RESUMO: A IMPORTÂNCIA DO ESQUECIMENTO NUMA PSICOLOGIA DA TRANSVALORAÇÃO: O HOMEM QUE PODE
PROMETER
Simone Cristina de Amorim1
RESUMO: Em nosso objeto, tratamos do conceito de inconsciente em Deleuze (1976), portanto anterior ao conceito esquizoanalítico de inconsciente e a partir da teoria das forças de Nietzsche. O objetivo do trabalho é o de verificar se o esquecimento pode contribuir para a transvaloração, numa concepção psicológica que dê prioridade a construção do futuro, através do acionamento do homem que pode prometer. O método empregado trata de análise puramente conceitual, portanto qualitativa. Como resultado obtido verificamos que: sim, o esquecimento lança uma nova perspectiva acerca da intervenção sobre o inconsciente, uma vez que “o erro da psicologia foi o de tratar o esquecimento como uma determinação negativa, de não descobrir seu caráter ativo e positivo” (DELEUZE, 1976, p.94). Como significado desse resultado podemos traçar dois apontamentos: a) uma psicologia que prime por um excesso de memória ao invés do esquecimento ativo, pode trabalhar para barrar uma maior amplitude de experimentações humanas; b) um trabalho psicológico que ative a plasticidade humana de prometer, pode atuar para a criação de novas condições de vida. Assim, valorizar o esquecer, lança uma nova perspectiva acerca do inconsciente, pois, através da faculdade do esquecimento a vivência do presente é possibilitada e a do futuro tomada como projeto. Para Nietzsche (s/d, p.40) se o psicólogo trabalhar pelo bom funcionamento do aparelho que possibilita a atividade inconsciente do esquecimento, pode reclamar para si o direito de ser um artesão que modifica a hierarquia das forças, pois redireciona a atividade para a criação. Com uma psicologia da transvaloração dos valores morais, amplia-se a possibilidade de transmutar a moralidade reativa que permeia a cultura, de modo a dissolver as petrificações na consciência e o desespero gerado pela ausência de sentido advindo do desmoronamento dos valores transcendentes. Deste modo, ao invés de o psicólogo reafirmar a interiorização, pode trabalhar pela inserção de mais flexibilidade na “faculdade do esquecimento”, para auxiliar na renovação da consciência humana e conseqüentemente, na constante renovação dos valores e da cultura.
Para a compreensão do conceito de inconsciente em Deleuze (1976), a partir da teoria das forças de Nietzsche é importante ressaltar alguns aspectos desta teoria: as chamadas forças reativas sempre vão estabelecer limites para a ação de uma outra força da qual já sofremos o efeito e as forças ativas vão desencadear de forma rápida e precisa a reação para uma determinada tarefa. Assim o inconsciente, pode ser entendido como parte de um “aparelho” onde as forças ativas criam e as forças reativas sustentam tal criação; essa é a composição esperada quando o inconsciente funciona bem.
Esse aparelho psíquico dispõe de dois sistemas de forças: um atua em conjunto com a consciência, atravessando-a, sem nela se estabelecer, nele a reação liga-se à excitação atual, de modo que as forças reativas capturam o que afeta os sentidos na consciência e é acionada uma reação correspondente ao presente; outro atua em conjunto com a memória e nela retém os traços, devido à impossibilidade do desaparecimento inativo de qualquer impressão sofrida.
esquecimento deixa de operar como “aparelho de amortecimento” entre a excitação na consciência e os traços na memória. Assim, atuar para inserir mais potência na faculdade do esquecimento abre uma nova possibilidade acerca do trabalho inconsciente. Pois, “O erro da psicologia foi o de tratar o esquecimento como uma determinação negativa, de não descobrir seu caráter ativo e positivo” (DELEUZE, 1976, p.94).
Nietzsche avisou aos que enfrentam monstros para estarem atentos e não tornarem-se um deles; “se olhares demasiado tempo dentro de um abismo, o abismo acabará por dentro de ti” (s/d, p.99). Em nossa leitura de Nietzsche (1999, p.25-28), ao pensarmos o homem como portador de um modo de ser especialmente reativo, vemos que sua prodigiosa memória é inerente à sua condição. De acordo com Rauter (1998), Nietzsche mostra que um excesso de história poderia limitar e inclusive impedir a ação, uma vez que a incapacidade de agir é a incapacidade de esquecer. “Assim, a função do esquecimento é primordial à ação, à atividade, à criação. Mas diferentemente do animal, o homem carrega o fardo da história” (RAUTER, 1998, p.72), vemos que a construção de uma outra história de si, pode resultar não necessariamente em ações, ou no predomínio de forças ativas, “mas a correlações de forças em que as forças reativas são fortalecidas” (RAUTER, 1998, p.72).
nele seja mantida. “Eis aí precisamente o objetivo seletivo da cultura: formar um homem capaz de prometer (...) Só um homem assim é ativo; ele aciona suas reações...”(DELEUZE, 1976, p.111). O homem ativo, livre e poderoso, liberado da moralidade dos costumes pode prometer, “autônomo e super-moral (pois autônomo e moral se excluem), em suma, o homem de vontade própria, independente e persistente”(DELEUZE, 1976, p.114).
Deleuze (1976), afirma que “Nietzsche é o único que não geme sobre a descoberta da vontade”(DELEUZE, 1976, p.29). Em Nietzsche está presente uma categoria de pensamento que finalmente expulsa todo o negativo. Passado e futuro tem uma inocência, existência e vontade não são culpadas por existir. A vontade é vista como quem anuncia e libera a alegria. Este é o incompreendido sentido trágico nietzscheano: “trágico=alegre”, “querer=criar”, o trágico como positividade pura, múltipla e dinâmica; que afirma tanto o acaso como sua necessidade, “porque afirma o devir e o ser do devir, porque afirma o múltiplo e o um do múltiplo. (...). Todo o resto é niilismo, phatos dialético e cristão, caricatura do trágico, comédia da má consciência.”(DELEUZE, 1976, p.30).
Para Deleuze (1976, p.143), o que Nietzsche chama de transmutação ou transvaloração não é apenas uma mudança dos valores, mas a remoção do elemento negador e negativo, com a abertura para o elemento afirmador e positivo do qual deriva o valor dos valores. “A destruição torna-se ativa no momento em que estando rompida a aliança entre as forças reativas e a vontade de nada, esta última se converte e passa para o lado da afirmação, relaciona-se com um poder de afirmar que destrói as próprias forças reativas. A destruição torna-se ativa na medida em que o negativo é transmudado, convertido em poder afirmativo...” (DELEUZE, 1976, p.146). É o aprendizado que deixa Zaratustra em O convalescente “Tudo se constrói, tudo se destrói, eternamente se edifica a mesma casa da existência.”(NIETZSCHE, 1999, p.170).
hierarquia das forças, pois redireciona a atividade para a criação. Com uma psicologia da transvaloração dos valores morais, amplia-se a possibilidade de transmutar os tipos reativos que permeiam a cultura, de modo a dissolver as petrificações na consciência e o desespero gerado pela ausência de sentido advindo do desmoronamento dos valores transcendentes.
Parafraseando Deleuze (1985, p.17), no que toca a psicologia, vemos que tomar a transmutação inconsciente a partir da faculdade do esquecimento, está para a psicologia como uma contra-psicologia, atrelada a uma nova política: a contra-cultura trágica da interioridade. Deste modo, ao invés de o psicólogo reafirmar a interiorização, pode trabalhar pela inserção de mais flexibilidade na “faculdade do esquecimento”, para auxiliar na renovação da consciência humana e conseqüentemente, na constante renovação dos valores e da cultura.
Bibliografia básica
DELEUZE, G. Pensamento nômade. In: ESCOBAR, C. H. (org). Por que Nietzsche? . Rio de janeiro: Achiamé. 1985. p.9-17.
DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Tradução Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
NIETZSCHE, F. W. Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia do futuro. Tradução Márcio Pugliesi. 5.ed. São Paulo: Hemus, s/d.
______. Assim Falou Zararustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 1999.
______. Genealogia da Moral: uma polêmica. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 1998.