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Os nomesdopai no Grande Sertão: edas para a feminilidade?

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UFC

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES Programa de Pós-Graduação em Psicologia

MESTRADO EM PSICOLOGIA

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

Os Nomes-do-Pai no Grande Sertão: Veredas para a feminilidade?

Magaly Ferreira Mendes

(2)

Os Nomes-do-Pai no Grande Sertão: Veredas para a feminilidade?

Magaly Ferreira Mendes

Dissertação de mestrado apresentada no Programa

de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de

Psicologia da Universidade Federal do Ceará como

requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre

em Psicologia

Orientadora: Profa. Dra. Laéria Fontenele

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MENDES, Magaly Ferreira.

Os Nomes-do-Pai no Grande Sertão: Veredas para a feminilidade?

Magaly Ferreira Mendes. – Fortaleza: [s.n.], 2007 191 f.: il.; 30cm

Orientadora: Laéria Fontenele

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará. Programa de Pós-graduação em Psicologia.

1- Grande Sertão: Veredas 2- função paterna 3- feminilidade.

I- Fontenele, Laéria. II- Universidade Federal do Ceará Programa de Pós-graduação em Psicologia.

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Os Nomes-do-Pai no Grande Sertão: Veredas para a feminilidade?

Magaly Ferreira Mendes

Dissertação de mestrado submetida ao corpo docente da Pós-Graduação em

Psicologia da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Ceará – UFC, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.

Banca Examinadora:

Profa. Dra. Laéria Fontenele

Prof. Dr. Ivan Corrêa

Profa. Dra. Nadiá Paulo Ferreira

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A meu pai, pelos desenhos.

À minha mãe, pela música.

(6)

TRAVESSIAS

A primeira vez que li a obra Grande Sertão: Veredas foi há muito tempo.

Nesta época, não estava aqui, na Fortaleza próxima ao sertão. Ao contrário dessa, eu me

encontrava longe, bem longe dele. Estava num Porto Alegre, mais próxima da

campanha. No entanto, levei para lá livros de psicanálise, Os Sertões e o Grande Sertão.

Não pensei no porquê de estar levando estes dois. Tampouco sabia se os leria. Li-os, é

claro. A distância e a saudade criaram o espaço e o tempo do desejo de fazê-lo e de lá,

mais afastada, apreciei o sertão.

Depois, estando de volta, o Grande Sertão ficou sendo para mim uma

espécie de livro de cabeceira. Algumas pessoas costumam abrir a Bíblia ao acaso

buscando algum saber. Eu fiz isso, durante estes anos, com esse romance. Se me

perguntassem por quê, não saberia dizer. Agora sei que é porque o amo.

Recentemente, minha filha me apresentou um novo termo colhido de um

livro que ela estava a ler, intitulado Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves (2006).

Nele, se encontra um termo inusitado - “serendipidade”. Para explicá-lo, a autora

recorre a Horace Walpole, que o empregou pela primeira vez no ano de 1754:

“Serendipidade então passou a ser usada para descrever aquela situação em que

descobrimos ou encontramos alguma coisa enquanto estávamos procurando outra, mas

para a qual já tínhamos que estar, digamos, preparados” (Walpole apud Gonçalves,

2006, p.9).

Talvez para mim, o Grande Sertão tenha funcionado como mais um caso de

serendipidade, pois, quando o descobri, na realidade, procurava outra coisa. Mas faço

uma ressalva: nesta ocasião, eu não estava preparada. Por isso o romance teve de passar

tantos anos ecoando até que, enfim, eu de alguma forma o ouvisse. Assim, de um

movimento que se originou de um afastamento, de uma deserção do sertão, comecei a

tecer um discurso sobre este deserto. O resultado foi esta minha dissertação. Nela, falo

apenas do que me foi possível encontrar naquilo que ouvi.

Sei que, se juntei coragem para falar agora sobre isso, não foi exatamente

por me sentir preparada, mas pelo anseio de buscar as condições que me permitiriam

dizer alguma coisa sobre meus achados. Nesta busca, dei-me conta de que ler livros é,

ao mesmo tempo, abrir e percorrer veredas, construir caminhos. A empreitada é

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acesso e até mesmo perigosas. Passa-se por trechos de grande solidão. Muitas vezes,

perdi-me entre veredas.

No entanto, nas horas mais arriscadas, tive a sorte e a alegria de poder contar

com a ajuda, imprescindível, de muitos. Sem eles, sei que não teria conseguido - ou

talvez tivesse, mas aí teria sido tremendamente árduo. Talvez eu desistisse.

Quando atravessou o Grande Sertão, Riobaldo, personagem das criativas

veredas de Guimarães Rosa, foi com muitos companheiros. Ele cita 80 deles. Eu,

olhando para trás, olhando o caminho que fiz, posso dizer como Riobaldo que “se

agüentava aquilo, era por causa da boa camaradagem” (GSV1, p.242). Como ele, tive ao

meu lado “[g]2ente certa. E no entre esses, que eram, o senhor me ouça bem:” (GSV,

p.242) Ivan Corrêa, meu supervisor, “indo à frente, e não sediava folga nem cansaço”3;

a Laéria – que foi minha analista e depois ficou sendo minha orientadora: “sabendo

[desta], o senhor sabe minha vida”. A Tarciana, minha filha, “de ferro e ouro”; o João

Paulo, meu filho, “cumpridor de tudo e [rapaz] de muito respeito”; o Tiago, também

meu filho, rapaz “desmarcado de forçoso: capaz de segurar as duas pernas dum poldro”

- meus três amores. A Magda, esta “nunca se [esquece] de nada”; Baby, “quase

[menina], [filha] de todos no afetual paternal”; Odilo, “que [ganha] em todo jogo de”

sinuca; o Vicente, “filho dum [...] que se chamava” Francisco de Assis, meu avô, grande

pai; o Bosco, também filho deste, “muito parecido” com o pai dele; a Edwiges,

“[mulher cordata] – a [ela estou] devendo, sem me lembrar de pagar, a quantia de

dezoito mil-réis”; Jerzuí, amiga “de minha melhor estimação”; o Ronald, “rastreador,

[...] sabente”; o Hamilton, “outro rastreador, [...], boa pessoa”; o Secundo, “faquista,

perigoso nos repentes”; Iracema, “caçador[a] muito [boa]”; o Carlos, “amigo em tanto”;

o Anderson, “que achava os lugares d’água”, José Maria Arruda, “competente sujeito”,

Ricardo Barrocas, “valente demais e esquentado”, a Nadiá, que “[entende] de toda

mandraca”. “E – que ia me esquecendo – a Léa, “entendid[a] de curar qualquer doença”

de ortografia. “A mais, que nos dedos conto:” mulheres e homens, pais e filhas, que dia

1

A título de simplificação, quando nos referirmos ao romance Grande Sertão: Veredas, adotaremos a abreviatura, “GSV” seguida da página onde se poderá localizar a citação. Todas as citações constantes no corpo deste trabalho foram retiradas da 15ª edição publicada no ano de 1982 pela José Olympio Editora. 2

Ao longo deste trabalho, transcreveremos passagens de várias fontes. A fim de que estas se harmonizem com o corpo do trabalho, procedemos a adaptações, às quais, mesmo estando entre aspas, por estarem entre colchetes, hão de fazer parte do texto original do autor citado.

3

(8)

após dia vão ao meu consultório e lá contam suas histórias; os companheiros do Centro

de Estudos Freudianos do Recife, queridos amigos; os do Corpo Freudiano de Fortaleza,

também; os professores do Mestrado de Psicologia da UFC, a Jaqueline da Secretaria de

Saúde do Estado do Ceará; os amigos do Hospital de Saúde Mental de Messejana e os

do CAPS Nilse da Silveira; os pacientes que atendo nestes lugares. “Afora algum de que

eu me esqueci – isto é: mais muitos... Todos juntos, [isso] tranqüiliz[ou] os ares”.

Sinceramente, agradeço a todos, tão amáveis.

Agora só me resta dizer que atravessei o Grande Sertão como pude e por ele

também fui atravessada. O que falo sobre suas Veredas é de minha exclusiva

(9)

RESUMO

MENDES, Magaly Ferreira. Os Nomes-do-Pai no Grande Sertão: Veredas para a feminilidade?, 2007. 191 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia – Área de concentração: Psicanálise). UFC. Fortaleza.

Este trabalho realiza um estudo sobre a especificidade da relação entre pai e filha para interrogar se a função paterna teria alguma influência sobre o advento da feminilidade para uma filha. Desta maneira, seu objetivo principal consiste em identificar, a partir da análise do romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, os caminhos que viabilizem um novo dizer no que concerne à relação entre a função paterna e a feminilidade e que esteja alicerçado nas elaborações de Sigmund Freud e Jacques Lacan. Ao recorrer tanto ao romance de Guimarães Rosa quanto às elaborações psicanalíticas de Freud e Lacan, a presente investigação constata a abertura epistêmica promovida por estes textos em torno das questões sobre o pai bem como sobre a feminilidade e se insere na continuidade das reflexões sobre o tema. Para tanto, apóia-se nas formas inéditas de dizer viabilizadas pela criação literária, nos avanços teóricos promovidos pela obra freudiana e nas ampliações destas mesmas aquisições teóricas proporcionadas pelas elaborações lacanianas. Especificamente no que diz respeito a estas últimas, o trabalho conta com o alargamento das reflexões sobre a função paterna na contribuição teórica de Lacan ao introduzir o conceito de Nome-do-Pai. Daí o título desta investigação - “Os Nomes-do-Pai no Grande Sertão: Veredas para a feminilidade?” – ser interrogativo, portanto, não-conclusivo, uma vez que não poderia pretender a insensatez de um fechamento das questões aqui abordadas, tampouco da obra literária. Isto, evidentemente, não impede que algo mais seja dito. Portanto, a hipótese levantada neste trabalho consiste em verificar se, no Grande Sertão: Veredas, a relação mantida entre o personagem Diadorim e seu pai, Joca Ramiro, impediu ou viabilizou o acesso daquele à feminilidade. Ao final, o que se conclui é que esta relação favoreceu um acesso muito peculiar de Diadorim ao infinito em que a feminilidade se constitui. Por conseguinte, as veredas da investigação se mantêm em aberto suscitando novas descobertas.

(10)

RÉSUMÉ

Ce travail réalise une étude sur la spécificité du rapport entre père et fille pour intérroger si la fonction paternelle aurait quelque influence sur l’avènement de la féminisation pour une fille. De cette manière, son objectif principal consiste à identifier, à partir de l’analyse du roman Diadorim qui porte le titre original de Grande Sertão : Veredas, de João Guimarães Rosa, les chemins qui viabilisent une nouvelle façon de dire en ce qui concerne la relation entre la fonction paternelle et la féminisation et qui soit basée sur les élaborations de Sigmund Freud et Jacques Lacan. Lors de la recherche basée sur le roman de Guimarães Rosa et aussi sur les élaborations psychanalytiques de Freud et Lacan, cette investigation constate l’ouverture épistémologique promue par ces textes autour des questions sur le père ainsi que sur la féminisation et s’insère dans la continuité des réflexions sur le thème. Pour le faire, l’investigation s’appuie sur les formes inédites de dire rendue viables par la création littéraire, sur les progrès théoriques promus par l’oeuvre freudienne et dans l’agrandissement de ces mêmes acquisitions théoriques proportionnées par les élaborations lacaniennes. Spécifiquement en ce qui concerne ces dernières, le travail compte sur l’élargissement des réflexions sur la fonction paternelle dans la contribution théorique de Lacan lorsqu’il introduit le concept de Nom-du-Père. C’est pourquoi l’investigation a le titre – “Os Nomes-do-Pai no Grande Sertão : Veredas para a feminilidade?” – c’est-à-dire être interrogatif et, par conséquence, ne pas être conclusif, puisqu’il ne pourrait pas avoir l’intention d’une conclusions des questions y traitées ni de l’oeuvre littéraire non plus. Évidemment cela n’empêche pas que d’autres choses soient dites. Donc, l’hypothèse suscitée dans ce travail consiste à vérifier si, chez Grande Sertão : Veredas, le rapport entre le personnage Diadorim et son père, Joca Ramiro, a empêché ou a rendu possible l’accès de celui-là à la féminisation. A la fin nous arrivons à la conclusion que ce rapport a favorisé un accès très particulier de Diadorim vers l’infini où la féminisation se consistue. Par conséquence, les sentiers de l’investigation continuent ouverts suscitant de nouvelles découvertes.

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SUMÁRIO

Prelúdio ... 13

I POR CAUSA DAS LACUNAS 1.1 Introdução... 20

1.2 A ficção e a psicanálise ... 24

1.3 A ficção e a literatura... 26

1.4 As lacunas que motivam a caminhada ... 30

1.5 Em busca de um caminho... 32

II UMA ESTÓRIA QUE NASCE DO CAOS PARA VIVER MUITAS GUERRAS EM NOME-DO-PAI 2.1 Introdução ... 35

2.2 Do caos ao “homem dos avessos”... 35

2.3 O “redemunho” do Nome-do-Pai... 38

2.4 O des-tino dos nomes ... 41

2.5 Uma figura estonteante... 44

2.6 Por causa de um olhar anterior ao olhar ... 47

2.7 Do vazio ao corte ... 50

2.8 Um Juiz Supremo ... 52

2.9 Sobre a condição para que o pai funde a lei ... 57

(12)

III

VESTÍGIOS DE MULHER

3.1 Introdução... 72

3.2 Torções... 72

3.3 “Um Diadorim assim meio singular”... 75

3.4 Um Menino “Dessemelhante” ... 78

3.5 Um menino “diferente, muito diferente...”... 81

3.6 Um Menino-Moço e o amor vindo “de um-que-não-existe” ... 82

3.7 Mulheres belas e instigantes... 87

3.8 Os batedores investigam os vestígios de mulher ... 95

3.9 Amor de ouro... 108

3.10 Amor de prata, outros amores e outros casos... 113

IV UMA MULHER 4.1 Introdução... 121

4.2 “um feio dia” ... 122

4.3 Uma música inaudível... 125

4.4 Joca Ramiro: um sol de alegria para Diadorim ... 131

4.5 As roupas de Diadorim ... 135

4.6 Em nome do pai... 141

4.7 Grilhão de elos imponderáveis ... 146

4.8 Para além do traje, o ultraje de Diadorim ... 158

4.9 A pedra começa a rolar ... 164

4.10Para Riobaldo, o êxtase e o horror. Para Diadorim, o horror e o êxtase ... 170

CONCLUSÃO ... 182

(13)

PRELÚDIO

“Que não existe, que não, que não, é o que minha alma soletra” (GSV1,

p.229), afirma o narrador do romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães

Rosa. Nesta idéia, parece-nos ecoar uma espécie de síntese do trabalho que pretendemos

realizar: um estudo sobre a relação entre pai e filha, considerando-a, em suas

implicações, sobre a constituição da feminilidade, e efetivado a partir do referencial

teórico da psicanálise e da análise do romance rosiano.

Por que reconhecemos ressonâncias entre a afirmação do narrador rosiano e

uma síntese do nosso estudo? O intuito desta introdução seria, então, o de nos

mostramos decididos a assumir, como faz o narrador do Grande Sertão, o tom

persuasivo sobre a não existência de algo? Acaso estaríamos, desde já, reiteradamente

procurando nos convencer de que não existe relevância em investigarmos as possíveis

implicações da relação entre pai e filha no que diz respeito aos rumos que esta pode

adotar frente à feminilidade? Devemos prontamente responder que não, pois, muito ao

contrário, o que a observação clínica, a teoria psicanalítica, e a própria narrativa do

romance rosiano nos propiciam é a oportunidade de soletrarmos a importância desta

relação sobre o devir da feminilidade.

No entanto, em nenhum destes campos do saber, essa possibilidade nos é

dada como já completamente explicitada. Antes, tanto a clínica quanto a teoria

psicanalíticas - bem como o Grande Sertão - nos incitam a realizar uma travessia

procedente de questões lacunares que assim se mantiveram em decorrência de alguns

paradoxos e impossibilidades. Frente a estes, as soluções muitas vezes conduziram à

suspensão e à perplexidade.

Um dos paradoxos diz respeito exatamente à confrontação de Freud - o

inventor da psicanálise - e de Riobaldo - o narrador do romance - com a própria noção

de existência que remete, grosso modo, à tentativa de definição ou delimitação de algo.

No caso de Riobaldo, o que ele reitera é a não existência do “Outro – o figura,

o morcegão, o tunes, o cramulhão, o debo, o carocho, o pé-de-pato, o mal-encarado,

aquele – o-que-não-existe!” (GSV, p.229). Portanto, pela soletração, ele procura tornar

inteligível que o Demônio, enquanto alteridade absoluta e enquanto algo da ordem do

ser, não existe.

1

(14)

O narrador do Grande Sertão não se confunde: existência não é o mesmo que

essência. A ligação enclítica das palavras efetuada na expressão “o-que-não-existe”

parece-nos indicar a não existência de um ser que possamos denominar plenamente.

Mesmo ao recorrermos, como faz o narrador, ao uso dos hífens - que, pela

promoção de uma união, visa representar a perda do acento de cada palavra em favor da

composição de uma única expressão -, ainda assim não conseguimos ter acesso a uma

definição acabada da essência, não temos acesso à totalidade dos predicados de algo.

Deparamo-nos, portanto, com uma impossibilidade, pois, antes, o que costuma

acontecer é termos de recorrer a várias expressões quando queremos nomear alguma

coisa. Sobre este aspecto, chama especial atenção a profusão de referências feitas ao

demônio no Grande Sertão: numa riqueza referencial ímpar, o narrador chega a

empregar 92 denominações diferentes para referir-se a ele (MARTINS, 2001).

No que tange à construção da teoria psicanalítica, Freud também não se

confundiu. Ao estudar um objeto2 cuja manifestação clínica se dava através de uma

objetividade3 incontestável, mas para a qual, até então, não se dispunha de dispositivos

adequados para proceder a uma abordagem objetiva, Freud enfrentou o caráter inefável

de seu objeto de estudo, o inconsciente, e superou várias aporias.

Mais do que tentar reduzir o inconsciente ao consciente - o que na verdade é

impossível -, Freud abordou este objeto, inabordável pela consciência, forjando

instrumentos que não apenas permitiram algum acesso ao saber inconsciente, mas

fundaram uma ciência inédita: a psicanálise.

O avanço inquestionável promovido pela teoria freudiana pode ser constatado

pela coerência de sua metodologia, que - apesar de influenciada por modelos

contemporâneos de decifração científica - viabilizou o entendimento das manifestações

do inconsciente sem se deixar restringir pelas concepções científicas de então, e assim

chegou mesmo a superá-las. Além disto, o rigor teórico de Freud pode também ser

2

Segundo Abbagnano (2000, p.723), “objeto” é o termo “de qualquer operação, ativa, passiva, prática, cognoscitiva, ou lingüística. O significado dessa palavra é generalíssimo e corresponde ao significado de coisa. Objeto é o fim a que se tende, a coisa que se deseja, a qualidade ou a realidade percebida, a imagem da fantasia, o significado expresso ou o conceito pensado”.

3

(15)

confirmado por sua determinação em não se deixar capturar por qualquer tipo de

cosmovisão.

Portanto, a teoria e a clínica psicanalíticas lidam com um objeto cuja

existência só pode ser depreendida se a considerarmos a partir de seus efeitos e jamais

por sua delimitação precisa como se tratássemos de uma essência. Sobre o inconsciente,

assim como sobre o Demônio, podemos dizer muito, podemos elucidar suas formações,

porém, ambos permanecem indomáveis e inapreensíveis.

O inconsciente não é predicável, isto é, universal, um ser. Ele é

impredicável4. Sendo assim, não podemos atribuir-lhe valores tais como verdadeiro ou

falso. O incorpóreo verdadeiro participa da verdade e esta pode habitar uma mentira do

mesmo modo que a ficção pode veicular uma verdade.

Nossa tarefa nesta introdução é justamente dar a entender que o enredamento

da função paterna com o acesso de uma filha ao âmbito da feminilidade deve ser

pesquisado não no campo de uma essência5 da paternidade ou do tornar-se mulher, mas

no campo de afinidade da função paterna e da feminilidade com o indizível e o inaudito.

Ainda que impredicáveis, indizíveis e inauditas, tanto a função paterna

quanto a feminilidade foram amplamente estudadas e elucidadas por Freud. No entanto,

a exaustiva investigação freudiana sobre a feminilidade acabou por conduzi-lo à

perplexidade: “O que quer uma mulher?”, interrogou Freud em uma de suas cartas a

Marie Bonaparte, no momento em se aproximava do final de suas elaborações. A

questão sobre a feminilidade foi, por conseguinte, deixada em suspensão.

Já no que diz respeito ao entendimento da função paterna, Freud também

deslindou grande parte da problemática aí envolvida. Contudo, sua produção teórica

continuou a suscitar uma melhor formalização. Não que a elaboração freudiana sobre o

pai seja inconsistente. Pelo contrário, sua teorização permanece sustentável sob diversos

aspectos. No entanto, por falta de recursos científicos que surgiram apenas depois de

sua morte, Freud teve de apoiar sua construção teórica sobre a função paterna em dois

mitos: o mito de Édipo e o mito do pai da horda primitiva.

Quer dizer, na obra freudiana, tanto a conceitualização da função paterna

quanto da feminilidade, restaram em aberto – qualidade princeps de um corpo teórico

4

A noção de “impredicável” será esclarecida ao longo do próximo capítulo. 5

(16)

que não pretende compor uma visão de mundo. Isto, obviamente, instigou novas

formalizações.

Estas nos chegaram através dos esclarecimentos e da perspectiva inovadora

de Jacques Lacan. A partir da retomada mais precisa dos fundamentos freudianos,

Lacan pôde não apenas fazer ruir os desvirtuamentos de que o texto de Freud vinha

sendo vítima, mas ampliar o entendimento do inconsciente bem como da transmissão do

saber psicanalítico.

Assim como Freud, Lacan também se empenhou em dar um estatuto de

cientificidade à psicanálise e, tal qual aquele, não se deixou seduzir por ideologias ou

argumentações falaciosas. Soube escapar aos reducionismos e não se furtou de efetuar

transições e rupturas quando estas assim o exigiram. Lançou mão da referência a outros

registros tais como o registro do Real, do Simbólico e do Imaginário e introduziu um

conceito de nosso particular interesse: o conceito de Nome-do-Pai.

Veremos com Lacan (1995, p.209) que é impossível abordar o pai em sua

essência. Por isso ele indicou mais uma questão em aberto na psicanálise ao questionar:

“O que é ser um pai?”. Como resposta, ele propôs que se transferisse a questão sobre o

pai para o nome, o Nome-do-Pai, a metáfora da função paterna.

Por conseguinte, nosso intuito é o de trabalhar com questões sobre as quais

podemos agora enumerar algumas peculiaridades. Primeiro, tratam-se de questões em

aberto, logo, permitem mais algumas elaborações. Segundo, como a afirmação sobre a

não existência do Demônio e as questões sobre a feminilidade e a função paterna nos

remetem ao inominável, temos de reconhecer que estamos lidando com noções que se

desviam das regras de delimitação, ultrapassando-as para se constituírem como

exceções. Terceiro, em conseqüência desta ultrapassagem e como inerência das

exceções, encontramo-nos no campo em que o particular garante a validade do

universal, uma vez que a exceção confirma a regra. Encontramo-nos no campo da

exceção e do excesso.

Mas ainda nos resta justificar melhor nossa escolha do romance Grande

Sertão: Veredas, aqui tomado como objeto de uma análise que pretende investigar os

destinos da feminilidade a partir da intervenção da função paterna.

Dissemos que a referência ao Demônio feita pelo narrador do Grande Sertão

sintetiza nosso percurso de trabalho. Fundamentamo-nos na observação de que a figura

demoníaca tem como origem as concepções gregas do Daimónion e do Diaballein.

(17)

atribui. Ao contrário. Tratava-se de divindades propulsoras da diferenciação, da saída do

caos. Não era atribuída a elas qualquer conotação pejorativa. A afinidade entre as

concepções do Demônio e de Deus só veio a se desfazer por volta dos séculos III e II

a.C. e se generalizou com o Novo Testamento.

Por conseguinte, originariamente, o Demônio nos remete a Deus, o primeiro

motor, a causa ordenadora do mundo, seu criador - o Pai. Ao nos questionarmos sobre a

função paterna, somos levados, inevitavelmente, a refletir sobre a idéia de deus e do

demônio tal como o faz o narrador rosiano.

Mas não é só isso. Depois da diferenciação estabelecida entre Deus e o

Diabo, com o passar do tempo, mais especificamente, no final da Idade Média,

instaurou-se a espantosa associação do Demônio à mulher. Esta que, em várias culturas

primitivas, ocupara o lugar do sagrado ou usufruíra da possibilidade de governar junto

com o homem e que, mesmo na alta Idade Média, teve oportunidade de desenvolver-se

através do acesso às artes e ciências, vivenciou durante quatro séculos um fenômeno

assustador: “a caça às bruxas” (KRAMER e SPRENGER, 2000).

Apesar de aparentemente surpreendente, este fenômeno não se deu de forma

gratuita. O final do feudalismo germinou o que viriam a ser as nações modernas.

Tomado como nascedouro do capitalismo, iniciou um processo de controle do corpo,

condição sine qua non para se manter a alienação do trabalhador, sedimento da lógica

capitalista.

Foi por esta motivação que o Demônio - agora plenamente identificado a

uma categoria hierarquicamente inferior a Deus, mas que, paradoxalmente, contava com

a autorização deste para exercitar, através dos homens, toda espécie de sórdidos

desígnios -, teve de ser banido.

O ponto da vulnerabilidade humana, através do qual o Demônio exercia sua

influência, era a sexualidade. A mulher - descendente de Eva, que pecara ao aquiescer

com o Demônio - era tida como aquela que incorporava a fruta do pecado e

compactuava com o Demônio. Acreditava-se mesmo que algumas delas copulavam com

ele. A mulher era vista, então, como a própria “má sã”6. Com isto, queremos esclarecer

que a perseguição às bruxas não se direcionou exclusivamente às histéricas. Ela também

se estendeu àquelas que ascendiam à feminilidade. É sob este aspecto que nos

interessamos pelo Demônio.

6

(18)

Mas, nosso interesse tem ainda outro motivo: o Demônio e o Diabo grassam

soltos no Grande Sertão: Veredas, cujo subtítulo parece-nos representar as contorções

realizadas pelo próprio fio da narrativa: “O diabo na rua, no meio do redemoinho...”.

Se acertarmos ao afirmar que a narrativa se desenvolve ao modo de um

redemoinho, portanto, que ela descreve um movimento espiralar, nos permitiremos ir

mais além para acrescentar que seu eixo de rotação consiste, justamente, no

questionamento sobre a função paterna.

Por consideramos que, em torno deste eixo, giram os vários desdobramentos

do relato - sendo, inclusive, o ponto central do romance marcado pelo assassinato do pai

-, procuraremos demonstrar que, no Grande Sertão, o acesso de uma filha à

feminilidade também gira em torno da função do pai. Portanto, associaremos a

feminilidade ao movimento do redemoinho. Quer dizer, para nós, o móbil da

feminilidade é inapreensível qual um redemoinho. Apesar disto, interessa-nos averiguar

se a feminilidade e o Pai rodopiam pelas ruas do Grande Sertão, as veredas.

Na tentativa de percorrer essas ruas, nos dedicaremos inicialmente à

fundamentação de nossa pesquisa e aproveitaremos a oportunidade para explicitar nossa

metodologia. Uma vez que pretendemos trabalhar no interstício da psicanálise com a

literatura, trataremos dos vínculos da ficção com a psicanálise e a literatura. Ao lado

disso, indicaremos as lacunas teóricas que incitam nosso interesse e definiremos os

caminhos a ser explorados.

Em seguida, lançaremos a hipótese de que a função paterna se mostra

amplamente representada no Grande Sertão. A nosso ver, esta representação se dá a

perceber através do fio narrativo que descreve - como dissemos - um movimento

espiralar qual um redemoinho. Assim sendo, nos conduziremos não apenas pelas voltas

da narrativa - que está sempre retornando à questão paterna -, mas também pelos giros

de Freud e Lacan em torno do pai. Guiaremos nosso estudo pela perspectiva freudiana

apoiada no mito de Totem e tabu, e seguiremos pela perspectiva de Lacan, que

promoveu uma passagem para esta problemática ao retirá-la do campo da cultura para

considerá-la a partir do campo da estrutura. Em virtude deste giro, trataremos das

noções forjadas por Lacan para viabilizar esta passagem.

Depois, tendo estudado os desbobramentos teóricos da função paterna,

explicitaremos de que maneira estes acabaram por nos conduzir às veredas da

feminilidade. Neste enveredamento, continuaremos a consultar nossos batedores, Freud,

(19)

feminino remonta aos escritos pré-psicanalíticos e se estende aos textos finais de sua

obra. Comentaremos alguns estudos de nosso particular interesse. Com Lacan, teremos

a oportunidade de alargar nossa compreensão sobre a diferença sexual e nos aproximar

dos impasses da feminilidade: a impossibilidade de nomeação que lhe é intrínseca e que

divide a mulher entre o nome e o gozo da feminilidade. Pelo Grande Sertão,

encontraremos vários aspectos relacionados ao feminino: conheceremos várias santas,

muitas putas, uma perversa, uma anoréxica e duas lésbicas.

Finalmente, tendo atravessado o Grande Sertão, investigaremos se as

veredas para a feminilidade implicam, ou não, numa encruzilhada com a função paterna.

Apesar do percurso realizado até agora, precisamos, no entanto, reconhecer

que estamos longe de saber a que descobertas ele nos convida. Teremos, portanto, de

continuar a girar em torno de nossa questão assim como ocorre no romance.

Neste, a história é contada e recontada, a cada vez de forma mais ampla.

Está-se sempre voltando ao ponto central. Por isso, comprometidos como pretendemos

nos manter com a inerência do texto literário, nos vemos na contingência de seguir com

o narrador que, tal qual Scheherazade7, conta e reconta, deixa a história em suspensão,

conta mil outras histórias, adia a revelação que lhe fará perder a cabeça ao vivenciar a

“doidagem” (GSV, p.455).

Apesar disto, o movimento avança e, ao final, depois que o encanto se desfaz

num encanto mais “terrível” (GSV, p.454), nos damos conta de que rodopiamos em

torno de questionamentos para os quais obtivemos muitas respostas, sendo que

nenhuma delas se apresenta como definitiva.

O Grande Sertão transmite um saber, mas um saber que não se fecha. Assim

usufruímos da abertura promovida por uma travessia que se dirige para o infinito. A

interrogação permanece.

7

(20)

I

POR CAUSA DAS LACUNAS

1. 1 Introdução

Por que tratar da relação entre pai e filha? Acaso esta relação guardaria

alguma especificidade? Acaso a função paterna teria alguma influência sobre o advento

da feminilidade para uma filha? E mais, por que proceder a uma investigação sobre a

feminilidade a partir do estudo desta relação? Dito de outra forma: o que nos faria

interrogar se a função paterna tem alguma implicação sobre a constituição da

feminilidade?

Estas são as questões que animam nossa pesquisa cujo objetivo principal

consiste em identificar, a partir da análise do romance Grande Sertão: Veredas, de João

Guimarães Rosa, as sendas que viabilizem um novo dizer no que concerne à relação

entre a função paterna e a feminilidade e que esteja alicerçado nas elaborações de

Sigmund Freud e Jacques Lacan.

Tomamos como argumento inicial, em favor da relevância destas questões, o

fato de constatarmos que elas reiteradamente fazem suas aparições no espaço

privilegiado da escuta psicanalítica. De antemão, isto já nos leva a supor que a relação

entre pai e filha detém algumas peculiaridades. Além disto, como se não fora suficiente

justificar esta pesquisa por tal observação referente à prática clínica, contamos ainda

com o fato de estarmos lidando, no nível teórico, com noções que suscitam a

continuidade das reflexões sobre o tema, pois, tanto no que diz respeito ao que é uma

mulher, quanto ao que é um pai a questão continua em aberto.

Vale comentar que a constatação da existência de questões em aberto na

teoria psicanalítica, antes de indicar uma insuficiência, representa a expressiva

demonstração do compromisso da psicanálise com a manutenção de um rigor teórico

que, efetivamente, não se deixa seduzir pelos atrativos de teorias totalizantes que visam

à construção de uma “visão de mundo” (Weltanschauung). Segundo Freud (1980[1932],

(21)

a Weltanschauung é uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa existência, uniformemente, com base em uma hipótese superior dominante, a qual, por conseguinte, não deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos interessa encontra seu lugar fixo.

Por conseguinte, verificamos que a abstinência freudiana em dar resposta a

todas as inquietantes perguntas da humanidade respalda-se na construção de um corpo

teórico sobre o qual Freud (1980[1932], vol. XXII, p.220) pôde sustentar uma

subordinação “à verdade” e à “rejeição das ilusões”.

Devemos ter em mente, além disso, que pretender realizar uma pesquisa em

psicanálise implica na consideração da metodologia empregada por Freud. Este, frente

ao inusitado, teve de forjar instrumentos de abordagem capazes de respeitar a

singularidade de um objeto até então inabordável, por se situar para além da

consciência: o inconsciente.

No entanto, não devemos considerar que, a partir disto, o inconsciente tenha

passado a ser um objeto abordável. Ele permanece, paradoxalmente, inabordável. Como

indica Corrêa (1993, p.14, grifo do autor) a partir do paradoxo de Russell, o

inconsciente é impredicável:

É bem conhecido o paradoxo de Russell. O conjunto de todos os conjuntos que não contém a eles mesmos, deve ou não conter a ele mesmo? Se ele não se contém, é incompleto. Se ele se contém, está em contradição com sua definição, pois contém um conjunto que não se contém a ele, mesmo. [...] Russell criou a noção de impredicável para demonstrar a inconsistência lógica de seu paradoxo. [...] a noção de impredicável pode se aplicar ao inconsciente. O impredicável é uma propriedade que não pode ser predicada dela mesma. Assim, a propriedade de ser inconsciente é impredicável porque é uma idéia consciente.

Abordar o inconsciente como uma totalidade suscetível de se tornar

consciente é atribuir-lhe predicados, atribuir-lhe uma lógica. Porém, como ainda

assinala Corrêa (1993, p.13), o inconsciente nos defronta não com uma lógica, mas com

uma “A-Lógica”, que é “incomensurável, inapreensível, inextinguível e indomável,

como o próprio inconsciente”.

Por conseguinte, não podemos presumir que exista uma “lógica do

inconsciente”, pois, como afirma Corrêa (1993, p.13), isto

(22)

das palavras, mas também das coisas), não comporta esses predicados de Consciente/Inconsciente. [...] se digo “lógica do inconsciente”, com este genitivo, sou conduzido a um impasse, fazendo do inconsciente uma substância, da qual se pudesse predicar alguma coisa, um atributo.

Se assim procedêssemos, estaríamos restringindo nosso entendimento do

inconsciente à lógica da tradição filosófica grega sem levarmos em consideração que

esta incitou posteriores discussões no sentido de esclarecer se as relações entre a

linguagem e o discurso, entre o pensamento e o conhecimento, estariam ou não

submetidas a alguma lei de uso e funcionamento. Este problema - inaugurado pela

discussão entre Heráclito e Parmênides - foi abordado também por Platão e Aristóteles,

passou pelas reflexões filosóficas da Idade Média para enfim chegar ao entendimento

contemporâneo da lógica a partir da matemática. Seria supérfluo dizer que tal

preocupação da filosofia em relação à lógica decorre, é claro, de seu empenho em

encontrar algum acesso à verdade8 através de uma prática da linguagem.

O trabalho executado por Freud consistiu, portanto, na pesquisa de um

objeto a-lógico e sobre o qual nenhuma lei havia sido explicitada. Deste esforço, ele

8

(23)

pode demonstrar que as formações do inconsciente são regidas por uma lógica não

aristotélica e foi pela observação dos efeitos paradoxais desta outra lógica que Freud

identificou as regras do funcionamento inconsciente (CORRÊA, 1993).

Um dos paradoxos deste funcionamento diz respeito exatamente à relação

entre o inconsciente e o saber, pois, Corrêa (1993, p.11) faz notar que “[a]9 abertura do

inconsciente se produz num momento de exclusão do sujeito de seu próprio

pensamento. Para poder saber é necessário primeiro ser excluído do saber”. Temos uma

ilustração disto se observarmos que, quando cometemos, por exemplo, algum lapso de

linguagem, não sabemos de onde isso nos veio. Chegamos mesmo a considerar a

possibilidade de que se trata de algo inconsciente, no entanto, se nos pusermos a pensar

sobre a motivação inconsciente para tal lapso, tudo o que conseguirmos pensar daí em

diante não será inconsciente, mas consciente.

Por isso, como afirma Assoun (1996, p.42), o objeto da pesquisa freudiana

se mostra “ao mesmo tempo problemático e de uma imediatez ofuscante”. Mal aparece

já se desvanece.

Além disto, precisamos atentar para o fato de que a psicanálise - embora

enfrente um objeto a-lógico - lida, tal qual a lógica, com a linguagem, pois se ocupa

com o inconsciente. Contudo, sobre a relação do inconsciente com a linguagem,

lembremos a advertência de Lacan (2003, p.490), “o inconsciente é estruturado como

linguagem, eu não disse pela”. Portanto, segundo Lacan (2003, p.490) a linguagem “[...]

é a condição do inconsciente”. Como conseqüência disto, Corrêa (2003, p.19, grifos do

autor) considera que

[...] a Psicanálise é um lugar comum onde se imbricam a Tropologia, o lugar dos “tropos” literários, da literatura, [...], da retórica, e da Topologia, o lugar das relações, dos laços, da vizinhança, da continuidade e dos invariantes instituídos e presentes na linguagem.

Em virtude destas particularidades do inconsciente, talvez se possa afirmar

com Assoun (1996, p.43) que, em psicanálise, “a pesquisa clínica não tem outra lei

senão a de seu objeto”.

Rematemos: em psicanálise, tratamos com um objeto ao qual - por ser

a-lógico, evanescente e impredicável - não se pode atribuir valores tais como falso ou

verdadeiro. Podemos dizer que as formações do inconsciente mantêm uma afinidade

9

(24)

com o tropos que, segundo Corrêa (2003, p.21, grifos do autor) é definido pelos gregos

como sendo “o desvio que se faz na linguagem para produzir uma figura retórica”, e

pelos estóicos “como sendo uma suspensão do julgamento”.

Como decorrência destas peculiaridades, encontramos entre os componentes

da lei do objeto que rege a pesquisa, um que requisita o exame mais detido de nossa

parte já que temos em perspectiva realizar uma investigação situada no campo de

interseção da psicanálise com a literatura. Este componente é a ficção.

1. 2 A ficção e a psicanálise

Se, por um lado, a ficção nos remete ao fingimento, à farsa, à criação

fantasiosa, por outro, é bem certo que ela nos remeta também, como no caso da criação

artística, a uma leitura particular e geralmente original da realidade. Desse modo, como

ressalta Assoun (1996, p.57), ao considerar a definição geral do termo “ficção” segundo

o Vocabulário de Lalande,

[u]ma ficção não é simplesmente o “não verdadeiro”, semblante ou aparência, mas um construto portador de virtualidades de conhecimentos: se construímos alguma coisa de que se sabe que “nada (lhe) corresponde na realidade”, é que, por uma estratégia epistêmica deliberada, esperamos retirar disso um efeito que, sem esse “ficcionamento”, seria impossível. Há aí a idéia de indiferença metodológica pela “realidade” objetiva da “imagem” (fictícia).

Mas, então, em que medida a ficção estaria implicada na clínica

psicanalítica? Fontenele (2002-a, p.12) esclarece que “[...] o analista, [...] convoca um

sujeito particular a produzir um saber sobre sua verdade; saber que, por ser

absolutamente singular, tem nesse limite seu valor universal”. Desta tensão entre o

particular e o universal da verdade produzida pelo sujeito, Fontenele afirma que

resultarão “micronarrativas que não geram nenhuma cosmovisão [...]” Poderíamos

então, neste caso, inferir algo da ordem de “uma estratégia epistêmica” que favoreceria,

tal como é proposto por Assoun, o acesso a um efeito impossível de ser alcançado sem o

recurso ao “ficcionamento”?

Para respondermos a esta questão, retornemos à avaliação feita por

Fontenele (2002-a, p.34) sobre o caráter das micronarrativas produzidas pelo sujeito em

análise: Em primeiro lugar, a autora esclarece que o caráter das micronarrativas

(25)

dão a ver as estratégias estilísticas pelas quais se diz o que não se pode por meios

usuais”. Em segundo lugar, Fontenele (2002-a, p.34) esclarece que este recurso ao

ficcionamento para se dizer o que não pode ser dito, promove a superação de obstáculos

decorrentes dos mecanismos de defesa do eu, constituindo-se, portanto, como “a forma

de lidar com o desconforto e o desprazer”.

Além disto, precisamos considerar que o material inconsciente se mostra

inacessível pela ação da censura que atua de maneira a produzir cortes sobre a narrativa.

A censura, portanto, deforma, produz falhas, espaços em branco, falta de trechos da

narrativa, torna a produção inconsciente ininteligível. Freud (1980[1892-99], v. I,

p.369) faz uma ilustrativa analogia deste processo à censura de cunho político numa

carta dirigida a seu amigo Fliess: “Você já viu alguma vez um jornal estrangeiro que

passou pela censura russa da fronteira? Palavras, cláusulas e frases inteiras estão

obliteradas, de modo que aquilo que restou se torna ininteligível”. A propósito desta

analogia feita por Freud, Assoun (1996, p.145) chama atenção para o fato de que

exatamente os espaços em branco do texto censurado é que dão a perceber ao leitor

“que o texto deve ser lido”.

Por conseguinte, frente à narrativa do sujeito, o analista dispõe de dois

recursos: a “interpretação” e a “construção”. Segundo Freud (1980[1937], v.XXIII,

p.295), a interpretação consiste na intervenção do analista sobre “algum elemento

isolado do material [narrativo], tal como uma associação [...]” ou um ato falho. Quanto

à “construção”, esta consiste no fornecimento, por parte do analista, de “um fragmento

da história” do sujeito. Como afirma Fontenele (2002-a, p.32), “[t]anto a interpretação

quanto a construção referem-se, de acordo com Freud, à reconstituição da história

daquele que se submete a uma análise”.

Sobre a “história do sujeito”, faz-se necessário lembrar ainda com Fontenele

(2002-a, p.33), que, para Freud, há uma distinção “entre o vivido e a realidade

psíquica”, pois, ele percebeu que “os eventos da vida do sujeito assumiam, em seu

discurso, uma forma fantasística”. Esta forma fantasística – inerente à realidade psíquica

- decorre do trabalho realizado pelo inconsciente, o qual consiste em transformar, ou

ainda, como afirmamos antes, em deformar, seus produtos. O trabalho do inconsciente

resulta, portanto, no que Assoun (1983, p.103) denomina por “Phantasieren”, ou seja,

fantasiar.

Ora, se o material produzido em análise traduz-se por um “fantasiar”, como

(26)

do autor) para afirmar que este acesso será viabilizado somente através do

reconhecimento ou mesmo da “sanção” dada pelo sujeito em análise às interpretações e

construções praticadas pelo analista. Como nos lembra este autor, em psicanálise, “o

objeto é... o sujeito” e este “é o único habilitado a legitimar as “ficções” interpretativas

do intérprete”.

Feitas estas breves considerações sobre o estatuto da ficção em psicanálise,

passemos agora a considerá-la no âmbito da criação literária a partir, justamente, do

entendimento do autor de Grande Sertão: Veredas.

1. 3 A ficção e a literatura

Em um dos quatro prefácios do seu livro de contos intitulado Tutaméia, Rosa

(2001, p.29) faz a contundente afirmação: “A estória não quer ser história. A estória, em

rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à

anedota”.

Partimos do pressuposto que esta contraposição do arcaísmo “estória” à

“História” feita por Guimarães Rosa, nos leva ao encontro de mais alguns aspectos da

ficção. Primeiro, explicita a diferença entre ambas no sentido de permitir entender a

“História” numa concepção geral que, segundo Abbagnano (2000, p.502), “indica a

resenha ou narração dos fatos humanos”, enquanto a “estória” nos remeteria à narrativa

de ficção. Segundo, apesar da explicitação da diferença entre estória e História, a

aparente oposição se desfaz quando Guimarães Rosa compara aquela à anedota.

Mais à frente, neste mesmo prefácio, veremos Rosa (2001, p.30) realizar

uma urdidura entre as anedotas e um elemento de grande interesse para nós, o

“não-senso”. Ouçamo-lo:

Talvez porque mais direto colidem [as anedotas] com o não-senso, a ele afins; e o não-senso, crê-se, reflete por um triz a coerência do mistério geral, que nos envolve e cria. A vida também é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso. E a gente, por enquanto, só a lê por tortas linhas. Está-se a achar que se ri.

Ora, através desta relação estabelecida por Guimarães Rosa, somos levados a

considerar sua concordância com as observações feitas por Freud em alguns textos tais

como A interpretação dos sonhos (1900), Psicopatologia da vida cotidiana (1901) e Os

(27)

manifestações do inconsciente - quais sejam os sonhos, os atos falhos e os sintomas -

com o não-senso. Especialmente no texto de 1905, Freud esclareceu também que os

chistes devem ser considerados como mais uma das manifestações do inconsciente,

pois, como estas, os chistes encontram-se submetidos às mesmas leis. Como as leis que

regem o inconsciente são leis da linguagem, todas as suas manifestações se organizam

através de metáforas e metonímias, de condensações e deslocamentos.

No entanto, lembremos que, embora Freud tenha elucidado estas leis, isso

não significa que o inconsciente possa ser apreendido. Tal eventualidade consistiria,

inclusive, num paradoxo, pois se o inconsciente pudesse ser apreendido pela

consciência, conseqüentemente perderia seu estatuto de não-consciência, o que

representa uma impossibilidade. Em relação ao inconsciente, lidamos sempre com uma

falta que lhe é constitutiva. Esta falta se manifesta no discurso e se mostra intimamente

relacionada ao não-senso. Como afirma Fontenele (2002-b, p.64),

[a] manifestação da falta no discurso é a instauração do sem-sentido, do desconexo e do contraditório, como meios de produção de um sentido. Tais procedimentos relacionam-se com a criação de neologismos, alterações na lógica gramatical da língua, ou, ainda, com a utilização de uma palavra com o sentido de outra. Quando a fala assim se manifesta, ocorre a quebra da relação linear que os elementos da frase mantêm entre si; com isso, dá-se a alteração ou suspensão do significado, que é subsumido por outra forma de significá-lo.

Sendo assim, acreditamos que nosso entendimento sobre a contraposição do

arcaísmo “estória” versus “História” possa ser um pouco mais ampliado se

considerarmos agora com Simões (ROSA apud SIMÕES, s/d, p.13-14) que Guimarães

Rosa busca, ao longo de toda sua produção artística, realizar um projeto de escritura

explicitado pelo próprio autor nos seguintes termos:

Molgável, moldável, dirigente assim – e não me refiro só à língua literária – ela mesma se ultrapassa; como a arte deve ser, como é o espírito humano: faz e refaz suas formas. Sem cessar, dia a dia, cedendo à constante pressão da vida e da cultura, vai-se desenrolando, se destorce, se enforja, malêia-se, faz mó do monótono, vira dinâmica, vira agente, foge à esclerose torpe dos lugares-comuns, escapa á viscosidade, à sonolência, à indigência; não se estatela. Seus escritores não deixam.

Neste projeto de escritura - cuja proposta de fuga à “esclerose torpe dos

lugares-comuns” deve ser buscada apesar da “pressão da vida e da cultura” - pode-se

vislumbrar, para além do projeto literário, o posicionamento crítico que respalda a visão

(28)

o espírito humano ao fazer a “mó do monótono” e virar “dinâmica”, virar “agente”,

fundamenta a produção literária de Guimarães Rosa, que libera uma saída “à

sonolência” e “à indigência”.

Mas de que maneira o texto literário promoveria escapes à sonolência? Para

tentarmos responder a esta questão, supomos ser interessante abordá-la a partir de duas

perspectivas: a do texto e a do leitor.

Na relação dialética entre um texto e seu leitor, ocorre o que Assoun (1996,

p.127) define como sendo um “teatro organizado pela leitura” onde se daria o “encontro

entre um sujeito e aquilo que se oferece ao ler”. Se deste teatro, resulta - como afirma

Guimarães Rosa - um despertar, uma saída da sonolência, esta se mostra

paradoxalmente precedida por um movimento semelhante ao adormecimento. Sobre

este movimento que deve ser entendido como inerente à leitura, citamos novamente

Assoun (1996, p.131):

Talvez não exista ingresso no devaneio induzido pela leitura sem uma condição secretamente regressiva, aquela que, análoga ao adormecimento, desliga o sujeito dos investimentos de realidade para orientá-lo em direção ao signo verbal. [...] Deve-se saber, com o mesmo movimento, ausentar-se (do real) e apresentar-se (à letra), o que é designado pelo próprio movimento de abertura do livro. O sujeito deve fechar-se à realidade para abrir-se à letra.

Seguimos ainda com Assoun (1996, p.131) para esclarecermos que toda esta

“ritualização da leitura” tem por objetivo criar condições para que o leitor possa “seguir

o trem das associações posto nos trilhos por um outro”, o narrador, “aquele que dá a

ler”. Mas o que haveria de tão atrativo nisto que o narrador dá a ler? O que atrai é,

exatamente, a possibilidade de realizar um cruzamento da fantasia que é dada a ler pelo

narrador, com a fantasia do leitor. Citamos Assoun (1996, p.132):

Ler é realmente, neste sentido, subtratar a fantasia do “narrador” pela própria fantasia. Longe de ser necessário postular uma transferência mecânica de fantasias, o que o autor efetua por sua própria conta – a restituição, sob pressão, de sua fantasia – é que funciona como distração para o leitor. A operação de leitura tem, pois, isto de inesperado: ela deixa a fantasia exposta.

Convenhamos que tal exposição não se dá sem conseqüências. A

possibilidade de acesso à própria fantasia permite a alusão às duas faces de uma mesma

moeda. Por um lado, como foi percebido por Guimarães Rosa, a língua literária se

mostra capaz de fazer “mó do monótono”, o que nos remete a uma espécie de

(29)

leitura enquanto “ato ao mesmo tempo salutar e perigoso” – já que mobilizadora de

fantasias - promove uma mobilidade fixa do leitor: “Daí a móvel fixidez do leitor: se é o

desfile dos restos verbais que ele acompanha, tão literalmente, com o olhar, é a coisa

dita e jamais totalmente dita que ele fixa e que o obnubila [...]”.

Porém, será justamente neste ponto de obnubilação que poderemos localizar

o despertar promovido pela criação literária. Um despertar que se direciona para um

não-senso, para uma outra cena que não a cena da realidade consciente. Um despertar

que se dirige para a cena faltosa sobre a qual se constitui o inconsciente e que remete o

sujeito a um indizível. Como afirma Fontenele (2002-a, p.67),

A particularidade da expressão literária do inefável, [...], reside no fato de ele referir-se a uma experiência na qual o sujeito vê-se, por um instante, tomado por uma gama de sensações que carecem de expressão. Por se situarem fora da linguagem, essas sensações são acolhidas, pelo corpo daquele que as experimenta, através de uma forma particular de gozar o sentido, que a linguagem ordinária não possibilita, exatamente porque estão, diretamente, atreladas às dimensões imaginárias e simbólicas da pertença do sujeito no mundo.

Além disto, através destas sensações que se encontram fora da linguagem, o

sujeito se depara com algo de real viabilizado pelo roteiro ficcional de sua própria

fantasia inconsciente. Sendo assim, como afirma Valas (2001, p.69), a fantasia

inconsciente “não é mais apenas uma ficção; ela se torna, [...] uma “fixão” do real”.

Desta forma, por nos encontrarmos imersos na linguagem, o que se engendra

entre o escritor e o leitor é uma mensagem com valor de verdade apesar de sua estrutura

ficcional. Como realça Ferreira (2005, p.17),

[o] ser humano, quando passa a habitar o mundo da linguagem e de suas leis, é impelido por chamas que ardem, queimam e mantêm viva a falta que inflama o desejo. Falar põe em cena a posição de um sujeito em relação ao Outro. Para o escritor, o leitor passa a ocupar o lugar de representante desse Outro ao qual toda fala se dirige. A literatura, como fala do desejo, é um discurso que engendra uma mensagem com valor de verdade. A mensagem, como lugar do sentido e da verdade, tem estrutura de ficção.

Por último, consideremos também que, sem pretender ser “História”, esta

que, segundo Lacan (2003, p.484), faz que os historiadores se deparem com a miséria de

“só poder ler o sentido, ali onde não lhes resta outro princípio senão valerem-se dos

documentos da significação”, a “estória” continua, por sua aproximação com a anedota,

(30)

Em relação a este, se lembrarmos com Lacan (1985, p.23), que o sublime

representa “o ponto mais elevado do que está em baixo” – pois, segundo Houaiss10,

“sub” assinala um ponto hierarquicamente inferior e “lime” remete a “dano, ruína,

maus-tratos” -, poderemos, então, interrogar com Rosa (2001, p.39): “E não será esse

um caminho por onde o perfeitíssimo se alcança? Sempre que algo de importante e

grande se faz, houve um silogismo inconcluso, ou, digamos, um pulo do cômico ao

excelso”.

1. 4 As lacunas que motivam a caminhada

Tendo refletido sobre a interseção estabelecida entre o despertar promovido

pelas aberturas inerentes à obra literária e a questão do inconsciente estruturado como

um texto, resta-nos, agora, iniciar nossa reflexão sobre os caminhos passíveis de

conduzir à feminilidade a partir do estudo da relação entre pai e filha.

Como afirmamos anteriormente, quando nos voltamos para a teoria

psicanalítica, percebemos que tanto a feminilidade quanto as elaborações em torno do

pai se apresentam em aberto, o que nos incita a empreender uma investigação sobre tais

questões.

Desde os textos que compõem os primórdios da psicanálise - os manuscritos

e cartas de Freud endereçadas a Fliess, bem como n’O Projeto para uma psicologia

científica, de 1895 –, nos encontramos com as tentativas iniciais de Freud de fazer uma

esquematização da sexualidade. Destas, já podemos depreender antecipações sobre a

feminilidade de tal pertinência que as reencontramos, melhor formalizadas, não apenas

ao longo de toda a elaboração freudiana, como também na releitura do texto de Freud

empreendida por Jacques Lacan.

Então, da forma que percebemos, seria como se encontrássemos nos textos

de origem da psicanálise os elementos in germen da revelação freudiana sobre a

feminilidade. Vale, no entanto, ressaltar que, apesar dos inestimáveis esclarecimentos

fornecidos por Freud sobre a sexualidade feminina, ao final de sua obra ele se

confrontou com uma questão que reflete toda sua perplexidade frente à mulher.

Referimo-nos, obviamente, à interrogação feita por Freud à Marie Bonaparte quando

10

(31)

reconhece que, após trinta anos de exaustivos e esclarecedores estudos sobre o que

concerne ao feminino, persistia uma indagação: “O que quer uma mulher?”.

O desenvolvimento da elaboração freudiana sobre a mulher culmina,

portanto, numa revelação em seu sentido mais amplo, pois, demonstra o ponto em que

algo volta a se mostrar encoberto, ao mesmo tempo em que se descerra como

perspectiva de novos horizontes epistêmicos. Tanto é assim que foi pelas qualidades de

obstáculo e abertura deste ponto indicado por Freud na questão da feminilidade, que a

teoria psicanalítica veio a se enriquecer com os avanços promovidos por Lacan. Mais à

frente, teremos oportunidade de observar como este - ao tomar a lógica freudiana como

ponto de partida - franqueou o acesso a uma outra lógica para verificar mais

efetivamente as peculiaridades da feminilidade.

Num mesmo relevo teórico, vamos encontrar as elaborações freudianas

relativas ao pai, desde a teoria da sedução. Esta foi posteriormente questionada a partir

da próton pseudos, ou seja, das elaborações de Freud em torno da primeira mentira

histérica, e cujo mecanismo foi previsto por ele já no texto de 1895, conhecido

simplesmente por Projeto11. Depois, a teoria da sedução foi definitivamente abandonada

por ele em favor da teoria da causalidade psíquica. Podemos, então, afirmar que as

reflexões sobre o pai perpassam a obra freudiana desde seu início até um texto tardio

como Moisés e o monoteísmo, de 1939.

No tratamento destas, Freud manteve a mesma atitude epistêmica que

fundamentou, não apenas seu estudo sobre a sexualidade feminina, mas toda a

construção psicanalítica. Como já dissemos, Freud esteve votado ao entendimento do

inconsciente, quer dizer, ao estudo de um objeto inédito, frente ao qual ele teve de forjar

novos dispositivos de acesso a este objeto. Tais instrumentos preservam a própria

característica do objeto, e dão passagem a um saber inusitado e inesgotável que suscita,

por conseguinte, novas elaborações. É na perspectiva dessas novas elaborações que

recorremos mais uma vez a Lacan. Ao realizar uma minuciosa leitura dos textos

freudianos, ele destacou a importância de uma retomada da formalização feita por Freud

em torno do pai.

Parece-nos interessante ressaltar que, assim como encontramos no estudo

sobre a sexualidade feminina, a indicação de Freud da lacuna teórica relativa ao querer

11

(32)

feminino, no estudo sobre o pai, é Lacan quem nos indica uma outra questão lacunar:

para ele, Freud considera o pai pelo viés da sua primazia na constituição da realidade

psíquica o que não esgota a questão sobre o que vem a ser um pai. Como veremos,

Lacan parte da mesma concepção freudiana do pai enquanto incerto seguindo o

aforismo Mater certíssima. Pater incertus est.

Em decorrência de uma série de retomadas do texto de Freud, Lacan propôs,

então, que, para além do entendimento do pai como responsável pela constituição da

realidade psíquica, este devia ser entendido tal qual um termo de referência. Portanto, o

pai é aquele a quem se refere algo e este algo é da ordem do inconsciente.

Para dar conta desta ampliação do entendimento sobre a função paterna,

Lacan forjou a noção de Nome-do-Pai, pois, já que o pai é incerto, não há uma verdade

de experiência que possa nomeá-lo de maneira garantida. Daí a necessidade de que a

garantia se dê pela fé na nomeação, quer dizer, na denominação de algo que não tem

nome. Portanto, o Nome-do-Pai designa a função do pai, é a metáfora desta função.

Diante destas constatações, podemos dizer, grosso modo, que tomamos

como pano de fundo da nossa proposta realizar um cruzamento entre as lacunas

indicadas por Freud e Lacan para interrogarmos: o que é o pai no que diz respeito à

questão freudiana: “que quer uma mulher?”.

Na consecução deste intento, nos foi necessário restringir nossa pesquisa ao

estudo das implicações da função paterna sobre o devir da feminilidade de uma filha. É

neste sentido que a análise do romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães

Rosa, se nos apresenta como oportunidade ímpar de alargar nosso entendimento sobre o

tema.

1. 5 Em busca de um caminho

Através do Grande Sertão, ouviremos a estória12 - contada pelo jagunço

Riobaldo - de uma menina que, desde a infância, se faz passar por homem. Esta menina

adotou para si dois nomes: Reinaldo e, num outro momento, Diadorim. Vestia-se como

menino e, na vida adulta, entrou para a jagunçagem. Neste contexto, ela tomou para si a

obrigação de vingar a morte de seu pai, Joca Ramiro. Sublinhamos desde já que o

12

(33)

assassinato deste pai se constitui como o evento central da narrativa. A vingança de

Diadorim contra os assassinos de seu pai foi levada às últimas conseqüências, apesar do

amor que sentia por um outro homem, aquele que narra a sua estória, Riobaldo, e que

por várias vezes lhe pediu que desistisse da vendeta para acompanhá-lo e sair da

jagunçagem. Tudo isto se deu sem que Riobaldo soubesse que Diadorim era uma

mulher. Por isso lhe dedicou um tratamento de amigo perpassado por um intenso e

inexplicável amor, contra o qual se debatia.

Esclarecemos que nossa perspectiva metodológica pretende indicar, em

primeiro lugar, a coerência passível de ser apreciada no Grande Sertão em relação à

psicanálise, sendo este um dos pontos essenciais a nortear nossa abordagem deste

romance. Conseqüentemente, consideraremos o texto literário a partir da escuta de suas

ressonâncias em torno das questões aqui propostas para, desta forma, nos beneficiarmos

com as aberturas promovidas pela narrativa na medida em que estas ampliem nosso

entendimento sobre o vínculo entre pai e filha.

Em nossa articulação do texto literário com a psicanálise pretendemos nos

empenhar na elucidação dos desdobramentos realizados por Freud e Lacan em torno das

noções de função paterna e de feminilidade. Diante disto, tivemos de decidir por qual

destas noções iniciaríamos nosso estudo. Cabe frisar que esta decisão não se tratou de

uma livre escolha.

Na análise do Grande Sertão, identificamos que a narrativa nos apresenta, de

chofre, inusitadas interrogações referentes ao pai. Portanto, submetidos que estamos aos

elementos constitutivos do texto literário, nenhum outro caminho nos pareceu mais

adequado senão aquele que nos leva a iniciar nosso estudo pela elucidação da função

paterna neste relato. Assim, dedicamos nosso segundo capítulo ao estudo desta função.

Como já dissemos, a função paterna foi elaborada por Freud em vários textos

aos quais, evidentemente, recorremos. Além destes, e por levarmos em conta que a

função paterna se encontra intimamente relacionada à noção criada por Lacan de

Nome-do-Pai, também recorremos a este referencial teórico para fundamentar nossa análise.

Assim procedendo, constatamos que a construção do conceito de

Nome-do-Pai nos remete, como uma de suas conseqüências, à questão sobre o que quer a mulher.

Desta forma, na seqüência, dedicamos nosso terceiro capítulo ao estudo sobre a

feminilidade.

Neste desígnio, nos propomos a fazer ecoar a interrogação que tomamos

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uma mulher – sobre uma outra interrogação, um tanto mais restrita e especifica e que

apresentamos sob o título desta pesquisa: “O Nome-do-Pai no Grande Sertão: Veredas

Referências

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