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As lacunas que motivam a caminhada

Tendo refletido sobre a interseção estabelecida entre o despertar promovido pelas aberturas inerentes à obra literária e a questão do inconsciente estruturado como um texto, resta-nos, agora, iniciar nossa reflexão sobre os caminhos passíveis de conduzir à feminilidade a partir do estudo da relação entre pai e filha.

Como afirmamos anteriormente, quando nos voltamos para a teoria psicanalítica, percebemos que tanto a feminilidade quanto as elaborações em torno do pai se apresentam em aberto, o que nos incita a empreender uma investigação sobre tais questões.

Desde os textos que compõem os primórdios da psicanálise - os manuscritos e cartas de Freud endereçadas a Fliess, bem como n’O Projeto para uma psicologia

científica, de 1895 –, nos encontramos com as tentativas iniciais de Freud de fazer uma

esquematização da sexualidade. Destas, já podemos depreender antecipações sobre a feminilidade de tal pertinência que as reencontramos, melhor formalizadas, não apenas ao longo de toda a elaboração freudiana, como também na releitura do texto de Freud empreendida por Jacques Lacan.

Então, da forma que percebemos, seria como se encontrássemos nos textos de origem da psicanálise os elementos in germen da revelação freudiana sobre a feminilidade. Vale, no entanto, ressaltar que, apesar dos inestimáveis esclarecimentos fornecidos por Freud sobre a sexualidade feminina, ao final de sua obra ele se confrontou com uma questão que reflete toda sua perplexidade frente à mulher. Referimo-nos, obviamente, à interrogação feita por Freud à Marie Bonaparte quando

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Por diversas vezes recorreremos ao Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Esclarecemos que se trata da versão eletrônica do ano de 2001.

reconhece que, após trinta anos de exaustivos e esclarecedores estudos sobre o que concerne ao feminino, persistia uma indagação: “O que quer uma mulher?”.

O desenvolvimento da elaboração freudiana sobre a mulher culmina, portanto, numa revelação em seu sentido mais amplo, pois, demonstra o ponto em que algo volta a se mostrar encoberto, ao mesmo tempo em que se descerra como perspectiva de novos horizontes epistêmicos. Tanto é assim que foi pelas qualidades de obstáculo e abertura deste ponto indicado por Freud na questão da feminilidade, que a teoria psicanalítica veio a se enriquecer com os avanços promovidos por Lacan. Mais à frente, teremos oportunidade de observar como este - ao tomar a lógica freudiana como ponto de partida - franqueou o acesso a uma outra lógica para verificar mais efetivamente as peculiaridades da feminilidade.

Num mesmo relevo teórico, vamos encontrar as elaborações freudianas relativas ao pai, desde a teoria da sedução. Esta foi posteriormente questionada a partir da próton pseudos, ou seja, das elaborações de Freud em torno da primeira mentira histérica, e cujo mecanismo foi previsto por ele já no texto de 1895, conhecido simplesmente por Projeto11. Depois, a teoria da sedução foi definitivamente abandonada por ele em favor da teoria da causalidade psíquica. Podemos, então, afirmar que as reflexões sobre o pai perpassam a obra freudiana desde seu início até um texto tardio como Moisés e o monoteísmo, de 1939.

No tratamento destas, Freud manteve a mesma atitude epistêmica que fundamentou, não apenas seu estudo sobre a sexualidade feminina, mas toda a construção psicanalítica. Como já dissemos, Freud esteve votado ao entendimento do inconsciente, quer dizer, ao estudo de um objeto inédito, frente ao qual ele teve de forjar novos dispositivos de acesso a este objeto. Tais instrumentos preservam a própria característica do objeto, e dão passagem a um saber inusitado e inesgotável que suscita, por conseguinte, novas elaborações. É na perspectiva dessas novas elaborações que recorremos mais uma vez a Lacan. Ao realizar uma minuciosa leitura dos textos freudianos, ele destacou a importância de uma retomada da formalização feita por Freud em torno do pai.

Parece-nos interessante ressaltar que, assim como encontramos no estudo sobre a sexualidade feminina, a indicação de Freud da lacuna teórica relativa ao querer

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Em Projeto para uma psicologia científica, texto elaborado em 1895 e publicado em 1950, encontramos o item intitulado “A Proton Pseudos [Primeira Mentira] Histérica”. Neste Freud (1980[1895], v.I, p.469) já começa a observar que “a liberação sexual provinha de uma lembrança e não de uma experiência”.

feminino, no estudo sobre o pai, é Lacan quem nos indica uma outra questão lacunar: para ele, Freud considera o pai pelo viés da sua primazia na constituição da realidade psíquica o que não esgota a questão sobre o que vem a ser um pai. Como veremos, Lacan parte da mesma concepção freudiana do pai enquanto incerto seguindo o aforismo Mater certíssima. Pater incertus est.

Em decorrência de uma série de retomadas do texto de Freud, Lacan propôs, então, que, para além do entendimento do pai como responsável pela constituição da realidade psíquica, este devia ser entendido tal qual um termo de referência. Portanto, o pai é aquele a quem se refere algo e este algo é da ordem do inconsciente.

Para dar conta desta ampliação do entendimento sobre a função paterna, Lacan forjou a noção de Nome-do-Pai, pois, já que o pai é incerto, não há uma verdade de experiência que possa nomeá-lo de maneira garantida. Daí a necessidade de que a garantia se dê pela fé na nomeação, quer dizer, na denominação de algo que não tem nome. Portanto, o Nome-do-Pai designa a função do pai, é a metáfora desta função.

Diante destas constatações, podemos dizer, grosso modo, que tomamos como pano de fundo da nossa proposta realizar um cruzamento entre as lacunas indicadas por Freud e Lacan para interrogarmos: o que é o pai no que diz respeito à

questão freudiana: “que quer uma mulher?”.

Na consecução deste intento, nos foi necessário restringir nossa pesquisa ao estudo das implicações da função paterna sobre o devir da feminilidade de uma filha. É neste sentido que a análise do romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, se nos apresenta como oportunidade ímpar de alargar nosso entendimento sobre o tema.