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Os eventos que antecedem à chegada majestosa de Joca Ramiro estão relacionados à guerra motivada pelo antagonismo existente entre ele e um outro grande chefe, Zé Bebelo. Precisamos esclarecer que o narrador, Riobaldo, inicia sua vida de jagunço lutando do lado dos “bebelos” (GSV, p.183), no entanto, por um motivo que indicaremos somente no próximo capítulo, ele se passa para o lado do bando de Joca Ramiro. Sobre este contexto de sangrenta guerra, Riobaldo dá seu parecer: “Me pareceu que daí adiante, a partir disso, o tudo era para só ser a desatinada doidice” (GSV, p.185).

De fato, os eventos seguintes são conseqüência desta guerra e ensejam um acontecimento que mudará o rumo da narrativa. Por este motivo, nos alongaremos um pouco mais em sua análise. Além deste, temos ainda um outro motivo para adotarmos tal procedimento: consideramos este julgamento uma das cenas-chave para o entendimento do tema a que nos propomos investigar. No momento oportuno, demonstraremos por quê.

Assim, ao final desta guerra, Joca Ramiro sai vencedor. Seu bando captura Zé Bebelo que exige: “- Assaca! Ou me matam logo, aqui, ou então eu exijo julgamento

correto legal!...e foi. Aí Joca Ramiro consentiu, [...], prometeu julgamento já...” (GSV,

p.194, grifos do autor).

Como ressalta Utéza (1994, p.308), ao consentir na instalação de um tribunal em pleno sertão, “Joca Ramiro abre as portas do desconhecido”. Continuando, este autor também faz ressaltar a incongruência do pedido de Zé Bebelo, pois, “[d]e acordo com a lei antiga, o vencido não tem nenhum direito”.

Desta forma, a narrativa do julgamento de Zé Bebelo nos põe diante de uma ocorrência inaudita. Neste aspecto, seu relato nos lembra a construção de um mito. Encontramos apoio a esta nossa articulação na seguinte apreciação de Utéza (1994, p.308):

In illo tempore, o acusado encarna a potência dionisíaca criadora frente à medida apolínea simbolizada pelo vencedor. Opostas e complementares, as duas faces do Pai estão encenando em duo o Mito Fundador. O comportamento extravagante e provocador de Zé Bebelo encontra sempre na tranqüila segurança de Joca Ramiro o contraponto adequado que permite o desenvolvimento total do drama, em conformidade com um ritual cujo alcance é globalmente percebido por todos os participantes.

Já comentamos a importância desta questão do mito em relação à lacuna teórica identificada por Lacan (1995) no texto freudiano. Tal lacuna diz respeito à

impossibilidade de se responder o que é um pai. Segundo Lacan, foi em decorrência da impossibilidade de se representar o pai das origens, que Freud forjou o mito de Totem e

tabu. Então, mostraremos a seguir que o julgamento narrado no Grande Sertão, um

evento cheio de simbologias, apresenta algumas semelhanças com o mito forjado por Freud, no sentido de também tentar simbolizar o pai.

O lugar escolhido para o julgamento foi a Fazenda Sempre-Verde que, segundo Utéza (1994, p.307), tem nome predestinado já que remete à “Vida Eterna”. Neste lugar que eterniza, os jagunços todos começam a se reunir e era “aquele mundo de gente, que fazia vulto. Parecia um mortório” (GSV, p.196). Isto já causa alguma estranheza: porque a reunião parecia um “mortório”, quer dizer, um velório, um funeral? Acaso reuniam-se para realizar algum sepultamento? Voltaremos a esta questão adiante.

Os chefes todos também estavam lá: “Daí, Joca Ramiro, Sô Candelário, o Hermógenes, o Ricardão, Titão Passos, João Goanhá, eles todos reunidos no meio do eirado, numa confa” (GSV, p.197). Os chefes confabulavam. Porém, no decorrer do julgamento, uma divisão vai se formar: de um lado, Sô Candelário, Titão Passos e João Goanhá defendem a idéia de que a vida de Zé Bebelo deve ser poupada. De outro, Hermógenes e Ricardão argumentam em favor da lei de jagunço que “é o momento, o menos luxo” (GSV, p.204). Cabe a Joca Ramiro determinar a sentença final, pois “[e]le mesmo, Joca Ramiro, como de lei, deixava para dar opinião no final, baixar sentença” (GSV, p.200).

Convém chamar atenção para o fato de que, apesar deste julgamento ser uma prática inusitada no sertão regido pela lei de jagunço, o lugar de Joca Ramiro já está estabelecido: é o lugar do “Juiz Supremo”, como argumenta Utéza (1994, p.308): “Pólos de expressão das energias da egrégora, os chefes se haviam repartido por afinidades, de um lado e de outro do Juiz Supremo”. Mas, afinal, o que estava posto em julgamento?

Hermógenes, o que “precisava de muitas vinganças” (GSV, p.200), foi o primeiro a acusar Zé Bebelo: “ninguém não provocou, não era inimigo nosso, não se buliu com ele. Assaz que veio, por si, para matar, para arrasar, [...]. Veio a pago do Governo. [...]. Merece ter vida não” (GSV, p.201).

Sô Candelário, apesar de se dispor a sacrificar a própria vida num duelo com Zé Bebelo, não indica crime neste homem que, segundo ele, “[v]eio guerrear, como nós

também. Perdeu, pronto! A gente não é jagunços? [...] Crime que sei é fazer traição, ser ladrão de cavalos ou de gado... não cumprir a palavra...” (GSV, p.203).

Já o “famoso Ricardão, [...]. Amigo acorçoado de importantes políticos” (GSV, p.203), considera que Zé Bebelo “veio caçar a gente, no Norte do sertão, como mandadeiro de políticos e do Governo, se diz até que a soldo...” (GSV, p.204). Com este “razoado”, Ricardão vota com Hermógenes por considerar que “tem outro despacho não, [...]; só um: é a misericórdia duma boa bala, de mete-bucha, e a arte está acabada e acertada” (GSV, p.204).

Quanto a Titão Passos, este acha que Zé Bebelo “não tem crime constável. [...] Ele quis vir guerrear, veio – achou guerreiros” (GSV, p.205). Por último, João Goanhá vota com Sô Candelário e Titão Passos: “Tem crime não. Matar, não” (GSV, p.206).

Na interpretação de Bolle (2004, p.125),

O julgamento na Fazenda Sempre-Verde visa muito além da pessoa empírica de Zé Bebelo. Discute-se ali a instituição representada alegoricamente pelo seu nome. “Bebelo” ou “Rebêlo” de re-bellum – aquele que sempre volta a praticar a guerra, [...] – é uma figuração da própria guerra.

Valemo-nos da indicação de Bolle de que este julgamento visa algo mais além, para aí acrescentarmos alguns esclarecimentos relativos à articulação que fizemos anteriormente entre este evento e o mito de Totem e tabu.

Por um lado, teremos, paradoxalmente, que iniciar explicitando uma divergência entre eles. No mito inventado por Freud, o pai é o pai original, antes dele não havia nenhum outro. Aqui, no relato do julgamento de Zé Bebelo não se trata disto. Além do que, contamos dois pais - Zé Bebelo e Joca Ramiro - encenando, como afirma Utéza (1994, p. 308), o “duo do Mito Fundador”. Neste aspecto, a cena do julgamento não apresenta afinidade alguma com o mito do pai da horda primitiva, senhor absoluto de tudo e de todos. Como argumentamos anteriormente, se há algo no relato do Grande

Sertão que poderia nos remeter ao medonho pai da horda primitiva, este algo seria o

“bezerro branco, erroso, de olhos de nem ser”, cujo assassinato, praticado pelo “Povo prascóvio”, foi relatado logo na abertura do romance.

O tribunal do Grande Sertão retrata antes, o pai pós-democrático que cede o direito de fala aos filhos: “– Que tenha algum dos meus filhos com necessidade de palavra para defesa ou acusação, que pode depor” (GSV, p.206, grifos nossos).

Por outro lado, a partir do que acabamos de expor, é na fala de um dos filhos, Riobaldo, que encontramos nosso primeiro apoio ao que supomos deter certa afinidade, senão com o mito, pelo menos com a intenção de se forjar um e que, na seqüência, nos permitirá entender um dos aspectos implicados na construção do conceito Nome-do-Pai.

Logo que Joca Ramiro concedeu a fala aos braços de arma - seus “filhos” -, Riobaldo se armou “dum repente” (GSV, p.207) para falar, mas dois outros jagunços se anteciparam a ele. Quando, enfim, toma a palavra, “feito menino em escola” (GSV, p.208), anuncia que tem uma “verdade forte para dizer” (GSV, p.208). Lembra a todos que já lutou ao lado de Zé Bebelo e isto lhe permite testemunhar que ele “é chefe jagunço, de primeira, sem ter ruindades em cabimento, nem matar os inimigos que prende, nem consentir de com eles se judiar...” (GSV, p.208).

Contudo, o que, especificamente, pretendemos realçar na argumentação de Riobaldo é o fato de que, a nosso ver, seu poder de persuasão derivou do apelo, feito por ele, à possibilidade de que a estória desta guerra viesse a se eternizar através do relato:

- “... A guerra foi grande, durou tempo que durou, encheu este sertão. Nela todo o mundo vai falar, pelo Norte dos Nortes, em Minas e na Bahia toda, constantes anos, até em outras partes... Vão fazer cantigas, relatando as tantas façanhas... Pois então, xente, hão de se dizer que aqui na Sempre-Verde vieram se reunir os chefes todos de bandos, com seus cabras valentes, montoeira completa, e com o sobregoverno de Joca Ramiro – só para, no fim, fim, se acabar um homenzinho sozinho – se condenar de matar Zé Bebelo, o quanto fosse um boi de corte? Um fato assim é honra? Ou é vergonha?...” (GSV, p.209).

Desta forma, Riobaldo propõe uma simbolização não apenas da guerra, mas dos feitos gloriosos do pai, aquele que está no “sobregoverno”. Com exceção de Ricardão e Hermógenes, a proposta de Riobaldo empolga a todos. Sobre este aspecto é que identificamos o desejo dos “filhos” de se forjar uma espécie de mito em torno do pai Joca Ramiro.

Como já comentamos anteriormente, no ensino de Lacan, a construção do mito não esgota a questão sobre o pai. Por conta disto, no seminário de 1957 a 1958, intitulado As formações do inconsciente, Lacan retoma o termo Nome-do-Pai para apresentá-lo de maneira científica. Segundo Porge (1998, p.41), tal procedimento “visa substituir a teoria do Édipo segundo Freud, pretendendo reduzi-la ao que tem de essencial e de estruturante”.

Ora, se por um lado, esta redução acarreta a explicitação da lógica implicada no mito, por outro, ela promove uma desconstrução assinalada por Porge (1998, p.41): “O Nome-do-Pai contém o germe de uma desconstrução da teoria de Freud”. Sendo assim, neste seminário de 1957, Lacan faz interessantes observações sobre a lei associando-a ao Nome-do-Pai. Na aula de 08 de janeiro de 1958, Lacan (1999, p.152) afirma:

Aqui chamamos de lei aquilo que se articula propriamente no nível do significante, ou seja, o texto da lei. [...] Com efeito, o que autoriza o texto da lei se basta por estar, ele mesmo, no nível do significante. Trata-se do que chamo de Nome-do-Pai, isto é, o pai simbólico. Este é um termo que subsiste no nível do significante, [...]. É o significante que dá esteio à lei, que promulga a lei.

A partir destes esclarecimentos, Lacan nos faz observar ainda que, em relação ao Édipo, enquanto um mito criado por Freud, há algo essencial, fornecido pelo próprio Freud, no sentido de justificar que a lei seja fundada no pai. Acreditamos que este “algo” também se encontra presente no relato do Grande Sertão. É sobre ele que trataremos a seguir.