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de 1964 e 1985, período em que uma cruel ditadura militar

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Alphazema

© Heitor Herculano Dias

Este livro encerra uma trilogia pautada nos denominados

anos de chumbo que viveu a nação brasileira entre os anos

de 1964 e 1985, período em que uma cruel ditadura militar

tomou conta do Brasil. Integram essa trilogia Berço

Esplêndido e Os Paulistas.

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A L P H A Z E M A Heitor Herculano Dias

PARTE I

1968

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― Assim já tá demais da conta, Afonsina, não dá pra esconder! ― Olegário de pé, sem camisa, à procura da cervejinha gelada, seu ritual diário mal põe os pés em casa depois da cansativa jornada na Antunes & Irmãos Laticínios. As figuras da revista de modas vão ficando embaçadas frente à visão dela, e Maria Afonsina sente como se uma descarga elétrica estivesse tomando conta dos seus braços, aquele formigamento esquisito que já não é a primeira nem a segunda vez que lhe acontece, sempre que o marido toca neste assunto. A revista lhe cai das mãos, fica ali aos seus pés, sobre o tapete manchado, exibindo o inocente sorriso de Audrey Hepburn, convite para a leitura de uma reportagem sobre seu nunca esquecido sucesso em Bonequinha de Luxo, mas não há qualquer sorriso em Afonsina, sentada ali no sofá da sala a observar as largas costas de Olegário na cozinha.

Agora, ouvindo apenas o ploc-ploc das galochas a entrar e sair a cada passo, na lama escorregadia, em seu caminhar lento na noite, relembra o diálogo que a fez virar de uma só vez a história de seu casamento, e algumas das ásperas palavras trocadas lá, naquela casa de sala, dois quartos, varanda e garagem de Bela Califórnia, parecem- lhe agora ter sido ditas assim como um passar distraído das folhas daquela revista de modas.

― Afonsina, 'pera lá! Sapatona, e comunista ainda por cima! Tenha a santa paciência, meu amor!

Aquele ''meu amor'' foi o que mais lhe doeu. Por

alguns segundos, não mais que isso, as palavras pareceram

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estancar em sua garganta, contidas diante da figura robusta e ao mesmo tempo doce do marido, o seu outrora tão amado noivo, aquele rapaz por quem tantas mocinhas e mesmo senhoras casadas suspiravam quando o viam no clube, nas noites dançantes dos finais de semana, ou entrando com ela no Cine Los Angeles, mãos nas mãos, ele a todo mundo cumprimentando com seu alvo sorriso sobre o viril queixo que nem o de Kirk Douglas.

A presença de Helena, a uns dois passos à sua frente, ao afastar galhos de bananeiras, algumas vezes ziguezagueando a fim de evitar as armadilhas dos declives escorregadios na lamaceira pegajosa, traz a Afonsina a lembrança vívida daquela tarde reveladora.

― Você não tem a idade que me disseram ― Helena lhe estendo a mão no cumprimento informal à porta da pequena sala da cooperativa dos produtores de laticínios de Bela Califórnia.

― Hmm…, que nada, é que… ―. Achou engraçado e chegou a sentir uma pontinha de raiva de si própria ao revelar-se assim tão tímida diante daquela jovem com idade para ser sua filha.

― Entra e senta aí ―, mais como uma ordem do que um convite para ingressar no apertado cubículo situado aos fundos da secretaria da cooperativa, vizinho a uma porta onde pôde ler antes de entrar, Assessoria Jurídica.

Haviam se passado talvez uns três meses desde

aquela conversa com Madalena, amiga desde os tempos do

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grupo escolar, a quem teve coragem bastante para se abrir e contar, cabeça baixa, olhos pregados na toalha de plástico da mesinha da copa-cozinha de casa, o que vinha se passando entre ela e Olegário. Sempre confiou naquela amiga, talvez a única pessoa em toda a cidade com quem poderia se desabafar a respeito de um tema tão delicado, e ao lado dessa confiança inabalável pairava a vaidosa certeza de que o marido nunca teria olhos cobiçosos para com a figura gorducha e desproporcional da afável Madalena, mulher idosa de grandes seios caídos e ombros largos a contrastar com aquelas pernas finas já riscadas de escuras varizes. Um filho da amiga, rapazinho até educado, andara por uns tempos envolvido com uma turma de rapazes pertencentes a famílias consideradas como a nata da sociedade de Bela Califórnia, useiros e vezeiros porém à prática do roubo de toca-fitas de automóveis, convertíveis em renda fácil para a compra de maconha e outras coisas. Em pouco mais de três semanas de consultas com aquela moça, no dizer da amiga uma psicóloga formidável e que não cobrava nada, o garoto deixou de procurar aqueles companheiros dados a roubos para o sustento de vícios, e meteu a cara nos estudos para se dedicar somente aos exames vestibulares.

― Pois é, quem me falou de você foi a mãe de um

rapazinho seu cliente, sabe? ―, disse sentando-se na beira

da pequena poltrona forrada de courvin verde com braços

de madeira, mas desde logo sentindo-se incapaz de tirar os

olhos daqueles lábios que lhe sorriam de uma forma

jamais vista, entreabertos num meio sorriso que revelava

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dentes curtos e separados. As maçãs do rosto eram cobertas de ligeira penugem, salpicadas aqui e ali de alguns pontos que lembravam pequenos orifícios, sinais denunciadores de alguma antiga doença de pele. Afonsina demorou a encarar aqueles olhos, mas um sentimento novo em si lhe dizia que a psicóloga indicada pela amiga Madalena a fitava com escandaloso prazer.

― Eu sei quem é ―, a frase dita de um jeito que lhe pareceu prepotente mesmo, como se a outra não tivesse interesse em qualquer apresentação.

Afonsina se esforça para ficar mais à vontade diante daquela jovem que, ela não pode imaginar assim de pronto o motivo, inspira-lhe a um só tempo antipatia e atração, uma coisa a lhe mexer por dentro de um modo tal que seu sexo lhe parece formigar em palpitações.

― Bom..., meu nome é Maria Afonsina. A Madalena falou pra você, não?

― Falou, sim ― , agora há pelo menos o esboço de um sorriso. ― Eu sou a Helena, Maria Afonsina.

A psicóloga se ajeita na cadeira por detrás da pequena

mesa coberta de vidro, onde se misturam blocos de

rascunho, um pequeno livro com diversas páginas

marcadas por tirinhas de papel, um chaveiro largado a uma

das extremidades, e canetas esferográficas e lápis enfiados

num copo de vidro. Na parede, Afonsina tem sua atenção

despertada por um grande quadro de cortiça emoldurado,

onde presos por alfinetes e tachinhas coloridas aparecem

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recortes de jornais, alguns com fotografias em preto e branco. Em uma das fotos ela reconhece o rosto magérrimo daquele homem que, já ouviu Olegário comentar vendo-o em noticiários da televisão, está preparando uma revolução comunista lá pelo nordeste. E sem ela esperar, vem assim sem mais nem menos a ordem de Helena:

― Me fale de seu marido.

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A voz de Maria Afonsina lá fora, logo sucedida pelo conhecido ranger do portão de ferro a uns três metros de distância da varandinha frontal, interrompe o cochilo de Olegário diante da televisão ligada. Os passos com a marcação quase metálica do ponteio dos saltos altos sobre o piso de entrada funcionam em sua cabeça como um enervante relógio-cuco, a lembrar-lhe que afinal é chegada a hora decisiva. Ele se recompõe no sofá, abaixa-se e recolhe uma almofada largada ao chão, inspira fortemente, observa o perfil da esposa recortado de encontro à porta de vidro trabalhado e protegido por gradis de suaves desenhos em forma de ramos e folhas, e Afonsina abre a porta.

― Oi, acordado? ―. A voz dela é contida, tranquila.

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― Como foi o programa desta noite? Bem? ―, Olegário solta o desafio cínico tendo em mente a figura de Nosso Senhor Crucificado como há anos tem visto na igreja. Não olha para a esposa, que de pé junto à porta é uma silhueta parcamente iluminada pela televisão, única fonte de luz neste momento na sala. Mas logo ela dá passos precisos para pôr a bolsa sobre a mesa, e de passagem frente à TV dedica ao aparelho uns segundos de atenção.

Olegário aguarda, sua respiração é forte, seu olhar pregado no vídeo mas sem captar o que ali no momento exibem.

É Afonsina quem toma a iniciativa:

― Olegário, por favor, se acalme ― A solicitação é como uma senha para o marido, pois ela sabe perfeitamente que nesta noite decidirão, agora e nesta sala, o destino de ambos, ou pelo menos uma página do livro aberto no altar, há mais de dez anos atrás, sob as bênçãos matrimoniais do antigo pároco da igreja que sempre frequentaram, será rasgada. Ele espera que ela se ajeite na extremidade do sofá, e assim permanecem por mais de um minuto.

― Olegário, não vou tapar o sol com a peneira.

― Hmm ―, o resmungo dele não é neste momento

decifrado por Afonsina, que hesita entre considerá-lo

como sinal de desprezo ou mero assentimento.

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― Helena e eu... ― ela, sentada ereta na extremidade do sofá, tem o braço esquerdo estendido por sobre as costas do móvel, rosto virado em direção a Olegário. ― É difícil dizer, mas você bem sabe, eu nunca procurei isso, mas...

O que Afonsina consegue ouvir, neste momento, vindo de Olegário, é um nervoso estalar das juntas dos dedos, gesto ao qual sua forte expiração é associada. Ela engole em seco, percebe que algumas palavras ainda poderá pronunciar antes que o marido se enfureça, seu maior temor nesta hora.

― Não procurei ela com... com a intenção disso, coisa que jamais imaginei em minha vida, Olegário. ― A declaração é moldada com todo o cuidado, palavras reveladas em sílabas perfeitamente distendidas, mas ele não dá sinais externos de estar pronto ao diálogo. Passam- se minutos, o volume da televisão, anteriormente abaixado mesmo antes da chegada de Afonsina, mistura-se à respiração dele, que permanece imóvel na extremidade oposta do sofá.

Ela, mais uma vez, limpa a garanta dando sinais

evidentes de que deseja prosseguir. Olegário, saindo agora

da imobilidade, pega uma das pequenas almofadas

coloridas postas exatamente no espaço vago do sofá, e

principia a virá-la e desvirá-la sobre as pernas, sem

prender ali o olhar.

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― Eu fui procurar conselhos, Olegário, conselhos profissionais pra ajudar a mim mesma. ― A voz dela vai paulatinamente se elevando, embora contida. ― Você sabe muito bem, nossa vida não... não tinha mais jeito, nossa intimidade..., a gente vivendo sob o mesmo teto como dois irmãos.

A almofada que até então servia como um mero brinquedo entre as mãos agitadas de Olegário, de repente é arremessada longe. Em seu canto, Afonsina se apruma, retesa as pernas, reconhece que a explosão do marido não pôde ser adiada por mais tempo.

― E por isso você procurou outra mulher, Afonsina?

Por quê? Pra quê? ―. O vulto delineado pela tênue luz da televisão parece se agigantar na sala, e Olegário agora está de pé, a pouco menos de um metro da surpreendida mulher. - Você, a mulher que sempre amei, de caso com...

com outra mulher?! Você e essa tal… psicóloga!

Ela também se ergue, procura o melhor caminho para fugir a uma possível agressão física, mentalmente calcula os passos necessários para correr da sala e se trancar no banheiro, ou no quarto, abrigar-se enfim. O braço direito de Olegário se alonga em direção a ela, mas há tremor ali, os dedos estão abertos e não desenham qualquer preparação agressiva.

― Não, não precisa ter medo, não. Ninguém vai bater

em ninguém aqui, Afonsina. Pelo menos eu não vou te

agredir!

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Mesmo ouvindo a promessa, ela se cola à parede, tendo à esquerda o pequeno corredor que dá para o quarto e o banheiro. Suas mãos, postas atrás da cintura, com as palmas coladas às placas de cerâmica que revestem o cômodo, parecem-lhe geladas.

― Eu não vou te bater, não vou. ― As palavras lhe são roubadas por um esguicho inesperado de vômito, e Olegário parte em desabalada carreira em busca do banheiro, passando rente a ela, deixando mesclados no ar os desagradáveis odores daquela descarga estomacal azeda com o suor da pele impregnado à camisa.

Afonsina não se mexe. Ouve os sons tortuosos do vômito do marido vindos do banheiro, misturados com um pranto crescente que a ferem intensamente. Então, devagar, ela retorna ao sofá, sente-se fraca, as pernas lhe faltam, mas como uma fisgada dolorida a tela da televisão fere-a.

Fotografias em preto e branco são reproduzidas no vídeo, são imagens tiradas de carteiras de identidade, e os rostos de um jovem de barba e uma jovem de cabelos longos ilustram a voz em off do locutor.

O som está baixo, mas Afonsina percebe o motivo da

notícia, habituou-se a tais expectativas desde quando seu

amor a Helena amoldou-a não apenas ao corpo e à

existência da amiga, mas também ao mundo subterrâneo

ocupado por gente como os donos daquelas duas

fotografias mostradas na televisão. ''Esses dois aí caíram'',

é essa a legenda mental que sua mente emprega na

classificação da notícia, sabedora da linguagem desses

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agitados, nervosos, desconfiados e aparentemente imprevisíveis jovens que circulam em um mundo do qual jamais ela imaginou fazer parte, ainda que apenas como simples amante-expectadora.

Os rostos de Helena e aqueles mostrados através a fria luz da televisão se confundem em sua visão, uns se sobrepondo aos outros, para em seguida se perfilarem, semelhantes, nessa dança aos desenhos coloridos que apreciava olhar naqueles tubinhos miraculosos de sua infância, os chamados caleidoscópios. Por alguns segundos são os olhos brilhantes da amiga que ocultam o rosto barbudo do desconhecido jovem, para logo dar lugar à face de aparência adolescente daquela jovem a quem Afonsina jamais viu em algum lugar, todos mortos, os dois, menos sua Helena, de quem há menos de meia hora atrás se despediu com um discreto beijo. Ela se foi, naquele Fusca branco, sumindo na noite e a deixando sozinha para enfrentar esta batalha que agora se desenrola.

As forças da repressão, quem sabe, podem tê-la parado ali mesmo no bairro, e a notícia da morte de sua Helena aparecerá amanhã nos jornais e na televisão, assim como acaba de acontecer com essa dupla desconhecida.

Tudo se esvai porém num fechar de olhos, pois agora

a tela se colore quase que inteiramente de verde, nela

ponteando em frenéticos movimentos de vai-e-vem

minúsculas figuras humanas, e o linguajar estridente de

outro locutor, não mais o anterior da voz pausada e oficial,

faz Afonsina retornar à realidade do momento. A televisão

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passa a transmitir uma partida noturna de futebol, e o noticiário esportivo parece dizer que tudo acabou, e tudo é festa no estádio, no país e no mundo, sob o patrocínio deste e daquele produto, qualquer um deles imprescindível a você, torcedor, e à senhora, dona de casa. Acima disso tudo está Olegário, apoiado no batente da porta que leva ao corredor, e com ele o cheiro de vômito, uma respiração ofegante e a exibição da proeminente barriga, posta a nu pela velha camisa desabotoada, amassada e babada, um Kirk Douglas desfigurado, Spartacus transformado em criança sofrida.

― Você já tem pra onde ir?

A pergunta sai mansa e flutua até Afonsina, parecendo-lhe o mais belo e inesperado cântico de amor, feito em uma tonalidade que jamais recebeu do marido, aquele que ali está, de olhos injetados, respiração ofegante, um fio de saliva descendo por uma ponta do bigode, os braços pendentes ao longo do corpo.

E somente agora ela tem a coragem de chorar.

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No velho Volkswagen de Helena viajam neste

instante, através a noite destas ruas e vilarejos solitários do

interior , a expectativa e o medo irmanados. Ao deixar

Maria Afonsina na porta de casa há pouco, ela teve a plena

certeza de que estava lançando a amiga para o confronto

decisivo com o marido, e agora, olhos semicerrados,

curvada sobre o volante enquanto procura observar os

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caminhos barrentos e iluminados apenas pelos faróis, dúvidas lhe surgem quanto ao seu próprio destino. Já não tem a plena certeza, sequer, da garantia de sua própria subsistência. ''Filha, mas você vai viver de quê?'', dona Eduarda, com seus olhinhos úmidos e uma testa avantajada para a pequena estatura, fez-lhe essa indagação não faz muito tempo, exatamente quando ela lhe comunicou a decisão de se dedicar ao serviço voluntário naquela cooperativa de produtores de leite, num trabalho misto de assistente social e psicóloga.

Daquela pequena salinha praticamente conjugada

com o consultório dentário guarda as lembranças dos

rostos e das questões que, dia após dia, ocuparam toda a

sua atenção, fazendo às vezes subir sua pressão arterial,

conforme certa vez confidenciou a um dos diretores da

cooperativa, o Manoel, com quem repartia seus temores e

preocupações pelo crescente aumento da violência e o

padecimento moral que ronda aquela gente toda. As

notícias de prisões e desaparecimentos, sempre

parcamente narradas quanto aos detalhes, tinham além do

medo o receio de traições. Mas o súbito aparecimento de

Maria Afonsina, aquela mulher que tem idade para ser sua

mãe, refulge em sua mente como o que de melhor poderia

ter lhe sucedido enquanto atuante como psicóloga naquele

lugarejo atolado em medo e incertezas, ambiente tornado

mais cruel com as pregações do pároco de uma igrejinha

próxima, transmitidas através possantes alto-falantes e

invariavelmente precedidas e finalizadas com acordes do

hino nacional, quando não envolvidas em verdadeiro duelo

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sonoro com um templo evangélico a dois quarteirões da cidadela católica. Com Afonsina, ela recebeu, como incomparável picada na veia, estímulo para se integrar ao lado prático de tudo aquilo que, desde cedo, instalou-se em sua mente e dela passou a exigir cada vez mais, desde as inesperadas e violentas mudanças experimentadas por todo o seu povo, esse povo paciente como boi de carro.

Graças a essa mulher madura de corpo, e criança de alma, Helena adquiriu plena certeza de que não dá mais para recuar nessa luta que é simplesmente maquiada pelo trabalho na cooperativa.

Bom, e agora? Será que o professor Vinícius, aquele

paizão paciente, envelhecido mercê de uma longa e

estafante carreira de professor universitário, honrará

pontualmente suas prometidas mesadas? ''Eu sempre lhe

disse, Helena, que psicólogo, neste país, não tem futuro,

minha filha'', sempre foi o prato de resistência dele quando

ambos se sentavam, ele na puída e favorita poltrona

forrada em veludo carmim, ela acomodada em qualquer

lugar, lá naquele pequeno quartinho da casinha de

Araraquara comprada financiada. Que saudades tem, neste

instante, do velho e doce paizão reclamando de tudo como

sempre, mas tendo sempre aquela mão ossuda e nodosa

pronta para um terno carinho, ao contrário de dona

Eduarda, sempre calada e transitando pela casa botando e

tirando bibelôs de um lugar para o outro com o seu refrão

preferido — ''Vinícius, o relógio do quarto precisa de

corda!''.

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João Maurício, onde andará ele agora? Por que, assim de repente, suas lembranças como que deram um giro de cento e oitenta graus, pulando dos pais para o alegre, espirituoso e sedutor acadêmico-residente da Universidade de Campinas que, entre uma frase espirituosa dita ao professor Vinícius e um elogio a um bolinho preparado por dona Eduarda, sempre encontrava tempo e oportunidade para bolinar discretamente aquela espevitada Helena? ''Deixa de ser bobo, não é de homem que eu preciso!'', o desabafo lhe escapou certa vez, bem junto à cozinha, temperado pelo apetitoso cheiro dos bolinhos de carne que a dona da casa preparava, nenhum de seus pais ouvindo aquele desabafo, mas o impulsivo João Maurício, sim, tomado por um espanto que deixou parado no ar aquele gesto cujo objetivo era o pouso sonso sobre dois seios trepidantes. João Maurício a olhou com toda a seriedade exigida pela inesperada divulgação, buscou desenhar um meio sorriso no rosto enfeitado por uma barbicha bem tratada e nada mais fez senão murmurar um ''Desculpe'', mas sua retirada em busca de alguma conversa mais assimilável com o pai de quem tão inesperada e estranha o rechaçara causou-lhe paz e confiança em si mesma.

Depois disso veio o Duda, guitarrista, com quem se

deitou em São Paulo uma só vez. Com esse gostaria de se

reencontrar, mas ele sumiu, lhe parece que também aderiu

à luta contra a ditadura. Teve também o Cláudio, instrutor

de ginástica, que também só conseguiu levá-la para a cama

uma única vez.

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Helena não sabe o motivo de tantas lembranças lhe aparecerem agora. Mas Afonsina, ela tem certeza, teria que lhe aparecer algum dia, o que afinal ocorreu finalmente graças ao pobre do Olegário e aos seus recalques que acabaram tornando-o um fiasco na cama diante dessa mulher ansiosa por um amor grande, sincero, puro e despregado de qualquer protagonismo carente do papel mecânico da genitália masculina.

''Por que essa despedida assim, Afonsina? Está com

medo de mim?'', isso acontecendo ao terceiro dia em que

ambas se reuniram naquela salinha da cooperativa, Helena

sabedora das lágrimas que envolviam as noites da esposa

do senhor Olegário, dono da firma Antunes & Irmãos

Laticínios. A simples pergunta lançada assim de um jeito

tão descontraído foi cúmplice daquele abraço menos

formal entre ambas. ''Não, Helena, é que...'', naquele

momento, um inseto paralisado surgiu, nu, frente àquela

língua absorvente do réptil, o coração fremente, a mão

amorenada e não tão macia apertada entre os dedos finos e

delicados da jovem consultora em psicologia, os olhos

dentro dos olhos. ''Hmm..., dá cá um beijinho, dá?'', a isca

lançada, Afonsina paralisada, com medo mas zonza, se

perguntando por que não. Nunca sentira aquilo antes, mas

não querendo ir-se embora tão cedo, para o fogão, o

tanque e a noite de tédio frente à televisão, esperando o

marido para lhe esquentar a comida, tarde da noite, sem

opções maiores que o mecânico escovar dos cabelos, com

mais uma camisola destinada a amanhecer virginal no dia

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seguinte, molhada nas axilas pelo suor frio da tristeza e da solidão.

Entre as primeiras investidas, naquele tom de brincadeira do ''Está com medo de mim?'' e o primeiro beijo, ao qual a não mais hesitante Afonsina se entregou, tudo levou menos de uma semana, entre uma consulta psicológica e outra, e agora, a sós e dirigindo, Helena se contorce no assento, face afogueada pelas lembranças dos últimos momentos de entrega vividos pelas duas, encerrados quando, assustadas, verificaram pelo pequeno relógio posto ao lado do enorme leito daquele motel, há quantas horas noturnas haviam avançado. Assim, aliada à formidável excitação sentida por ter conseguido encontrar, afinal, o completo objeto de seu desejo há tanto tempo sonhado e perseguido em encontros e desencontros com namorados e descartados amantes, acontece, para orgulho de Helena, ademais, a satisfação de estar cooptando a dona de casa Afonsina para a inadiável luta contra um regime cuja destruição Helena tem como ponto de honra alcançar.

''Mas não é muito arriscado, Helena?'', a pergunta

feita em tom baixo, assim escorrendo naquele amplexo

amolecido, o corpo de Afonsina encolhido e recolhido

contra a pequena figura de sua amada psicóloga, suas

nádegas se aninhando no ventre da outra, um daqueles

braços experientes posto em torno de seu ventre sob a

axila, com a mão amparando em concha o seio que

anteriormente e por muitos anos apenas Olegário

manuseou inutilmente. ''Quem tá na chuva é pra se molhar,

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temos que fazer alguma coisa, amor!'', e as confissões desse lado da vida de sua tão inesperada sedutora vão surgindo aos poucos, com a confissão do ateísmo, a coragem de matar para derrubar a ditadura, o fracasso de gente como Prestes, os elogios a um certo Marighela, iniciais e siglas diversas e nomes de quem Afonsina jamais ouviu falar.

—E se você matar alguém? Não vai ter remorso depois?'

― Sê boba, você só tem tamanho, Fonsininha minha!

― Hmm... — encolhimento maior, um beijinho atrás da orelha da seduzida dona de casa ―

— E Deus, você crê em Deus, Helena?

― Jamais acreditei nisso, Afonsina, nem eu nem meu pai. Homem legal é aquele ali, você um dia vai conhecer o meu Paizão.

― Helena, não me deixe nunca, promete?

Pergunta feita assim ao modo um tanto infantil, cuja parede de concreto do coração da prática marxista soube isolar:

― Afonsina, meu futuro não é meu. Compreenda,

amor. Outra coisa, habitue-se, daqui pra frente você vai ter

que se acostumar com meu codinome, Cláudia.

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― Codinome? O que é isso? ―, Afonsina se mostra confusa, o que provoca um risinho e gestos dengosos de Helena.

― Amor, nesta luta em que entrei, a gente não dá o nome assim de bandeja. Depois te explico melhor, mas guarda ele bem. Eu sou a Cláudia.

— Cláudia? Engraçado. E eu, vou ter algum...

codinome?

Helena a olha, beija-a, tenta-a para mais uma troca de beijos profundos, de toques de cheiros.

— Você? Humm..., deixa ver. Luíza, Mariana..., Edna?

Afonsina se espalha, esgarça-se no leito, nua, escandalosa feito bêbada inconsequente.

— Edna! Taí. Gostei de Edna!

Helena agora reconhece, com um sorriso de saudades, que foram necessários muitos carinhos para que o olhar e a voz de Maria Afonsina atingissem um estágio como o daquele preciso momento da escolha do codinome Edna, um sentimento que a digna esposa do senhor Olegário jurou só estar conhecendo com ela.

Mas logo a imagem meio tristonha da amante nua

aninhada de costas em seu colo desaparece, para toda a

atenção de Helena se concentrar a um pouco mais de cem

metros adiante, onde as luzes traseiras de um veículo são

dois pontos na escuridão. Ela diminui a marcha do Fusca,

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que tanta assim não é, dado o estado precário da estradinha de barro, e após deixar o veículo percorrer bem devagar as poucas dezenas de metros de distância do recém-avistado carro, Helena reconhece tratar-se da caminhoneta da cooperativa onde trabalha.

A caminhoneta, nota Helena, está justamente saindo do atalho estreito que leva aos fundos da cooperativa. Mas apesar de a caminhoneta estar iluminada pelas luzes do Fusca, Helena não logra ver quem a dirige, sobressaltada pelo fato de que se seu motorista fosse o Manoel da cooperativa, a pessoa que normalmente usa a caminhoneta, ele, conhecedor do carro dela, procuraria esperá-la nem que fosse para lhe desejar boa noite.

Então, contrário ao que seria de esperar, as luzes vermelhas desaparecem, permitindo a Helena apenas a visão da poeira rubra levantada pela caminhoneta, que os pálidos faróis de seu carro têm dificuldade em penetrar.

“O que será que o doido do Manoel veio fazer a essas horas na cooperativa?”. Imagina.

Já passam das onze, ela se certifica com uma rápida

olhada ao reloginho de pulso, e logo engrena a marcha de

força para retomar o caminho desejado até o pequeno

sobrado alugado às custas de um empréstimo tomado ao

velho e bom pai, pois alugar casa por estas bandas, pra

gente não conhecida, só às custas de uma boa conversa

temperada com um depósito de três meses de aluguel.

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Ao ultrapassar o início do estreito caminho de onde surgiu o utilitário da cooperativa, Helena tem a intuição de que na verdade alguma coisa está errada e, dando uma rápida freada no Fusca, o faz retroceder e, decididamente, toma o mesmo caminho perpendicular à estrada. Até ela chegar ao pátio cimentado do comprido prédio de um único andar em forma de U e dispondo de uma varanda de cobertura em telhas de amianto que o cerca por quase toda a extensão, não decorrem mais de três minutos.

Em marcha vagarosa Helena dirige o carro até junto à primeira porta do lado oeste, entrada para a salinha do serviço de assistência social, seu local de trabalho durante três dias a cada semana.

Ela observa , curiosa, que a lâmpada interna que serve à saleta chamada por Manoel de ''meu escritório'' está acesa, com a porta de encostada. Num instante seu raciocínio rápido, que se acelerou mais ainda no decorrer dos últimos meses, dá-lhe o sinal de alarme de que alguém esteve aqui, mexeu nas coisas da secretaria e, ainda por cima, carregou com a caminhoneta, e talvez, quem sabe, com o próprio Manoel.

Ir agora até à casa dele, ou fugir? Pergunta ela a si

própria enquanto regressa rápida ao Fusca. Entregar os

pontos assim é que não dá, se cagou, cagou a merda toda,

mas vamos até lá, é preciso achar a Dora, a Maria

Auxiliadora, mulher do Manoel, se é que já não “a

acharam” antes de mim. Assim vai trabalhando sua cabeça

enquanto retoma o caminho do atalho até a estrada por

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onde veio, e de lá seguir de marcha pisada até o bairro de Vila Nova Roma, onde fica a casinha de Manoel, por sinal não muito distante de onde ela mora desde que veio para Bela Califórnia.

Helena sente os dedos suados, melados, comprimidos ao pequeno volante, mas procura dirigir apenas com a mão direita, mantendo o braço esquerdo meio que pendente fora da janelinha, jeito escolhido para relaxar um pouco a apreensão pelo que, teme, está por vir e alcançar não apenas o dedicado Manoel e sua família, mas também ela própria.

Num relance Helena se lembra daquele rapazinho que apareceu lá semana passada, cabelo cortado rente, tipo atlético, perguntando como quem não quer perguntar, mas interessado, como funcionava aquela cooperativa, o que era preciso pra ser inscrito, quem mandava ali, coisas assim. Manoel, esperto como ele só, até comentou com ela meio entre dentes, ''Nesse trem aí tem coisa, Helena!''. Oh, noite esta, com Maria Afonsina a estas alturas com certeza aturando o marido, que deve estar botando pra quebrar!

Helena sente neste momento uma espécie de ternura por aquele pobre homem, a quem viu apenas uma ou duas vezes, lá na própria sede de Antunes & Irmãos Laticínios, ele, o marido de uma mulher que a ela se uniu numa totalidade jamais esperada.

A casa de Manoel fica a poucas quadras da sua,

Helena sabe perfeitamente, já visitou o colega de

cooperativa algumas vezes, lembra-se dos filhos dele, um

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casal de crianças bonitas, Camilo, o moreninho de olhos vivos e cabelos negríssimos, com seus onze anos, ''Homenagem ao cubano Camilo Cienfuegos'', o pai de um modo orgulhoso sempre comentava dando tapinhas na cabeça do risonho garoto, e Maria, criança que sempre deu trabalho aos pais por sua saúde frágil.

O Fusca desliza em baixa velocidade rumo ao centro da cidade, Helena esperançosa que Manoel esteja a tomar algumas cervejas com amigos em um dos botecos com mesinhas e cadeiras de ferro na calçada, plantados nos quarteirões em volta da Praça Concórdia. Passando por uma pracinha menor, ela observa uma radiopatrulha estacionada junto a uma banca de jornal, e lhe parece ver dois policiais abordando um homem. Após uns dez minutos, o carro atinge finalmente a zona central do comércio de Bela Califórnia, e em uma esquina, a pretexto de cuidado com alguns buracos e pedras deslocadas, Helena se curva, olhos rentes ao para-brisas, apertados para obter melhor visão e verificar se nos grupos alegres e palradores em torno de mesinhas divisa talvez Manoel.

Chega até ela o odor do churrasquinho feito ao ar

livre, a fumaça se elevando no ar ao som de um batuque

ritmado com o bater metálico de algum garfo ou faca em

uma garrafa. Um negro, de pé, faz evoluções tipo escola

de samba. Grupinhos de adolescentes se fixam em torno

de máquinas de jogos eletrônicos, mas ninguém ali se

parece com o secretário da cooperativa. Helena prossegue

na ronda e atinge as imediações do Cine Los Angeles, cuja

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fachada já se encontra apagada, e solitário cão se faz presente urinando sobre os degraus de acesso feitos em pedras de cor rosa.

Melhor, pois, ir direto falar com Auxiliadora, saber alguma coisa. Ou quem sabe toda essa preocupação seja a troco de nada? Quando as luzes do farol iluminam a fachada amarela, meio oculta pela frondosa mangueira que ocupa quase todo o pequeno jardim frontal, Helena ouve logo o ladrar do cachorro lá dentro da habitação e, antes que ela desligue o motor do carro embicado junto ao baixo portãozinho de ferro, a lâmpada da varandinha é acesa.

Uma mulher pequena e magra, morena, óculos de lentes grossas acavalados por sobre um nariz aquilino, surge com seus passos tolhidos pelo vira-latas enroscado nas pernas.

― Quieto, Guri! Sossega! — ordena ao afogueado animalzinho de pelo negro e branco.

― Oi, Dôra ― Helena sai do carro falando alto. ― Cadê o Manoel?

― Boa noite, Helena. Ele saiu.

Apesar da tensão interna que neste momento toma

conta de todo o seu ser, Helena não pode evitar a

lembrança de como, vez ou outra, referindo-se à própria

mulher, Manoel a descreve como a paciência em pessoa,

fazendo blagues sobre como Auxiliadora reagiria em casos

de perigo. ''Se a casa estiver pegando fogo, acredite,

primeiro ela vai ver se deixou alguma luz ligada, se pegou

os documentos, desligar a televisão,...''. Tudo isso dito

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entre gargalhadas a revelar aqueles dentes alvíssimos, enquanto nos olhos dava sempre pra ver que aquela zombaria não ocultava o grande amor de Manoel por sua Dôra, mãe de seus amados filhos.

― Há muito tempo? ―. Ela se cola ao portão, procurando não transmitir sinais de insegurança.

― Ele jantou, assim lá pelas seis, menina, e depois disse que tinha um compromisso. ― A resposta sai aos tropeços, no sotaque mineiro interiorano.

― Compromisso onde, com quem? Sabe dizer?

Num lampejo se arrepende da pergunta. Afora suas estreitas ligações de ordem ideológica com o marido de Dôra, ciente até das estreitas ligações dele com gente da política operária, Helena se critica internamente por cobrar notícias de Manoel à mulher dele na porta da residência do casal e a tantas horas da noite.

― Sei não, Helena ―, informação gesticulada por um abanar de cabeça.

― Ele saiu na caminhoneta da cooperativa, você sabe? — Helena insiste.

― Vi não, menina, tava acabando de pôr a Maria pra dormir. Ele me deu um beijinho e saiu. Disse que não demorava. Só ouvi o barulho do carro, mas vi com quem ele foi não.

Para conter uma impaciência que por dentro dela

ameaça explodir contra tamanha calma, Helena ergue os

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olhos e espia o céu estrelado, em parte oculto pelos largos e espalhados ramos da mangueira que domina o jardinzinho.

— Ele foi na caminhonete da cooperativa, Dôra?

Tinha alguém com ele?

— Ah, isso não deu pra eu reparar, não, Helena. Tava na caminhonete, sim, mas se tinha alguém mais não deu pra reparar, não. Fiquei só na porta.

― É, mas já passam das onze, quase meia-noite. — Helena se esforça para pintar a frase com as cores mais neutras possíveis, sabedora de há muito tempo que nada mudará aquele jeito peculiar desligado da mulher do agitado, vigoroso e alegre Manoel.

― Mas, entra, menina, tá esfriando. — O convite vem com o gesto fraternal de puxar o portãozinho, enquanto o cachorro, ainda presente e colado aos calcanhares de Auxiliadora, rosna baixinho.

― N-não, fica pra outro dia, estou doida pra tomar um banho e cair na cama. — Desculpa apenas protocolar no que diz respeito ao banho, eis que aquela inebriante ducha em companhia de Afonsina parece-lhe ainda colada em gotas de êxtase na pele, nos cabelos ainda úmidos. ― Deixa pra outro dia, beijinho nas crianças!

Girando nos calcanhares, ela abandona o portãozinho

da casa e se refugia no interior do Fusca, por dentro um

lamento pela sorte de Manoel, que se lhe afigura

possivelmente dramática neste instante, aditada de um

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desabafo que gostaria de lançar ao mundo tão violentamente e assustador como o ronco do motor do velho carro.

''Que idiota foi o Guevara! Sonhar em revolução com gente interiorana assim! Tudo lerdo, só mudam de idioma.

Ao dar ré ao carrinho, a decisão lhe transpassa a mente como uma agulha fina a buscar alguma brecha entre os ossos do crâneo rumo ao cerne cerebral, com uma dor tão aguda mas cuja retirada parece impossível a Helena neste instante. Deste momento em diante, pressente, é preciso identificar os inúmeros dejetos que afloram ao longo desse rio de curvas e quedas em que se tornou sua vida, onde a existência de Maria Afonsina brilha solitária como aquela tão decantada flor que os poetas usam colocar à beira dos pântanos.

Feita a manobra à frente da casa de Manoel, ela ainda acena um tchauzinho a Auxiliadora, perfil perdido no portão, refém do próprio alheamento ao que provavelmente de cruel possa agora estar acontecendo ao marido, e engrena a primeira marcha de volta ao bairro de Vila Progresso. É preciso ver Afonsina antes que seja tarde.

Vila Progresso, sem falta, decide-se então. O

caminho para aquele bairro é o que sua bússola emocional

agora ordena. É preciso voltar à casa de Maria Afonsina e

Olegário, não lhe importa o que lá tenha acontecido, muito

menos de que maneira aquele homem a receberá.

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O aguaceiro faz balançar as folhas das bananeiras emitindo ruídos que mais parecem a Maria Afonsina, atenta a qualquer sinal que denuncie a aproximação de estranhos, um rasgar de seda molhada. O pequeno casebre se encontra às escuras. Da única janela existente penetram respingos da forte chuva de vento, graças à falta de duas das placas de vidro componentes da moldura, mas nenhum vestígio de claridade externa invade o ambiente. Há pouco um leve ruído vindo ao pé da porta chegou a causar-lhe sobressalto, suas mãos se crisparam como se clamassem para maior atenção de todos seus sentidos, ainda que a visão pouca serventia lhe possa prestar em meio ao negrume absoluto em que ora se encontra.

Novamente ouve semelhante barulho, mas desta vez Maria Afonsina não mais se assusta com a frustrada luta de mais um sapo, incapaz de passar seu corpo entre o batente de cimento e a porta. Sapo-boi, sapo-martelo, quantos nomes pra bichos tão nojentos, e mais lagartixas e pererecas, cobras então, só de ouvir o nome tinha vontade de gritar, às vezes até se urinava, mas tudo isso já passou, e Olegário agora não pode mais zombar dela, de seu pavor por uns bichinhos que para ele não faziam mal nenhum.

—“Pior é gente, mulher, que olha pra ti com um

sorriso arreganhado e depois te esfaqueia sem mais nem

menos!''

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Falava ele sempre, rindo com aquele indecente dente de ouro a brilhar num canto da boca.

Melhor deixar o coitado de lado. Ficou de cabeça fraca após a conversa daquele padre que lhe encheu os miolos dele. Mesmo lhe dando muita razão por causa de Helena, ela reconhece, e aqueles imensos olhos verdes lhe parecem estar ali, brilhando intensamente na escuridão.

Sente-se fraca e abandonada, de comer mesmo só foi aquela mistura de angu quase sem sal com um gole de café, tudo assim engolido às pressas, lá por antes do meio- dia talvez. Já deve ser meia-noite. Sente câimbras sentada com os pés em cima daquele banco de madeira, tudo porque receia que algum bicho encoste em suas pernas.

Mesmo que os sapos lá de fora não tenham entrado, ninguém lhe garante, naquele breu tremendo, quantas pererecas, lagartixas e aranhas estarão passeando pelo chão de cimento, e neste instante nem a gozação do Olegário lhe daria segurança. Quer tirá-lo da cabeça, mas eis de novo aquele rosto sempre com barba por fazer, bigode espetando, mas com um aquele queixo pontudo com um buraquinho no meio que é a coisa que o salva.

Tem gente que fala que ele lembra o Kirk Douglas, o

ator americano. Ela foi uma vez conferir em uma revista e

viu mesmo que o queixo era idêntico, só que o artista tinha

cara de homem limpo, um louro bonito, e Olegário está

sempre naquele desleixo, e ainda por cima criando uma

barriguinha. Curva a cabeça para apoiar a testa nos braços

cruzados sobre os joelhos, e de olhos fechados procura

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fixar o pensamento em alguma coisa diferente e bem distante das duas pessoas que parecem insistir em não abandoná-la neste casebre imprensado entre a chuva e a noite. Muito difícil relaxar assim, reconhece, encastelada em cima deste comprido banco de madeira, pernas dobradas com medo de bichos, a fome começando a doer, e as lembranças de Olegário e a vontade de que sua Helena logo chegue.

Mas não nesta noite, melhor jogar para bem longe aquelas lembranças que de nada lhe adiantarão agora, nem mesmo mais tarde, pois acima de tudo hoje paira o medo.

Medo somente, ou também o ódio? Não, sua mãe sempre procurou convencê-la de que odiar alguém é como ir tomando veneno aos poucos, estragando a gente por dentro, e quando se vê está tudo corroído pelo câncer. ''Só Deus, minha filha, só Deus entende tudo, e dá a solução pras nossas atribulações''. Alguém tossiu lá fora, ou sonhei? Melhor esperar um pouquinho mais, nem se mexer, ficar ali, pernas encolhidas, nádegas num formigamento por tanto tempo assim, amassadas contra a dura madeira. Não, não. O pigarro é repetido, agora bem junto à porta.

― Tô indo! ― Ela responde, voz imprensada na garganta pela rouquidão misturada ao alívio. Maria Afonsina salta lépida do assento, braço direito esticado, caçando a tramela da porta.

Envolta na friagem soprada pelo vento, a minúscula

figura feminina se adianta casebre adentro para se aninhar

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de encontro ao peito pulsante de quem a aguardou por tantas horas. Os cabelos curtos, banhados de chuva, molham como esponja úmida a fina blusa de Maria Afonsina, que muito tempo não tem para desfrutar de tanto aconchego, pois num relance a recém-chegada se liberta de seus braços num empurrão nervoso.

― Caiu, Afonsina, caiu!

A porta é fechada com um pontapé, enegrecendo de novo o interior do casebre.

― Todo mundo? ―. Maria Afonsina ainda tenta manter nas mãos um pouco daquela outra que ali está agora, trêmula de frio e encharcada pela chuva, mas nem braços, nem mãos lhe estão mais ao alcance, pois Helena se afasta para mais dentro da escuridão.

― Cagou a merda toda! A repressão pegou firme, levaram quase uns mil, quer saber? ― O desabafo vem mais como crítica do que lamento, as palavras ferindo a decepcionada Maria Afonsina, se não tanto pela surpresa do enunciado, porém mais pela constatação de que o fato em si afasta Helena de atenções outras neste momento.

― E agora? ― A indagação é posta hesitante, Maria

Afonsina conhece bem como fica Helena em instantes

onde alguma coisa não saiu conforme esperava. Feita a

pergunta, ela permanece ainda junto à porta, braços

caídos, mãos cruzadas em torno do ventre, humildade total

pela escuridão ocultada. O chacoalhar das galochas

molhadas de Helena denuncia seu caminhar entre as

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trevas, e por um instante o banco de madeira, há pouco o trono da cansativa espera dá sinais de ter sido esbarrado.

Logo, porém, um resfolegar irritado é substituído por gemidos de desânimo, até que a ira explode contra as paredes inocentes do casebre:

― Puta que pariu! Puta que pariu!!!

O barulho da chuva aumenta, acrescido do matraquear das pesadas gotas sobre o telhado de amianto do casebre, e o desabafo grosseiro de Helena se perde no angustiado silêncio entre as duas mulheres envoltas pela noite. Finalmente, anunciado por um ranger do banco de madeira, sai na negritude total do quartinho a voz abafada:

― Fonsina, deixa sentar um minutinho só, descansar as pernas.

― Relaxa sim, Helena, esfria essa cabeça, depois... — Maria Afonsina é somente conciliação.

― Caralho! Tu não imagina, Afonsina, vieram de caminhão, na calada, levaram todo mundo, menina!

― Foi coisa de infiltrado, só pode ser! ―. O tom de voz de Maria Afonsina traz todo o tempero da doçura de uma aproximação, e Helena pode pressentir que os braços da outra estão estendidos em sua direção.

― Claro. Tinha gente da AP dando na pinta.

― E o Vladimir, caiu?

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― Acho que sim, parece que o Travassos dançou também. Fodeu tudo!

Agora ambas sabem, embora nenhuma palavra neste momento pronunciem, que a chuva, a lama e o medo as aguardam na noite fria, porque tudo é a certeza da impossibilidade do afastamento. Tudo isso, que faz a escuridão ao mesmo tempo ameaçadora e convidativa, conduz ambas as amantes ao abraço aguardado.

― Cheguei super nervosa, estressada. Você entende.

― Minha mocinha boboca! ― É Maria Afonsina a recolher emocionada os braços de Helena em torno da cintura, quando então os pequenos seios enrijecidos sob a blusa encharcada de chuva se adaptam com mansidão ao seu colo. O beijo com sabor de chuva, desânimo e medo ajuda ambas a, por uns segundos, cobrir o buraco das incertezas quanto ao futuro.

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Helena pouco hesita na caminhada noturna sob a

chuva, com as pernas algumas vezes enterradas até os

joelhos na lama. Evita falar com Afonsina, que a

acompanha dois passos atrás, e de repente se vê

surpreendida por uma pequena batida em sua coxa direita,

como se alguém houvesse lhe dado um peteleco ali. Com

um vigoroso golpe de mão afasta o minúsculo ser gelado

para longe de si, reconhecendo no rápido contato uma

perereca perdida no breu que desavisadamente pousou em

sua perna. Sente por perto o cheiro característico de um

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chiqueiro, sinal de que não se enganou de caminho. Não muito distante, deduz, está o sítio onde pediu um copo com água quando se dirigia, não mais do que uma hora atrás, ao encontro de Afonsina naquele casebre agora deixado bem para trás.

Ouve a outra tossir, mas não se volta, não há tempo para parar nem muito menos para trocar informações ou perguntar pela saúde de ninguém, mas ao se lembrar disso não pode evitar censurar-se pela parada para matar a sede no sitiozinho. A essas alturas está todo mundo alvoroçado por aí, a roceirada abobalhada e se sujando nas calças por causa dos milicos espalhados em quase toda a Ibiúna, conclui. É necessária a autocrítica, disso tem certeza, e não precisava aquele garotão boboca ficar martelando a sua cabeça sem parar, até mesmo quando a chamou para se deitar com ele debaixo da barraquinha de camping atrás de um barracão onde o pessoal cozinhava.

Gozado, até mesmo do codinome dele acabou se

esquecendo, e daquela noite só lhe restaram umas tolas

pouquíssimas lembranças, tão desimportantes que até

aquelas goteiras bem no clímax do orgasmo ficaram mais

marcadas do que o apressado ato. Helena sorri ao lembrar

a cena. Ele, sobre ela, a resfolegar na pressa do momento,

e de repente vieram aquelas fortes chuvas, e com elas uma

língua de água a penetrar através a lona rasgada, nas

costas dele, molhando-lhe a bunda como castigo para tanta

falta de romantismo. Houve mais dois naquela mistura de

centenas de jovens espalhados sobre um terreno sujo, com

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pouca água, mosquitos zumbindo desde o entardecer e mocinhos e mocinhas na busca do melhor enfeite para o ego de cada um, ao mesmo tempo olhando assim meio de lado para cada companheiro, desconfiados de todos e de tudo. Tinha aqueles com cara de sacristão, enrustidos e quase sempre evitando um contato mais íntimo, aquela gente católica da Ação Popular, e havia os porralocas esbravejando e se dizendo maoístas desde o curso primário.

Do líder supremo, Vladimir, quase não se ouvia uma palavra, murmuravam estar acontecendo um racha na assembleia.

Agora, ambas atravessam a madrugada como se esgueirassem por uma longa ponte frágil capaz de a qualquer momento se romper e deixá-las cair na sangrenta goela da repressão, cujos soldados e alcagüetes estavam por todo o município. à procura dos fujões. E é como se houvesse se esquecido da amada amante, que ela para e se volta apenas por dois segundos, mesmo sem a enxergar Afonsina.

— Como é, cansou?

Nenhuma resposta, mas a presença de quem a segue está denunciada pelos ruídos dos pés furando a negra lama.

Helena, num repente, estaca a caminhada e estende

ambos os braços na direção daquela a quem espera, por

quem sempre esperou, consciente de que, mesmo antes de

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se aprofundar nos estudos da psicanálise e do materialismo dialético, só uma pessoa, e teria que ser uma mulher igual a Maria Afonsina, poderia dar-lhe total satisfação e propósito na vida, desde que conseguisse virar sua terra, seu mundo, de ponta cabeça. ''Enforcar cada capitalista nas tripas secas do padre mais próximo'' Foi mais ou menos assim um anarquista certa vez falou durante a guerra civil espanhola.

Mas anarquismo tem nada a ver com revolução proletária, isso ela se cansou de falar a uns bobalhões.

— ''E lesbianismo, camarada, você acha que o Fidel deixa isso barato?'' — dessa provocação ela não soube se defender em um bate-boca feio há uns meses atrás com um comuna da pesada, mas no presente busca esquecer esse espinho em suas convicções políticas. Do pouco que leu de Freud, nada encontrou com que pudesse rechaçar aquela crítica dentro do marxismo. Paciência, deixa pra lá.

PARTE II 1

Os dias parecem por demais longos para Maria Afonsina, já se surpreendeu apalpando a barriga, as coxas, tem a certeza absoluta de que engordou alguns quilos, apesar da dieta rigorosa que a situação impõe.

Invariavelmente, são uns sanduíches de sardinha em lata,

ou atum, Coca Cola e, vez por outra, um iogurte. Sempre

adorou café com leite pela manhã, acompanhado de

bolacha, pão, queijo Minas, e vez por outra um docezinho

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de figo que dona Alexandrina, a vizinha que cantava no coral da igreja, costumava oferecer lá em Bela Califórnia.

Moravam quase uma ao lado da outra, na mesma rua, ''Olha, esse eu fiz ontem à noite, comadre!'', naquela gentileza simplória de que, não pode negar, sente falta agora. Na cozinha, o rádio ligado baixinho, posto sobre a mesa de fórmica, transmite neste instante um programa de tangos, mas geralmente se torna o centro das atenções deles à noite, que se aglomeram ao redor do aparelho feito em caixa plástica azul claro, disputando entre palavras rudes o melhor lugar para ouvir as notícias com mais clareza.

Vive assustada quando Helena não está por perto, e um deles, o Roberto, não esconde de ninguém o desprezo que sente por ela,

— ''Mas essa coroa aí tem condições de correr na hora do aperto?'' — Ela ouviu certa vez indagarem lá na sala, enquanto na cozinha separava uns pães com margarina para a alimentação do dia. Coroa, eu, com quarenta e oito feitos? Tudo bem. Sentiu vontade de retrucar na hora, mas acabou engolindo em seco a piada discriminatória.

Mas tem um que lhe parece calmo, de fala mansa,

sotaque acariocado, sempre em um canto com um livro à

mão. Esse é o Eduardo, que parece se dar bem com o

Licínio, um mulato baixote e robusto, que pelo que ela

sabe foi marinheiro e veio da Bahia direto pro ''aparelho''.

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É assim que a turma chama a este apartamento de sobrado, com sala, dois quartos, cozinha e banheiro, de onde se pode ver um montão de bananeiras, o pedaço de um prédio que dizem ser um grupo escolar e, mais adiante, alguns barracos trepados num morro não muito alto. Mas Afonsina só se sente à vontade para dar uma espiada na paisagem, que não é lá essas coisas, quando está sozinha, pois por mais de uma vez foi o próprio Roberto quem reclamou, falando alto, que ela estava arriscando tudo, ''pondo as fuças pra repressão'', mas numa ocasião Helena estava em casa e partiu na defesa dela, ameaçando ''meter um tiro um tiro nos cornos'' dele.

A discussão foi feia, uma salada de palavrões misturados com nomes de abreviaturas e siglas cujos significados somente aos poucos foi dominando, Var Palmares, ALN, MR-8, todas elas lhe parecendo mais ou menos como gente de uma só família, do mesmo lado nessa guerra, cuja causa Helena foi lhe empurrando praticamente goela abaixo quando tinham tempo apenas para as duas.

''E Deus, Helena, onde fica nisso tudo?'', certa vez perguntou à outra, quando sozinhas e, após alguns instantes de carinho emocionado, o assunto política veio à tona.

— ''Hmm, desde criancinha meu pai me tirou isso da

cabeça. Meu pai, aquele homem de quem me orgulho de

ser filha, meu amor!'' — E não mais disse nada, aqueles

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olhos faiscantes mirando como que o infinito, as mãos afagando ternamente os seios da amada.

Neste instante, sentada no chão feito de tacos velhos, alguns soltos, costas apoiadas na parede, ela observa as próprias pernas esticadas molhadas por raios de luz da tarde que já se vai. Vem-lhe subitamente uma enorme vontade de chorar, seu coração pulsa acelerado e, desesperada, lembra-se de que lhe é proibido chorar em hipótese alguma. Aprendeu nesses meses, com esses jovens de palavras duras, que o choro é um sentimento que não tem vez para ninguém do grupo, e ela, queira ou não é um deles. Mas há instantes em que ri de si mesma, julgando-se uma verdadeira pateta, ela, uma mulher a caminho dos cinqüenta, metida com subversivos e terroristas, sim, é assim que eles são tratados de acordo com o que já leu em manchetes de jornais trazidos vez ou outra por alguém da turma. A própria Helena faz questão de lhe afirmar que só assim, sendo uma terrorista, uma subversiva, poderá viver enquanto o Brasil estiver nas mãos do Médici e outros tantos generais.

Afonsina sente os músculos tremerem ao recordar

agora que se encontra sozinha neste pequeno apartamento

de sobrado, tendo como única companhia aquelas coisas

embrulhadas em pedaços de pano e plástico azul, lá a um

canto da cozinha. Lembra-se quando um casal de jovens as

trouxe, e foi a primeira vez na vida que viu armas de fogo

assim de tão perto. A mocinha, que segurava dois

revólveres em cada mão, estava com um homem de longos

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cabelos grisalhos e lhe pareceu não ter mais de dezessete anos, bem mais nova até do que Helena, com uma cabeleira castanha bem maltratada, braços esqueléticos saindo de uma camiseta branca sem mangas, calças compridas boca de sino, de nylon, cheias de manchas de gordura. Teve uma pena enorme dela, mas logo se arrependeu por ter lhe passado tal emoção, eis que de volta recebeu da menina um olhar gélido de desprezo. O homem nada falou, e não se demoraram no apartamento mais do que uns oito ou dez minutos.

Foram-se embora batendo a porta, aquela mesma porta que ela sabe estar proibida de ultrapassar em qualquer hipótese, ou mesmo de por sua iniciativa abri-la antes de ouvir do lado de fora a palavra que fizeram-na decorar, a senha para o ingresso no aparelho: ''Diem-biem- pu”. Perguntou a Helena o que aquilo queria dizer, e a outra, sorridente, disse-lhe ser o nome de uma cidade onde os franceses ''tomaram um pau'' dos comunistas, num país distante que já teve o nome de Indochina, acrescentando à explicação tratar-se agora do Vietnam, ‘’onde os asquerosos americanos cedo ou tarde também vão se foder’’. Até isso, retalhos e histórias de certos lugares e épocas, foi invadindo sua mente, esta mesma cabeça que antes possuía espaço apenas para receitas as culinárias, datas de aniversário e nomes de artistas e novelas da televisão.

Tudo agora recebeu um passar de borracha enérgico,

e ficaram apenas marcas como as que um colegial

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apressado deixa no caderno ao tentar consertar erros nas lições. Mas as feições de duas pessoas parecem lutar contra qualquer tentativa que Afonsina faça para tirá-las para sempre de seu pensamento.

A mais importante delas é a de Olegário, o afinal de contas pobre e sofrido Olegário, aquele homem que da noite pro dia teve o tapete de sua acreditada felicidade conjugal puxado por uma outra mulher, e não por um homem, como nas palavras dele largadas em desespero durante o estouro da crise. Naquela noite, aliás início de madrugada, em que Helena regressou à casa dos dois para, nas palavras dela, conversar com ele e lhe pedir que deixasse Afonsina partir imediatamente, Olegário lhe pareceu uma criança indefesa, olhos inchados e vermelhos, cabelos em desalinho, suor e baba de vômito manchando seu outrora tão admirado queixo varonil, o queixinho pontudo e sensual do Kirk Douglas.

Depois da fuga com Helena sertão adentro até um

lugar chamado Graúnas, estado de São Paulo, ela guarda

acumuladas marcas profundas no corpo e na alma. Já se

observou no espelho do pequeno armário do banheiro,

teve um choque quando viu as rugas em volta dos olhos,

as órbitas tomadas por olheiras arroxeadas, e por mais que

tente curar as frieiras que adquiriu andando por lamaçais e

pântanos durante aquela interminável noite em fuga da

polícia, tem a plena certeza de que jamais voltará a ser

aquela ''coroa'' que provocava alguns olhares cobiçosos em

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Bela Califórnia, alguns deles partindo de amigos de Olegário.

Sua vida deu um nó, assim ela define a atual existência, um nó-de-marinheiro, como aprendeu a fazer quando mocinha, aqui entre estas quatro paredes frias e manchadas, dormindo pouco e longe de Helena apesar de estarem ambas separadas fisicamente por menos de dois palmos algumas noites.

Foi a própria Helena quem, aproveitando a ocasião propícia certa tarde, elas duas estando a preparar café para o grupo, segredou-lhe ao ouvido nem pensar num amorzinho gostoso na atual situação.

— Se algum deles comenta alguma coisa sou capaz de virar bicho, sou bastante mulher-macho pra dar um tiro nos cornos de qualquer um aqui.

— Aparelho com sapatão coroa não pode dar certo.

— Foi o Roberto, como sempre, quem fez o comentário

enquanto ela estava no banho. Afonsina sabe muito bem

que todos eles, sem exceção, respeitam Helena, temem-na

mesmo, ela não sabe explicar a razão, mas quanto a si

própria ela tem certeza de que, não estando a outra por

perto, as críticas e piadinhas a seu respeito saem com

frequência, principalmente do prepotente Roberto. Além

de rejeitarem a união sexual entre as duas, desprezam-na

por sua clara ignorância quanto aos mais primordiais

aspectos ideológicos desta luta em que foi envolvida. p

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Súbito percebe, através do barulho de um carro e do bater de portas do veículo, que tem gente chegando.

Reconhece a voz de Helena saudando a vizinha do andar de baixo, e num instante os passos apressados na escadinha externa cessam, substituídos pela voz em surdina de Licínio falando diem-biem-pu, colado à porta.

― Já vai. ―.Apressa-se em avisar.

Gira a chave e quase é atropelada pelo grupo apressado. Helena é a última a entrar.

― Sem demora, minha gente, vamos! — É a ordem gritada por Roberto, e todos, inclusive Helena, se apressam em direção à cozinha, de onde o ruído característico de papéis e plásticos mexidos caracteriza o manuseio frenético daquelas armas das quais Afonsina sempre buscou manter distância.

― Afonsina... ― A voz de Helena se dirigindo a ela não tem sequer a mínima semelhança com o tom daquela moça que a conquistou de corpo e alma. É dura, nervosa.

― Vamos dar o pinote agora! Vem comigo!

Parada no centro da sala, intenta descobrir alguma coisa dentro dos olhos da amante, um sinal mínimo que possa identificar a razão dessa saída, que pela pressa de todos mais lhe parece uma fuga, uma das muitas fugas em que sua vida se transformou.

― Tchau, dona Teresa! ― É a despedida de Helena

gritada para uma mulher negra, que os observa com um

sorriso idiota a revelar seus dentes escassos e estragados,

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meio que oculta pelo batente da porta de entrada do andar térreo. O cacarejo de algumas galinhas soltas sobre o chão barrento soa como única resposta.

2

Andaram muito os dois carros, o Fusca de Helena seguido de perto pelo Chevette velho, desenvolvendo uma velocidade às vezes até exagerada para os caminhos tortuosos por onde passavam, quase ao ponto de atropelar tropeiros desatentos em caminhos de barro e poeira, ou perseguidos uma ou duas vezes por cachorros vira-latas que apareciam sem mais nem menos desde apodrecidas cercas de taquara carregadas por tomateiros, ou então vindo enfurecidos desde alguma tapera com paredes de sopapo. O Fusca de Helena ia na dianteira, seguido a poucos metros pelo Chevette vermelho, mas houve uma hora em que a marcha foi passada errada e o trovejante carro maior ultrapassou o pequeno Volkswagen, isso exatamente quando atingiam uma ladeira bastante íngreme cercada de ambas as margens por barrancos recortados em cicatrizes feitas por aguaceiros violentos.

― Pra onde a gente tá indo? ― Afonsina solta a

pergunta, mas logo se arrepende ao constatar o estado de

excitação nervosa de Helena, que a todo momento tira

uma das mãos do volante para esfregá-la com vigor sobre

as coxas, aumentando mais o aspecto de sujeira de suas

calças creme de nylon barato, cujas bainhas estão

arregaçadas até a metade das canelas, deixando à mostra

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um par de pés de unhas escurecidas de pó vermelho e lama.

― Mais meia hora e estamos lá. Falta pouco.― E mais nada lhe explica Helena. Afonsina tem que se esforçar muito, conter seus braços e os impulsos de todo o seu ser para não se chegar mais junto a Helena e lhe afagar os cabelos, tocar qualquer parte desse corpo na ânsia de transmitir todo o seu amor e lhe dizer que estará com ela para sempre, não importa o que doravante aconteça.

Vencida a ladeira barrenta, os dois automóveis são forçados a reduzir a marcha. A poucos metros se encontra o asfalto da estrada almejada pelo grupo. Após a passagem de um caminhão, os dois carros ingressam no cinzento asfalto, cuja precariedade de conservação da pista não lhes pode oferecer esperanças de grande velocidade, multiplicando-se os buracos em ambos os sentidos.

Atravessam os dois viadutos, cruzando esporadicamente com pesadas carretas e caminhões, sem contudo encontrar nesta rodovia carros pequenos, o que no julgamento de Helena é uma boa coisa, pelo que, embora ainda transpirando nas mãos e dando sinais de tensão, dirige a Afonsina afinal algumas palavras a respeito:

― Nada de carros na estrada, sinal que os homens não estão por perto!

Menos pela notícia do que pelo fato de a amiga ter-

lhe dirigido pelos menos algumas palavras a mais,

Afonsina se sente gratificada, e desta vez não consegue

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