido. Em contraposição a esse modelo epistemológico e como uma alternativa ao mesmo, apresento a teoria do perspectivismo ameríndio, que aborda as lógicas de inteligibilidade xamânicas, cujos critérios corroboram com o pressuposto dessa bebida ser um sujeito de saber. Metodologicamente, utilizei a pesquisa bibliográfica para explorar o debate epistemológico necessário para o desenvolvimento do trabalho. A partir da consideração de que não é possível conceber a possibilidade de uma epistemologia descolada de uma ontologia, apresento a cosmologia do Santo Daime, expondo a literatura etnográfica disponível sobre a religião. Almejou-se desenvolver uma experiência de pensamento que toma os conceitos nativos como categorias de pensamento, ou seja, utilizar os conceitos daimistas para compreender a concepção de conhecimento dos mesmos, considerando que essa está atrelada a uma compreensão específica de mundo. Para isso, foi realizada uma etnografia no Céu do Patriarca São José, comunidade do Santo Daime que se localiza na cidade de Florianópolis. Essa pesquisa ocorreu entre Junho e Outubro do ano de 2016. Também foram realizadas entrevistas semiestruturadas com alguns nativos dessa mesma comunidade. No que tange os saberes que o daime trás, concluímos que esses estão associados ao chamado autoconhecimento e a uma reflexão que tem como objetivo a harmonia tanto das relações sociais como das espirituais. Considero que classificar o conhecimento transmitido pelo daime com base em algumas tipologias pré-determinadas parte de uma visão específica de mundo que é pautada por hierarquizações, já que estamos tratando de concepções que não se pautam pelos mesmos critérios das do conhecimento científico. Assim, a avaliação e validação desses conhecimentos foram buscadas dentro da própria experiência com essa bebida. Portanto, por estarem ligados à experiência com o daime, para que sejam estudados, esses conhecimentos devem ser experienciados.

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In the present work, we investigated how the production and transmission process of the daime, a religious ressignification of the indigenous drink called ayahuasca, occur. This drink has a psychoactive character and it’s used in ceremonies that happen within Santo Daime, a religious movement founded in 1930. Assuming that the daime is a source of knowledge, we questioned what kind of knowledge would it be and how it’s transmitted. To answer those questions, we investigated different kinds of knowledge and got inside the epistemological debate about considering the scientific knowledge as the only valid model. Questioning this epistemological model and as a possible alternative to it, we presented the theory of the amerindian perspectivism, that discusses the logics of the shamanism intelligibility, which criterias corroborate with the assumption that this drink can be a form of knowledge. In our methodology, we did a bibliographical research to explore the epistemological debate necessary to develop this work. Following the idea that is not possible to conceive the possibility of an epistemology detached from an ontology, we presented the cosmology of Santo Daime, exposing the ethnographic literature available about this religion. We looked for developing an experimental thought that uses native concepts as objects, that is, using the concepts of the people within Santo Daime to understand their the conception of knowledge, considering that it’s connected to an specific comprehension of the world. For that, we did an ethnographic research at Céu do Patriarca São José, a Santo Daime community located in the city of Florianópolis. This research occurred between June and October of 2016. Semi structured interviews with the natives from the same community were also done. When the subject is the knowledge that comes from the daime, we concluded that those are associated to self-knowledge and a reflection that searches for harmony of the social relations as well as the spiritual ones. We considered that classifying the knowledge transmitted by the daime using predetermined typologies follows a specific conception of the world that has its base on hierarchizations, considering that we are dealing with concepts that don’t follow the same criteria as the scientific knowledge. That being said, the evaluation and validation of this knowledge was searched within the experience with this drink, which lead to a limit of the research: this knowledge is connected to the experience with the daime, which means that, to be studied, it has to be experienced.

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Figura 2 - Igreja do Céu do Patriarca São José e Praça da Estrela... 52 Figura 3 - Decoração da igreja do Céu do Patriarca São José no trabalho de São João... 55

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1 CONHECIMENTO, MODERNIDADE E XAMANISMO... 17

1.1 TIPOLOGIAS DO CONHECIMENTO... 17

1.2 A HEGEMONIA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO... 19

1.2.1 A razão cosmopolita – um novo modelo de racionalidade... 22

1.3 O PERSPECTIVISMO AMERINDIO E A INTELIGIBILIDADE XAMÂNICA... 28

2 SANTO DAIME... 34

2.1 ORIGENS HISTÓRICAS... 34

2.1.1 A diáspora do Santo Daime e os movimentos neo-xamãnicos... 37

2.1.2 Santo Daime – um balanço bibliográfico...39

2.2 A COSMOLOGIA DAIMISTA... 42

2.2.1 Santo Daime e a inteligibilidade xamânica...44

3 COMUNIDADE CÉU DO PATRIARCA SÃO JOSÉ... 48

3.1 DADOS ETNOGRÁFICOS... 48

3.1.1 Os trabalhos do Santo Daime... 50

3.2 3.2 O DAIME COMO SUJEITO DE SABER... 56

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 71

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INTRODUÇÃO

O campo das Ciências Sociais vem passando por uma forte crítica relacionada à existência de um exclusivismo epistemológico da ciência moderna e diversos autores como, por exemplo, LANDER (2005) e SANTOS (2008) vêm desenvolvendo debates pautados sobre esse paradigma epistemológico que separa absolutamente o conhecimento1 científico,

marcado por concepções de validade e rigor até então inquestionáveis, e outras formas de conhecimento. Nesse projeto, pretendemos explorar uma fonte de conhecimento singular, como assim afirmado pelas tradições indígenas e religiões neo-xamânicas: a ayahuasca.

A ayahuasca é uma bebida de origem indígena preparada a partir da infusão do cipó Banisteriopsis caapi e da folha Psychotria viridis2. Como aponta Albuquerque (2014), ela é conhecida por uma diversidade de nomes, dentre os quais: natema, yagé, nepe, kahi, caapi, nixi pae, shori, kamarampi, cipó, além de daime, vegetal entre outros.

Etimologicamente, o termo ayahuasca é originário do dialeto andino quéchua e é formado pelas expressões “aya” que quer dizer “pessoa morta, alma, espírito” e “huasca” que significa “corda, liana, cipó”. Poderíamos traduzir a palavra ayahuasca como corda dos espíritos, cipó das almas, entre outras possíveis variações. Muitos, ainda, a denominam “vinho das almas” devido ao caráter fermentado da bebida (LUNA, 2002).

A ayahuasca é uma das mais utilizadas bebidas psicoativas3, isto é, que ativam a psique, existentes na região do Alto da Bacia Amazônica. Ela é utilizada tanto por grupos indígenas quanto pela população mestiça ou cabocla da Amazônia, bem como por diversos sujeitos dos centros urbanos, com diferentes finalidades: práticas, medicinais, religiosas, divinatórias, pedagógicas, dentre outras (LABATE, 2002).

Do ponto de vista científico, um conjunto de pesquisas tem vindo a demonstrar os possíveis efeitos terapêuticos da ayahuasca em uma diversidade de situações. Há especulação de que esta observação possa reverter quadros vícios, depressão, ansiedade fóbica. Existem ainda relatos de cura ou melhora em alguns casos de câncer.

De acordo com McKenna (2002) “as origens do uso da ayahuasca estão perdidas por entre as névoas da pré-história” (p. 174). Seu uso remonta a centenas ou milhares de anos,

                                                                                                                         

1 Faremos o uso das palavras “conhecimento” e “saber” como sinônimos durante o desenvolvimento do trabalho. 2 Este é o modo “clássico” de se preparar ayahuasca. Existem, contudo, outras espécies que podem ser

acrescentadas, além de outra forma de preparo que não prevê o cozimento das plantas. Para maiores informações ver Sáez (2014) e Luna (2005).

3 Luna (2005) oferece as informações farmacológicas referentes às propriedades contidas tanto no cipó como na

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não sendo possível afirmar, com precisão, onde teria ocorrido o início desta prática, considerando os grupos que as utilizavam não deixaram registros escritos. De todo modo, de acordo com Luna (2005, p. 334) “não há dúvida de que o consumo da ayahuasca, originariamente, se situa na Bacia do Alto Amazonas e embora documentada a cerca de duzentos anos, seu uso é provavelmente milenar”.

O encontro dos rituais ayahuasqueiros dos seringueiros e dos indígenas com os migrantes brasileiros, realizados principalmente como rituais curativos, levou a diferentes formas de uso da ayahuasca. Labate (2002) aponta que apesar de haver uma tradição do consumo da ayahuasca por grupos indígenas e vegetalistas em diversos países da América do Sul como, por exemplo, Colômbia, Bolívia, Peru, Venezuela e Equador, é somente no Brasil que desenvolveram-se religiões não-indígenas que utilizam a bebida dentro de suas práticas. Ao lado do uso recreativo e medicinal dos seringueiros e indígenas, um uso mais espiritual e religioso foi adotado na fronteira do Acre e da Bolívia e, posteriormente, na cidade de Rio Branco. Nessas áreas originaram-se três diferentes religiões que usam ayahuasca: o Santo Daime, a União do Vegetal e a Barquinha.

Duas dessas vertentes religiosas destacaram-se nesse cenário, devido a sua expansão tanto nacional como internacionalmente: o Santo Daime e a União do Vegetal. Cemin (2002) aponta que ambas as denominações religiosas são oriundas do chamado “xamanismo ayahuasqueiro”, ou seja, “são parte da grande tradição de muitos índios da Amazônia de entrar em contato com o sagrado através da ayahuasca” (p. 347). Este trabalho de conclusão de curso volta-se para a religião do Santo Daime, tanto em função dos estudos anteriormente desenvolvidos sobre essa religião quanto pela minha inserção pessoal em seus rituais.

O Santo Daime4 foi fundado em 1930 pelo maranhense Raimundo Irineu Serra, o Mestre Irineu, em Rio Branco, no estado do Acre. Na década de 70, após a morte do Mestre Irineu, Sebastião Mota Melo, também conhecido como Padrinho Sebastião, funda o Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS), dando início assim à expansão do Santo Daime.

O Santo Daime é considerado como um movimento religioso possuidor de um caráter híbrido já que ao mesmo tempo articula características de religiões cristãs, de matrizes africanas, de correntes espíritas, como também utiliza a ayahuasca dentro da sua própria

                                                                                                                         

4 O Santo Daime é considerado uma religião dentre os grupos que utilizam a ayahuasca. Apesar disso, quando

comparada a outras religiões mais expressivas, seu caráter religioso pode ser questionado, principalmente pelo fato de não possuir proselitismo, ou seja, não buscar converter pessoas ou grupos a aderirem às suas crenças.

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cosmologia. Nesse contexto religioso, ocorre uma ressignificação da milenar bebida indígena de nome ayahuasca e seus adeptos costumam chamar a própria bebida de “Santo Daime” ou apenas daime5. Esse novo nome indica também uma invocação do espírito da bebida (dai-me), a quem seus adeptos pedem para “dar” iluminação, luz, saúde (ALBUQUERQUE, 2011).

Como aponta Groisman (1999), por ser uma substância psicoativa, a utilização do daime foi investigada pelo Conselho Federal de Entorpecentes (Cofen). As investigações confirmaram e permitiram o uso religioso do daime e não apontaram fatores prejudiciais à saúde física ou psíquica daqueles que tomam essa bebida.

Por ser uma substância psicoativa, muitas vezes ela é classificada como “alucinógena”, deturbando seus efeitos e distorcendo a complexidade que envolve a sua utilização. Como aponta Groisman (1999), ser “alucinógeno” é ser veículo de um estado “alucinatório”, onde experienciam-se fantasias e ilusões. Dentro dessa visão, a experiência seria apenas um fuga da realidade, portanto, definir o daime como alucinógeno ou tóxico não nos ajuda a compreender a sua utilização, que envolve diversos componentes sóciosimbólicos corroborados pela aprovação coletiva.

Devido a isso, dentro da Antropologia é utilizada a palavra enteógeno para se referir à ayahuasca. Segundo MacRae (1992, p. 16) o termo enteógeno deriva do grego antigo entheos e representa o estado em que a pessoa se encontra quando um deus entrou em seu corpo. O enteógeno, nesse caso, aparece como algo que leva alguém a ter o divino dentro de si. Como Alverga (1998 apud Albuquerque 2012) aponta, um dos fundamentos essenciais do Santo Daime é, exatamente, o resgate crístico pela via enteógena, ou seja, a busca espiritual por meio da utilização das plantas sagradas, neste caso, pela ingestão do daime.

De acordo com Albuquerque (2012) toda religião tem uma tarefa essencialmente pedagógica e visa à transmissão de determinados conhecimentos. Em outras religiões essa função é representada pelos padres, pastores, sacerdotes ou pais de santo. Entretanto, as religiões ayahuasqueiras têm como professor uma planta ou uma bebida. Essas substâncias são investidas de uma função especial que é o fato de transformarem-se em um saber e elas próprias serem criadoras de saberes. Especificamente, é através da experiência proporcionada pela ingestão da bebida, da relação da bebida com aqueles que a ingerem, que esse conhecimento é desenvolvido.

Esse aspecto pedagógico atribuído à ayahuasca está relacionado à ideia de que uma “planta professora” é portadora de uma inteligência com a qual é possível obter

                                                                                                                         

5 Durante todo o trabalho, iremos nos referir à religião como Santo Daime ou Daime. Se tratando da bebida, nos

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conhecimentos. Para Luna (2002, p. 183) ““algumas plantas teriam a faculdade de “ensinar” às pessoas que os procuram. A ayahuasca seria uma dessas plantas mestras, porta de entrada que permitiria um conhecimento cada vez maior do mundo natural e que por sua vez indicaria a presença e uso de outras plantas de poder””.

Metzner (2002) também aponta que a “educação pelas plantas”, como modalidade de prática educativa, difere dos processos de aprendizagem formais da modernidade. Sob um estado de expansão da consciência que resulta da ingestão da ayahuasca, o indivíduo que a utiliza entra em um estado de êxtase cuja sabedoria remete às lógicas da tradição xamânica. Groisman aponta o xamanismo como “um sistema complexo de conhecimento do mundo, cuja definição está submetida às diferentes manifestações que assume nos grupos em que aparece como sistema simbólico central” (GROISMAN, 1999, p. 40).

Dentre os diversos artigos, teses e dissertações que compõem o balanço bibliográfico referente ao uso da ayahuasca, diversos autores apontam que para os indígenas a ayahuasca “é a planta que dá o conhecimento, ela é a fonte do conhecimento necessário para se viver corretamente” (LUZ, 2009, p. 62). Labate e Araújo, no agradecimento de “O Uso Ritual da Ayahuasca” (2009)6, agradecem à ayahuasca e a exibem como uma fonte de conhecimento. Mas que conhecimento seria esse? O que querem dizer com conhecimento e, ainda, como esse conhecimento é transmitido?

A bibliografia sobre o tema é vasta, seja a respeito das religiões ayahuasqueiras7 ou sobre a utilização dessa bebida por povos da floresta (grupos indígenas, vegetalistas, entre outros). Interessa-nos aqui explorar o daime como uma fonte de conhecimento. Especificamente, nesse presente projeto, objetivamos compreender, a partir de categorias nativas dos daimistas, como ocorrem os processos de produção e transmissão dos conhecimentos do daime dentro das cerimônias do Santo Daime.

Como aponta Albuquerque (2012), a religião do Santo Daime pode ser analisada a partir do seu próprio conjunto de saberes, já que essa possui concepções e formas de disciplinamento específicas. Entretanto, a reflexão proposta no presente trabalho diz respeito somente aos conhecimentos produzidos e transmitidos pelo daime.

Assim, para atingir esse objetivo, procurei concentrar-me em alguns aspectos. Primeiramente, de forma a compreendermos o daime como uma possível fonte de

                                                                                                                         

6 Como apontam Labate e Araújo (2009) a organização desse livro surgiu a partir do Primeiro Congresso sogre o

Uso Ritual da Ayahuasca, cujo objetivo era estudar os usos rituais da ayahuasca em diferentes contextos que vão das cerimônias indígenas aos cultos urbanos.

7 Labate, Rose e Santos (2008) apresentam na obra “Religiões Ayahuasqueiras: um balanço bibliográfico” uma

revisão bibliográfica das produções referentes às religiões ayahuasqueiras até o ano de 2007. A obra apresenta tanto publicações nacionais como internacionais referentes ao tema.

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conhecimento, parto do pressuposto de que ele é uma “planta ensinadora” ou “planta mestra”, conceito proposto pelo antropólogo Luis Eduardo Luna (2002) em seus estudos sobre as práticas de usuários da ayahuasca na Amazônia peruana.

De acordo com Cemin (2002), o daime é a mesma ayahuasca secularmente utilizada como estimulante psicoativo, que opera, segundo nosso entendimento, acelerando e diversificando as potências imaginantes do ser humano, sua produção simbólica. Representa para os nativos do Santo Daime um meio de conhecimento insubstituível. Apesar desse apontamento, como veremos, os participantes do Santo Daime costumam diferenciar o daime da ayahuasca.

Portanto, o que pretendemos realizar nesse trabalho é um diálogo epistemológico, uma vez que estamos estudando uma bebida que é considerada pelos daimistas como uma planta professora, portadora de inteligência, através da qual é possível obter conhecimentos. É importante apontar que, quando tratamos de epistemologia, nos referimos a ela como uma teoria geral do conhecimento. Para isso, fundamentamo-nos no postulado de que o conhecimento é algo que pode ser estudado em sua natureza própria e podem ser levantadas questões em relação ao mesmo (JAPIASSU, 1991 apud MARTINS, THEÓPHILO, 2009). “O que é conhecimento?”, ou ainda, “existem tipos de conhecimento?” são questões que oferecem a possibilidade da realização desse trabalho.

Nesse cenário, de forma a pesquisarmos como ocorrem os processos de produção e transmissão do conhecimento do daime, apresentaremos no primeiro capítulo uma definição do que seria conhecimento bem como as suas tipificações. A partir daí, adentraremos na discussão epistemológica existente sobre considerar o modelo global de racionalidade científica – aos quais as sociedades ditas ocidentais estão vinculadas – como o único modelo de conhecimento admissível. Para isso, utilizaremos principalmente as abordagens de Boaventura de Sousa Santos (2002, 2008, 2009) e a teoria do perspectivismo ameríndio apresentada por Eduardo Viveiros de Castro (2015), que se apresenta como uma alternativa aos modelos epistemológicos existentes até então.

Segundo Langdon (1997 apud Labate 2000) as pesquisas antropológicas sobre a ayahuasca, bem como sobre as religiões ayahuasqueiras, iniciaram-se na década de 60, momento no qual os antropólogos também começaram a beber a ayahuasca. Goulart (2002) aponta que o tema que primeiro mobilizou o debate antropológico sobre essas religiões diz respeito à sua cosmologia. Como aponta Santos (2004) não é possível conceber a possibilidade de uma epistemologia descolada de uma ontologia, portanto, de forma a compreendermos no que se funda a concepção do daime ser uma fonte de conhecimento e

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explorarmos como ele é produzido e transmitido, devemos considerar em primeiro lugar a ontologia, a cosmologia daimista.

Tendo isso em vista, no segundo capítulo apresentaremos uma revisão da literatura etnográfica referente ao Santo Daime, de forma a fornecer um panorama sobre essa religião, apresentar suas origens, o perfil desse grupo e identificar as suas principais características. Analisaremos a forma como os daimistas pensam do que é feito o mundo e utilizaremos principalmente as obras de Labate (2002), Goulart (2002) e Groisman (1999) para delinearmos as principais categorias da cosmologia daimista.

Por fim, no último capítulo, apresentaremos uma etnografia sobre os rituais em que se utiliza o daime, realizada no Céu do Patriarca São José, comunidade do Santo Daime que se localiza na cidade de Florianópolis, em Santa Catarina. Em conjunto a isso, devido ao objeto de compreender como ocorrem os processos de produção e transmissão dos conhecimentos do daime a partir de categorias nativas dos daimistas, apresentaremos narrativas que resultam de cinco entrevistas semi-estruturadas realizadas com participantes do Santo Daime.

As perguntas da entrevista concentraram-se em traçar um perfil social dos participantes, entender a relação dos mesmos com o Santo Daime bem como com o daime, e compreender o que os daimistas consideram ter aprendido com o daime e a forma como esses saberes foram adquiridos. A utilização da entrevista proporciona a obtenção de explicações fornecidas pelos próprios nativos da comunidade investigada, permitindo obter o chamado “modelo nativo” a matéria-prima para o entendimento antropológico (OLIVEIRA, 2000).

Como aponta Labate (2000) no que diz respeito às pesquisas sobre as religiões ayahuasqueiras realizadas no Brasil, a maioria dos antropólogos possui um envolvimento direto e pessoal com os grupos estudados. Nesse presente trabalho, essa observação se mostra verdadeira, considerando que visito o Santo Daime desde 2013. O fato de eu possuir uma inserção prévia no grupo que pretendia pesquisar possibilitou um melhor acesso a esse universo, entretanto, essa inserção prévia levanta algumas questões centrais do fazer antropológico: qual a relação entre o trabalho produzido e o meu pertencimento pessoal?

Fazer parte do grupo que se pretende pesquisar pode ser positivo considerando que isso pode facilitar a compreensão de alguns aspectos do objeto estudado bem como dos dados coletados e das categorias utilizadas pelos daimistas. Por outro lado, o envolvimento prévio com o grupo, resulta também no risco de garantir a tão esperada neutralidade por parte tanto do pesquisador quanto das fontes de informações (SÁEZ, 2013). Sendo assim, procurei

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limitar o envolvimento bem como a experiência pessoal com o daime, mediando o meu papel como pesquisador e a minha posição de nativo em relação ao objeto de pesquisa.

Nas considerações finais apresentaremos os resultados de nossa pesquisa, articulando o debate epistemológico realizado no primeiro capítulo com a cosmologia do Santo Daime e com as narrativas das pessoas entrevistadas. Abordaremos também a dificuldade de realizar uma etnografia sobre um enteógeno, considerando um aspecto interessante apresentado por todos entrevistados: que o daime não pode ensinar nada sem que a bebida seja ingerida. Nos deparamos, portanto, com uma possível limitação: não é possível estudar sobre o daime ou compreender quais são os conhecimentos transmitidos pelo mesmo sem que a bebida seja ingerida (apesar de ser possível apreender práticas do grupo que utilizam-a). Como aponta Labate (2000) essa limitação é ainda maior devido ao fato de que tomar o daime afeta drasticamente a observação racional, uma vez que o sujeito não tem opção de entrar e sair da experiência conforme a sua vontade própria.

Segundo Labate (2000), utilizar enteógenos é uma experiência individual cuja intensidade e cujos efeitos só podem ser avaliados por quem participa dela e beber ayahuasca implica na perda do controle pessoa sobre a grade espaço temporal. Assim, considerando que a experiência proporcionada pelo daime é individual, foi necessário que realizássemos um processo de tradução. Esse processo é necessário levando em conta que estamos estudando o daime, que lida com estados alterados de consciências.

Como aponta Labate (2000), o processo de tradução é especialmente importante nesses casos, uma vez que na experiência proporcionada pelo daime o sensível tem tanto ou maior importância que o conhecimento racional. Como veremos, a experiência, bem como os conhecimentos proporcionados pelo daime, compreendem outras maneiras de entender as coisas a respeito do mundo. A tradução serve exatamente para tornar inteligível uma experiência que não é se pauta por uma racionalidade que está de acordo com o esquema de realidade e razão do racionalista/observador. Proporcionando, assim, um espaço de mediação e a possibilidade de um diálogo entre diferentes tipos e concepções de conhecimento.

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1 CONHECIMENTO, MODERNIDADE E XAMANISMO

De forma a realizar o diálogo epistemológico pretendido, trabalharemos neste capítulo com a noção de “conhecimento”. Para isso, definiremos o que se considera como conhecimento bem como as suas possíveis tipificações, como o científico, o religioso, entre outros. Em seguida, exploraremos a hegemonia do conhecimento científico, especificamente, trataremos da soberania epistêmica da ciência moderna que nega todas as outras formas de conhecimento que não se pautarem pelos seus princípios epistemológicos e regras metodológicas. A partir disso, procederemos com a ideia de que “conhecimento” não pode ser considerado como uma categoria universal.

Considerando a impossibilidade de se conceber uma epistemologia descolada de uma ontologia, abordaremos o perspectivismo ameríndio, uma concepção específica de como se produzir o conhecimento antropológico, bem como uma alternativa aos modelos epistemológicos existentes. A partir de uma epistemologia ameríndia, das lógicas de inteligibilidade xamânicas que possuem critérios específicos de inteligibilidade do real, exploraremos a possibilidade do daime ser uma fonte de conhecimento.

Com base nessas exposições, buscaremos criar um cenário de inteligibilidade mútua entre as experiências sociais possíveis e disponíveis, trabalhando com a possibilidade de um diálogo epistemológico entre o paradigma científico e outras formas ou compreensões de conhecimento. A partir desse panorama, pretendemos compreender o conhecimento do daime dentro dos próprios termos dos grupos que partilham desse conhecimento, tomando os conceitos nativos como categorias de pensamento e utilizando as suas ideias como conceitos, ou seja, sua episteme como forma de conhecimento.

1.1 TIPOLOGIAS DO CONHECIMENTO

Tendo em vista o pressuposto que pretendemos explorar – o daime como sujeito de saber – se faz necessário definirmos o que é conhecimento e quais são as suas tipificações. Dessa forma, fica estabelecido o aspecto de dúvida em relação a esse pressuposto, que pode – ou não – se mostrar verdadeiro. Se o daime possui conhecimento, que tipo de conhecimento é esse? O que esse conhecimento é capaz de nos trazer? Como ele se produz? Ele é relevante

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para as pessoas? Essa discussão colabora para definirmos, a partir da narrativa dos daimistas, se o conhecimento produzido e transmitido pelo daime se aproxima de alguma característica de conhecimento pré-definido ou, ainda, se o conhecimento do daime pode ser uma alternativa a essas tipificações.

De acordo com Cervo e Bervian (2002), podemos definir o conhecimento como um processo de reflexão crítica cujo objetivo é o desvelamento de um objeto. É o ato de adquirir informações e dados sobre um determinado assunto, é uma forma de representação da realidade que possibilita que o sujeito possa se situar e agir no mundo.

O conhecimento popular é uma das tipologias dessa categoria. Esse tipo de conhecimento é também conhecido como senso comum e sua maneira de conhecer se dá a partir de experiências casuais. Tem caráter sensitivo, ou seja, não é um conhecimento desenvolvido de forma sistemática ou a partir da aplicação de métodos. Ele se dá pelo costume, pelo hábito, características que não são plausíveis de mensuração ou comprovação e muitas vezes estão atreladas à subjetividade do sujeito que as experiência (CERVO, BERVIAN, idem).

Martins e Theóphilo (2009) apontam que o conhecimento religioso/teológico, por sua vez, está relacionado com a fé e a crença no divino, no sobrenatural. É um conhecimento que provém das revelações do mistério, por algo que é interpretado como mensagem ou manifestação divina e transmitido por tradição ou através de escritos sagrados. Esse conhecimento apoia-se em doutrinas, em dogmas que apresentam verdades indiscutíveis e infalíveis, criando assim um cenário onde não é necessário que existam evidências para comprovar a credibilidade desse corpo de crenças – que pode se transformar em religião.

Já o conhecimento mítico procura entender a realidade com base no sobrenatural e na tradição. Assim como os demais tipos de conhecimento, cria uma representação do real. Porém, nesse caso, faz uso da intuição para explicar as origens e a cosmologia de um grupo e atribui, através dessa mesma intuição, significado para as manifestações da natureza e para as tradições culturais. Por sua vez, baseado em uma objetividade operacional, em uma concepção de “saber fazer”, o conhecimento técnico exprime-se através da aplicação de outras formas de conhecimento na solução de problemas e transformação da realidade. Há, ainda, o conhecimento estético ou artístico, que se baseia em sentimentos, emoções, criatividade e intuição para conhecer e lançar possibilidades de interpretação do real (CERVO, BERVIAN, 2002).

De acordo com Fachin (2003) outro tipo de conhecimento seria o filosófico, que “conduz à reflexão crítica sobre os fenômenos e possibilita informações coerentes. Seu

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objetivo é o desenvolvimento funcional da mente, procurando educar o raciocínio” (p. 7). Esse tipo de conhecimento funda-se no uso da razão, entretanto, não recorre à experimentação, como no caso do conhecimento científico. Essa última tipologia do conhecimento se diferencia do conhecimento filosófico pelo fato de que as proposições ou hipóteses da ciência são confirmadas através da experimentação, e não pela razão como na tipologia anterior.

Há, ainda, dentro da filosofia, um objeto específico de investigação epistemológica: o autoconhecimento. De acordo com a definição socrática, o autoconhecimento seria o conhecimento de si. A finalidade desse conhecimento pode ser considerado como uma busca de natureza ética, algo moralmente valioso, de acordo com Nietzsche (2015). Esse conhecimento se distingue das outras epistemologias por ser imediato e não depender de evidências, considerando que o mesmo é pessoal. A ideia central aqui é que não há uma distinção epistemológica entre sujeito e objeto, já que um indivíduo estuda a si mesmo. A psicanálise, psicoterapia, meditação, entre outras práticas e estudos seriam as formas de acessar esse conhecimento.

O conhecimento científico, especificamente, necessita de uma abordagem mais aprofundada. Nosso objetivo aqui não é apresentar no que se baseia o conhecimento científico e como funcionam os seus métodos, mas sim evidenciar que a prática científica é considerada como o único saber conhecido, ou melhor, é o único saber considerado válido pela dita Modernidade. Apesar da existência dos diferentes tipos de conhecimento, eles ainda representam classificações eurocêntricas. São hierarquizados entre si. E a ciência se mostra como a única possibilidade explicativa do mundo.

1.2 A HEGEMONIA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

A categoria modernidade, de acordo com Lander (2005 apud SILVA, NOPES, BAO, 2015), possui quatro eixos articuladores: a visão universal da história associada à ideia de progresso, a partir da qual se constrói a classificação e hierarquização de todos os povos, continentes e experiências históricas; a naturalização, tanto das relações sociais como da “natureza humana” da sociedade liberal-capitalista; a naturalização ou ontologização das múltiplas separações próprias dessa sociedade; e a necessária superioridade dos

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conhecimentos que essa sociedade produz (ciência) em relação a todos os outros conhecimentos.

É devido a isso que o conhecimento científico, produzido pela modernidade apontada por Lander (2005) difere-se dos outros tipos de conhecimento. Há uma concepção de que é a única forma de conhecimento verdadeiro principalmente por não determinar apenas a maneira como os fatos devem ser observados, mas sim por determinar também uma nova visão do mundo e da vida. Essa nova visão pode ser reduzida, como aponta Santos (2009), a duas distinções fundamentais: entre o conhecimento científico e o conhecimento do senso comum; e entre a natureza e a pessoa humana. A ciência moderna é marcada pela concepção de que as evidencias que estão na base do conhecimento vulgar, imediato, são ilusórias e não devem ser consideradas como válidas.

O rigor do conhecimento científico afere-se pela severidade das medições, observações e experiências. É um conhecimento que “aspira à formulação de leis, à luz de regularidades observadas, com vista a compreender o comportamento futuro dos fenômenos” (SANTOS, 2009, p. 29). Esse conhecimento baseia-se na concepção que o resultado se produzirá independentemente de onde esses métodos forem realizados. Martins e Theóphilo (2009) consideram que o conhecimento científico resulta da investigação metódica e sistemática da realidade.

Ainda, de acordo com Lander (2005), a partir desses pressupostos e abstrações é criada uma suposta superioridade do Ocidente em relação ao Oriente que se manifestam também nas Ciências Sociais, onde diversas categorias e conceitos se convertem “não apenas em categorias universais para a análise de qualquer realidade, mas também em proposições normativas que definem o dever ser para todos os povos do planeta” (p. 34). É devido a isso que, nas Ciências Sociais, a produção de teoria – entendendo essas como modelos científicos que objetivam explicar, descrever e representar os fenômenos sociais – muitas vezes não consegue apresentar consensos teóricos suficientes em torno dos objetos da pesquisa social (RODRIGUES; NEVES; ANJOS; 2016).

Santos (2009) aponta que o modelo de racionalidade que preside a ciência moderna constituiu-se a partir da revolução científica no século XVI e, no século XIX, são criadas as condições para a emergência das Ciências Sociais, mas os paradigmas dessa ciência estavam condensados em um positivismo oitocentista que resultava em duas vertentes.

A primeira buscava aplicar na sociedade todos os princípios epistemológicos e metodológicos que presidiam o estudo das ciências naturais desde século XVI, atingindo dessa forma resultados universalmente válidos, estudando os fenômenos sociais como se

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fossem naturais e reduzindo os fatos sociais a dimensões externas observáveis e mensuráveis. Já a segunda vertente buscou reivindicar um estatuto metodológico e epistemológico próprio, argumentando que as ações humanos são subjetivas e, portanto, as Ciências Sociais sempre serão subjetivas, e não objetivas como as ciências naturais. Fator que resultou na necessidade de compreender os fenômenos sociais a partir das atitudes mentais e dos sentidos que os agentes conferem às suas ações.

A segunda vertente das ciências sociais apresentada por Santos (2009), apesar de possuir sinais de uma transição epistemológica, ainda mostra-se subsidiária do modelo de racionalidade das ciências naturais: partilha com este modelo a oposição entre natureza e ser humano. Desta, surgem outras distinções como natureza/cultura e ser humano/animal. No século XX houve diversas inovações teóricas na área das ciências naturais (principalmente no âmbito da física) que impactaram em todas as outras áreas, gerando assim uma profunda reflexão epistemológica sobre o conhecimento científico. Entretanto, ambas as concepções de Ciência Social pertencem ao paradigma da ciência moderna supracitado, ainda que a segunda vertente apresente alguns sinais de transição do paradigma cientifico. Desse cenário decorre grande parte das críticas pós-coloniais ao determinismo científico presente nas ciências sociais.

O diálogo epistemológico aqui pretendido pode ser melhor abrangido a partir do debate já existente sobre considerar ou não como uma categoria universal o que entendemos como conhecimento. Nesse cenário, de forma a pesquisarmos como ocorrem os processos de produção do conhecimento a partir do daime devemos, primeiramente,

“evitar tomar o que entendemos como conhecimento uma categoria universal, designando algo passível de ser genericamente produzido, possuído ou transmitido, sem prejuízo de variação nos conteúdos e nos regimes de sua produção, detenção ou transmissão” (CROOK, 2007 apud SOUZA, 2014, p. 196).

Cabe aqui apontarmos que esse conhecimento que o daime supostamente transmite pode se encaixar em uma das tipologias supracitadas, mas é importante que consideremos a possibilidade de “conhecimento” não ser uma categoria universal e buscarmos compreender o mesmo a partir das categorias dos nativos. A produção e validação do que se entende como conhecimento não só nas ciências sociais, mas na ciência de maneira geral, está localizada dentro dos centros hegemônicos de produção do saber. As reflexões de Boaventura de Sousa Santos (2008) evidenciam as relações desiguais que estão presentes na geopolítica moderna do conhecimento, que divide o mundo científico e as categorias de conhecimento em um Norte que oferece teorias e um Sul que as aplica.

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1.2.1 A razão cosmopolita – um novo modelo de racionalidade

A partir das concepções de Santos (2008), é possível falar em um “modelo global de racionalidade científica” aos quais as sociedades ditas ocidentais estão vinculadas. Um modelo totalitário na medida em que nega todas as formas de conhecimento que não se pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas. Esse modelo hegemônico do Norte global baseia-se em uma lógica específica, em uma epistemologia fundada a partir do entendimento de existência de um mundo objetivo e externo àqueles que o observam, portanto, um conhecimento capaz de ser igualmente observado por qualquer pessoa, apelando assim a uma totalidade que ignora as diferentes circunstâncias e compreensões de mundo a partir de diferentes grupos sociais.

Como aponta Santos (2008) a experiência social é mais ampla e variada do que a tradição científica conhece e considera importante. Esse modelo de racionalidade hegemônico separa assiduamente o conhecimento científico e não científico, desperdiçando assim uma riqueza social que não pode ser reconhecida pelas Ciências Sociais como as conhecemos hodiernamente. Há uma recusa do reconhecimento de outros conhecimentos como iguais.

“Para combater o desperdício da experiência (...) de pouco serve recorrer à ciência social tal como a conhecemos. No fim de contas, essa ciência é responsável por esconder ou desacreditar as alternativas. Para combater o desperdício da experiência social, não basta propor um outro tipo de ciência social. Mais do que isso, é necessário propor um modelo diferente de racionalidade” (SANTOS, 2008, p. 94).

Podemos compreender que a crítica de Santos (2008) se assenta na soberania epistêmica da ciência moderna. Para o autor, a experiência social no mundo é muito mais ampla e variada do que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e considera importante. De forma a combater o desperdício dessa experiência, de pouco serve recorrer às Ciências Sociais como a conhecemos, já que a própria forma com que é desenvolvida resulta no não reconhecimento ou, ainda, em uma descrença de possíveis alternativas epistemológicas.

Para haver significativas mudanças na estruturação dos conhecimentos é necessário que mudemos a razão que está vinculada tanto aos conhecimentos como ao modo como esses se estruturam. Portanto, “para combater o desperdício da experiência, não basta propor um diferente tipo de ciência social, é necessário propor um modelo diferente de racionalidade, uma razão cosmopolita” (SANTOS, 2002, p. 238).

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Baseado nos apontamentos supracitados, Santos (2002) assiná-la que a compreensão de mundo excede em muito a compreensão ocidental de mundo e que a concepção ocidental de racionalidade “contrai o presente” devido a uma peculiar concepção de que há uma lógica que governa tanto o comportamento do todo como o comportamento de cada uma de suas partes. Esse modelo ocidental de racionalidade acaba se apresentando como exclusivo e completo e, assim, acaba por “contrair” os diferentes modelos de racionalidade, as diferentes experiências sociais presentes no mundo.

A esse modelo de racionalidade ocidental, Santos (2008) dá o nome de razão indolente, um modelo que trabalha contra a diversidade epistêmica presente em diversos contextos no globo, ocultando essa diversidade e ao mesmo tempo proclamando a sua própria lógica como universal. Uma das formas em que essa indolência da razão, criticada por Santos (idem) ocorre, é através da chamada razão metonímica8, ao passo que essa se reivindica como a única forma de racionalidade e considera que as possíveis variações de racionalidade, não afetam o todo e são vistas como meras particularidades.

A forma mais evidente dessa concepção de totalidade para a razão metonímica é a dicotomia, já que ela relaciona a hierarquia com a simetria. Isso significa que ao mesmo tempo em que estabelece uma relação horizontal – uma oposição entre pares como, por exemplo, conhecimento científico e conhecimento tradicional – oculta uma relação vertical que hierarquiza os pares dessas dicotomias. Nesse quadro, o conhecimento tradicional passa a ser visto como incompreensível, ou ainda, ininteligível, sem que o mesmo esteja estabelecendo uma relação com o conhecimento científico. Não é possível que uma diferente concepção de conhecimento seja pensada fora da sua relação com a totalidade que o conhecimento científico impõe.

Santos (2002) considera que um dos procedimentos sociológicos necessários para solucionar esse problema da razão metonímica e desenvolver essa racionalidade cosmopolita é a chamada sociologia das ausências. Em suma, a sociologia das ausências se baseia em um processo investigativo que visa demonstrar, como vimos, que o que não existe é produzido como não existente, como uma alternativa não credível a o que existe.

O objetivo dessa sociologia é “transformar objetos impossíveis em possíveis e, com base neles, transformar as ausências em presenças” (SANTOS, 2002, p. 246). É buscar, por exemplo, se existe algo no conhecimento tradicional que escapa à dicotomia entre conhecimento científico vs. conhecimento tradicional. Seria buscar, por exemplo, a

                                                                                                                         

8 Há ainda a razão impotente, a razão arrogante e a razão proléptica, que complementam o debate relacionado à

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possibilidade de compreender um conhecimento dentro dos próprios termos dos grupos que partilham esse conhecimento. Compreender de que forma o pressuposto do daime ser uma fonte de conhecimento se valida a partir das próprias narrativas dos daimistas.

No que tange os modos de produção da não-existência, assim como exposto por Santos (2008), nos deparamos com a lógica da monocultura do saber, que transforma a ciência em critérios únicos de verdade e classifica ignorância ou incultura todas as diferentes formas de conhecimentos que não sejam validadas através dos métodos científicos.

Santos (idem) ainda comenta sobre outras lógicas de produção da não-existência, como a monocultura do tempo linear, a monocultura na naturalização das diferenças e a lógica da escala dominante que, respectivamente, classificam como atrasado tudo aquilo que é assimétrico ao que é declarado avançado, distribuem as populações e suas crenças e costumes por categorias hierárquicas, e consideram todo o conhecimento local como incapaz de ser uma alternativa credível a um conhecimento dito global.

Há ainda outro modo de produção de não-existência: a lógica produtivista, que se baseia na concepção de que o crescimento econômico é um objetivo racional e inquestionável e, portanto, são inquestionáveis os critérios de produtividade que mais bem servem a esse objetivo. No que tange o debate sobre produção e transmissão de conhecimento, é inegável que a possibilidade de uma planta (daime) ser uma fonte de saber será produzida como não-existente, já que essa não atende à lógicas produtivistas.

Podemos considerar que o pressuposto do daime ser dotado de saber também é desqualificado a partir do momento em que a própria ideia de uma bebida transmitir conhecimento é assimétrica aos avanços do desenvolvimento científico e também por esse ser um pressuposto vinculado a religiões específicas, cujas origens provêm de populações indígenas cujos conhecimentos são considerados supersticiosos ou primitivos.

O objetivo da sociologia das ausências é revelar a diversidade e a multiplicidade das práticas sociais e credibilizar esse conjunto por contraposição a credibilidade exclusivista das praticas hegemônicas. A ideia de multiplicidades e de relações não destrutivas é dada pelo conceito de ecologia, onde todas tem em comum a ideia de que a realidade não pode ser reduzida ao que pensamos que existe, incluir as realidades ausentes por via do silenciamento e marginalização, isto é, as realidades que são ativamente produzidas como não existentes (SANTOS, 2002, p. 253).

Assim, a sociologia das ausências descrita por Santos (2002) busca “identificar as experiências produzidas como ausentes e libertá-las dessa relação tornando-as assim presentes e alternativas às experiências hegemônicas” (p. 249). Sua critica em relação à chamada monocultura do saber na sociedade ocidental é que essa deve ser substituída por uma ecologia

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dos saberes, uma concepção que parte do princípio da incompletude de todos os saberes, abrindo assim a possibilidade de um diálogo epistemológico entre o paradigma científico e outras formas ou compreensões de conhecimento. A monocultura do saber deve ser questionada a partir da identificação de outros saberes e de outros critérios de rigor que operam através de práticas sociais declaradas como não existentes pela razão metonímica.

O exercício da sociologia das ausências tem lugar através de uma confrontação com o conhecimento científico tradicional. A lógica da monocultura do saber “tem que ser confrontada com a identificação de outros saberes e de outros critérios de rigor que operam credivelmente nas práticas sociais e assim participar de diálogos epistemológicos com outros saberes, em especial o científico” (SANTOS, 2008, p. 106). Santos (idem) ainda discursa sobre a necessidade de termos uma imaginação epistemológica que permita diversificar os saberes, as perspectivas e as práticas. Aponta também a importância de uma imaginação democrática, que permita o reconhecimento de diferentes práticas e atores sociais.

Enfim, a ecologia dos saberes se resume na interculturalidade, na capacidade de aprendermos novos saberes sem necessariamente esquecer os anteriores. Busca identificar em que aspecto as diferentes possibilidades de saber contribuem e o modo como orientam uma dada prática na superação de uma dada ignorância, em busca de uma transformação social. A ecologia dos saberes visa criar uma nova forma de relacionamento entre o conhecimento cientifico e outras formas de conhecimento, igualdade de oportunidades nas disputas epistemológicas. A questão não é atribuir igual validade a todos os tipos de saber, mas permitir uma discussão pragmática que não desqualifica à partida tudo que seja diferente ao cânone epistemológico da ciência moderna (SANTOS, 2002, p. 247).

Não menos importante, Santos (idem) apresenta também a chamada ecologia da temporalidade9, cujo objetivo é libertar as práticas sociais do estatuto de resíduos e admitir a contemporaneidade das diferentes práticas sociais. Isso significa, por exemplo, observar práticas religiosas como o Santo Daime e, ao invés de qualifica-las como primitivas ou supersticiosas, reconhecê-las de forma a se tornarem inteligíveis e categorias de análise aptas de argumentação.

Em suma, Santos (2002) declara que quanto mais experiências estiverem disponíveis no presente, mais possibilidades estarão disponíveis no futuro. O autor declara que um dos campos sociais mais importantes onde a multiplicidade e a diversidade mais

                                                                                                                         

9 Há ainda a ecologia dos reconhecimentos, ecologia das trans-escalas e ecologia da produtividade. Por não se

adequarem ao debate sobre a produção e transmissão de conhecimento, não foram incluídas no argumento principal do trabalho.

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provavelmente se revelará é o campo relacionado às experiências de conhecimento. O autor aponta ainda que “as experiências mais ricas neste domínio ocorrerão entre a biotecnologia e os conhecimentos indígenas ou tradicionais” (p.259).

Há, ainda, outro procedimento sociológico que Santos (2008) considera necessário para solucionar o problema da razão metonímica e desenvolver uma racionalidade cosmopolita: o trabalho de tradução. Esse trabalho seria capaz de “criar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis” (p. 239), já que uma teoria geral se mostrou incapaz de dar conta da diversidade de experiências sociais existentes. Ainda, segundo o autor, o processo de tradução assume a forma de uma hermenêutica diatópica ou ainda, pluritópica, o que significa que todas as culturas, experiências sociais e conhecimentos podem ser considerados incompletos em algum aspecto e, portanto, enriquecidos pelo diálogo.

Considerando que os saberes e as práticas só existem na medida em que são usados ou exercidos por grupos sociais, o trabalho de tradução visa esclarecer o que une e o que separa os diferentes movimentos e práticas de modo a determinar as possibilidades e os limites da articulação ou agregação entre eles. É um trabalho complementar da sociologia das ausências que cria

uma zona de contato, de articulação entre os diferentes saberes, onde diferentes práticas e conhecimentos se encontram, chocam e interagem, visando criar inteligibilidade, coerência e articulação entre os diferentes saberes, num mundo enriquecido por uma tal multiplicidade e diversidade (SANTOS, 2002, p.268).

Santos (2002) aponta que uma das zonas de contato constitutivas da modernidade ocidental é a zona epistemológica, que confronta a ciência moderna e os saberes ditos leigos e ou tradicionais. Para que o trabalho de tradução seja realizado, é necessário que a interação de representantes dos grupos sociais que estão em contato, por ser um trabalho argumentativo, se assente exatamente em uma concepção de partilhar os diferentes conhecimentos. Entretanto, toda argumentação assenta-se em postulados e, nas zonas de contato, os postulados disponíveis são específicos a cada grupo e práticas sociais e, normalmente, não são aceitos como evidentes – ou críveis - por outro saber de uma dada cultura. Assim, se faz necessário o desenvolvimento de “topoi, pontos de partida de argumentação que sejam comuns para ambos os grupos” (SANTOS, 2002, p. 272).

Assim, o confronto e o possível diálogo entre diferentes tipos de conhecimento é um processo em que as diferentes práticas e compreensões se articulam. Nesse aspecto, o próprio desenvolvimento desse trabalho pode ser considerado um processo de tradução, já que

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confronta o papel da ciência moderna como única fonte de conhecimento e busca tornar inteligível os conhecimentos produzidos e transmitidos pelo daime.

A ecologia dos saberes permite, portanto, não só superamos a monocultura do saber científico como também a ideia de que os saberes não científicos não possam ser complementares ao saber científico. Ainda, segundo Santos (2008), de forma a desenvolvermos essa ecologia, devemos considerar a existência de diferentes culturas e diferentes formas de interação entre cultura e conhecimento e produzir Ciências Sociais que se localizem fora dos centros hegemônicos de produção, com o objetivo de criar uma comunidade científica internacional independente desses centros.

Santos (2009) assinala que esse novo paradigma emergente das ciências sociais tende a ser um conhecimento não dualista, fundado na superação das distinções tão comumente feitas entre natureza/cultura, animal/pessoa, vivo/inanimado. Ainda, o autor aponta que esse colapso das distinções dicotômicas repercute em disciplinas como a antropologia, considerando a importância de observarmos essa disciplina nesse processo de transição epistemológica.

Da mesma forma, Labate (2000) aponta a importância da construção de uma antropologia que supere o pensamento objetificante, racionalizante, e que busque a experiência, o sensível, considerando que não há separação entre experiência e conhecimento e entre o sujeito e o objeto. Segundo a autora, as explicações racionais e as vinculadas à linguagem acadêmica não são as únicas formas de apreender o sensível, nem possuem legitimidade maior com relação às demais.

O perspectivismo ameríndio, teoria desenvolvida pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e que veremos a seguir, condiz exatamente com esse processo de articulação entre diferentes práticas, compreensões e experiências existentes no mundo. Uma antropologia centrada na experiência, que propõe a não dualidade e que é produzida fora dos centros hegemônicos.

Todas as tipificações de conhecimento supracitadas são baseadas em uma concepção de que todo conhecimento é social, é baseado em uma relação. Evidente que pressupor a existência de um conhecimento “natural” cuja transmissão não se dá entre seres humanos, mas entre humanos e algo que entendemos como não-humano (daime), é uma tarefa delicada. Entretanto, considerando o debate realizado por Boaventura de Sousa Santos (2002, 2008, 2009), sobre a necessidade de explorarmos diferentes concepções de conhecimento, abrimos espaço para analisarmos o daime e o pressuposto dessa bebida poder transmitir conhecimento.

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A sociologia das ausências é o procedimento pelo qual o presente pode ser expandido, dando visibilidade à diversidade epistemológica do mundo ao tornar presente o que é ocultado pelas epistemologias dominantes. Essa abertura para outros conhecimentos ou, ainda, para uma outra concepção de conhecimento faz com que a ayahuasca – daime – possa ser um mediador da sociologia das ausências (ALBUQUERQUE, 2014). O trabalho de tradução, por sua vez, objetiva criar constelações de saberes e práticas, de concepções de conhecimento. Sob um estado de expansão da consciência que resulta da ingestão da ayahuasca, o indivíduo que a utiliza entra em um estado de êxtase cuja sabedoria remete às lógicas da tradição xamânica, que nos proporciona uma nova compreensão do que o “conhecimento” pode ser e de como ele se produz (METZNER, 2002).

1.3 O PERSPECTIVISMO AMERINDIO E A INTELIGIBILIDADE XAMÂNICA

Tendo em vista o paradigma científico existente, faz-se necessário adentrarmos na necessidade de produzirmos um outro tipo de ciência social que esteja atrelado a um modelo diferente de racionalidade, para que assim possamos pensar em outras formas de se produzir e transmitir conhecimento. Pensar as plantas como sujeitos do saber implica considerar a possibilidade de que a fonte desse saber centra-se num ser não humano o que, em si mesmo, configura-se como uma heresia epistemológica na medida em que viola as clássicas distinções entre natureza e cultura, que transformou as plantas em meros objetos do saber e nunca em sujeitos do saber (ALBUQUERQUE, 2009, p. 29).

Uma alternativa aos modelos epistemológicos existentes até então é o perspectivismo ameríndio apresentado por Eduardo Viveiros de Castro. Na epistemologia ameríndia, que possui critérios específicos de inteligibilidade do real, as dicotomias supracitadas se mostram impensáveis.

Viveiros de Castro (2015) nos apresenta uma nova concepção de como se produzir o conhecimento antropológico, baseado no que o autor chama de perspectivismo ameríndio. A ideia central dessa exposição é que o pesquisador – o antropólogo – e o nativo, aquilo e aqueles que estão sendo pesquisados, estão engajados em operações intelectuais diretamente comparáveis, proposição essa que é impensável dentro dos moldes hegemônicos do conhecimento científico.

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A antropologia sempre andou demasiado obcecada com a “Ciência”, não só em relação a si mesma como, sobretudo, em relação às concepções dos povos que estuda: seja para desqualificá-las como erros, sonho, ilusão, (...), seja para promovê-las como mais ou menos homogêneas à ciência. A imagem da ciência, essa espécie do padrão-ouro do pensamento (...) (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 223).

Viveiros de Castro (idem) critica que nas antropologias realizadas até então o “outro”, o nativo que está sendo pesquisado é sempre “representado” ou “inventado” segundo os interesses sórdidos do Ocidente, que os reduz a ficções da imaginação ocidental, sem que tenham qualquer voz. Um dos exemplos dessas antropologias é o funcionalismo de Bronislaw Malinowski, que busca “descrever minuciosamente o “ponto de vista do nativo” mas, ainda assim, englobando esse ponto de vista dentro do Ponto de Vista do observador” (p. 72).

Ainda, Viveiros de Castro (idem) aponta outro exemplo dessa antropologia classificatória: a antropologia evolucionista, desenvolvida por Tylor e Frazer, que considera que os povos ditos primitivos e suas crenças mágicas, ou suas religiões, estão na antessala de um conhecimento verdadeiro, que seria a ciência com todos os seus métodos, categorias e classificações. O autor questiona o que acontece quando o classificado se torna classificador. No caso desse presente trabalho, quais os resultados de compreender como o conhecimento do daime é produzido e transmitido a partir de categorias dos próprios daimistas?

Viveiros de Castro (idem) está preocupado com a dimensão conceitual do pensamento nativo e considera que o conhecimento não deve ser um modo de representar o desconhecido, mas de interagir com ele. O autor propõe uma teoria do conhecimento não hierarquizada, mas que elabora-se simultaneamente, a todo o tempo, a partir de diferentes pontos observações e conceitualizações. Uma teoria do conhecimento que não seja desenvolvida a partir de um exercício de pensamento sobre o objeto de pesquisa, mas sim um exercício de pensamento que seja realizado em conjunto com esse objeto, de maneira integrada com o mesmo.

Essa nova antropologia proposta pelo autor é uma experiência de pensamento que toma os conceitos dos nativos como categorias de pensamento, utiliza as ideias nativas como unidades de análise. Tendo isso em vista, em conjunto com o fato do daime ser uma bebida cuja origem remete aos povos da Bacia Amazonica, se faz necessário considerarmos a cosmologia de muitos povos indígenas da região e, assim, admitir a existência de essências espirituais inerentes à natureza que são determinantes da forma como esses grupos se relacionam com os objetos, animais, plantas e seres humanos, vivos ou não. A partir disso, poderemos explorar melhor a possibilidade do daime ser uma fonte de conhecimento que,

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como vimos, produz um estado de êxtase cuja sabedoria remete às lógicas da tradição xamânica.

Para Santos (2008) como dimensão do conhecimento, o êxtase tem uma sabedoria própria e essas diferentes racionalidades corporificam-se em um conjunto de saberes e práticas que não são marcados pelo pensamento lógico e linear. Ainda, transcendem tradicionais dicotomias que marcam a razão moderna, como a dicotomia entre verdadeiro e falso, entre homem e natureza e entre natureza e cultura.

Eliade (1982) define o fenômeno xamânico como “uma técnica arcaica do êxtase”, já que seu conteúdo fundamental consiste na possibilidade que o xamã tem de “viajar para a região dos espíritos”. Apesar do autor apontar que essa técnica está situada estritamente na região da Sibéria, as categorias xamã e xamanismo são largamente utilizadas por diversos autores que pesquisam os povos indígenas e as religiões ayahuasqueiras. Groisman aponta o xamanismo como “um sistema complexo de conhecimento do mundo, cuja definição está submetida às diferentes manifestações que assume nos grupos em que aparece como sistema simbólico central” (GROISMAN, 1999, p. 40).

Acerca do xamanismo, Viveiros de Castro (2015) argumenta que esse “pode ser definido como a habilidade manifesta por certos indivíduos de cruzar deliberadamente as barreiras corporais entre as espécies e adotar a perspectiva de subjetividades estrangeiras” (p. 49). Para o autor, o xamanismo é um modo de agir que implica um certo ideal de conhecimento. Enquanto a epistemologia favorecida pela modernidade ocidental é objetivista, o xamanismo ameríndio é guiado por um ideal onde “conhecer é dessubjetivar (...) é personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 50). De maneira complementar “se há uma noção virtualmente universal no pensamento ameríndio, é aquela de um estado originário de indiferenciação entre humanos e os animais” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.354).

Esse é o perspectivismo ameríndio apresentado por Viveiros de Castro (idem): um complexo de ideias e práticas, uma outra estrutura intelectual, um aspecto do pensamento ameríndio que manifesta sua qualidade perspectiva. É uma concepção segundo a qual o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos. O mundo é composto por uma multiplicidade de pontos de vista e todos eles são centros de intencionalidade, que apreendem os demais segundo suas próprias e respectivas características. Para o perspectivismo ameríndio uma “essência” humana é comum a todos os seres e o que distingue esses seres é o seu corpo. Como aponta o autor, essa concepção não deve ser pensada como uma

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