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LUCIETE TELES DE SOUZA

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Academic year: 2021

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INTRODUÇÃO

O trabalho aqui apresentado é um estudo histórico com viés da história social voltado à discussão das relações entre Brasil e Bolívia no tocante à fronteira entre o estado do Acre e o Departamento de Pando, pela qual se estabelecem contatos políticos, econômicos, sociais, culturais e linguísticos, os quais se intensificaram com o fim do segundo ciclo da borracha amazônica e com a criação, nos anos de 1980, da zona franca estabelecida em Cobija, cidade boliviana vizinha dos municípios acreanos de Brasiléia (BR) e Epitaciolândia (BR), cenários desta pesquisa.

A constituição desta fronteira como zona de contato começa tendo como um dos principais determinantes os interesses econômicos. Primeiro, as disputas entre brasileiros e bolivianos pelas terras do Acre e suas riquezas, principalmente extrativo-vegetais; depois, já na década de 1970, os interesses do governo federal e local e de empresários de outras regiões do Brasil pelo potencial agropecuário acreano, o que levou milhares de seringueiros acreanos a se instalarem em seringais na Bolívia. E por fim, a partir dos anos de 1990, com a expansão da Zona Franca de Cobija.

O interesse pelo tema da pesquisa nasce assim em vista do frequente trânsito de brasileiros cruzando a fronteira em direção ao Departamento de Pando, bem como a circulação diária de bolivianos nas cidades de Brasiléia e Epitaciolândia, fenômeno merecedor de registro e análise, devido ao fato de representar a continuidade dos contatos históricos entre os dois povos nessa região. A relevância acadêmica deste estudo se deve ao silêncio historiográfico acreano no que se refere ao encontro de sujeitos brasileiros e bolivianos neste espaço de fronteira entre Acre e Pando e seus reflexos, particularmente na forma como a comunicação falada aí se estabelece.

Dessa forma, a pesquisa traz como objetivo buscar compreender como a fronteira geopolítica entre Acre e Pando se constitui em zona de contato e como, na história de contatos destas comunidades – brasileiros e bolivianos, particularmente, acreanos e pandinos, fatores econômicos e socioculturais influenciaram e ainda influenciam o uso do português e do espanhol, idiomas falados no intercâmbio entre os espaços urbanos da fronteira Brasil – Bolívia nos limites entre Brasiléia, Epitaciolândia e Cobija. Buscou-se, sobretudo, analisar os

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motivos que levam, na relação de contato entre as duas línguas, no cenário investigado, o português ser mais utilizado do que o espanhol, a partir da das experiências e vivências sociais e culturais de homens e mulheres que ali vivem.

Entre os estudiosos que escreveram sobre este fronteiriço, destaca-se Geórgia Lima, pesquisadora que se preocupou em registrar a questão das falas nacionais daquele encontro, principalmente em sua pesquisa mais recente, tendo a autora apresentado um artigo que nos serviu de referência para entender a constituição mais ampla deste espaço fronteiriço, sob o titulo Fronteira e Identidade: “brasiviano” e “fronteira” como categorias culturais interamericanas na Amazônia sul-ocidental (2009).

O material teórico deste estudo foi coletado em pesquisa bibliográfica e documental referente ao estudo do objeto. Já os dados da pesquisa foram coletados por meio de investigação in loco acerca do contato social e das práticas linguísticas entre falantes do português e do espanhol na região de fronteira Brasiléia, Epitaciolândia e Cobija. Para a documentação direta intensiva, realizaram-se visitas a falantes de origens boliviana e brasileira que moram e trabalham na região investigada para se realizar as entrevistas semiestruturadas. Procurou-se também registrar situações naturais e espontâneas de comunicação entre bolivianos em visita ao Brasil e vice-versa. Após a realização e análise do material coletado, os resultados foram organizados e registrados neste texto monográfico.

Dentre os resultados alcançados, a pesquisa evidenciou que especialmente dois fenômenos contribuem para que a língua portuguesa seja mais utilizada do que o espanhol no contato entre brasileiros e bolivianos na fronteira Epitaciolândia/Brasiléia e Cobija, sendo eles determinantes econômicos e socioculturais. Outro aspecto observado foi que nessa região fronteiriça há a presença de um sentimento de superioridade de muitos acreanos em relação aos bolivianos, os quais muitas vezes são julgados como inferiores tanto no aspecto econômico quanto linguístico e cultural, o que demonstra como os processos de representação identitária na fronteira Acre/Pando passam por uma real relação de poder.

Esta monografia encontra-se estrutura em três capítulos: o primeiro, intitulado A HISTÓRIA DA FRONTEIRA SUL-OCIDENTAL ACRE (BRASIL) E PANDO (BOLÍVIA), traz um registro histórico da realidade acreana a partir da segunda metade do século XIX, quando entra em decadência o segundo ciclo do extrativismo da borracha, bem como uma análise da implantação de projetos agropecuários no estado do Acre, a partir da década de

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1970, que tivera como uma de suas consequências o deslocamento de seringueiros acreanos em direção ao interior da Bolívia, fato que intensificou a comunicação entre brasileiros e bolivianos nessa fronteira.

No segundo capítulo, ENTRE CIDADES FRONTEIRIÇAS, descrevem-se as cidades gêmeas de Brasiléia, Epitaciolândia e Cobija, destacando-se elementos constituintes de sua caracterização natural e organização social e econômica, além de registrar a composição da Zona Franca de Cobija. O terceiro capítulo, LÍNGUAS EM CONTATO: EXPERIÊNCIAS SOCIAIS NA FRONTEIRA BRASILÉIA, EPITACIOLÂNDIA E COBIJA, trata do atual contato entre Acre e Pando por meio da Zona Franca de Cobija, destacando como os encontros ali estabelecidos influenciam a comunicação entre brasileiros e bolivianos na região fronteiriça de Brasiléia, Epitaciolândia e Cobija.

Dessa forma, esperamos, com este estudo, poder colaborar para o conjunto de trabalhos já existentes nessa área de investigação e construir mais uma fonte de pesquisa para estudos futuros cujo interesse sejam as zonas de contato na Amazônia sul-ocidental.

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CAPÍTULO 1

A HISTÓRIA DA FRONTEIRA SUL-OCIDENTAL: ACRE (BRASIL) E PANDO (BOLÍVIA )

1.1 ENCONTROS E DESENCONTROS NA FRONTERIA

Com o uso crescente da borracha natural como matéria-prima nas indústrias norte-americanas e europeias, a busca por territórios fornecedores desse produto intensificou-se e sua exploração e aquisição fora alvo de grandes investimentos do capital industrial ainda no século XIX. A Amazônia, que possuía imensas áreas de florestas cobertas por seringueiras, passara a ser a principal fonte abastecedora para a indústria de artefatos de borracha. Sobre esse fato, Martinello (2004, p. 33) registra que:

De todas as áreas onde se operava a exploração da floresta para a extração da borracha, a Amazônia era a que oferecia a maior segurança e amplas

possibilidades, seja pela quantidade quase ilimitada de seringueiras, seja pela própria produtividade das árvores.

Neste contexto, a região acreana, sob o impacto da empresa extrativista, gerou a produção de grande quantidade de borracha destinada à exportação. Os combatentes brasileiros vencem, finalmente, em janeiro de 19021, o exército boliviano na disputa do território que viria a ser o Acre, e com a assinatura do Tratado de Petrópolis, que garante a sua anexação ao Brasil, em 1903, a empresa extrativa já havia nele se instalado e os seus seringais

1 Em 1902, tornaram-se intensos os enfrentamentos armados entre brasileiros e bolivianos que disputavam as terras acreanas, eclodidos principalmente depois que a Bolívia decidiu arrendar o Acre para um grupo de empresários dos Estados Unidos e Inglaterra, chamado de Bolivian Syndicate. Tocantins (1998, p. 41) descreve particularidades do contrato, assinado em 11 de junho de 1901: “a sede do Sindicato ficava em Nova Iorque e a administração fiscal, no Acre. Podia cobrar toda espécie de impostos, direitos alfandegários, usufruir de rendas de terras. A Bolívia cedeu-lhe os direitos de explorar minas, de explorar comercialmente tudo o que fosse de interesse do Sindicato, de navegar rios, e conceder licenças para o exército de atividades econômicas no território. Podia até equipar e manter força armada.” A última batalha entre os dois exércitos deu-se em janeiro de 1903, quando os combatentes brasileiros, comandados por Plácido de castro, venceram os bolivianos em Porto Acre.

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já produziam grande quantidade de borracha destinada à exportação, o que resultava em grandes cifras para o país.

Na primeira década do século XX, o Acre continuou a atrair correntes migratórias de nordestinos, que constituíam a principal mão de obra da indústria extrativa na Amazônia sul-ocidental. De acordo com COSTA (2003, p. 199), o Acre, de 1903 a 1909, havia dado à União uma renda de 53.085:708$587, e sua população era de cerca de 100.000 habitantes, em sua maioria, migrantes nordestinos. Esses migrantes, que começaram a ocupar a região acreana ainda no século XIX, no contato com os povos indígenas, foram recebendo influências culturais, assimilando muitos hábitos e valores, a partir da convivência pacífica com os nativos. Contudo, vale ressaltar que durante este encontro ocorreram as chamadas “correrias”, quando um grande número de indígenas foi exterminado durante o processo de desbravamento e reocupação das terras2.

Em razão da convivência que se estabeleceu depois deste processo de enfrentamentos entre seringueiros e indígenas, ocorreu uma derivação na língua portuguesa, fruto da convivência com as línguas indígenas faladas na região, pois se passou a estabelecer contatos mais sistemáticos entre esses diferentes povos em função dos interesses da empresa extrativista. Essas línguas, nos contatos mantidos através de seus falantes, se influenciaram mutuamente, sofrendo modificações. Essas duas variáveis linguísticas passaram a desenhar traços ainda hoje característicos do linguajar acreano.

Outro encontro de importante destaque, em diversos momentos do século XX, para além dos desencontros durante as fases críticas de 19023, ocorreu entre brasileiros e bolivianos que ocupavam o território acreano. Após a assinatura do Tratado de Petrópolis, parte dos seringais explorados por seringalistas brasileiros passou a integrar definitivamente a Bolívia, e com isso os trabalhadores que nela se encontravam passaram a viver em território

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Em certas regiões privilegiadas pela abundância da hévea, como o Purus, por exemplo, a ocupação foi feita de modo intenso e contínuo; embora o silvícola não houvesse oposto grande resistência, ainda assim o desbravamento se deu à custa de muitas vidas. Em outras regiões, como a bacia do Juruá, a resistência dos nativos foi árdua e penosa e só foram cedendo o campo ao nordestino por entre o trovejar das balas e o zunido das flechas envenenadas. (REIS, Arthur C. Ferreira. A conquista do Acre, 1940. In MARTINELLO, Pedro. A Batalha da Borracha na Segunda Guerra Mundial e suas consequências para o vale amazônico. Rio Branco, EDUFAC. 2004, p. 43). Esses ataques, organizados pelos seringalistas, ficaram conhecidos por correrias. 3 Os desencontros se explicam pela natureza das relações conflituosas entre brasileiros e bolivianos nesse período de enfrentamentos armados, o qual ficou conhecido na historiografia do Acre como “Revolução Acreana”.

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boliviano, onde inevitavelmente precisaram conviver com a língua e cultura dos vizinhos da fronteira.

Uma das formas de comunicação entre esses sujeitos, nesses períodos, se evidencia na cobrança de impostos que o seringalista brasileiro tinha que pagar ao governo da Bolívia para ter o direito de explorar e comercializar produtos do extrativismo, sobretudo o látex extraído da floresta boliviana. Era preciso negociar com as entidades fiscais bolivianas para que fosse concedido o direito, aos brasileiros, de continuarem a explorar as terras que, pela nova demarcação, pertenciam ao país vizinho. Sobre essa realidade, Lima (1996) registra que:

Depois do Tratado de Petrópolis, os seringais em plena atividade foram utilizados pelo governo boliviano para beneficiar-se com o arrendamento das terras aos seringalistas brasileiros, além de instituir outros impostos.(...) Esses impostos pagos deram ao seringalista brasileiro o monopólio da produção e comercialização de produtos do extrativismo, principalmente a borracha, na região até a década de 50.

Os contatos linguísticos no Acre, portanto, se fazem presentes desde o início da formação do território, ressalvando-se aqui o fato de que nesses contatos o índio e o boliviano foram colocados na condição do “outro” pelo brasileiro, que conseguiu garantir a sobreposição de sua língua, e consequentemente de sua identidade, pelo poder da força. No caso dos povos indígenas, pela prática das correrias e demais violências cometidas contra eles; no caso dos bolivianos, pelos combates armados na disputa pela posse da terra.

Por conta da acentuada presença de migrantes nordestinos, o seu falar, uma das variantes do português, passou a compor o cenário linguístico da região acreana. Todavia, outros encontros e desencontros entre brasileiros e bolivianos na zona fronteiriça de Acre e Pando viriam a acontecer, como consequência de mudanças no sistema econômico, político e social da região ao longo de todo o século XX, a começar pela primeira crise na economia gomífera da Amazônia.

Por volta de 1912, a supremacia da borracha brasileira sofreu forte declínio com a concorrência promovida pelo látex explorado no continente asiático.4. Os mercados

4 Em 1876, Henry Alexander Wyckham contrabandeou 70.000 sementes de seringueiras da região situada entre os rios Tapajós e Madeira e as mandou para o Museu Botânico de Kew, na Inglaterra. Mais de 7.000 sementes brotaram nos viveiros e poucas semanas depois, as mudas foram transportadas para o Ceilão e Malásia. Na região asiática, as sementes foram plantadas de forma racional e passaram a contar com um grande número de mão de obra, o que possibilitou uma produção expressiva, já no ano de 1900. Gradativamente, a produção

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consumidores, sobretudo os Estados Unidos, passaram a importar o produto proveniente dos seringais orientais. Essa nova realidade da economia extrativista no mercado mundial atingiu a produção e comercialização da borracha brasileira e, ano após ano, a crise foi se instalando no mercado interno do produto. Segundo Cardia (2010, p. 45),

A falta de incentivos governamentais, a ausência de técnicas de produção e de cultivo, a carência de capital, a mão-de-obra cara e o transporte deficiente contribuíram para manter elevados os custos da produção brasileira. As medidas adotadas para reverter o quadro não obtiveram sucesso. (...) Diante desse quadro, seringais foram abandonados e começou uma reemigração para o Nordeste, esvaziando principalmente o Acre.

O quadro de crise da empresa seringalista no Acre só viria a mudar nos anos de 1940, quando, de acordo com Martinello, (norma da ABNT) a borracha amazônica passou a constituir uma alternativa para os aliados durante a Segunda Guerra Mundial, uma vez que os seringais do sudoeste asiático foram tomados pelos japoneses, que bloquearam o acesso às plantações. Assim é que em 1942 o Brasil volta ao cenário mundial como grande exportador de borracha, a qual abasteceria os Estados Unidos e seus aliados durante os anos de guerra.

Brasil e Estados Unidos fecham os Acordos de Washington5, que viriam a ser uma operação em larga escala com o intuito de extrair mais látex da região norte brasileira, já que sem borracha a indústria bélica estaria comprometida, conforme atesta Martinello (2004, p. 83):

Visto que a borracha, devido aos seus múltiplos usos, era considerada como o verdadeiro “nervo da guerra”, pode-se entender o alvoroço e mesmo o pânico que tomou conta dos planejadores militares americanos quando, bruscamente, 97% de suas fontes de suprimentos foram cortadas pela invasão japonesa da Malásia...

asiática vai superando a produção amazônica e, em 1912 há sinais de crise, culminando em 1914, com a decadência deste ciclo na Amazônia brasileira.

5 Pelos Acordos de Washington, o governo americano passaria a investir fortemente no financiamento da produção de

borracha amazônica, enquanto ao governo brasileiro caberia o encaminhamento de milhares de trabalhadores para os seringais.

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Para colocar em pleno funcionamento novamente os seringais acreanos, foi preciso atrair mais uma vez para a região milhares de trabalhadores, já que com o crescente declínio do ciclo da borracha após 1920, houve uma gradativa debandada da força de trabalho excedente no campo, e muitos seringueiros, sem trabalho e sem perspectiva de melhoria de vida, voltaram para seu estado de origem. Sobre o despovoamento dos seringais acreanos, Costa Sobrinho (1992, p. 58) registra que “no ano de 1920 o Acre tinha uma população da ordem de 92.379 habitantes; no ano de 1940 essa população era da ordem de 79.768 pessoas, significando isso uma redução de uma contingente de aproximadamente 13.000 pessoas”.

Diante da nova necessidade de mão de obra para a empresa seringalista, foi realizado um recrutamento, mais uma vez no nordeste. Conforme Martinello (2004, p. 145), “mobilizou-se um verdadeiro exército de extratores, arregimentados quase que militarmente nos diversos estados da federação, entre os quais se enfileiravam veteranos (antigos extratores) e brabos (calouros na atividade extrativa).” O historiador Marcos Vinicius Neves, em seu artigo intitulado A história da grande batalha da borracha na Segunda Guerra Mundial6, registra que mesmo com todos os problemas enfrentados (ou provocados) pelos órgãos encarregados da Batalha da Borracha, cerca de 60.000 pessoas foram enviadas para os seringais amazônicos entre 1942 e 1945.

Entre os que vieram para o Acre, de acordo com Costa Sobrinho (1992, p. 92-93), “mais de 2.000 brasileiros se internaram nos seringais bolivianos, na área de fronteira do Brasil com a Bolívia, principalmente na área do Departamento de Pando, onde formavam o maior contingente de mão de obra empregada na extração da borracha.” Essa realidade proporcionou uma aproximação de brasileiros e bolivianos constituindo-se em mais um momento histórico de encontro entre os sujeitos das duas nacionalidades nessa região, havendo, portanto, mais uma vez a aproximação entre a língua portuguesa e a língua espanhola na fronteira Acre/Pando.

No entanto, terminada a guerra, deu-se a eliminação do estado de emergência para o programa de busca e conservação da borracha natural para fins militares. Os seringais asiáticos voltaram para o controle da Inglaterra passando a suprir, aos poucos, o mercado

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internacional. Nos Estados Unidos, a produção da borracha sintética já supria boa parte das necessidades da indústria americana. Esses fatores, dentre outros, foram relevantes para que os americanos se apressassem em cancelar todos os acordos referentes à produção de borracha nos países latino-americanos, inclusive no Brasil.

Neste contexto, o trabalho e as condições de sobrevivência nos seringais se tornaram ainda mais difíceis, pois com o fim dos Acordos de Washington e a retirada dos americanos da Amazônia, instalou-se mais uma grande crise no sistema extrativista da borracha brasileira, entrando em falência muitos seringais. Ainda nos fins da década de 1940, essa situação começou a provocar um crescente êxodo de seringueiros, quando muitos deles procuraram voltar para seu estado de origem, grande parte passou a migrar para as cidades. Quanto aos brasileiros que moravam e trabalhavam em seringais da Bolívia, como informa Costa Sobrinho (1992, p. 93):

Não houve nenhuma saída maciça de trabalhadores brasileiros desses seringais, até porque a produção boliviana passou a ser incorporada à produção acreana, graças aos bons preços vigentes, sustentados pela política do monopólio estatal da borracha. E, também, por ser a seringueira na Amazônia boliviana mais concentrada, com a presença de maior número de madeiras por estrada, e mais produtiva, por ser menos explorada.

Nota-se, portanto, que os brasileiros que se encontravam nos seringais do país vizinho sentiam-se acolhidos e se mantinham numa situação mais confortável do que aqueles que trabalhavam na floresta brasileira, os quais foram, aos poucos, obrigados a debandar em busca de sobrevivência. Essa condição de acolhimento fica ainda mais evidente quando em 1953, com a Lei da Reforma Agrária, a Bolívia assegura a esses brasileiros os mesmos direitos dos nacionais.7 Torna-se, possível, assim, afirmar que esse foi um período de encontro e não de desencontro entre brasileiros e bolivianos, tendo em vista que as relações entre ambos nessa região fronteiriça se deram de forma harmoniosa e solidária.

7 Conforme registra Costa Sobrinho, a Lei da Reforma Agrária da Bolívia nacionalizou a terra e reverteu ao domínio

público todas as árvores seringueiras e castanheiras. Ao trabalhador rural, empregado na atividade extrativista, foram dadas, sob forma de concessão, árvores gomíferas e castanheiras no limite máximo de três estradas. Ainda se lhe concedendo uma área para a prática agrícola. (1992, p. 93).

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Outro episódio nesse momento de encontro entre acreanos e pandinos pode ser ilustrado com o fato de que quando os bolivianos criaram a Federação de Trabalhadores Seringueiros8, com sede em Cobija, capital do Departamento de Pando, segundo Costa Sobrinho, tiveram a assessoria de brasileiros, dos quais alguns, inclusive, participaram da diretoria da organização. Ressalta-se, aqui, que para estas articulações, inevitavelmente, a comunicação entre brasileiros e bolivianos fazia-se pelo uso do português e do espanhol nesta zona de contato, o que não impedira os entendimentos.

Os encontros entre brasileiros e bolivianos na fronteira Acre/Pando continuariam a acontecer, em função das mudanças na conjuntura política, econômica e social na região. Durante as décadas seguintes, apesar de ações emergenciais do governo, como a criação de colônias para instalar e dar trabalho a ex-seringueiros, estímulo à diversificação das atividades extrativas e agrícolas e criação de animais, criação da Guarda Territorial de Fronteira, o êxodo se intensificou por falta de políticas mais eficazes de apoio a essa classe social e trabalhadora. Nesse contexto, milhares de extratores se dirigiram para os núcleos urbanos do Acre e também para os seringais bolivianos.

Na década de 1960, o governo brasileiro, como afirma Duarte (2010), adotou algumas medidas para favorecer a expansão econômica na Amazônia, o que levou a um aumento da concentração fundiária. Adaptadas à política dos governos militares e à chamada Doutrina da Segurança Nacional, as medidas evidenciavam a “preocupação”9, em ocupar os “espaços vazios”10, tanto em nível econômico quanto estratégico, servindo como instrumento de intervenção estatal e influindo diretamente na política de colonização da região.

Nas décadas de 1970 e 1980, o direito à terra fora cedido a empresários do centro-sul do país por meio de incentivos fiscais do governo federal, com apoio do governo estadual, que favoreceram a implantação da pecuária no Acre. Segundo Lima (2002, p. 58), “o desdobramento dessa associação entre estado e grupos econômicos revelou, em pouco tempo, a aquisição da maior parte dos 15 milhões de hectares que o Estado do Acre possui, além de haver desorganizado a vida de cerca de 40 mil famílias de seringueiros.”

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Criada ainda na década de 1950, logo após a revolução de 1952 e a Lei da Reforma Agrária de 1953, com o objetivo de difundir os fatos que estavam acontecendo na Bolívia em relação aos movimentos e ações da reforma campesina. (COSTA SOBRINHO, 1992, p. 94)

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Grifo do autor.

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Nota-se, portanto, que essa incorporação do Acre ao processo de expansão econômica em direção à fronteira agropecuária da Amazônia veio a agravar grandemente as condições de vida do homem do campo, obrigando-o a migrar para outros territórios em busca de sobrevivência, já que os grupos de empresários que compravam os antigos seringais expulsavam a população que neles viviam. Nesse sentido, Oliveira (1985, p. 34-35) registra que:

O êxodo populacional foi, em decorrência, um dos subprodutos da presença do grande e médio capital agropecuário no Acre. A população, que era expulsa ou abandonava as terras, viu-se subitamente diante da opção de ter que procurar novas formas e espaços para sobreviver. (...) Na região do Vale do Acre-Purus, o “fechamento” das terras, em primeiro momento, levou a população a seguir diversos caminhos. Muitos foram para a Bolívia cortar seringa em “condição mais livre”. Outras procuravam, em migração continuada, terras formalmente livres em território acreano. Mas a maioria seguiu o traçado dos rios e das estradas em direção a Rio Branco, que de resto parecia a única alternativa em termos de oportunidades de empregos e negócios.

Privados de viver e trabalhar na terra onde haviam construído suas vidas, milhares desses seringueiros e agricultores buscaram então se fixar em seringais no território boliviano, atravessando a fronteira com o Departamento de Pando. Nesse caso, a fronteira oeste, porosa11 e acessível, facilitou a penetração desses trabalhadores e suas famílias quando expulsos do campo no estado do Acre.

No que se refere, em particular, a esse deslocamento, Lima (2002) demonstra como se deu o fluxo migratório em direção aos seringais bolivianos na zona limítrofe do Acre com o Abunã, província do Departamento de Pando. Porém, é importante ressaltar que grande parte desses trabalhadores de dirigiu para outras províncias, a exemplo de Nicolás Suaréz, onde se situa Cobija. Essas localidades tornaram-se zonas de contato de brasileiros com bolivianos, os quais passaram a conviver e trocar experiências.12

11 Fronteira porosa pode ser entendida como uma fronteira permeável, de fácil ultrapassagem, onde as relações

entre os sujeitos são abertas, onde a entrada e saída de pessoas ou de mercadorias dão-se quase que livremente; aonde o ir e vir para cada lado acontece sem grandes empecilhos, de modo bastante acessível.

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Maia (2009), no entanto, ressalta que até a década de 1980 era pequeno o contingente de bolivianos morando na floresta/seringais na linha de fronteira do estado do Acre com o Departamento de Pando, devido a inexistência de uma tradição forte na extração do látex por parte dos nossos vizinhos. Por isso, existia ali grande isolamento e distanciamento entre as duas populações, o que, segundo Maia, tornou menos intenso as trocas e o estranhamento dos seringueiros brasileiros quanto às diferenças étnicas, culturais, linguísticas experimentadas no outro país.

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De acordo com Lima (2002, p. 110), “os brasivianos que habitavam os seringais bolivianos vivenciaram experiências envoltas na pluralidade cultural, marcando o cotidiano da ocupação do território da Bolívia com práticas sociais que resultaram na construção e reconstrução de relações sociais”, as quais só foram possíveis por meio do uso da língua, pois ela é que permite aos sujeitos se individualizarem e, ao mesmo tempo, se socializarem, trocando ideias, experiências, manifestando sentimentos e pensamentos, transmitindo cultura. Assim, os seringais bolivianos tornaram-se zona de contato em que a língua portuguesa e a língua espanhola conviveram por meio das atividades concretas do dia a dia, vividas por acreanos e bolivianos em situações sociais e de trabalho13. Nessa relação de convívio, a afirmação da língua como um elemento de diferenciação desses sujeitos de nacionalidades diferentes pode ter se constituído como uma das formas de afirmarem a sua identidade, principalmente para os acreanos “desterrados”, que se encontravam longe de suas referências sociais e culturais. Nesse sentido, Maia (2002, p. 41) considera que:

A reconstrução do modo de vida em outro lugar não traduz um significado de abandono de suas tradições e experiências anteriores, pelo contrário, o deslocamento significa a oportunidade de reestruturá-lo. Se no outro país fala-se outra língua, reconstroem-se círculos de familiares, compadres, conhecidos e compatriotas que a excluem ou adaptam. As situações concretas de contato com o outro serão regidas pela incorporação de novos elementos e não pela negação dos trazidos. (MAIA, 2002, p. 41).

Entende-se, assim, que a língua, nesses encontros entre brasileiros e bolivianos, serviu (e sempre servirá) como referência identitária para a representação e reafirmação da identidade nos processos de integração sociocultural desses sujeitos em contato. Mesmo que os brasileiros emigrados do Acre para os seringais bolivianos fizessem uso de elementos da variedade do espanhol ali falado, eles não deixavam de se comunicar em português, tendo em vista que a sua língua constitui a principal marca de sua nacionalidade. Lima (2002, p. 140)

13 Maia (2009) ressalta a região de fronteira entre Acre e Pando já constituía uma zona de contato anteriormente,

explicando que até a década de 1960 os trabalhadores rurais acreanos iam e vinham do território boliviano, no período da coleta da castanha e na época mais propícia para o corte da seringa, realizando uma movimentação sazonal, espontânea. A partir da década de 1970, porém, quando ocorre a expulsão do homem do campo no Acre, é que ele se fixa nos seringais bolivianos intensificando assim a convivência com a cultura e com a língua vizinhas. Portanto, conclui Maia, que essa fronteira sul-ocidental já possuía a característica de porosidade, de absolver o outro, bem antes do movimento migratório compulsório do acreano em direção à Bolívia, destacando que a língua nunca foi um limitante para esse deslocamento de fronteira.

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corrobora tal pensamento quando afirma que “essa representação de nacionalidade brasileira tem como elemento fundamental o fator linguístico, pois a língua portuguesa tornou-se o elemento aglutinador desses sujeitos sociais.”

Outra forma de contato entre acreanos e pandinos nesse contexto de expulsão de milhares de trabalhadores do campo em direção às cidades, sobretudo para a capital Rio Branco, se deu quando, a partir dos anos de 1990, um grande número deles, na tentativa de obter uma renda, passaram a se dirigir a Cobija, na Bolívia, para obter mercadorias em sua zona franca. Instalados precariamente na cidade, sem condições de inserção no mercado formal por falta de qualificação profissional, a imensa maioria desses ex-extratores buscaram sobreviver do comércio ambulante, atuando como camelôs, por exemplo. Da década de 1990 até os dias atuais, centenas desses trabalhadores e seus descendentes têm sobrevivido de uma “economia de fronteira”, a qual tem proporcionado mais um momento histórico de encontros e desencontros entre brasileiros e bolivianos na fronteira Acre/Pando.

Portanto,

1.2 ECONOMIA DE FRONTEIRA: DO EXTRATIVISMO À ZONA DE LIVRE COMÉRCIO

A instalação e desenvolvimento dos projetos agropecuários no estado do Acre provocou um movimento migratório dos “povos da floresta” em direção às cidades acreanas, o que viria provocar um inchaço populacional urbano, sobretudo na capital acreana, que a partir da década de 1970 cresceu desordenadamente e passou a enfrentar inúmeros problemas socioeconômicos e de infraestrutura.

Além das profundas mudanças no cenário espacial e socioeconômico de Rio Branco, também sofreram interferências e mudanças as relações sociais no espaço urbano, pois com os deslocamentos ocorridos, passaram a conviver no mesmo espaço diferentes culturas, valores, falares e visão de mundo. Os modos de vida dos que chegavam foram se alterando e se materializando a partir da construção e reconstrução de fazeres cotidianos e de mudanças de hábitos no convívio com outros homens, mulheres e crianças, que também receberam influências do outro, do “estrangeiro”.

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Assim é que ex-seringueiro no contato com o citadino de origem, colono sulista ou paulista no contato com o acreano de origem, foram interferindo uns nas identidades dos outros, embora uns mais tenham influenciado do que sofrido influência. Especificamente em relação à questão do contato linguístico, os grupos migrados, os “de fora”, historicamente sofreram preconceito por parte dos habitantes da cidade, sobretudo da capital, que recebeu maior número de migrantes.

É comum ouvir dos acreanos que possuem ou dizem possuir um conhecimento maior da língua e que prestigiam a norma padrão em detrimento da variante popular frases como: “Nossa! Ele fala como um colonheiro”; “Você não sabe nem falar. Parece colonheiro”. Esse discurso demonstra como os sujeitos vão construindo suas identidades pela diferenciação do outro, e como a língua constitui um dos elementos de representação dos sujeitos sociais.

Percebe-se, assim, tomando aqui as análises de Larrosa e de Skiliar (2001), que língua é carregada de valores culturais, de poderes/saberes presentes em toda sociedade, ela possui o poder de nomear e atribuir valores, capazes de produzir sujeitos e subjetividade que se afirmam pela estranheza e alteridade entre o “eu” e o “outro”, onde o primeiro representa tudo o que é certo, a semelhança, a verdade que convenciona a partir do lugar da fala, reservando para si a posição de superioridade e relegando ao outro o desconfortável lugar de diferente, de cultura inferior, por isso posto à margem da sociedade.

No município de Rio Branco, o habitante do campo, o outro, na visão do habitante natural da cidade, foi conduzido a essa condição de marginalidade quando começa a mudar o cenário econômico e as relações de poder no Acre. Em 1960, a população rural do município de Rio Branco registrava um total de 125.318 habitantes14, e a parte urbana em torno de 34.000. Nas duas décadas seguintes, a crise nos seringais continuou a se agravar, refletindo diretamente na urbanização da cidade, que em 1970 possuía uma população apenas de 41,1%, e em 1980 essa população atingiria 132.174 habitantes, ou seja, crescera em quase 100.000 habitantes, o que representava então 74,8% da população habitando na cidade.(nota 15)

14

Até a década de setenta algo em torno de 72% da população do Estado vivia, predominantemente, nos seringais, conforme dados do Censo do IBGE de 1970. (MAIA, 2009)

15 OLIVEIRA, Luiz Antonio Pinto de. Expansão da fronteira, migração e reprodução urbana: o caso do Acre.

(15)

Após 1970, com o intenso êxodo rural, apareceram dezenas de novos bairros na capital acreana, a maior parte deles na periferia da cidade, constituindo ocupações irregulares

sem serviços básicos como saneamento, energia e água potável. Conforme Schmink e

Cordeiro (2008, p. 46), esse processo influenciou, em termos demográficos, um grande crescimento da população urbana, que no período passou de 30% para 70% no estado. E é óbvio que essa nova realidade traria consequências sociais graves para a cidade de Rio Branco, como um crescimento irracional e desordenado e o desemprego.

A maioria dos ex-trabalhadores rurais não era escolarizada e só tinham experiência em atividades ligadas ao trabalho com a terra, por isso, frente ao desafio de lutar pela sobrevivência no novo espaço, parte deles passou a viver do subemprego em diversos setores e ramos da economia informal, prestando serviços geralmente no âmbito doméstico ou no

comércio. Só lhes restara assim desenvolver atividades que não requerem qualificação formal

e que constituem relações e condições de trabalho caracterizadas pela precariedade, realizadas sem o mínimo de garantia do cumprimento da legislação trabalhista e social.

No setor da informalidade, o comércio ambulante se apresentou como a oportunidade viável para essas pessoas, que passaram a vender tanto em seus bairros como no centro da cidade. Em decorrência do aumento da população e, consequentemente, do desemprego, da década de 1980 em diante cresceu ano a ano o número de vendedores ambulantes em Rio Branco, e hoje, em determinadas ruas e espaços do centro da capital acreana é difícil encontrar passagem em meio a tantas barracas e tendas dos camelôs.

Nessas barracas são comercializados vários tipos de produtos falsificados ou importados ilegalmente, como brinquedos, eletroeletrônicos portáteis, celulares e acessórios, roupas, bolsas, calçados, óculos de sol. Tudo com preço acessível, o que atrai ainda mais os consumidores. São mercadorias, em sua maioria, adquiridas na fronteira do Brasil com a Bolívia na zona franca de Cobija16, município boliviano na fronteira com Brasiléia e Epitaciolândia, municípios acreanos.

As negociações na zona franca de Cobija promovem encontros entre acreanos e pandinos, por meio da comunicação entre os sujeitos que ali se cruzam e põem em contato a língua portuguesa com a língua espanhola. Esses encontros estabelecem entre os dois idiomas

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uma aproximação típica das zonas de contatos em fronteiras17. São esses encontros entre as cidades fronteiriças de Brasiléia, Epitaciolândia e Cobija o objeto de estudo do capítulo que segue.

17

Neste estudo trabalho com o conceito de Fronteira de Estado Nacional, aqui na Amazônia, devido a reconfiguração de terra, sobretudo a partir da década de 1970, construíram-se muitas outras fronteiras, a fronteira socioambiental, a fronteira da reserva extrativista, a fronteira indígena, a fronteira das fazendas, a fronteira porosa, entre outras.

(17)

CAPÍTULO -2

ENTRE CIDADES FRONTEIRIÇAS

2.1 BRASILÉIA, EPITACIOLÂNDIA E COBIJA

Conforme já explicitado no primeiro capítulo, as cidades de Brasiléia, Epitaciolândia e Cobija localizam-se numa zona fronteiriça, nos limites entre o Brasil e a Bolívia, estando separadas pelo rio Acre, mas interligadas por pontes de integração. Pelas suas posições geográficas, mantêm constantes relações comerciais, intensa circulação de pessoas e trocas culturais e sociolinguísticas. Essas características possibilitam identificar os três centros urbanos como cidades gêmeas.

Para se entender melhor esta identificação, é relevante conhecer o conceito de cidades gêmeas, definidas por Cortesão (apud COUTO e SILVA, 1967) como sendo núcleos urbanos simétricos postados em ambos os lados de uma fronteira que, com o auxílio de redes variadas, acabam por desenvolver grande trânsito de pessoas, mercadorias, culturas, informação e principalmente capital. Nesse sentido, entende-se por que são identificadas como cidades gêmeas Brasiléia, Epitaciolândia e Cobija.

Os contatos entre brasileiros e bolivianos nessa zona fronteiriça intensificaram-se a partir da década de 1970, quando teve início o fluxo migratório de trabalhadores rurais, especialmente de seringueiros, em direção aos seringais bolivianos, em decorrência da expropriação de terras com a implantação e expansão da agropecuária no Acre, conforme já exposto no primeiro capítulo. Porém, é importante ressaltar que esses contatos deram-se especificamente no interior do Departamento de Pando, e não na capital Cobija, já que o destino dos acreanos que migraram para a Bolívia era o campo e não a cidade.

No âmbito urbano, os contatos entre essas cidades gêmeas fortaleceram-se com a criação da zona franca de Cobija, em 1983, que além de se apresentar hoje como importante zona de intercâmbio internacional, também representa uma possibilidade de expansão de negócios e facilidades para a aquisição de produtos numa região periférica e isolada dos

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grandes centros comerciais tanto do Brasil como da Bolívia. Na década de 1990, quando cresce o número de estabelecimentos comerciais e a variedade de produtos na zona franca cobijenha, o que contribuiu para a desestruturação do comércio em Brasiléia, já em crise, os contatos entre brasileiros e bolivianos intensificam-se nessa zona de fronteira.

Até o ano de 2004, o trânsito entre os três municípios dava-se por meio da Ponte da

Amizade, que liga Epitaciolândia a Cobija, e também via catraia18, que transportava

passageiros e mercadorias entre Brasiléia e Cobija. Os contatos entre estes dois últimos centros urbanos estreitaram-se com a inauguração, entre 2004, da ponte internacional Brasil /

Bolívia Wilson Pinheiro.19

A ponte Wilson Pinheiro foi construída com o objetivo de intensificar o desenvolvimento nos aspectos produtivos, sociais, culturais, ambientais, turísticos e linguísticos nessa zona fronteiriça, uma vez que já existe ali uma relação comercial entre Brasil e Bolívia. Desde então, a ponte possibilitou maior qualidade de comunicação entre os dois centros urbanos, facilitando o trânsito de veículos e pedestres dessas comunidades, assim como o fluxo de produtos e mercadorias comercializadas entre os dois países.

Apesar do estreitamento do convívio entre os habitantes das três cidades gêmeas, facilitado pela proximidade geográfica, os limites entre elas são bem definidos não só pela organização político-administrativa, mas também por aspectos culturais. Mas como atividades ligadas ao trabalho, ao comércio e ao lazer, e também relacionamentos afetivos acontecem com frequência entre os habitantes fronteiriços nessa zona de contato, há cada vez uma relação de identificação e aproximação das duas populações das cidades de Brasiléia, Epitaciolândia e Cobija.

Assim, a fronteira entre essas três cidades, ao se manter nas práticas produtivas e sociais de seus habitantes, representa uma vantagem para o desenvolvimento local, em

18

Pequeno barco ou canoa que faz o transporte coletivo de pessoas e mercadorias, comum em certas regiões ribeirinhas da Amazônia, a exemplo do Acre. O dicionário Aurélio de Língua Portuguesa define catraia como um “pequeno barco tripulado por um homem”, porém ela é mais que uma de modalidade de transporte fluvial, é um instrumento de trabalho ou ganha-pão de diversas famílias.

19 Na última década, com as políticas para minimizar as descontinuidades geográficas, a América do Sul passou a

viabilizar novos interesses para as zonas transfronteiriças, com o objetivo de encurtar as distâncias físicas e simbólicas entre as nações. Nessa perspectiva, fora construída a Ponte Internacional Brasil / Bolívia Wilson Pinheiro com recursos provenientes do governo federal brasileiro através da SUFRAMA - Superintendência da Zona Franca de Manaus, e do Governo do Estado do Acre. O nome da ponte é uma homenagem ao líder sindical Wilson de Souza Pinheiro, assassinado com três tiros em 21 de julho de 1980, na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia, do qual era presidente. Wilson Pinheiro fazia parte da resistência de colonos e seringueiros à política de ocupação e expansão agropecuária incentivada pelo governo militar do país em oposição aos interesses dos povos da floresta.

(19)

especial para o comércio, mas também para as relações socioculturais, por isso, permanentemente, a essa fronteira apresenta-se como objeto de construção e reconstrução de identidades das pessoas que, por meio dela, trocam vivências, experiências e põem em diálogo valores e visões de mundo.

2.1.1 CIDADE DE COBIJA

O município de Cobija está situado no extremo norte da Bolívia e foi fundado em 9 Cobija é a capital do Departamento boliviano de Pando, que até o ano 1938 era um território pouco integrado à vida nacional da Bolívia, representava apenas Território Nacional de Colônias de Noroeste. A sua importância cresceu rapidamente durante o boom da borracha, experimentando um auge econômico na década de 1940, destacando-se depois com o cultivo da castanha. Este último produto é ainda uma importante línea econômica na região pandina.

de fevereiro de 1906 com o nome de Puerto Bahía, logo depois passou a se chamar Puerto Cobija e finalmente em 1908 fora designada Cobija em homenagem ao antigo porto de mar boliviano Cobija (Lamar), no Oceano Pacífico. Sua extensão territorial é de 449.14 km². Encontra-se a uma altitude de 235 metros acima do nível do mar e apresenta clima tropical

úmido e quente com temperatura média anual de 25,4°.20 Localiza-se à margem direita do rio

Acre, confrontando com as cidades brasileiras de Brasiléia e Epitaciolândia, estas situadas à margem esquerda do rio.

De acordo com o censo de 2001, a população total de Cobija era de 22.324 habitantes (20,820 dentro dos limites urbanos), sendo o município mais populoso do Departamento de Pando. Em 2007, sua população fora estimada em aproximadamente 34.000 habitantes, considerando-se a taxa anual de crescimento de 8%, desde o último censo em 2001, ocupando assim 60% da população total do Departamento, que é o menos habitado do país.21

A capital pandina liga-se, por uma estrada principal – pouco transitável no período das chuvas –, com a cidade de El Choro, no Departamento de Beni, conectando-se, a partir

20

Informações coletadas no Plano de Desenvolvimento Municipal de Cobija (PDM 2207 – 2011), disponível no endereço eletrônico: http://www.slideshare.net/doctora_edilicia/pdm-cobija. Acesso em 15 de fev. de 2013.

21

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daí, com o resto do país por outras vias rodoviárias. Possui uma moderna pista de aterrissagem apta para aeronaves de médio porte, mas o prédio do aeroporto, o Capitán Aníbal Arab, possui infraestrutura precária.22

O setor produtivo e econômico de Cobija tem como principais atividades a prestação de serviços, a indústria da castanha, microempresas, transporte e o comércio, este recebe um número muito grande de compradores brasileiros durante todo o ano em razão da variedade e

preços relativamente baixo dos produtos comercializados pela zona franca ali instalada.

2.1.2 O município de Brasiléia

Assim como grande parte dos municípios amazônicos, o município de Brasiléia também teve sua criação e desenvolvimento ligados à indústria extrativista instalada na região norte desde meados do século XIX. Segundo registros da historiografia local, as terras da antiga Brasília, mais tarde Brasiléia, eram ocupadas predominantemente por brasileiros no auge da revolução acreana e foram um ponto estratégico para que Plácido de Castro pudesse montar, no Alto Acre, bases militares quando da luta contra o exército boliviano.

Brasiléia surgira no seringal Carmen, quando este tivera, em 1910, uma pequena

parte de sua propriedade desmatada para abrigar um Termo Judiciário que teria sido desalojado do seringal Nazaré, em Xapuri. Acreanos importantes que habitavam no Alto Acre, principalmente seringalistas instalados em Cobija, com a ajuda de famílias de seringueiros, adentraram naquelas terras, retiraram parte da vegetação natural e construíram um “palácio da justiça” para acolher os representantes da justiça que havia recebido guarida em Cobija.

22

(21)

Sobre a fundação da cidade, conta-se que a idéia nascera das circunstâncias causadas por um incidente ocorrido entre o Juiz do 3º Termo Judiciário da Comarca de Xapuri, sediada no seringal “Nazaré”, e o arrendatário do seringal, João Pereira de Pinho.

Convidado por este a retirar-se da localidade, o Juiz Fulgêncio e o seu Auxiliar, conduzindo às costas todo o material e arquivo do Juizado, após percorrer outros seringais, sem obter o necessário acolhimento, dirigiram-se a Cobija, cidade fronteiriça boliviana, onde foram hospedados por patrícios ali residentes. (...)

Foi quando vários brasileiros de projeção residentes em Cobija, feridos no seu amor pátrio, não puderam ficar indiferentes a esse acontecimento, (...), reuniram-se na residência de José Cordeiro Barbosa e concordaram em conreuniram-seguir uma instalação condigna e apropriada para a justiça.

Organizou-se então uma comissão, que deveria escolher e adquirir o local para a fundação de uma vila, onde se construiria um prédio destinado à instalação desejada. (...). Escolheram, por fim, uma pequena faixa de terra do seringal “Carmen”, defronte a Cobija, à margem esquerda do rio Acre, ocupada apenas por uma estrada de seringueiras (...).

Ultimados os preparativos, no domingo de 3 de julho de 1910, às sete horas, cerca de 100 pessoas, entre homens, mulheres e crianças, deram início à derrubada da mata, sob ardoroso entusiasmo. (...)

Às 17 horas do mesmo dia foram suspensos e dados por concluídos os trabalhos, constatando-se desflorestada uma área considerável. Estava fundada Brasília.23

Mesmo fundada pouco antes da primeira crise da produção gumífera brasileira, os seringais de Brasília(nota de rodapé) – Brasiléia contribuíram intensamente com as receitas do Acre, provenientes da exportação da borracha para as indústrias inglesas e norte-americanas. O pequeno povoado crescera tornando-se uma vila, a qual fora elevada à categoria de município pelo Decreto-Lei Federal n.º 968, de 21 de dezembro de 1938. Seu nome foi mudado para Brasiléia pelo Decreto-lei Federal n.º 6.163, de 31 de dezembro de 1943, que dava nova organização judiciária ao Território do Acre.24

Brasiléia ocupa uma zona baixa da margem esquerda do rio Acre, situada na zona fisiográfica do vale do Alto Purus e Acre. Limita ao norte com o município de Sena Madureira, a este com Xapuri, ao sul com a Bolívia, a oeste com o Peru.25 De acordo com o Censo de 2010, o município de possuía 21.438 habitantes, sendo o sexto mais populoso do

23 Fonte: Brasiléia: Senado Federal, Gabinete do Senador Geraldo Mesquita Júnior, 2006. 36 p. – (Enciclopédia

dos municípios acreanos; v. 6, t. 1) versão eletrônica. Acesso em 21 de fevereiro de 2013.

24

Fonte: Prefeitura Municipal http://www.brasileia.ac.cnm.org.br. Acesso em 19 de fev. de 2013.

25

Conforme Enciclopédia dos municípios acreanos; v. 6, t. 1. Brasiléia. -Brasília: Senado Federal, Gabinete do Senador Geraldo Mesquita Júnior, 2006. 36 p.

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estado. O setor produtivo e econômico é baseado no extrativismo da madeira e castanha, na pecuária, no pequeno comércio, na prestação de serviços e na indústria, que vem se apresentando como o seu mais novo eixo produtor.

Em 2008, foi inaugurado no município um complexo industrial de aves, o qual envolve pequenos produtores na criação das aves e produção de milho e ração para abastecer as granjas familiares, estimulando assim uma cadeia produtiva que gera emprego e renda para muitas famílias. O resultado é o abate de cerca de 90 mil frangos por mês pelo frigorífico de aves de Brasiléia, o primeiro do Estado.26 Em 2011, entraram em funcionamento uma fábrica de beneficiamento de castanha e uma fábrica de embutidos no município.

Convém ressaltar que alguns setores do comércio da cidade vem sofrendo grande perda, pela falta de fiscalização na fronteira com a Bolívia, tendo em vista que as facilidades de negociação com empresários bolivianos instalados na ZOFRA de Cobija, associadas aos baixos preços das mercadorias que entram em sua grande maioria de forma ilegal no Brasil, tornam injusta a concorrência com os empreendedores que vivem do comércio de produtos nacionais em Brasiléia.

Além disso, vale destacar que não são apenas os consumidores que estão se voltando para o comércio fácil na zona livre de comércio de Cobija, mas também empresários das cidades de Epitaciolândia e Brasiléia, ou mesmo de Rio Branco, que com frequência abrem novos estabelecimentos e empresas no lado de lá da fronteira, deixando assim de investir na economia brasileira, minguando ainda mais as possibilidades de crescimento econômico de Brasiléia.

26

(23)

2.1.3 O município de Epitaciolândia

O município acreano de Epitaciolândia possui uma área 1.659,3 km2, equivalendo a 1,08% da área total do estado. Sua sede administrativa limita-se ao norte com o município de Xapuri, ao sul e a leste com a Bolívia e a oeste com o município de Brasiléia. Segundo dados do último censo do IBGE, em 2010 o município possuía uma população de 10.012 habitantes, na proporção de 39,46% rural e 60,54% urbana, com densidade demográfica de 9,12 hab./km², sendo o décimo segundo mais populoso do Acre27. Atualmente as estimativas da população total do município giram em torno de 15 mil habitantes.28

Localiza-se à margem direita do rio Acre, que o atravessa em toda sua extensão oeste-leste tendo o igarapé Bahia como uma de suas fontes hídricas importantes. É exatamente na confluência deste igarapé com o rio Acre que se encontra a sede do município, no ponto de fronteira com a cidade boliviana de Cobija. Quando ocorreram os conflitos armados entre Brasil e Bolívia pela posse do Acre, as terras que hoje compõem a cidade de Epitaciolândia foram cenário de guerra entre os dois exércitos em 1902, entrando para a história desses conflitos um combate às margens do igarapé Bahia, vencido pela Bolívia.

Até o ano de 1992, Epitaciolândia constituía uma vila chamada Epitácio Pessoa, quando foi separada do município de Brasiléia e elevada à categoria de município em 28 de abril, ganhando autonomia política. Sua área urbana é contígua com a cidade acreana de Brasiléia e com Cobija, capital do Departamento boliviano de Pando, com que mantém uma forte ligação comercial através da ponte internacional do igarapé Bahia.

A economia do município baseia-se principalmente nas atividades agropecuárias e no comércio, mas também possui um incipiente setor secundário, com beneficiadoras de madeira e pequenas indústrias, como marcenarias e olarias. O comércio é uma atividade dinâmica, desenvolvida por muitas casas comerciais, algumas delas possuindo matriz em Rio Branco, as quais atendem também a população de Brasiléia e de Cobija. Já os habitantes de Epitaciolândia buscam em Brasiléia serviços de correios e saúde, além do campus da

27

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Acesso em 14 de março de 2013.

28

(24)

Universidade Federal do Acre e áreas de lazer, e na cidade Cobija buscam fazer compras e negócios com empresários bolivianos, além da universidade de Cobija.

Epitaciolândia possui vários hotéis e serve como ponto de apoio para os brasileiros vindos principalmente de Rio Branco, que vêm à fronteira para fazer compras na zona franca cobijenha. Dessa forma, percebe-se que as três cidades são complementares, mantendo relação de dependência entre si, estreitando laços de amizade e trocas culturais e sociolinguísticas.

2.2 ZOFRA - ZONA FRANCA DE COBIJA

A Zona Franca Comercial e Industrial da Cidade de Cobija – ZOFRA foi criada mediante lei de 12 de outubro de 1983, pelo prazo de vinte anos, e mediante Lei nº 1.850 de 7 de abril de 1998 teve seu prazo de vigência ampliado por mais vinte anos computados a partir da data desta lei. Surgiu com o objetivo de impulsionar o desenvolvimento social e econômico do Departamento de Pando.

Os empresários importam produtos das zonas francas de Iquique, (Chile), Manaus (Brasil), da China e outros países da Ásia. Os produtos que mais se comercializam na ZOFRA de Cobija, em termos de volume, são os de utilidades do lar (utensílios de cozinha, peças ornamentais, roupas de cama), depois vêm os eletrodomésticos e brinquedos, seguidos dos eletrônicos e por fim bebidas importadas e ferragens. Praticamente não se comercializam produtos de origem boliviana. As compras podem ser realizadas em real, dólar ou boliviano, aceitando-se cartões de crédito internacional. A cota livre de tributos para compra é de US$ 300,00 para os viajantes que ingressam por via terrestre.

Desde a criação da ZOFRA, Cobija vive uma clara expansão cultural e econômica, promovida pelo intercâmbio com outras regiões bolivianas e Brasil, mais diretamente com o Acre, devido à proximidade e as facilidades de circulação e negociação na fronteira. O intercâmbio econômico se dá especialmente com as cidades gêmeas de Brasiléia e Epitaciolândia, que junto com Cobija formam uma área conurbada, cuja ligação física se dá por duas pontes que cruzam o rio Acre, limite da fronteira transnacional.

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O trânsito livre de pessoas na fronteira29 e os baixos preços das mercadorias devido à isenção de impostos na ZOFRA levam diariamente centenas de brasileiros a Cobija para comprar especialmente eletrodomésticos, produtos de informática, perfumes, bebidas e roupas. Porém, os cobijenhos também vão a Epitaciolândia e Brasiléia para fazer suas compras diárias em supermercados e lojas de móveis e roupas, buscando produtos diferentes do que encontram no comércio de Cobija.

É fácil perceber, para quem transita no centro comercial de Cobija, que a maioria dos

compradores são brasileiros, sobretudo rio-branquenses, que percorrem 230 km da BR 31730

até a fronteira, principalmente em fins de semana e em feriados. São famílias, turistas, comerciantes, vendedores ambulantes (camelôs) que buscam adquirir produtos, sobretudo

eletroeletrônicos ou de informática, ou porque não estão disponíveis no comércio da capital acreana ou outros porque apresentam valor bem menor que no Brasil. Essa realidade é confirmada por Candela Coimbra, comerciante boliviana que trabalha como gerente de uma loja de eletroeletrônicos e produtos de informática há sete anos na ZOFRA de Cobija: "El 99% de mis clientes son brasileños. Y nuestro mercado es Rio Branco."

Além do contato promovido pelas relações comerciais, brasileiros e bolivianos

também se relacionam nessa região de fronteira em situações sociais de diversão e entretenimento, de estudo e de amizade entre os vizinhos “patrícios” de Brasiléia, Epitaciolândia e Cobija. Muitos brasileiros estudam na Universidade Amazônica de Pando, em Cobija, onde as leituras e as aulas expositivas dão-se em língua espanhola. Também são comuns uniões afetivas e casamentos entre acreanos e bolivianos nessa fronteira, nascendo assim famílias bilíngues.

29 O Governo Brasileiro e o Governo da Bolívia assinaram, em 8 de julho de 2004, um Acordo com vista a facilitar o

ingresso e trânsito de seus nacionais em seus territórios: “O Governo da República Federativa do Brasil e O Governo da República da Bolívia doravante denominados as Partes, (...) conscientes da necessidade de acordar um regime simplificado que estimule e facilite o trânsito de pessoas, com fins oficiais, de turismo ou de negócios, entre os territórios de ambos os países, acordaram o seguinte: ARTIGO 2 - Os nacionais das Partes poderão ingressar, transitar e sair do território da outra Parte mediante a apresentação de seu documento nacional de identificação vigente e o cartão imigratório correspondente, sem necessidade de Visto. ARTIGO 5 - Os nacionais mencionados no Artigo 2 do presente Acordo poderão ingressar e sair do território do outro Estado por qualquer dos pontos de fronteira abertos ao trânsito internacional de passageiros. [...]. Fonte: www.brasil.org.bo/pasaportes.htm. Acesso em 10 de fev. de 2013.

30 O fluxo de acreanos indo às compras na ZOFRA de Cobija aumentou bastante com a pavimentação, na década

de1990, do trecho Rio Branco-Brasiléia da rodovia BR-317, que une os 348.354 (IBGE-2011)habitantes da capital Rio Branco com a fronteira entre Brasil e Bolívia, na localidade dos municípios de Brasiléia, Epitaciolândia e Cobija.

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Dessa forma, os dois países, apesar de separados social, cultural e linguisticamente, se identificam por laços de união entre seus membros, fazendo surgir, de certo modo, uma hibridização cultural e novas identidades, sempre transitórias, devido às interferências e influências nas relações diárias entre as partes. Cabendo aqui citar Silva (2008, p.87): “A identidade que se forma por meio do hibridismo não é mais integralmente nenhuma das identidades originais, embora guarde traços delas.”

O espaço do comércio na ZOFRA cobijenha, por permitir o contato direto e frequente entre dois povos, torna-se um ambiente bastante favorável para a observação e análise de como se dá a mistura de culturas e confluências identitárias diversas, uma vez que livremente se pode observar momentos de intercâmbios linguísticos, sobretudo orais em

situações informais, nas ruas, mercados e lojas da capital pandina. Por isso, esta pesquisa foca

o estudo de seu objeto nesse cenário, procurando investigar como brasileiros e bolivianos interagem em meio a esse encontro e põem em contato o português e o espanhol, línguas de fronteira nas cidades de Brasiléia, Epitaciolândia e Cobija.

Para discutir e analisar esse contato linguístico é que foi organizado o terceiro capítulo, no qual se procura demonstrar por que na interação entre brasileiros e bolivianos que habitam este ponto da fronteira sul-ocidental há mais interesse dos bolivianos em aprender o português do que dos brasileiros em aprender a língua espanhola. As discussões foram fundamentadas na análise dos dados coletados em observações e entrevistas realizadas com falantes das duas línguas na fronteira Brasiléia, Epitaciolândia e Cobija.

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CAPÍTULO 3

LÍNGUAS EM CONTATO: EXPERIÊNCIAS SOCIAIS NA FRONTEIRA BRASILÉIA, EPITACIOLÂNDIA E COBIJA

3.1 ENTRE COMÉRCIOS DE ZONAS DE FRONTEIRA

A fronteira física que promove encontros entre acreanos e pandinos na região do Alto Acre, onde se avizinham as cidades gêmeas de Brasiléia, Epitaciolândia e Cobija, mostra-se não só como um espaço geográfico, mas também social e cultural, no qual brasileiros e bolivianos têm construído experiências sociais materializadas por meio da língua, principal instrumento de contato entre esses dois países.

Neste sentido, procurando entender os fatores que manifestam as relações linguísticas nesta fronteira, aquelas motivadas pelas relações comerciais, de trabalho e sociais

entre brasileiros e bolivianos, particularmente pelo comércio estabelecido entre Brasiléia,

Epitaciolândia e Cobija, apresenta-se a análise das entrevistas realizadas com brasileiros e bolivianos que nelas moram e trabalham.

Desta forma, as narrativas de homens e mulheres que vivenciam experiências nessa zona de contato nos permitem perceber a porosidade que nessa fronteira se evidencia particularmente pelo comércio entre as cidades. Pandinos buscam os supermercados, farmácias e lanchonetes de Brasiléia e Epitaciolândia, enquanto acreanos destas cidades e de outras próximas visitam continuamente Cobija para realizarem compras de produtos eletroeletrônicos, utilidades domésticas, roupas, brinquedos etc.

Porquanto, o comércio se manifesta como o elemento que proporciona maior contato linguístico entre acreanos e pandinos, devido ao significativo fluxo de brasileiros comprando e negociando na zona franca de Cobija, assim como a diária presença de cobijenhos no comércio do lado brasileiro. Portanto, as relações nesta zona de contato vão sendo

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influenciadas no cotidiano das interações entre brasileiros e bolivianos, segundo interesses e

necessidades de ambos os lados31.

Devido ao fato de o maior contato entre os falantes do português e do espanhol nessa região dá-se do lado boliviano, a descrição e análise da comunicação de brasileiros e bolivianos nesta pesquisa tiveram como campo de observação e estudo principalmente a ZOFRA de Cobija, onde foi possível investigar práticas linguísticas resultantes de relação predominantemente comercial.

De acordo com a senhora Áuria Maria, 25 anos, ensino médio incompleto, operadora de vendas em uma loja de confecções na cidade de Epitaciolândia, para justificar seu desinteresse em aprender a língua espanhola e a suposta “obrigação” dos cobijenhos em se comunicar com os brasileiros por meio do português, fez referência ao fato de a Bolívia ter perdido o Acre para o Brasil, e portanto, na visão do entrevistado, a língua dos vencedores estaria hierarquicamente numa posição superior em relação à língua dos derrotados.

“Eu acho que os bolivianos se esforçam pra entender o nosso português, por isso eu num acho necessário a gente tá falando com eles em espanhol, e além do mais, se foi nós que ganhamo esse lugar aqui, que era deles, então a língua que nós devemos usar é a nossa, porque se fosse pros acreanos falarem o espanhol o Acre tinha fica com a Bolívia, né?!”

31

Importante salientar que em vista dos interesses dos bolivianos, esses os contatos entre acreanos e pandinos nessa região de fronteira nos últimos anos nem sempre têm se dado de forma pacífica, basta lembrar que no ano de 2011 autoridades cobijenhas saquearam a loja Harley, de propriedade de dois brasileiros que comercializavam legalmente no país há mais de seis anos e geravam inúmeros empregos diretos aos bolivianos. Também há anos os bolivianos vêm praticando a expulsão, quase sempre de modo violento, de seringueiros e colonos brasileiros que passaram a ocupar o lado boliviano da fronteira como forma alternativa de trabalho quando perderam a terra onde trabalhavam no Brasil com a chegada da frente agropecuária no Acre. A expulsão dos brasileiros residentes na fronteira se deu sob a alegação de uma política de segurança nacional e afirmação de soberania da parte da Bolívia. Talvez entendamos melhor essas atitudes dos “patrícios” da fronteira considerando aqui Diego Correia (2010, p. 91), quando explica que “muitas vezes, aqueles estabelecidos em região de fronteira são cobrados a um compromisso nacional, na defesa do território e da soberania, numa obrigação civil de agir na proteção e fortalecimento da identidade nacional diante do outro (estrangeiro). Tal comprometimento se dá em função de essa territorialidade ser estratégica para o Estado, pela defesa não apenas territorial, como também do próprio ethos, seja brasileiro ou boliviano.” (CORREIA, Diego. Sociabilidades na Fronteira: desterritorialização e disputas identitárias na fronteira entre Brasil

e Bolívia, cap. IV. In Processos de territorialização e identidades sociais. VALENCIO, Norma; DE PAULA, Elder Andrade; WITKOSKI, Antonio Carlos (Org.). São Carlos: RiMa Editora, 2010, vol. I.)

(29)

O elemento linguístico passa pelo viés histórico, neste caso, ao se apontar a vitória dos brasileiros, ao fim das disputas pelas terras acreanas, em 1903, diante dos bolivianos. Essa conquista, na concepção da entrevistada, parece simbolizar também a vitória da língua portuguesa diante da língua espanhola no Acre. Para reforçar este argumento, cabe aqui citar Diego Correia (2010, p. 102), quando escreve que:

autores como Goffmann (1975) e Bauman (1998) entendem que a identidade possui dois elementos de formação: ao mesmo tempo em que é produção do sujeito, é produto de uma sociabilidade, ou seja, uma tentativa de autoimagem subsidiada por questões como a história, a linguagem e o território, e que deve ser validada pelo outro. Dentro da faixa de fronteira boliviana, compartilhada entre brasileiros e bolivianos, a alteridade à qual a construção das identidades é submetida acontece dentro de um mesmo território, realçando disputas que ressuscitam divergências históricas e servem de mote para amparar conflitos.32

Além do fator histórico, há ainda um fator de natureza econômica envolvido na forma como a Bolívia é vista e julgada pelos brasileiros, devido sua condição de país subdesenvolvido economicamente. A sociedade boliviana é estigmatizada pelo brasileiro como grupo social em situação de desvantagem, tendo em vista que uma considerável parcela da população encontra-se privada de oportunidades socioeconômicas.

Essa realidade foi apontada na fala de um dos entrevistados acreanos como razão de pouco os brasileiros da fronteira Acre/Pando se esforçarem para aprender o espanhol. A fala do senhor Jorge Soares, proprietário do ramo alimentício na cidade de Brasiléia, exemplifica bem esse discurso. Quando perguntado sobre o interesse dos acreanos que vivem na fronteira quanto à aprendizagem do espanhol, ele respondeu:

“Não, não vejo isso, não vejo esse interesse. Eu acho que por causa da formação mesmo, da cultura, não tem interesse de brasileiro querer se esforçar pra falar espanhol, principalmente o pessoal do comércio aqui, fala português mesmo. Eu acho importante aprender outra língua, mas eu acho

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CORREIA, Diego. Sociabilidades na Fronteira: desterritorialização e disputas identitárias na fronteira entre Brasil e Bolívia, cap. IV. In Processos de territorialização e identidades sociais. VALENCIO, Norma; DE PAULA, Elder Andrade; WITKOSKI, Antonio Carlos (Org.). São Carlos: RiMa Editora, 2010, vol. I.

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