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Mesmo que a função desempenhada pelas roupas de Diadorim seja inteligível, persiste a questão: por que Diadorim vestia-se com roupas masculinas? Tentar respondê-la melhor é sair no encalço de algumas outras questões: por que Diadorim freqüentou tão assídua e acirradamente a posição masculina e assumiu um nome falso, Reinaldo? E mais: por que Diadorim, depois, nomeou-se Diadorim?

Sobre o nome falso ele é claro: “[...] eu não me chamo Reinaldo, de verdade. Este é nome apelativo, inventado por necessidade minha, carece de você não me perguntar por quê. Tenho meus fados” (GSV, p.120, grifo do autor).

Não somos Riobaldo. Tampouco nos convém deixar de perguntar o porquê. Ainda mais quando Diadorim nos diz que isso decorre do peso de seus fados. O fado é

um decreto do destino, um vaticínio, algo predito. No caso, quem lhe teria predito esse falso nome?

É difícil perceber a coerência de nome, roupas e coragem, todos masculinos, de Diadorim? É temerário afirmar que tal destino esteja relacionado ao desejo de seu pai? Não fosse a idade, até mesmo uma criança o perceberia como Riobaldo notou depois, ao relembrar o encontro do de-Janeiro: “Mais, que coragem inteirada em peça era aquela, a dele? De Deus, do demo? [...] E o que era que o pai dele tencionava? Na ocasião, idade minha sendo aquela, não dei de mim esse indagado” (GSV, p.86). Mas agora, recontando a estória, Riobaldo nos dá a dica: Fala logo em seguida do caso de um filho que matou um homem e correu a comunicar o fato ao pai que remediou: “– “Filho, isso é a tua maioridade. Na velhice, já tenho defesa, de quem me vingue...”” (GSV, p.86).

Seria isso? Seria essa a intenção de Joca Ramiro? Sabendo que o “[s]ertão é o penal, criminal” (GSV, p.86) e que Diadorim, “[i]rmã nem irmão ele não tinha” (GSV, p.140), parece fazer sentido pensarmos como Riobaldo que Diadorim tenha sido forjado para defender e vingar o pai.

Mas não nos contentemos com esta que pode ser uma resposta qualquer, pois, como diz Riobaldo, “onde é a bobice a qualquer resposta, é aí que a pergunta se pergunta” (GSV, p.86).

Portanto, deixemos a pergunta ressoar: tomar esta como sendo a possível intenção de Joca Ramiro responde à questão sobre o desejo do pai de Diadorim? Não.

Temos bons motivos para argumentar que a intensão, até mesmo o forçamento, que se evidencia na relação entre Diadorim e seu pai, é muito de outra ordem. Uma ordem que, é claro, não invalida a tese da obrigação de vingança do nome do pai.

Diadorim mesmo o confirma. Quando se fazia qualquer referência ao assassinato de Joca Ramiro, “Diadorim só falava nos extremos do assunto. Matar, matar, sangue manda sangue” (GSV, p.26). Enquanto os assassinos “vivessem, simples Diadorim não vivia. Até que viesse a poder vingar o histórico de seu pai, ele tresvariava” (GSV, p.26). Sem vida, tresloucado, três vezes, ou mais, variado. Ao que nos parece, era esta sua sina.

Diadorim sofreu o abandono da mãe e procurou desvencilhar-se do vínculo amoroso que o ligava a ela. Pela primeira vez, variou: tomou a vereda diversa que conduziu ao pai. Muito antes da realidade da morte deste, a vereda diversa deve ter se

mostrado também adversa. Pela segunda vez, Diadorim variou, voltou-se para outro homem, Leopoldo. Mas, na verdade, esta variação não era assim tão diversa, pois continuou conduzindo ao pai. Diadorim teria variado uma terceira vez?

Desviar-nos-emos, rapidamente, destas nossas interrogações já que inesperadamente surge esse Leopoldo. Quem era ele? Um dos jagunços nos dirá: - “Eh, esse Reinaldo gosta de ser bom amigo... Ao quando o Leopoldo morreu ele quase morreu também, dos demorados pesares...” (GSV, p.133).

A partir daí, “esse nome de um Leopoldo” (GSV, p.133) tornou-se uma história que Riobaldo “[...], persistentemente, [...] remoía” (GSV, p.133). Enfim, sem nem saber por quê, ele indagou:

- “Diadorim, então quem foi esse moço Leopoldo, que morreu seu amigo?” – eu indaguei, de sem-tempo, nem sei porque; eu não estava pensando naquilo. Antes eu já estava para trás de ter perguntado, palavras fora da boca. – “Leopoldo? Um amigo meu, Riobaldo, de correta amizade...” – e Diadorim desfez assoprado um suspiro, o que muda melhor. – “Até te falaram nele Riobaldo? Leopoldo era o irmão mais novo de Joca Ramiro...” Aquilo eu já soubesse demais – que Joca Ramiro se realçasse por riba de tudo, reinante (GSV, p.140).

Então Leopoldo era tio de Diadorim. Já que mais novo, talvez tenha sido também - mais que um “bom amigo” -, uma espécie de irmão para ele. Que fosse. A segunda variação de Diadorim, seu amor por Leopoldo, nada mais é que a repetição do mesmo tema: o amor por Joca Ramiro.

Escutemos Freud (1980 [1932], v. XXII, p.162):

Os fatores determinantes da escolha objetal da mulher muitas vezes se tornam irreconhecíveis devido a condições sociais. Onde a escolha pode mostrar-se livremente, ela se faz, frequentemente, em conformidade com o ideal narcisista do homem que a menina quisera tornar-se. Se a menina permaneceu vinculada a seu pai – isto é, no complexo de Édipo - , sua escolha se faz segundo o tipo paterno.

Quem, melhor que um irmão de Joca Ramiro, poderia incitar a segunda variação de Diadorim? Uma variação que na verdade apenas realçava “por riba de tudo” (GSV, p.140) a soberania do pai?

Por isso, como ilustração, articulamos as variações de Diadorim ao conceito de “variação” segundo a rubrica da música sobre a qual Sinzig (1976, p.593, grifos do autor) esclarece:

Variação, metamorfose dum tema expressivo que, no entanto, com as maiores variantes, deve continuar bem reconhecível. É variado geralmente apenas um de seus elementos, ou alguns, como sejam o ritmo, a harmonia, o tom maior ou menor, a melodia, enquanto os antigos doubles conservam o tema, apresentando-o apenas com novos ornamentos e figurações. [...] Não há nada que não se possa fazer com o tema, desde que continue reconhecível.

Assim é que Diadorim variava. Fazia de quase tudo com o tema do pai. Voltou-se para Leopoldo, dublê de Joca Ramiro, que, no entanto, continuava reconhecível.

Mas existe aí um complicador ainda maior. Talvez possamos dizer que esta variação de Diadorim se assemelhe também a um rondó, pois faz reaparecer um tema que, para Diadorim, permanecerá inaudito.

Vejamos antes com Sinzig (1976, p.513, grifos do autor) o que é um rondó: “O característico de todos os rondós, rondels, rondelli e radels é o reaparecimento duma idéia bem definida, [...]. [...] no rondó o tema principal volta algumas vezes e [...] é respondido por mais de um contra-tema”.

Afinal, que tema é esse que acreditamos voltar algumas vezes a Diadorim e frente ao qual Joca Ramiro é um dos que responde como contra-tema?

Consideramos, com Freud (1980 [1932], v. XXII, p.162,163), que a relação de Diadorim com o pai se mantém e influencia suas escolhas amorosas tal qual acontece com toda mulher que permanece vinculada ao pai,

[d]e vez que, quando se afastou da mãe e se voltou para o pai, permaneceu a hostilidade de sua relação ambivalente com a mãe, uma escolha desse tipo asseguraria um casamento feliz. Muito frequentemente, porém, o resultado é de molde a representar uma ameaça geral à solução do conflito devido à ambivalência. A hostilidade que ficou para trás segue na trilha da vinculação positiva e se alastra ao novo objeto. O marido da mulher, inicialmente herdado por ela, do pai, após algum tempo se torna também o herdeiro da mãe.

Estaríamos com isso insinuando que a relação de Diadorim com Leopoldo visava o casamento? Certamente que não. Leopoldo era seu tio. Diadorim mesmo nos diz que o vínculo entre eles era de “correta amizade”, não podemos, portanto, pensar na possibilidade de um casamento assim tão flagrantemente incestuoso. Entretanto, esta amizade nos dá uma boa idéia do que norteava as escolhas amorosas de Diadorim: em primeiro lugar, o pai. Em segundo - compondo aquela camada minóico-miceniana mais arcaica de que falava Freud -, a música imemorável, a mãe.

Sobre esta sabemos quase tão pouco quanto Diadorim. No entanto, mesmo que não tenhamos ouvido uma única queixa sua contra a mãe, nada nos impede de compreender que também para Diadorim

[é] como se, na verdade, a referência ao pai viesse alimentar a energia da “conversão”, reforçá-la como que de fora: “Se você vai me abandonar”, diz o desejo da filha à Mãe – entendendo-se que a traição tem que se dar, para que ela saia da relação descrita como sem futuro -, “que pelo menos reine o Pai”. Por conseguinte ela tem de se dedicar ao falo, embora não tenha para isso uma... vocação (ASSOUN, 1993, p.106, grifos do autor).

Consideramos que foi exatamente a isso que Diadorim se dedicou. Para ele, Joca Ramiro reinou. Não lembrava da mãe. Lembrava do pai, seu destino de glória: “– “Olha Riobaldo” – me disse – “nossa destinação é de glória. Em hora de desânimo, você lembra de sua mãe; eu lembro do meu pai”” (GSV, p.38).

Preocupava-lhe e indignava-lhe a traição que o pai sofrera. Mas será que era somente esta traição que o dividia, já que se dedicar ao pai implica, como Freud observou, em trair a exclusividade do amor à mãe? Será que Diadorim sabia que “[q]uase tudo o que a gente faz ou deixa de fazer, não é, no fim, traição?” (GSV, p.139). O fato é que para Diadorim o pai tinha de ser vingado. Que mais restaria àquele que fora abandonado pela mãe e agora via o abandono reatualizado pelo pai, senão a vingança que “é lamber, frio, o que outro cozinhou quente demais” (GSV, p.74)?

Por isso é que “[...] Diadorim sabia era a guerra” (GSV, p.238) que lhe fez tirar, do amor a Joca Ramiro, o ódio pelo abandono daquela que Diadorim não devia mais lembrar, a mãe. Pois o ódio “é a gente se lembrar do que não deve-de; amor é a gente querendo achar o que é da gente” (GSV, p.273).

Assim, pelo amor e apesar do amor, Diadorim queria “sangues fora de veias” (GSV, p.237). O ódio que sentia pelos assassinos de seu pai crescia de todos os lados. Vinha do amor ao pai e... do amor à mãe. Pois, como diz Riobaldo,

[d]o ódio sendo. Acho que, às vezes, é até com ajuda do ódio que se tem a uma pessoa que o amor tido a outra aumenta mais forte. Coração cresce de todo lado. [...] Coração mistura amores. Tudo cabe (GSV, p.145).

Então, para nós, Diadorim amava tão intensamente ao pai quanto à mãe. Sendo mais precisos, consideramos que a intensidade de seu amor por Joca Ramiro nos dá exatamente a medida de seu amor pela mãe desconhecida. Parecerá tão improvável

que, mesmo sem tê-la conhecido, Diadorim supusesse o prazer propiciado por uma mãe? E, insistindo nesta suposição: o fato de não ter podido nutrir qualquer esperança de desfrutar deste prazer não poderia ter sido fonte de ódio e desespero que depois virou saudade? Se assim tiver ocorrido, consideramos legítimo adotar a seguinte equação para a travessia realizada por Diadorim:

O prazer vira medo, o medo vai vira ódio, o ódio vira esses desesperos? – desespero é bom que vire a maior tristeza, constante então para o um amor – quanta saudade... -; aí, outra esperança já vem... Mas a brasinha de tudo, é só o mesmo carvão só (GSV, p.178).

Partindo das premissas apresentadas acima por Riobaldo, consideramos Joca Ramiro como a “outra esperança” de Diadorim. Para compreendermos toda a relevância dele neste sentido, recorremos mais uma vez a Assoun (1993, p.105, grifos do autor):

Compreende-se, finalmente, o papel do Pai, como substituto e alternativa: ele tem que existir, para que seja possível a alternância... com o Paraíso! Papel simultaneamente salutar e ingrato, que cabe tanto ao Pai quanto a seu herdeiro, o homem amado. É por isso que Freud indica o vestígio insistente da antiga demanda materna no próprio cerne da escolha do objeto masculino pela mulher. [...] Não é apenas que a mulher continue a querê-la [a mãe] ao desejá- lo [o pai]; é que, estruturalmente, o desejo deslancha a partir de a demanda ser recusada. Que vontade não há de ser necessária à menina para empreender esse esforço – [...]! Tanta energia por querer deixar de amar a mãe quanto por tê-la amado. O desejo que brota daí fica marcado por essa provação.

Provação, isto mesmo. Esta nos parece a palavra mais exata para descrever a travessia de Diadorim no Grande Sertão. Uma travessia feita, sem dúvida, às custa de muita, muita coragem. Que requereu, também sem dúvida, todo aquele capricho, aquela vontade livre de Diadorim.

“Mas liberdade – aposto – ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões” (GSV, p.233). Então, que ferro agriolhoava Diadorim e de que pobre caminhozinho lhe foi possível retirar alguma alegria?