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Gertrude Stein para crianças : da tradução à transcriação

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Academic year: 2023

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Universidade de Lisboa Faculdade de Letras

Gertrude Stein para Crianças: Da Tradução à Transcriação

Mestrado em Tradução

Catarina Costa Fernandes Diniz Parreira

2022

Relatório de estágio especialmente elaborado para a obtenção do grau de

Mestre, orientado pela Professora Doutora Maria Teresa Casal

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AGRADECIMENTOS

O presente relatório começou a ser elaborado em março de 2020, altura em que o vírus Covid-19 se ocupou de mandar a população deste planeta para casa e lhe retirou tudo o que eram as suas previsões para o futuro, deixando o mundo em standby. É quando se enfrenta uma situação totalmente desconhecida, como esta pela qual ainda passamos, que percebemos que o ser humano é um ser social e que precisa de companhia e de alguém com quem falar. Dito isto, quero agradecer ao meu orientador e editor da Ponto de Fuga o Dr. Vladimiro Nunes, por me ter dado esta oportunidade. À minha orientadora, a Professora Doutora Maria Teresa Casal pela paciência. À minha família, aqueles que estão e os que já partiram, pelo apoio e fé durante todos estes anos. Aos meus amigos os da terra e os de fora que, sempre, acreditaram em mim. Quero agradecer especialmente à Marta e à Adriana, que me chatearam todos os dias da semana.

“Terra de comunhão, mãe do calor onde os solitários nem sempre o serão, enquanto o pão da terra for…”

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RESUMO

O presente relatório de estágio é realizado como requisito para obtenção do grau de Mestre em Tradução pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O trabalho aqui apresentado é o produto do estágio curricular concretizado na editora Ponto de Fuga entre outubro de 2019 e maio de 2020. Desta maneira, o que se segue é uma descrição do processo de tradução de The First Reader & Three Plays, de Gertrude Stein, a obra de literatura infantojuvenil trabalhada no decorrer deste estágio curricular. A estrutura do presente relatório pretende replicar o processo de tradução. Assim, começa por uma análise do texto original e à tradução de Luísa Costa Gomes de The World Is Round, também escrito por Stein, cuja tradução estabeleceu os parâmetros de tradução a serem seguidos na tradução de The First Reader; passando por uma contextualização teórica, que irá elucidar os leitores sobre as estratégias de tradução utilizadas; e finalizando com uma análise à tradução realizada descrevendo mais pormenorizadamente o processo tradutório, apresentando exemplos de dificuldades encontradas e as suas soluções, seguindo-se as considerações finais sobre todo o trabalho realizado. Pretende-se que este relatório venha contribuir para uma melhor compreensão da tradução infantojuvenil e do trabalho dos tradutores e tradutoras enquanto mediadores e mediadoras socioculturais.

Palavras-chave: Gertrude Stein; Luísa Costa Gomes; tradução literária; tradução infantojuvenil; literatura infantojuvenil; transcriação; rima; polissemia; globalização;

estratégias; estratégias estrangeirantes; estratégias domesticantes.

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ABSTRACT

This internship report is written in order to obtain a master's degree in Translation by the School of Arts and Humanities of the University of Lisbon. This report is the product of an internship at the publisher Ponto de Fuga, which took place between the months of October 2019 and May 2020. Therefore, what follows is a description of the translation process of the book The First Reader & Three Plays, by Gertrude Stein, the text which was translated during the curricular internship. The structure of the report here presented aims to replicate the translation process. Thus, it starts with an analysis of the original text and of the translation by Luísa Costa Gomes of Stein’s The World Is Round, since Costa Gomes’s translation was established as the model to be followed in the translation of The First Reader. The second chapter provides a theoretical contextualization that will elucidate the readers about the translation strategies that were used. The third chapter analyses the proposed translation and discusses the difficulties encountered and how they were addressed. The report concludes with final considerations about the work undertaken. This report aims to contribute to a better comprehension of the translation of children’s literature and of translators’ role as socio-cultural mediators.

Keywords: Gertrude Stein; Luísa Costa Gomes; literary translation; children’s translation; children’s literature; transcreation; rhyme, polysemy; globalization;

strategies; foreignizing strategies; domesticating strategies.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO ... 6

CAPÍTULO I – O estágio... 9

1.1 – Entidade de acolhimento ... 9

1.2 – Descrição do estágio... 9

1.2.1– Gertrude Stein, The First Reader & Three Plays, The World Is Round e a tradução de Luísa Costa Gomes ... 10

1.2.2– O Mundo é Redondo e Luísa Costa Gomes ... 12

1.2.3 – The First Reader & Three Plays ... 21

CAPÍTULO II – Enquadramento Teórico ... 26

2.1 – Estudos de Tradução ... 27

2.2 – A Tradução de Literatura Infantojuvenil ... 41

CAPÍTULO III – Análise da tradução de The First Reader ... 67

3.1 – O título e as lições ... 68

3.2 – Polissemia e rima ... 69

3.3 – Transcriação ... 78

CAPÍTULO IV – Conclusão ... 86

BIBLIOGRAFIA ... 93

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INTRODUÇÃO

O presente relatório incide sobre o trabalho executado no âmbito do estágio curricular, integrado no Mestrado em Tradução da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, na editora Ponto de Fuga. Este estágio teve o seu início em outubro de 2019 e terminou em maio de 2020.

A escolha de um estágio curricular na Ponto de Fuga deveu-se ao facto de ser um estágio na área de Tradução Literária, uma área que me atrai, apesar de, à data de entrada para o Mestrado em Tradução no ano letivo de 2018/2019, me inclinasse mais, no que diz respeito ao meu percurso académico, para a área de Tradução Técnica. No entanto, uma vez que a escrita é algo a que sempre me dediquei, e depois de ter aprofundado o meu conhecimento na área de Tradução Literária através dos seminários propostos pelo Mestrado, o meu interesse mudou e foi assim que decidi que um estágio nesta área seria algo essencial no percurso que pretendo traçar no futuro.

O trabalho em questão foi a tradução parcial da obra The First Reader & Three Plays, de Gertrude Stein, tradução que foi pedida pelo editor Dr. Vladimiro Nunes, que foi, também, o supervisor local da autora deste relatório. O presente relatório descreve e reflete sobre o processo de tradução desenvolvido ao longo do estágio. Assim, encontra- se organizado em capítulos que, na sua sequência, correspondem à execução do processo de tradução: o primeiro descreve o pedido de tradução feito pelo editor Vladimiro Nunes e os critérios estipulados para o efeito, apresenta Gertrude Stein como autora, caracteriza as duas obras aqui abordadas e procede a uma análise da tradução de Luísa Costa Gomes de The World Is Round de Gertrude Stein; o segundo expõe a moldura teórica que informa o processo de tradução de The First Reader; o terceiro analisa a tradução que dá origem a este relatório.

O primeiro capítulo do relatório de estágio elucida sobre os requisitos que foram estipulados pelo editor e supervisor de estágio Vladimiro Nunes para a realização desta tradução, nomeadamente o seguimento dos mesmos parâmetros da tradução de uma outra obra de Gertrude Stein previamente publicada pela Ponto de Fuga, e considera o impacto deste requisito no trabalho a ser realizado. No mesmo capítulo, é feita uma apresentação de Gertrude Stein, bem como uma contextualização das suas obras aqui em estudo: The World Is Round e The First Reader & Three Plays. De seguida, procede-se a uma análise

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da tradução de Luísa Costa Gomes do livro O Mundo é Redondo, obra que partilha semelhanças com The First Reader, designadamente no que toca ao público-alvo e à estrutura frásica, entre outras, por forma a tentar perceber como a tradutora portuguesa, que também é escritora, trabalha esta outra obra infantojuvenil de Gertrude Stein. Esta análise à tradução de Luísa Costa Gomes revelar-se-á importante por permitir identificar que tipo de abordagem e que tipo de estratégias a tradutora utilizou para permitir a leitura na língua portuguesa e como estas transformaram o texto. A identificação dos parâmetros utilizados por Luísa Costa Gomes aquando da tradução de O Mundo é Redondo é importante na medida em que foram estes que guiaram e restringiram, no que concerne à minha liberdade de escolha como tradutora, a tradução de The First Reader.

No segundo capítulo, é apresentada a moldura teórica utilizada na abordagem à tradução e que informou tanto a análise das estratégias utilizadas por Luísa Costa Gomes como a ponderação de opções a adotar na tradução efetuada no âmbito do estágio. São trazidas à discussão as teorias de autores como Antoine Berman, Lawrence Venuti, Gideon Toury e Katharina Reiss, assim como autores que abordam a tradução de literatura infantojuvenil como Gillian Lathey, Zohar Shavit e Clifford E. Landers, que fundamentaram a realização da tradução da obra de Gertrude Stein. O presente relatório foca-se mais especificamente nas propostas que se debruçam sobre a aplicação de estratégias de tradução estrangeirantes. Segue-se, no terceiro capítulo deste relatório, a análise da tradução de The First Reader, sendo descritas as dificuldades encontradas nas várias fases do processo de tradução tais como: a adequação de certas estratégias de tradução ao público-alvo; a musicalidade do texto; os jogos de palavras; e ainda desvios dos parâmetros impostos pela tradução de Luísa Costa Gomes. De modo a ilustrar e facilitar a compreensão da descrição das dificuldades encontradas são, também, fornecidos exemplos das dificuldades em questão, bem como uma explicação sobre a solução adotada que elucidará o leitor sobre o raciocínio que levou à escolha final de tradução.

Por fim, na conclusão, reflete-se sobre todo o processo de tradução de The First Reader, desde a maneira como foi assimilado o pedido do editor até à abordagem e execução da tradução. Pretende-se com este relatório, sobretudo, dar a conhecer os desafios e as soluções que foram sendo encontradas durante a tradução do texto já mencionado. Acresce que, para a tradução ser executada da melhor forma, foi necessário

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estudar os Estudos de Tradução no seu cruzamento com os Estudos Literários, particularmente no que à especificidade da literatura infantojuvenil e da respetiva tradução diz respeito. O objetivo foi situar-me face a essa tradição de modo a melhor poder enquadrar a minha tarefa e ponderar a abordagem da tradução que me tinha sido pedida.

Assim, importa dizer que o presente relatório oferece um ponto de vista apoiado nos Estudos de Tradução e dá provas de conhecimento empírico que foi sendo adquirido ao longo não só da realização deste relatório e do respetivo estágio, mas também dos cinco anos de estudo desenvolvido na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O objetivo é apresentar uma proposta de tradução de uma obra desafiante de Gertrude Stein, refletindo sobre o processo que a ela conduziu. Este caso específico visa contribuir para uma reflexão mais alargada sobre o papel da tradução infantojuvenil, o modo como é vista pela sociedade, quais os seus requisitos e problemáticas, qual o papel que o/a tradutor/a exerce ao enveredar pela literatura infantojuvenil e para onde esta se encaminha tendo em vista a globalização num mundo que já não aparenta ser tão grande como outrora foi.

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CAPÍTULO I – O estágio 1.1 – Entidade de acolhimento

O estágio curricular que origina este relatório foi realizado no âmbito do Mestrado em Tradução e decorreu na Editora Ponto de Fuga, tendo como supervisor local o próprio editor, o Dr. Vladimiro Nunes. A Ponto de Fuga é uma editora independente lançada em 2014, ano em que começa o seu percurso com a coleção Petzi, uma série de banda desenhada dinamarquesa que teve o seu primeiro lançamento em 1951. O objetivo da Editora é o de ser generalista, trazendo à luz, ou por vezes fazendo regressar, grandes autores, portugueses e estrangeiros, concedendo-lhes a oportunidade de captarem o interesse do público português mais uma vez, ou até de se darem a conhecer pela primeira vez. Para além de ser editora, a Ponto de Fuga serve também como loja onde podem ser adquiridas as obras publicadas por esta editora, cujos géneros abrangem desde o infantojuvenil, com livros como a coleção Petzi, a textos autobiográficos, como as obras Momentos de Vida de Virginia Woolf e a Autobiografia de Alice B. Toklas de Gertrude Stein, ou até poesia com o livro Na Curva Escura nos Cardos do Tempo de Leonor de Almeida.

1.2 – Descrição do estágio

O estágio realizado na editora Ponto de Fuga consistiu na tradução de uma obra nunca traduzida para português europeu da autora americana Gertrude Stein. A obra em questão intitula-se The First Reader & Three Plays, de 1946, e divide-se em duas partes:

a primeira aborda a importância da leitura e o seu processo de aprendizagem; a segunda é composta por três pequenas peças de teatro. Foi solicitado pelo supervisor local da entidade de acolhimento, o Dr. Vladimiro Nunes, que fosse traduzida a primeira parte desta obra, que diz respeito à primeira parte do título da obra de Stein, The First Reader.

Este texto divide-se em vinte partes que a autora designa como Lessons (Lições) e que se mantêm independentes umas das outras. Da mesma forma, foi também pedido que a tradução fosse feita tendo em conta o livro The World Is Round, originalmente escrito em 1939, e a sua tradução O Mundo é Redondo, obra também publicada pela Ponto de Fuga e previamente traduzida por Luísa Costa Gomes com ilustrações de Rachel Caiano. As

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línguas de trabalho foram o português e o inglês e o estágio foi realizado à distância, em casa, devido à falta de espaço na entidade de acolhimento, uma vez que se trata de um espaço razoavelmente pequeno. Foram postos à minha disposição tanto o original, com o qual trabalhei, como um exemplar da tradução O Mundo é Redondo. Para além dos materiais que me foram disponibilizados, foi mantido contacto regular com o supervisor local, que sempre se disponibilizou a ajudar-me em quaisquer dúvidas ou dificuldades que encontrasse ao longo do processo de tradução.

Uma vez que a realização da tradução pedida pelo Dr. Vladimiro Nunes implicava a necessidade de conhecer não só a obra original, The First Reader & Three Plays, mas também uma segunda obra de Stein, The World Is Round, e ainda, a respetiva tradução, como foi mencionado no início do subcapítulo. O primeiro passo da investigação preparatória para a tradução consistiu, pois, em conhecer melhor a autora das duas obras em questão. Para este efeito, o capítulo não só apresenta sucintamente Gertrude Stein e caracteriza e analisa as obras acima mencionadas, como também apresenta a tradutora de O Mundo é Redondo, Luísa Costa Gomes, e caracteriza a sua tradução. Pretende-se, assim, identificar os critérios a ter em conta na realização da tarefa que me foi confiada no estágio.

1.2.1– Gertrude Stein, The First Reader & Three Plays, The World Is Round e a tradução de Luísa Costa Gomes

A autora americana Gertrude Stein é autora das obras The First Reader & Three Plays e The World Is Round, em português O Mundo é Redondo, obras centrais a este relatório. Nascida nos Estados Unidos da América em 1874, Stein muda-se para Paris em 1903 e é aí que desenvolve o seu amor pela escrita e se torna uma protetora do mundo das artes, “[…] fazendo da sua casa um dos mais míticos salões artísticos do século XX.”, como se pode ler na página da editora, Ponto de Fuga, que tem vindo a investir na tradução dos manuscritos desta autora, http://pontodefuga.pt/.

Gertrude Stein é uma das autoras estudadas nas universidades que lecionam unidades curriculares de literatura americana, sendo considerada como uma das pioneiras

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da escrita modernista, como escreve Rachel Kevern num artigo do periódico Oxford Student: “[…] it is unsurprising that she is known to many as the Mother of Modernism.”.

Esta afirmação é reforçada por Robert M. Post no seu artigo de 1996 em Kentucky Review:

“‘An Audience is an Audience’: Gertrude Stein Addresses the Five Hundred”. Post explica que, no início da sua carreira como escritora, Gertrude Stein era mal vista na comunidade literária americana da altura, chegando a sua escrita a ser comparada com a de alguém que sofre de distúrbios mentais (1996: 71). Porém, esta visão depreciativa foi sendo mudada aos poucos. Post, no seu artigo, cita vários autores que vêm enaltecer a imagem de Stein e a sua escrita:

Michael J. Hoffman reminds us that “there are many ... who consider her a major author, the founder of a new literary style, the great apologist for Modernism” (15).

Harold Bloom considered her “The greatest master of dissociative rhetoric in modern writing” (“Introduction” 1), while Bettina L. Knapp believes that “a truism today” is “That Stein played a significant role in shaping twentieth-century literature” (177). Elizabeth Sprigge informs us that Francis Rose grew to believe that Stein was “in her way as great a writer as Shakespeare” (165). (Post, 1996: 71)

Apesar de Gertrude Stein ter tido sempre uma reputação que podia ser considerada infame, foi também bastante admirada, a par de grandes escritores da sua altura. Prova disto foi quando, no fim da década de trinta do século passado, a escritora Margaret Wise Brown, à data editora da chancela Young Scott Books, uma editora que se especializava em literatura para crianças, decidiu convidar autores já conhecidos do público americano para escreverem um livro infantil. Foram estes John Steinbeck, Ernest Hemingway, com quem Stein privava, e a própria Gertrude Stein. Dos três, apenas a última acedeu ao pedido, tendo assim escrito o livro, que já tinha sido começado, The World Is Round.

Ao morrer, em 1946, Gertude Stein deixa ao mundo uma grande obra de originais da qual fazem parte as obras Everybody’s Autobiography, Picasso, Three Lives, e outras já traduzidas para português, como é o caso das obras: Paris França, publicada pela Relógio d’Água com tradução de Miguel Serras Pereira; e, ainda, A Autobiografia de Alice B. Toklas, traduzida por Nuno Quintas e publicada pela Ponto de Fuga em setembro de 2017. Esta obra mereceu ainda uma segunda tradução, de Margarida Periquito,

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publicada também pela Relógio d’Água em outubro de 2017. Também traduzido para português foi o livro O Mundo é Redondo, com tradução de Luísa Costa Gomes e ilustrações de Rachel Caiano e publicado pela editora Ponto de Fuga em 2017. Foi a pedido do editor, Dr. Vladimiro Nunes, que, tendo por base a tradução deste livro, foi realizada a tradução parcial da obra The First Reader & Three Plays, de modo a manter uma certa coerência e harmonia no registo tradutório das obras de Gertrude Stein.

Tal requisito editorial torna ainda mais premente uma análise atenta da tradução publicada de O Mundo é Redondo. Se, em quaisquer circunstâncias, a tradução desta obra de Stein beneficiaria de um conhecimento prévio, por parte da tradutora, da outra obra da autora destinada ao mesmo público-alvo e em circulação na cultura de chegada, no presente caso essa consulta não é meramente informativa, mas assume uma função indicativa, até mesmo prescritiva do modelo a seguir na tradução aqui apresentada.

Assim, impunha-se identificar as estratégias adotadas por Luísa Costa Gomes, tradutora de O Mundo é Redondo, e compreender quais os parâmetros que a consequente tradução de The First Reader, que será aqui analisada e discutida, teve de seguir. Do mesmo modo, também se impõe que seja feita uma apresentação da escritora e tradutora Luísa Costa Gomes, que traduziu The World is Round de Gertrude Stein.

1.2.2– O Mundo é Redondo e Luísa Costa Gomes

Este subcapítulo tratará de analisar a tradução do texto original de Gertrude Stein, The World Is Round, que foi apresentado ao público português como O Mundo é Redondo. Por conseguinte, será feita também uma apresentação de Luísa Costa Gomes, a escritora e tradutora responsável pela tradução para língua portuguesa do livro de Stein, que foi dada como exemplo a seguir para a tradução a ser realizada no âmbito do estágio curricular.

De acordo com a informação disponibilizada no próprio site da autora, a tradutora e escritora Luísa Costa Gomes, nascida em Lisboa em junho de 1954, vê-se atraída pela escrita desde pequena, tendo até escrito uma peça, a pedido de uma professora, aos treze anos. 1 No entanto, é em 1988 que publica o seu primeiro romance intitulado O Pequeno

1 Informação retirada do site gerido pela própria Luísa Costa Gomes: https://www.luisacostagomes.org/

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Mundo, com a chancela da Quetzal, que lhe valeu o prémio D. Diniz da Fundação Casa de Mateus. Entre os anos 1989 e 1990 escreve a biografia ficcional Vida de Ramón, uma obra que já se encontra traduzida em várias línguas. Intimamente ligada ao teatro desde criança, estreia-se em 1990 como dramaturga com a peça Nunca Nada de Ninguém. Verá as suas peças representadas, por várias vezes, no Teatro Nacional D. Maria II. É neste contexto que se encontra com a tradução e traduz a peça Ligações Perigosas, a partir do texto de Christopher Hampton. É também no âmbito da tradução de peças de teatro que encontra a escrita da autora Gertrude Stein pela primeira vez e traduz Geography and Plays (Geografia & Peças), de Gertrude Stein, em conjunto com a encenadora Ana Tamen, tendo as duas trazido em 1998 o estilo de Stein, pela primeira vez, ao encontro do público português. E é em 2017, com o livro infantojuvenil The World Is Round, que Luísa Costa Gomes volta a encontrar-se com Gertrude Stein, traduzindo a obra para a língua portuguesa, intitulando-a O Mundo é Redondo.

Numa entrevista da escritora e tradutora ao Diário de Notícias, Luísa Costa Gomes fala sobre a sua experiência a traduzir Gertrude Stein e sobre o registo em O Mundo é Redondo:

Mas os textos de Stein são de uma simplicidade desarmante, não é a tradução que é complicada, não há vocabulário arrevesado, não há adjetivação, não há, por assim dizer, “estilo”, é quase anistórica, é todo aquele universo que é um brinquedo, as frases são como carruagens do comboiozinho, como peças de um puzzle, zonas de um quadro. É uma máquina de fazer frases, como dar à manivela para o mundo andar à volta e à volta. É um universo tão criador, que convida à criação, ao contrário de outros que esmagam pela explicação e pelas moralidades convencionais. (Costa Gomes, L. apud Pereira, M., 2017)

Com este comentário, a escritora e tradutora destaca a criatividade dos textos de Stein, que é inerente à sua simplicidade, uma criatividade que acaba por se tornar parte da tradução dos textos de Stein. Luísa Costa Gomes descreve-se, no seu site, como sendo: “Contista, romancista, dramaturga, dramaturgista, argumentista, cronista,

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tradutora.”. É, pois, alguém com uma experiência ampla e variada nos ramos da literatura e da escrita. Talvez seja por esta mesma razão, aliada ao facto de esta ser a segunda vez em que a escritora traduz Gertude Stein, que a sua tradução d’O Mundo Redondo, tenha sido celebrada e aplaudida por Vladimiro Nunes, editor da Ponto de Fuga, pelo seu trabalho “magistral”, nas palavras impressas do próprio editor na contracapa de O Mundo é Redondo, adotando a sua tradução como um paradigma a seguir no que concerne à tradução da escrita de Stein no contexto infantojuvenil.

O Mundo é Redondo é uma obra, categorizada como infantojuvenil, com pequenas histórias que envolvem, na sua maior parte, a protagonista, uma menina chamada Rose e o seu cão Love, personagens que são retiradas da vida real de Gertrude Stein, uma vez que Rose d’Aiguy, juntamente com os seus cães Pépé e Love, foram vizinhos da autora e terão inspirado Stein. O livro vai detalhando cenas do quotidiano através da perspetiva infantil de Rose, que alia a sua criatividade à simplicidade que só a visão de uma criança consegue ter. Exemplo desta simplicidade é a frase que abre o livro: “Uma vez o mundo era redondo e podia-se andar nele à roda e à roda.” (O Mundo é Redondo, 2017: 7). A frase retrata a sabedoria simples de que o mundo é, deveras, redondo e na teoria também se pode andar à roda nele.

Apesar de ser um livro destinado a um público infantojuvenil, abrangendo uma faixa etária que se estende dos 9 aos 11 anos segundo o Plano Nacional de Leitura, é uma obra que também se revela interessante para os adultos que tenham essa curiosidade, uma vez que Gertrude Stein teve sempre como princípio na sua escrita deixar de fora a condescendência para com os seus leitores, mesmo que estes fossem crianças. Assim sendo, a escrita que compõe The World Is Round apenas difere dos outros textos da autora na dimensão musical conferida pelos jogos de palavras e ritmos que se desenvolvem ao longo do texto. Citando o próprio editor no interfácio do livro O Mundo é Redondo fica- se a saber o seguinte:

o texto […] é tão ou mais exigente do que qualquer outro texto de Stein. O ritmo peculiar, quebrado, confuso está lá, e muitas vírgulas não estão, como não está nenhum ponto de interrogação ou de exclamação, nenhum ponto e vírgula ou dois pontos, aspa ou travessão. (O Mundo é Redondo, 2017: 100)

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É também importante referir que este livro foi lançado como uma edição bilingue, sendo a primeira parte a tradução de Luísa Costa Gomes com ilustrações de Rachel Caiano e a segunda parte o original de Gertrude Stein, introduzida por um interfácio do editor Vladimiro Nunes, graças ao qual o leitor fica a saber que a leitura que, por vezes, parece ser desconfortável devido à pontuação, foi assim pretendida pela autora no seu original. Assim, respeitando esta intenção da autora, a tradutora, Luísa Costa Gomes, mantém a pontuação original como pretendia Gertrude Stein e traduz este livro o mais proximamente possível do original. A tradutora faz, assim, uso de uma abordagem estrangeirante, como aquela referida por Schleiermacher, para quem o trabalho do tradutor seria conseguir estabelecer uma aproximação ao escritor estrangeiro por parte do leitor e não o contrário, enaltecendo na sua tradução a língua estrangeira e não a escondendo (Munday, 2010: 29).

No entanto, no caso de The World Is Round, o recurso a uma abordagem completamente estrangeirante poderia comprometer o bom entendimento por parte do leitor, na medida em que a escrita de Gertrude Stein evoca uma musicalidade que é conseguida através de jogos de palavras, da repetição e da cadência rítmica concedida ao texto provocada pela aliteração de sons e letras, havendo, por vezes, algumas rimas ao longo da prosa. Considerem-se os seguintes exemplos:

Texto de partida Texto de chegada

“[…] and when Rose heard him drumming she went to the door and the man was calling out either or either or, either there is a lion here or there is no lion here, either or, either or. Rose began to sing she just could not help herself, tears were in her eyes […] The drumming went on, either or, cried the man, neither nor, cried Rose he is neither here nor there, no lion is here no lion is there, neither nor, cried Rose he is neither here nor there.”

“[…] e quando a Rosa o ouviu tocar tambor foi até à porta e o homem gritava ou isto ou aquilo, ou há cá leão ou não há cá leão, ou isto ou aquilo, ou ou. Rosa pôs-se a cantar, não se continha, tinha lágrimas nos olhos […]

O tambor continuava, ou ou, gritava o homem, nem nem, Rosa chorou não está nem aqui nem ali, não não há cá

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leão não há lá leão, nem nem, chorava Rosa, não está nem cá nem lá.”

“The hay came down the way it was no way for hay to come anyway. Hay should stay until it is taken away but this hay, the rain there was so much of it the hay came all the way and that made a dam so the water could not go away and the water went into the car and somebody opened the door and the water came more and more and Willie and Rose were there and there was enough water there to drown Willie certainly to drown Willie and perhaps to drown Rose.”

“O feno desceu de uma maneira que de qualquer maneira não era maneira de o feno descer. O feno deve ficar até ser levado para qualquer lado mas este feno, a chuva era tanta o feno veio por ali abaixo e fez um dique e portanto água não podia ir para lado nenhum e a água entrou mais e mais e o Willie e a Rosa estavam lá dentro e lá dentro havia água que chegava para afogar o Willie de certeza para afogar o Willie e talvez para afogar a Rosa.”

“When I sing I am in a ring, and a ring is round and there is no sound and the way is white and pepper is bright and Love my dog Love he is away alright oh dear […]”

“Quando eu canto estou num anel, e um anel é Redondo e não há som e o caminho é branco e a pimenta é clara e Love o meu cão Love está mesmo onde ai ai […]”

No primeiro exemplo da tabela vemos como a autora usa a repetição de palavras para conceder ritmo ao texto, que começa com a repetição da expressão either or, e que na segunda parte do exemplo a expressão é modificada para neither nor; no entanto, estas expressões não fazem parte apenas de uma estratégia de repetição com o propósito de conceder ritmo ao texto, mas também fazem parte de um jogo de palavras criado em torno do amplo significado do advérbio there. Neste exemplo a autora joga com o facto de, na frase “[…] either there is a lion here or there is no lion here […]”, there is ser tomado como uma expressão que, segundo o dicionário online da Oxford, no site https://www.lexico.com/, é usada para “[…] indicate the fact or existence of something.”

Isto acaba por alterar o significado entendido por Rose, que, na segunda parte do exemplo, interpreta there is não como uma expressão, mas como duas palavras individuais, tornando there num advérbio de lugar: “[…] he is neither here nor there, no lion is here

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no lion is there […]”. Importa também dizer que, no original, a autora joga também com a polissemia do verbo cry, que, também segundo o dicionário online da Oxford, para além de se referir ao ato de chorar por tristeza pode querer dizer: “Say something loudly in an excited or anguished tone of voice.”. Assim, quando a autora refere “cried the man”

pretende mostrar que o homem gritava. Enquanto a frase “cried Rose” tem de ser lida tendo em conta a informação anterior que refere que Rosa tinha lágrimas nos olhos. Com efeito, Luísa Costa Gomes traduz “cried the man” por “gritava o homem” e “cried Rose”

por “a Rosa chorou”, uma escolha na qual se perde a dualidade de cried, pois, o verbo

“chorar” em português tem sempre uma conotação de tristeza.

No segundo exemplo da tabela pode identificar-se a repetição da palavra hay assim como do fonema “ay”, a aliteração da letra “y”, que se integra nas palavras: hay;

way; anyway; stay; away, que, por sua vez, vão rimando ao longo do texto, e da letra “w”

nas palavras: way; was; anyway; away; water; went; Willie. Ainda outra semelhança com o exemplo anterior é a brincadeira entre a expressão there was e a palavra there, que se realiza da mesma maneira que no primeiro exemplo da tabela: “[…] Willie and Rose were there and there was enough water there to drown Willie […]”.

Já no terceiro exemplo da tabela acima pode verificar-se uma aliteração das letras

“r”, presente nas palavras ring (que é repetida duas vezes) e round,e da letra “w” em way e white. Recorre-se ainda à aliteração, que concede ritmo ao texto. Neste exemplo está também presente a rima que se realiza entre as palavras sing e ring, round e sound e também entre bright e alright. É importante ainda notar que a palavra white, apesar de não ter a mesma terminação que o par bright/alright, partilha uma semelhança sonora com estas palavras no momento em que se pronuncia. Refira-se também que a sequência das palavras: sing; ring; round; sound é composta por palavras monossilábicas, facto que contribui para a dinâmica do texto no momento da leitura.

Todavia, apesar de este aspeto musical, que se pôde ver nos exemplos dados, ser uma das principais características do texto, a tradução de Luísa Costa Gomes não tornou a dimensão rimática e dinâmica do texto a sua primeira preocupação, tomando como seu principal objetivo mostrar a originalidade do registo de Gertrude Stein ao público português:

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Texto de partida Texto de chegada

“And then he began to sing.

He sang.

Bring me bread Bring me butter Bring me cheese And bring me jam Bring me milk And bring me chicken Bring me eggs And a little ham.”

“E depois pôs-se a cantar.

Cantou.

Tragam-me pão Tragam-me manteiga Tragam-me queijo E tragam-me compota Tragam-me leite E tragam-me frango Tragam-me ovos E um pouco de presunto.”

“One day Rose and her father Bob and her mother Kate and her grandmother Lucy and her uncle William were out riding and little Love was with them.

Love had a pink nose and bright blue eyes and lovely white hair. When he ate asparagus and he liked to eat asparagus his rosy nose turned red with pleasure, but he never barked, not even at a cat or at asparagus.

“Um dia a Rosa e o pai Bob e a mãe Kate e a avó Lucy e o tio William andavam a passear e o pequeno Love ia com eles.

Love tinha um focinho cor-de-rosa e olhos azuis brilhantes e um pêlo branco lindo. Quando comia espargos e ele gostava de comer espargos o focinho rosado ficava vermelho de prazer, mas nunca ladrava, nem a um gato, ou a espargos.”

Na tabela acima, são apresentados exemplos que demonstram a maneira como a tradução de Costa Gomes se mantém próxima do original. No caso do primeiro exemplo, é clara a falta de pontuação, uma característica inerente ao estilo de Gertrude Stein em The World Is Round, destacando-se aqui a falta de dois pontos aquando da introdução,

“He sang.”, e a falta de vírgulas na canção. No entanto, a tradutora optou por manter esta pontuação na tradução, não havendo uma adaptação para a língua portuguesa. Também no segundo exemplo se percebe a falta de pontuação, nomeadamente de vírgulas, presenteando o leitor com frases que são invulgarmente longas e que fogem à norma no que diz respeito à estrutura frásica da língua inglesa. Há, também, uma repetição

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sucessiva da conjunção “e”, que confere ao texto uma característica que se aproxima do registo oral e também daquele que seria esperado de uma criança.

Ainda assim, quando havia possibilidade de se obter uma certa musicalidade sem ter de se adaptar a tradução à língua de chegada, Luísa Costa Gomes fê-lo, como se pode notar nos exemplos apresentados na seguinte tabela:

Texto de partida Texto de chegada

“Light is bright and what is bright will confuse a little rabbit who has not the habit.”

“A luz reluz e tudo o que reluz confunde um coelhinho que não está acostumado”

“Rose began to cry.

She began to try She began to deny”

“Rosa pôs-se a chorar.

Pôs-se a tentar Pôs-se a negar”

“How Rose thought when she was thinking. Rose would get all round thinking her eyes her head her mouth her hands, she would get all round while she was thinking and then to relieve her hearing her thinking she would sing.”

“Como pensava Rosa quando pensava.

Rosa ficava toda redonda a pensar os olhos a cabeça a boca as mãos, ficava toda redonda enquanto pensava e depois para aliviar o escutar o pensar punha-se a cantar.”

No primeiro exemplo da tabela acima, Luísa Costa Gomes poderia ter traduzido

“Light is bright” por “A luz é brilhante”; no entanto, a tradutora escolheu traduzir “A luz reluz”, mantendo assim alguma da musicalidade que se obtém no original e a semelhança entre palavras já que em inglês light e bright apenas diferem por uma consoante. Já no segundo exemplo, para além de a tradução executar o mesmo tipo de rima que o original, mantém, também, palavras curtas, nomeadamente o verbo “pôs-se” que tem o mesmo número de sílabas que o seu equivalente inglês began. Esta opção de tradução reproduz o ritmo conseguido no original, que não teria sido possível caso a opção de tradução tivesse sido “começou” ao invés de “pôs-se”. Também no terceiro exemplo podemos verificar quais as decisões de tradução de Luísa Costa Gomes que tornam o texto mais

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dinâmico e musical. Logo na primeira frase a escritora e tradutora escolhe não traduzir

“when she was thinking” por “quando estava a pensar/pensando”, mas sim apenas por

“quando pensava”, causando assim uma repetição, ao traduzir em português usando o Pretérito Imperfeito em vez do equivalente do Past Continuous do original em inglês.

Para além de conseguir uma aliteração da letra “v” ao utilizar as formas verbais “pensava”

e “ficava”, escolhe também traduzir hearing por “o escutar” em vez de utilizar “audição”, reproduzindo assim a aliteração de sons entre hearing/thinking e criando uma rima entre

“aliviar”; “escutar”; “pensar”; “cantar”.

Noutros momentos do texto em que manter as rimas não é possível a tradução foi simples e literal, como se pode verificar na seguinte quadra cujo original conta com um esquema rimático de rima emparelhada:

Texto de partida Texto de chegada

“My name is Willie I am not like Rose I would be Willie whatever arose,

I would be Willie if Henry was my name I would be Willie always Willie all the same.”

“O meu nome é Willie eu não sou como a Rosa

Seria Willie desse por onde desse Seria Willie se o meu nome fosse Henry Seria Willie sempre na mesma Willie.”

Uma vez que esta é uma obra de literatura infantojuvenil é de notar que houve um esforço por parte da tradutora para manter essa característica, ao mesmo tempo que consegue conservar a rima e a musicalidade na tradução. Podemos ainda verificar esse esforço através do uso de diminutivos como “coelhinho” para “little rabbit”, em vez de

“pequeno coelho”, ou ainda “tardinha” (p. 16) para “evening” da página 111. É também de salientar a escolha da tradutora de traduzir o nome de uma das personagens principais deste livro: Rose, no original, foi traduzido por Rosa, permitindo, assim, uma aproximação ao público-alvo e à língua de chegada, com uma estratégia de adaptação. Na

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já referida entrevista ao Diário de Notícias, Luísa Costa Gomes diz que optou por fazer uma versão do livro de Stein e não uma tradução propriamente dita, explicando que o livro The World Is Round é um universo encadeado em jogos de palavras e que, por isso, obriga a “uma consciência aguda da sua tradução”, nas palavras da própria tradutora.

Desta maneira, pode afirmar-se que a versão de Luísa Costa Gomes é construída através de uma tradução que se apoia em estratégias estrangeirantes e naturalizantes simultaneamente, como se pode verificar nos exemplos dados acima, procurando compromissos entre os conceitos de aceitabilidade e adequação propostos por Gideon Toury em 1995. Este compromisso permite-lhe alcançar uma tradução/versão capaz de respeitar o texto de Gertrude Stein, assim como o seu estilo, registo e intenção junto de um público que não partilha a mesma língua que a autora.

1.2.3 – The First Reader & Three Plays

The First Reader & Three Plays, de Gertrude Stein, é publicado em 1946 e divide- se em duas partes que foram redigidas em diferentes momentos: a primeira é uma espécie de introdução à leitura e ao gosto pela leitura, escrita em 1941. A autora usa pequenas histórias, que estão repletas de jogos de palavras e que brincam com palavras homófonas, rimas e aliterações que concedem à obra musicalidade. Esta dinâmica vai espicaçando o interesse, nomeadamente, dos mais novos, para a importância de conhecer as palavras não apenas através da oralidade, mas também da leitura, e para a necessidade de ler para a boa compreensão do mundo à nossa volta. Estas histórias da autora têm sempre como personagens crianças, animais e até plantas, que também comunicam. Um exemplo desta personificação está presente na frase que abre “Lesson One” de The First Reader: “A dog said that he was going to learn to read”. Por sua vez em “Lesson Sixteen” que tem como personagem uma “blackberry vine” (traduzido por “silva de amoras”), encontramos: “The blackberry vine had a very pleasant expression.How do you do little boy, it said.”. Esta personagem não só fala, como também lhe é concedido um aspeto físico humano, nomeadamente a expressão facial. Já a segunda parte do livro, Three Plays, consiste exatamente naquilo que o nome indica: três peças que têm como título: “In a Garden: A Tragedy In One Act”; “Three Sisters Who Are Not Sisters: A Melodrama”; “Look and

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Long”. Estas três peças têm como personagens crianças e cada uma delas aborda a temática da identidade através das brincadeiras criadas pelas personagens de cada peça.

A primeira peça, “In a Garden A Tragedy In One Act” é protagonizada por três crianças: Lucy Willow, Philip Hall e Kit Racoon. A peça desenrola-se num jardim onde Lucy diz às outras duas personagens que quer ser uma rainha, o que rapidamente desperta o interesse de Philip e Kit. Ambos afirmam também quererem ser reis e disputar a mão da rainha, Lucy, mas Lucy começa a duvidar de que possa ser uma rainha. Isto leva a uma discussão entre Philip e Kit que tentam decidir quem será Lucy rainha e acabam por se matar um ao outro, deixando as suas coroas nas mãos de Lucy que imediatamente se coroa rainha. A segunda peça, “Three Sisters Who Are Not Sisters: A Melodrama”, inclui cinco personagens, das quais três são meninas órfãs, Jenny, Hellen e Ellen, que se consideram irmãs por partilharem a mesma condição de órfãs. As meninas são confrontadas por dois irmãos, Samuel e Sylvester, que lhes dizem que são irmãos verdadeiros, pois partilham o mesmo sangue. A peça tem três atos e, tal como na peça anterior, as crianças decidem criar uma brincadeira entre todos que consiste numa imitação dos mistérios policiais em que há uma série de homicídios e todas tentam descobrir quem matou quem. A peça acaba com as crianças indecisas sobre quem é o assassino e quem é que está morto e decidindo que o melhor é irem todos para a cama. A terceira e última peça, que compõe a segunda parte do livro The First Reader & Three Plays, tem como título “Look and Long”, está dividida em três atos e conta com cinco personagens: Aparição (Apparition), os irmãos Oliver e Silly, e Muriel e Susie são primas entre si e dos dois irmãos. Nesta peça as personagens cruzam-se com uma Aparição que os “amaldiçoa” dizendo que: Oliver vai ser dividido em dois; Muriel vai ficar tão magra que vai escorregar pelo seu anel; Silly tornar-se-á Willy; e Susie vai ser um ovo. As personagens ficam assustadas e começam a lamentar-se daquilo em que se vão tornar. E é quando a Aparição volta mascarada de velha que elas se transformam naquilo que lhes tinha sido dito pela Aparição. No entanto, no fim a aparição volta a aparecer, desta vez como um cão que delicia as personagens e lhes retira a maldição que lhes tinha sido imposta.

Não obstante, o presente relatório incide sobre a parte referente a The First Reader, a primeira parte do livro, uma vez que foi a parte traduzida. Num primeiro encontro com o texto e com o estilo da autora, o leitor vai notar que a pontuação difere do padrão seguido pela língua portuguesa, pois tem escassa pontuação, cingindo-se

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apenas a vírgulas e pontos finais, havendo uma notória ausência de pontos de interrogação e de exclamação. Assim, nas frases interrogativas e exclamativas o texto apoia-se apenas nas fórmulas de interrogação existentes na língua inglesa, que inverte a ordem entre sujeito e predicado. A falta de pontuação que se nota neste texto de Gertrude Stein poderá ser propositada, tendo como objetivo aproximar a língua escrita da oralidade, tornando-a mais fácil de apreender para uma criança que esteja no início/meio da sua aprendizagem da leitura.

O texto flui e desenvolve-se com uma notória falta de pontuação, acabando por deixar o leitor decidir onde deve fazer as suas pausas. A obra revela-se, assim, bastante dinâmica, convidando a um papel ativo do leitor, uma vez que a leitura é diferente para cada pessoa e muda de cada vez que se lê. Como foi explicado anteriormente, a autora tenta cativar o leitor e fazê-lo interessar-se pela leitura através de jogos com sons, palavras e ritmo. A autora brinca com a homofonia das palavras, chamando a atenção para o facto de que a leitura é necessária para conseguir distinguir palavras homófonas, como é o caso de “not” e “knot” ou “sew” e “so”, ambos exemplos que aparecem na “Lesson One” do original. Em inglês a autora utiliza, especificamente, o par “not” e “knot” para alertar os leitores para o facto de que só através da leitura se pode perceber a diferença, chegando mesmo a dirigir-se ao leitor: “Just notice that if you say not knot, how do you know if you do not know how to read, which knot has a knot, and which not has not a knot. So you see you have to learn to read.” (The First Reader, “Lesson One”, 1941).

Esta interpelação ao leitor é uma tática muito utilizada pela autora. Stein faz uso da interpelação como maneira de atrair atenção do leitor para palavras e situações de leitura que considera difíceis durante o momento de aprendizagem. No parágrafo acima pode ver-se, claramente, um exemplo destes pares linguísticos que a autora considera que necessitam de mais atenção (“not” e “knot”; “sew” e “so”). No fim do exemplo, a autora volta a dirigir-se aos leitores com a frase: “So you see you have to learn to read”, cuja tradução é: “Como veem têm de aprender a ler.”.

Tal como faz com a homofonia de certas palavras, Stein também usa em abundância palavras com terminações iguais que conferem ao texto um tom musical, ao redor do qual constrói uma história, como também se verifica na “Lesson One”, com palavras como “fat” e “that”, “bird” e “third” ou, ainda, “stout” e “out”. Outra das suas estratégias para gerar ritmo e dinâmica é o recurso às aliterações, o que se pode verificar

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com o uso exaustivo da consoante “w” na “Lesson Three”, numa história que envolve a personagem Willie Caesar: “Willie Caesar was a wild boy. Whether he went or whether he would not go he always saw a w. Counting ws was a way for Willie Caesar to pass a whole day.” (The First Reader, “Lesson Three”, 1941). Também a aliteração aliada à repetição é usada, como acontece na “Lesson Twelve” com as palavras “better” e

“butter”: “To be better and better.// Better than butter” (The First Reader, “Lesson Twelve”, 1941). A repetição de palavras para formar trava-línguas é outra das maneiras que Stein encontra para tornar o texto rítmico e interessante, como se verifica na “Lesson Ten” com a repetição da palavra “which”: “Who said which first. If he said which first, which which did he say first.” (The First Reader, “Lesson Ten”, 1941). Nesta lição a autora joga ainda com a semelhança fonética entre as palavras “which” e “each”, especialmente quando estas se juntam à palavra “one”, tornando-se oralmente muito parecidas, como se vê no seguinte exemplo: “Almost at once each one said which first.”.

Esta repetição revela-se também uma estratégia com fins didáticos, uma vez que, ao cativar os jovens leitores através da sonoridade das palavras, sensibiliza-os também para a semelhança fonética entre palavras de grafia diferente. Esta vertente lúdica do texto torna os seus leitores conscientes da dimensão fonética e semântica das palavras criando, por fim, auxiliares de memória para os seus leitores.

No entanto, apesar de estas diversas estratégias que a autora utiliza serem bastante interessantes, dinâmicas e bem-sucedidas no que toca a cativar o interesse e a memória do seu leitor, constituem, para o/a tradutor/a, um grande conjunto de obstáculos que vai precisar de um leque de diferentes estratégias aquando da sua abordagem no processo de tradução. Para além do facto de que jogos de palavras são sempre desafiantes numa tradução, temos ainda de ter em conta que a tradução desta obra veio acompanhada por uma indicação por parte do editor, designadamente a de seguir o registo tradutório de Luísa Costa Gomes na obra O Mundo é Redondo. A tradutora portuguesa de The World Is Round, como já foi referido, aborda a tradução de maneira diferente, escolhe chamar à sua tradução uma versão, que se realiza navegando entre a adequação (perspetiva estrangeirante), e a aceitabilidade (perspetiva domesticante). Não obstante, a tradução de Luísa Costa Gomes parece sempre apoiar-se mais nas estratégias estrangeirantes. No entanto, como se pode verificar, o texto escrito por Gertrude Stein em 1941 é um desafio à tradução literal, uma vez que, ao optar por uma tradução literal num texto repleto de jogos de palavras e musicalidade rítmica, Luísa Costa Gomes arriscar-se-ia a tornar a

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tradução por vezes incompreensível. Este tipo de abordagem seria, pois, insensato por parte do tradutor ou tradutora. Importa lembrar que uma das grandes diferenças entre as obras The World Is Round e The First Reader & Three Plays é que a primeira se destina a crianças que já sabem ler e estão familiarizadas com o ato de leitura e com as palavras que surgem, enquanto a primeira parte da segunda obra, The First Reader, o texto traduzido, tem como alvo crianças que estão no processo de aprendizagem de leitura e, portanto, menos familiarizadas com a palavra escrita. Cabe, pois, à tradutora arranjar forma de respeitar os desejos do editor e a intenção da escritora, ajudar o jovem leitor no seu processo de aprendizagem de leitura e tentar, simultaneamente, não ser condescendente.

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CAPÍTULO II – Enquadramento Teórico

No capítulo anterior, “Gertrude Stein, The First Reader, The World Is Round e a tradução de Luísa Costa Gomes”, foi apresentada, numa primeira instância, a escritora americana Gertrude Stein, autora das obras a serem analisadas no presente relatório: The First Reader & Three Plays e The World Is Round. Através desta apresentação é possível conhecer um pouco do contexto em que Stein se insere e o que a leva a escrever estas duas obras. A seguir, na forma de subcapítulo, apresentou-se a escritora e tradutora Luísa Costa Gomes, responsável pela tradução de The World Is Round, editada pela Ponto de Fuga, tradução que foi analisada neste relatório de modo a compreender os métodos e abordagens aplicados pela tradutora. E é tendo esta tradução de Luísa Costa Gomes como ponto de partida que começa o processo de tradução do texto The First Reader. Contudo, ainda que o pedido de tradução englobasse apenas a primeira parte do livro The First Reader & Three Plays, foi considerado necessário e importante realizar uma introdução da obra de Stein no seu todo.

Com efeito, o presente segundo capítulo surge da necessidade de continuar a procurar perceber que tipo de abordagens existem e quais as mais indicadas para executar a tradução do texto de Gertrude Stein. O dito texto encontra-se repleto de jogos de palavras, aliterações e rimas que lhe concedem uma dimensão musical que deve ser replicada no texto de chegada, atendendo aos parâmetros impostos pelo pedido de tradução feito pelo editor Dr. Vladimiro Nunes quanto à tradução de The First Reader.

Assim, impõe-se a necessidade de existir um enquadramento teórico que crie uma linha condutora do raciocínio aplicado aquando do processo de tradução. É, ainda, tendo em conta a necessidade de rever o Estado da Arte no que diz respeito à tradução de literatura infantojuvenil que surge o subcapítulo “A Tradução de Literatura Infantojuvenil”. Nele considera-se a teoria existente sobre tradução de literatura para crianças e as abordagens e estratégias que seriam mais adequadas para a tradução de literatura dirigida a este público específico, ao mesmo tempo que se identificam dificuldades e obstáculos encontrados numa tradução deste tipo.

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2.1 – Estudos de Tradução

Segundo Schleiermacher, na tradução literária, considerada por este o ramo mais criativo da tradução, a questão mais importante que o tradutor/a deve colocar é como estabelecer uma relação entre o autor do original e os seus leitores da língua de chegada.

Aqui o/a tradutor/a tem duas escolhas: ou escolhe adotar uma postura naturalizante e faz chegar o/a escritor/a ao público da língua de chegada, abordando assim a tradução de uma perspetiva domesticante e adaptando o texto de maneira a fazer a leitura fluir como se tivesse sido escrito originalmente na língua para que se está a traduzir; ou o/a tradutor/a pode escolher adotar uma postura estrangeirante, sendo esta a abordagem favorecida por Schleiermacher, que consiste em levar o público da língua de chegada até ao escritor/a numa abordagem de “alienação”. Este tipo de estratégia estrangeirante vem familiarizar o público-alvo com a língua e a cultura de partida: “Either the translator leaves the writer in peace as much as possible and moves the reader toward him, or he leaves the reader in peace as much as possible and moves the writer toward him.” (Schleiermacher, 1813/2004, apud Munday, 2010: 29). Esta estratégia estrangeirante acarreta alguns problemas, nomeadamente o problema aliado ao facto de o/a tradutor/a desconhecer o nível de conhecimento do seu público e de haver sempre o risco de que este não venha a entender, na totalidade, o texto traduzido que lhe é apresentado. Tal pode acontecer porque ao manter o texto perto da língua de partida a fluidez da leitura virá, muito provavelmente, a ser comprometida se não em todo o texto, pelo menos em grande parte dele, o que terá também impacto ao nível da boa compreensão durante a leitura. Ainda assim, é esta abordagem que permite que o leitor da língua de chegada possa sentir-se mais perto da intenção do/a autor/a e do seu registo, deixando que o tradutor/a o leve até ao local de partida daquele texto, até ao estrangeiro. Este tipo de abordagem é também corroborado por Antoine Berman, que, na sua obra A Tradução e a Letra ou o Albergue do Longínquo, levanta questões como ética e fidelidade que vêm conceder autoridade a este tipo de tradução em oposição a uma tradução etnocêntrica ou naturalizante.

Com efeito, Antoine Berman critica fortemente a tradução ocidental por ser, maioritariamente, etnocêntrica e critica também a escolha do/a tradutor/a quando tenta adaptar, naturalizar ou domesticar uma tradução, pois Berman acredita que, ao fazê-lo, o/a tradutor/a em questão está a fechar o público da língua de chegada à entrada do

“Estrangeiro”, do “Outro” (Berman, 1991). Isto porque, segundo Berman, o/a tradutor/a

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que segue esta via procura tornar o texto fluído como se tivesse sido escrito originalmente na língua de chegada e não noutra língua. Nesse sentido, utiliza estratégias como a equivalência quando se depara com provérbios ou expressões idiomáticas, numa tentativa de mitigar a presença do que é estrangeiro: “Para o tradutor formado nesta escola, a tradução é uma transmissão de sentido que, ao mesmo tempo, deve tornar este sentido mais claro, limpá-lo das obscuridades inerentes à estranheza da língua estrangeira.”

(Berman, 1991: 22).

O/a tradutor/a trabalha então com duas estratégias ao utilizar esta abordagem naturalizante: a estratégia etnocêntrica e a estratégia hipertextual. A estratégia etnocêntrica é uma assimilação do “Estrangeiro” por parte da cultura de chegada. Neste caso o/a tradutor/a vai tentar adaptar a mensagem escrita à cultura de chegada e, para isso, vai recorrer a equivalentes que permitam transmutar aspetos culturais, valores, expressões idiomáticas e normas para a cultura do público-alvo. “Etnocêntrico significará aqui: que traz tudo à sua própria cultura, às suas normas e valores, e considera o que se encontra fora dela — o Estrangeiro — como negativo […]” (Berman 1991: 39). O/a tradutor/a esforçar-se-á por tornar o texto fluído, impossibilitando, assim, que o leitor desta cultura de chegada possa ver o “Estrangeiro” ou, ainda, o tradutor/a. Já a estratégia hipertextual, não estando muito longe do conceito da tradução etnocêntrica, define-se como sendo uma estratégia que envolve o recurso a outras estratégias, nomeadamente a imitação. Este tipo de estratégia requer do tradutor/a um trabalho de análise do original ainda mais minucioso, uma vez que este vai precisar de estudar o original e o seu escritor/a e tentar recriar esse manuscrito na língua e cultura de chegada. Como afirma Antoine Berman:

“Hipertextual remete a qualquer texto gerado por imitação, paródia, pastiche, adaptação, plágio, ou qualquer outra espécie de transformação formal, a partir de um outro texto já existente.” (Berman, 1991: 40). Como observa Comellas, para Berman “A hipertextualidade é uma forma de falsificação, isto é, de roubo e de negação: apropriação das ideias de outros ocultação da sua autoria.” (Comellas, 2011: 156).

Apesar de, na sua obra, Berman não se dirigir à literatura infantil em específico, é possível retirar informação pertinente para a tradução de The First Reader. Como se vai poder verificar mais adiante neste capítulo, a tendência na tradução de literatura para crianças é a do uso de abordagens domesticantes que adaptem o texto de partida juntamente com os seus elementos culturais à cultura e língua de chegada; este é o tipo

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de abordagens sobre as quais Antoine Berman fala. Há ainda uma grande maioria de tradutores/as e editoras que afirma que este processo é necessário para captar o interesse da criança, uma vez que estas se sentem mais à vontade ao ler o que lhes é familiar, uma noção que é relatada em obras como as de Lathey (2016) e de Landers (2001). Desta forma, privar o público-alvo desse grau de familiaridade pode levar à fraca compreensão do leitor e, consequentemente, à falta de interesse por parte dos compradores-alvo, leia- se pais e/ou educadores, em comprar traduções realizadas a partir de uma perspetiva estrangeirante.

Como foi referido anteriormente, estas abordagens naturalizantes/domesticantes, que tentam eliminar vestígios do “Outro”, acabam, por conseguinte, por também eliminar vestígios do próprio tradutor, que se apaga a si mesmo aos olhos do leitor. O que nos leva a outra questão, a da visibilidade do tradutor, um tema que é abordado e discutido por Lawrence Venuti, e que está intimamente ligado à escolha de abordagens de tradução entre a tradução literal e a tradução naturalizante. Será que o tradutor deve ser percecionado pelo leitor como estando presente no ato da leitura, ou será que este deve

“esconder-se” através da utilização de abordagens como a da tradução etnocêntrica e hipertextual? Estas são questões que têm vindo a ser debatidas e postas em causa consoante cada texto que se propõe a traduzir. A invisibilidade do tradutor resulta da utilização de estratégias domesticantes/naturalizantes do texto, já que a fluidez conseguida no texto desvia a atenção do leitor do facto de se tratar de uma tradução.

Acresce que assim o resultado final procura assemelhar-se a uma obra que o próprio autor teria escrito caso o tivesse feito na língua de chegada e não a uma tradução de uma língua para outra, com todas as suas complexidades no que toca aos valores culturais e normas de uma cultura que é diferente. Este tipo de estratégia implica a supremacia de uma língua e da sua cultura sobre uma outra: “A captação do sentido afirma sempre a primazia de uma língua. […] Trata-se de introduzir o sentido estrangeiro de tal maneira que seja aclimatado, que a obra estrangeira apareça como um “fruto” da língua própria.” (Berman 1991: 45). Segundo Venuti, este tipo de tradução é aquele que é esperado por parte das editoras e por parte dos leitores:

A translated text […] is judged acceptable by most publishers, reviewers and readers when it reads fluently, when the absence of any linguistic or stylistic

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peculiarities makes it seem transparent, giving the appearance that it reflects the foreign writer’s personality or intention or the essential meaning of the foreign text – the appearance, in other words, that the translation is not in fact a translation, but the ‘original’. (Venuti, 1995 apud Munday, 2010: 144)

Para se tornar “visível”, o tradutor tem de adotar estratégias que permitam ao leitor ver o “estrangeiro” no texto que lhes chega, estratégias essas que têm de privilegiar o

“Outro” e não potenciar a diluição deste. É aqui que entra a abordagem estrangeirante do texto, que vem abolir o etnocentrismo e a fluidez de texto, permitindo ao tradutor trabalhar o texto sem fazer uso de estratégias deformantes, como são denominadas por Antoine Berman. O texto resultante não irá almejar a clarificação, ou a modificação de pontuação em prol do leitor, mas irá sim pôr as diferenças em destaque de maneira a mostrar-se como um exemplar de uma outra cultura e de uma outra língua. É aqui que o tradutor ganha a sua visibilidade, ao mostrar o estranho. Contudo, de acordo com Susana Valdez (2009), em Portugal a invisibilidade do/a tradutor/a é preponderante, apesar de a literatura traduzida ter grande destaque em território nacional.

Décadas antes de Venuti, já Walter Benjamin, nos anos 20 do século passado, considerava que o tradutor deve “libertar” a língua de partida aquando da tradução, deixando que esta tenha força mesmo depois de ser traduzida. Benjamin pretendia que o tradutor tivesse como tarefa harmonizar as relações entre as duas línguas sem retirar poder à língua do original, aproximando-se assim das ideias de Schleiermacher, Berman e Venuti que foram referidas anteriormente:

A real translation is transparent; it does not cover the original, does not block its light, but allows the pure language, as though reinforced by its own medium, to shine upon the original all the more fully. This may be achieved, above all, by a literal rendering of the syntax which proves words rather than sentences to be the primary element of the translator. (Benjamin, 1969/2004 apud Munday, 2010: 169)

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A “língua pura” referida por Benjamin é exatamente o resultado da harmonização entre as duas línguas e do trabalho do tradutor em conseguir trazer a intenção linguística do original para a tradução, criando espaço para o estrangeiro na língua de chegada. Como afirmava Benjamin: “It is the task of the translator to release in his own language that pure language which is under the spell of another, to liberate the language imprisoned in a work in his re-creation of that work.” (Benjamin, 1968: 22).

Foi lendo e estudando todos estes autores e autoras, que consideram mais profundamente a teoria de tradução, que comecei a estruturar uma estratégia para abordar a tradução de The First Reader, não descurando aquilo que me havia sido pedido pelo editor: uma tradução que seguisse o registo de Luísa Costa Gomes, tradutora de The World Is Round (O Mundo é Redondo), outra obra de Gertrude Stein. Como já foi referido, essa tradução mantém-se, maioritariamente, junto do original, podendo ser considerada uma tradução literal, não obstante a informação dada pela própria tradutora numa entrevista ao Diário de Notícias, em que diz ter optado por fazer uma versão do texto de partida mais do que uma tradução. Assim, o meu primeiro instinto foi o de seguir uma abordagem semelhante, uma vez que o objetivo era o de continuar a divulgar a autora, Gertrude Stein, a um público português e alargar a visibilidade da sua obra. No entanto, como será oportunamente exposto e analisado, foram vários os obstáculos que se fizeram notar durante a análise do texto e que me levaram a desistir de uma abordagem maioritariamente estrangeirante, tendo, por conseguinte, decidido também incorporar elementos inerentes a uma abordagem naturalizante.

Com a noção de que ao combinar estas duas abordagens teria mais facilidade em produzir um texto que se pudesse considerar equivalente, cheguei até ao método proposto por Katharina Reiss. Este método, apresentado no artigo “Type, Kind and Individuality of Text – Decision Making in Translation” (1971), recorre à ideia de que um texto de chegada é considerado, essencialmente, o “equivalente funcional” (Reiss, 1971) do texto de partida. Reiss assume a tradução interlinguística como um ato de comunicação que exige um agente mediador das duas línguas em questão. A autora assume, também, que qualquer ato comunicação implica mudanças devido ao facto de as capacidades interpretativas e cognitivas divergirem de pessoa para pessoa.

Assim, no seu artigo, Reiss faz uma distinção entre estas mudanças comunicativas, aquando de uma tradução: “não-intencionais”, como é o caso das diferenças nas estruturas

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frásicas de diferentes sistemas linguísticos; “intencionais”, mudanças que ocorrem quando a função do texto de partida e do texto de chegada não é a mesma ou o contexto social do público-alvo muda substancialmente. Como maneira de manipular estas mudanças com o objetivo de conseguir um texto funcionalmente equivalente (functionally equivalent) (Reiss, 1971), Katharina Reiss sugere um processo de análise, pré-tradução, do texto de partida. Para este efeito, a autora divide a análise em três fases: a primeira consiste em determinar o tipo de texto; a segunda almeja estabelecer uma variedade textual; e, por último, a terceira é uma análise ao estilo de linguagem do texto de partida.

Quanto à primeira fase, Reiss propõe três categorias que servirão como guias para conduzir o início dessa análise:

Tipo informativo

“The communication of content”

Tipo expressivo

“The communication of artistically organized content”

Tipo operativo

“The communication of content with a persuasive character”

(Reiss, “Type, Kind and Individuality of Text – Decision Making in Translation”, 1971:

160-71).

Esta primeira fase vai transcender sistemas linguísticos e culturais, uma vez que a autora acredita que estas distintas formas estão presentes em qualquer cultura que utilize um sistema de escrita. A linguista propõe, ainda, auxiliares na identificação de cada um destes três tipos: o tipo operativo pode ser identificado através do uso de linguagem que enalteça o autor do texto e o seu objetivo, bem como o uso de figuras de retórica; o tipo expressivo faz uso de linguagem criativa como rimas, aliterações, paralelismos; por fim, o tipo informativo é caracterizado por Reiss como sendo aquele em que estão ausentes os elementos que caracterizam os tipos anteriores.

Importa dizer que nem sempre estes tipos comunicativos são realizados na sua forma completa, por vezes são misturados com outros tipos, não havendo uma forma

“pura” do tipo identificado. Há também a ressaltar o facto de a autora referir a existência de tipos adicionais, mencionando Roman Jakobson e a sua inclusão das funções fática e poética como tipo de texto. Porém, Reiss discorda de que estas possam existir como tipos

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