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Academic year: 2022

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(1)

Richard Foxe

TODOS OS POEMAS

© 2019

(2)

A NOTA MAIS SUAVE

Quem me dera um mundo musical sem corrupção, despido de arrogância

onde o fator inato da ganância fosse mais débil que urro de pardal...

Um mundo à moda antiga, até retrô com pouca propaganda na tevê

na qual só se falasse no dossiê dum Arlequim zombando dum Pierrô.

Um mundo mais bemol que sustenido de vozes afinadas e corteses sem tantos professores no coral.

Um mundo onde o tempo transcorrido entorna suas infindas placidezes

e a nota mais suave é no final.

(3)

SONHO DE MOCINHA

Água doce e cristalina rega as folhas no roçado

e no espaço abençoado quase voa a linda menina.

Molha os pés na fresca fonte e em seus sonhos de criança

já aparece uma aliança e um corcel lá no horizonte.

Passam rápidos seis anos e do sonho já encerrado…

só cidade a contragosto:

- lava o chão, enxágua os panos, nunca esquece de seu prado com duas lágrimas no rosto.

(4)

BEIJO ADOLESCENTE

Tal qual bruma foi essa sorte minha desvendando de minh'alma a sua nudez,

e no corte que sem dó ela me fez um beijo adolescente inda definha.

Na estrada pantanosa da habitude o fim já antecipa a sua mortalha:

-fantasma duma vida que foi falha dissolve seu caminho na virtude

despindo-se dos trapos da falência.

Mas verte o desespero uma leveza que, breve, alcança o sono dalgum deus

e fica –morta- à luz da transparência mostrando qual o tamanho da pureza dos mitos dum amor, que foram meus.

(5)

TRABALHO E POESIA

Se alguém disser que só o poeta conhece o cume da arte criativa decerto ignora que a simples jaqueta requer dedicação mais que exclusiva.

A tesoura do alfaiate

torna-se gládio em épico combate.

E que tal a zelante secretária que nunca deixa de anotar?

Ao telefone parece uma ária a sua forma suave de dialogar.

O que seria da eminente empresa sem o auxílio dessa humilde princesa?

E quando chega a hora do almoço e a barriga começa a roncar

iria estourar um alvoroço se ninguém preparasse o manjar.

Quando falta munição pra boca é como se no bucho tivesse uma broca.

Volta pra casa pra tomar seu banho e do chuveiro só sai vapor quero ver se não daria o seu ganho

em troca da obra dum encanador!

Quem pratica trabalho manual faz poesia de maneira informal.

Evidente que um bardo valioso cria novos mundos e lhe leva pro céu

e o seu verso, às vezes ruidoso, sua fantasia ele deixa ao léu.

Porém, se seu fogão quebrar, melhor um artista que não saiba poetar!

(6)

INSPIRAÇÃO – EXPIRAÇÃO

Um poema rechear, enfiar redondilhas na caneta

e enfim desenfornar

um suspeito diploma de poeta…

seriamente!

é esfoliar cebolas em busca da semente.

Pois o verso -o de categoria- é iguaria regada a suor:

nem sobejo de mercearia nem insosso caseiro licor;

e breque o coração seu turbamento pois vale o calo quanto o sentimento.

Pode enlevar um pomposo poema se for mais prato que suflê de linguado?

cada pé e fonema

necessita de pulso redobrado…

mais que a coxa roliça e palpitante da pálida amante.

Alcançado o topo -claro instinto de atleta- ofegante expirando louvores

ao céu, o padeiro poeta

de tanto amassar esquece os suores…

a sua empresa foi dura e atribulada:

dobrou o sarcasmo da ladeira ensaboada!

(7)

BOLAS DE GUDE

Em soalheira vesperal as crianças de saquinhos puídos

são falange irracional na calçada dos buraquinhos.

Álgebra rutilante, mil bolas de vidro colorido e lesto rolam pelo chão pressentidas, e é grito, vitória, rancor ou protesto.

Mas eis que chega, pomposo, o atrevido:

-silêncio geral, é o senhor campeão!

Vai apanhar até se respira quem lhe tira a concentração.

Mais uma vez ele é vencedor e o rebanho maravilhado (crepúsculo, entusiasmo e suor)

lhe tributa ovação repentina.

Choraminga um menino afastado (foi-se sua última bolinha):

-dobra e guarda com inerte cuidado o peito morto de seu saquinho.

(8)

FIO DE ARANHA

Lá em baixo, na solitária adega (onde o lento silêncio acalenta o vinho), a incôngrua aranha tece a sua sombra, apronta o seu ninho;

aguarda uma mosca, um bocado qualquer.

Em breve envelhece, e resseca sem sequer entrever dos pintassilgos o coro febrento

no álveo cegante do amanhecer.

Poucos pilotos nos meandros da teia...

Fio de frágil destino é mais fino que seda de aranha:

-desvia-se no tráfego do entardecer.

(9)

A IMORTAL-IDADE

A cúspide do tempo, ou seja o corredio momento sempre além do passado, mas aquém do futuro

(numa palavra: o instante) oxente! existe, e seu vaivém obscuro pode ser flagrado com a fotografia. O fenômeno é patente.

Elegante, se exibida com disfarçado interesse num coquetel displicente, a foto é tida simulacro de horizonte pelo marujo

aprisionado no convés bamboleante.

Um porta-retratos bem alisado (mundana arte), contra a insidiosa tirania das rugas

será real baluarte desde que no vidro…

duas hipnóticas pupilas de cigana/o!

Destarte a foto, metáfora elegante e pachorrenta do elixir da longa vida, embaça a deslealdade do moto sideral;

e ainda desmente a crendice infante

de quem, culpando a inócua bebida ou a criativa ociosidade, altivo recusa

a virtude da cúmplice objetiva a qual

manuseada com critério seletivo (isso é importante!) deveras celebra a ditosa juventude e cristaliza…

-a idade!

(10)

AS ABELHAS DOS ALPES

ao minúsculo rei da soledade as abelhas dos Alpes predizeram

ideogramas incompletos e hemisférios de infelicidade;

no réquiem da consciência, murmuraram sérias, avista

aquela sombra que não some: -o bichano que te deu sua confiança

e em teu nicho de argonauta inconsequente luz de neve e linfa sem calor -não

o requebro dum santo inofensivo e nem de mãe o oco semblante.

(11)

A VIDA É NECESSÁRIA?

Você sabe quanto ando vasculhando entre estilhaços de nômades lembranças ou fico perguntando o revérbero arredio da paz amorfa da pérola em degredo…

A verdade é que me falta uma gazua, como faltava outrora quando, secreto, passava horas nas dunas branquejantes do rio e com as pontas dos pés interrogava a lama flácida e envolvente, ou apanhava peixes

incomestíveis e alucinados em poças d'água parada e insuportavelmente quente...

Ou quando contemplava admirado -e inerte- a nua carcaça da baleia surrealista

que navegava a areia ensolarada:

-vestígios de troncos escavados, ossos calcinados e enfeitados com anzóis, linhas torcidas e pequenas bóias de cortiça

colorida. Era o rio Po -cigano sonso e sonolento- que conhecia muitos segredos

inclusive, acredito, o mistério do tempo.

Mas você, que antigamente me ensinava como soprando na casca bem cortada do salgueiro podia fazer cócegas nas ninfas

do rio ou, pelo menos, zombar da pega impertinente, pode sussurrar agora

-cidadão da quiete milenária- algo que explique o serpear da vida…

e se realmente ela é tanto necessária?

(12)

ENFADO DO INFINITO

Lembranças de lembranças:

-é o infinito que machuca e foge.

Sinagoga de algarismos:

-é o infinito que usurpa o meio-dia.

Fênix que desaba:

-é o infinito que sacode a fé.

Negras entranhas ardem em turíbulos de ferro:

-a terra carece de milagres, de um chuvisco de milagres.

Um enfado de infinito na terra, mas...

já brilha de orvalho a couraça do escorpião.

(13)

XEQUE-MATE

Foi no começo da noite, foi no princípio do inverno…

Teu primeiro vestido um assopro de vidro, e um terno exausto sorriso.

(Foi então que percebeste o esquisito perceber de ser vivo?)

O perpétuo resvalar dos astros dobava a meada de tempos noviços;

tua mente, incerta entre contrastes, o arcabouço da existência soletrava.

Certo dia o brinquedo preferido se quebrava ou um corte no joelho

te se abria. Buscavas -não se via- o fitar-te displicente recolhido no estridor vertido por brônzeas

cigarras deliradas no estio.

Estreito peito de criança já abrigava a soturna, irreparável chama

(quem te acalentava, alguém o poderia?) -luzeiros cuja altura nem cabia

nas linhas do pentagrama.

Mas bem tu lembras aquele escuso mito, usina de inconsciência e de ventura: devaneios em coorte à tua obediência debandavam amorfos

presságios até o aposento do olvido.

Foi numa tarde de chuva, num mal-estar de mito…

Abafado sentiste -ó invicto general- siroco, e vento denso

a agitar o ulmeiro… Interdito

imaginaste, do impossível boleeiro, o trenó mal definido na meia-sombra do quintal.

Mais aguda tua infância prosseguiu (quais angústias e feridas te esperavam?) -decomposto já o teu mito, anteviste matinar

(14)

o mar combusto e escarnecido, a luz ferrenha e viva do xeque-mate final.

(15)

O ÊXTASE DO BOBO E DO POETA

Cansei de tributar à vida, de pronunciá-la, de vestir trapos de moleque envenenado

-pávido a tragar mais trevas que mel do favo pútrido furtado.

Cessei de acreditar que a vida mexe na carne invertebrada do pinheiro paralelo ao vendaval, no pio desafinado do morcego espatifado no concreto,

no cetro (glória do rubi) que se deixa liquidar no bazar aventureiro da calçada…

Agora sei! A Vida, da existência, nem é parente por afinidade: então que fique ora e sempre relegada

em alta esfera, em pileque de alfaiate ultraterreno ou em alva dignidade de deusa asteca -majestosa

caçadora de rãs e de mentiras. Talvez…

talvez a Vida só não zombe do partido dos iguais, do êxtase do bobo e do poeta...

E seja para eles ferrugem de cometa num vicejar demolido, delírio ocasional

de besta alada, faísca emocional de compulsória e surpreendente

meta.

(16)

FOURTEEN GOTHIC POEMS

I - THE GOBLIN

The mahogany clock is fast -sometimes is late–

while time makes roaring efforts inside its grave.

A goblin spills a glass of hate that slowly moistens

tiles and slate.

II - THE AZTEC SKULL

Some purple pebbles dropped on me:

I picked them gently as in a ritual practice;

who launched them I could not see.

An Aztec skull looked down on me: he seemed to sneer , not funny, but out of malice.

III - THE FORTUNE-TELLER

A fortune-teller smiled and said:

-You’ll be the king of any sacred place, if you give me enough copper and time.-

I was attracted by her pleasing face…

She showed me her vertiginous navel, pulled out my eyes and filled the eye-sockets with some filthy gravel.

IV - THE BLIND DRAGON

A blind dragon terrified the coastal land attacking frogs and fishermen, while a barefoot princess in disguise

(17)

stroked a bifid mouse in her hand.

Calling down curses upon our religion, obscene dwarfs come from a funeral rite:

-woe at you, dragon, they are a black legion!

V - THE QUEER MUSIC

A queer music was heard inside a beehive announcing war and poverty on the earth:

-a mad folk begun to give up hope butchering the last calves they found alive.

A few old bards quieted all this strain taking an abbot, bound by a strong rope:

-they killed him and played soccer with his brain.

VI - THE SUICIDE

A suicide carried home a valuable trunk full of bottles of narcotic wine;

he sat down in a hidden nook and, at dusk, he was fatally drunk.

From a cranny came out a weeping ghost who, blandly, showed him a thick book:

-the endless list of love he had lost.

VII - THE QUEEN OF VICE

Three stepmothers fought to become queens:

the first one broke a Turkish quartz so her reason went lost; the second one

was defeated in a tournament of cards.

The third one was crowned queen of vice owing to the power of her putrid farts,

and her garments, inhabited by lice!

(18)

VIII - THE PLAGUE

After a quake appeared some crystal eggs inside a church located in the downtown:

a salvific miracle was announced soon, but population was on its last legs.

In a short time the streams became dark-brown and a terrific serpent swallowed the moon:

-a plenty of corpses lay now on their cold flags.

IX - THE PAGAN FEAST

The lord of a small island observed by a lake a fat goose in the jaws of a huge snake:

he asked the meaning to a wise priest who warned him not to go to a local pagan feast.

Nonetheless the lord, leading two white steeds, entered, by mistake, a forest of quicksand where a big serpent choked him among the reeds.

X - THE GREEDY RATS

Millions of mice invaded the town at night eating up corns, fruit and any edible thing:

old sages obliged five virgin maids to become pregnant of a heretical knight.

A fireball fell and the rodents were all swept:

the townspeople had a splendid feast, while the maids gave birth to five unearthly rats.

XI - TOMB VIOLATORS

Two petty thieves were used to violate tombs and graves in order to get rings:

-Let’s try this one, hurry, don’t be late, it’s a rich sarcophagus full of golden things!

They did not know it was a cursed spot

(19)

looked after by merciless fiends

which pulled out the thieves’ guts and cooked them in a mucky pot!

XII - THE SQUEAMISH DAMSEL

A squeamish damsel took a fancy to a professor that some good monks considered a demon:

-Don’t marry him! -implored her confessor his reptile eyes are more yellow than a lemon.

On their first night the bridegroom took some nails and crucified the damsel on a kneeling-stool, then, he filled her mouth with many slimy snails.

XIII - THE WEIRD MONSTER

A weird monster assaulted a patrician home scaring animals, servants and the noble owners;

some willing friars went on foot to Rome to humbly implore the help of the Holy Father.

A fat pope promised blessings and a sung mass, but the brothers ran quickly away when they saw the pontifex on his knees, kissing the weird monster’s ass.

XIV - THE CURIOUS MAID

A pretty maid saw a noble man; just for bet she went to a witch who gave her a magic box

not to be opened before the wedding day:

the noble fell in love and the ceremony was set.

The very night before the marriage, on her own the curious girl opened the fatal box:

thousands of worms come out and gnawed her flesh to bone.

(20)

SONHANDO O MAR

Cada noite o meu mar tenho lembrado:

é a onda mais alta –traiçoeira- é o pescador que regressa

cansado, é o pequeno siri que na pressa o menino na areia tem pisado, é a marinha do pintor despenteado, é o polvo que embosca o calcanhar.

E mais no sono me fascina o mar com sua placenta de fulgor interno...

Tudo esmorece quando neve e inverno mas confesso que não consigo imaginar

negras gaivotas desconsagrando o mar.

(21)

ODE À ÁGUA-VIVA

Tão veleira pelos vales do oceano açucena de seda na corrente:

-tal julgada pelo nauta competente, prisioneiro de um desígnio desumano.

Água-viva transcende a sua vaidade em espaços de perfeitas solidões

e navega impalpáveis durações paradigma do perpétuo sem idade.

Ela existe, e isso lhe basta, coração que não sente e nem palpita,

titular de liberdade qu’eu não tive.

Inconsciente do pavor que nos devasta nada sabe da falência que foi dita e em sua errância... pétrea sobrevive.

(22)

PAIXÃO DESESPERADA

Enfim desnuda e fria descansa à luz morna das estrelas do ocidente

mas no sono –erótica- ela dança pelo amado distante, vão, ausente...

E sonha com os beijos bem ardentes de quem habita seu peito maltratado:

seus olhos marejam lágrimas silentes rasgando um rosto belo e inconformado.

Lisboa dorme opaca e insatisfeita no silêncio irreal do seu desejo que lento regressa -mesto navegante-

de uma terra outrora já perfeita, enquanto a sua alma desce o Tejo na busca inconseqüente de seu amante.

(23)

AMOR TELÚRICO

Este amor tirano, seco e imanente, torna quem ama fantoche da loucura e qual vento que despe sem decência do nosso tino envilece a boa semente.

No amor telúrico não há moderação, vem de repente, rasga e perfura;

assim –amada- ante tanta prepotência nada te resta a não ser a rendição.

Então dissolve o medo do pecado e, isenta de teu vago conformismo, entrega corpo e alma ao deus Prazer:

ele é a engrenagem que rege vida e fado e faz de ti uma servente do erotismo:

-gozar não é mais simples opção, é teu dever!

(24)

A MORTE, UM SORRISO?

Por que acordei tão cedo, que pressa tenho de me entregar ao dia?

Era morto e nem sabia, era morto e não tinha medo…

A morte apenas reclama o encargo de não ser esquecida,

de ser ama que amaina de leve o amargo enredo da vida.

Seu sorriso retém o segredo que sequer o estertor elucida:

-é portal de paraíso

ou cem anos de olhos sem sono que a jazer tanto convida?

(25)

AS PEDRAS DE MARTE

Remoto brilha o sol já quase frio neste planeta longínquo de quem amo

e nunca brota caule, folha ou ramo a mitigar um ar que não é pio.

O tempo aqui não falta -tenho de sobra- e a rocha é abundante e colorida:

mesmo demore o resto dessa vida completarei com afinco a justa obra.

Assim, titã que noite e dia te pensa, com esforço pouco humano e mais dantesco

empurrarei os penedos cor do ouro

-bem ordenados na planície imensa- formando um letreiro claro e gigantesco,

e tu lerás da Terra: EU TE ADORO.

Ela nem viu a mensagem que eu pari ou a tratou pior que bugiganga:

-recebida qual tediosa propaganda desprezada foi pra lata do gari.

Foi vexame empurrar tanto arenito ante a cara zombeteira dum marciano

que com olhos marotos de tucano ria de leve acerca desse rito.

Anoitece, e sob o céu desse planeta é costume, espreitando um meteoro, rogar um novo amor com uma prece:

-minha súplica já parte feito seta.

E o letreiro? Eu emendo o tal “te adoro”

e lá escrevo: VOCÊ NÃO ME MERECE!

(26)

A ILHA DO AMOR PERDIDO

Lembra inda nossa ilha, Aida?

O segredo lá enterrado, o tesouro mais guardado, e os carinhos sem medida?

Mergulhados num amor e na paixão que eram só nossos, abanava o Jolly Roger lá na mata

assustando os invejosos com seus ossos.

Era um mar entressonhado, Aida,

em suas ondas de esmeralda fomos cientes nadadores, como pôde a despedida?

Teu beijar era do mel que seduz até feroz corsário:

-nas espumas da cascata,

de tua alma tinha fé eu ser seu feudatário.

Esse amor era de rocha,

duas essências, uma só tocha, ó vida, podia alguém roubar tal cofre?

Foi furtivo, foi de chofre, e tu estavas sem guarida:

-fascinou-te o seu sorriso, não foi lerdo –ele- nem indeciso, foi pirata!

Arrancou o Jolly Roger com sua mão, e também teu coração, ó Aida.

Restou o quê dessa ilha dissolvida?

E do sonho que desfez a juventude deixando-me tristonho sobra o quê, minha querida?

A pergunta nunca cala: se realmente valeu a pena…

Sim! As maretas cor da prata,

e apesar de tanto breve, minha dita foi bem plena!

Nosso amor já foi completo,

mas meu sono estava inquieto, a esperança combalida e o teu instinto volitivo...

Era estranho, mui atrativo, ó doce amiga:

-cativou-te o seu sorriso -ele esperto- e tu sem siso!

Gata bandida,

laceraste o Jolly Roger com tua mão, nesse inverno vai sangrar meu coração, ó Aida.

(27)

ENTRE TUAS COXAS DE MARFIM

Preciso…

do pirata ter o porte e arrancar sequioso e teso

o teu bustiê amarelo.

Preciso…

de vez derrocar o castelo como se fosse um torpe,

irresponsável jogo.

Preciso…

dar voz à minha fúria crua, derramar enxofre, baba

e fogo!

Mas enfim…

ser nua criança mansa:

-exausta entre tuas coxas rijas de marfim.

(28)

UMA BOLA DA ÁRVORE DE NATAL

É uma bola amarela, um gélido solzinho.

Um vidro bem fininho encerra uma álgida esfera cintilante (há uma dureza inquietante

em sua fragilidade).

A vida -a realidade- cauta se reflete e se disforma nessa opala dourada e franzina, nessa geométrica nudez. Talvez exista em sua paisagem cristalina e fria

a amoralidade que revela uma dúbia, enigmática harmonia:

cegas órfãs caiadas se imolam em calvos anfractos da costa, magos sírios em labirintos finais abrem suas veias ao ouro do alquimista

-parece entretempo de imortais…

E não há como saber se o mundo rude da verdade é mais verdadeiro que o reflexo nesse vidrinho amarelo e convexo.

(29)

RABDOMANTE DO AMOR

Do vero amor já fora rabdomante varrendo logradouros de secura, mas, voraz não somente de tristura,

desisto desta busca e doravante

dedico meus esforços ao desporte:

-já no tênis terei valioso amigo e, enquanto o vôlei vai ficar comigo,

minha bike será terna consorte.

E no entanto não queda o sentimento que sobe rancoroso do profundo e vontade me dá de tiro ao alvo:

se Cupido aparece um só momento vou tratá-lo igual que vagabundo:

-de meus dardos, garanto, não tá a salvo!

(30)

AS FLORES DE MARTE

Dizem que as flores do planeta Marte buscam no orvalho paz e lenimento:

-acalentam seu sonhos, vivem de arte até que o fim lhes ceifa o sofrimento.

Assim sou eu, igual uma flor marciana com suas pétalas sedentas de carinho:

-iludido por quem dizia que ama na névoa e na poesia fiz o meu ninho.

Todavia sou criatura dessa terra, onde não regam a tua lábia de fada e ocas palavras que a tua boca encerra;

e o meu ego reforça mais sua malha:

-tua paixão que fraudou tanta jornada desvelou ser um vão fogo de palha.

Todas morreram as flores da esplanada na terra seca avarenta de emoção e não bastou o querer de um coração

sem o respaldo da mulher amada.

Marte foi duro com o sentimento de quem lavrou a gleba da cratera:

-logo desfez o tepor da primavera com sua lufada de vermelho vento.

Das mortas flores um aroma exala que até enternece esta árida plaga ainda ignara da dor do ser humano.

Cheia de pó minha boca ora se cala deixando solta a alma que já vaga desconsolada sob o céu marciano.

(31)

PRECE DESNUDA

Não rezem por mim e nem por meu pecado.

(O fado? era orvalho de mata em metal de navalha; a quiromante ataviava o meu baixio

com réstias blasfemas de lúbrica sereia).

Nardo impuro em meus olhos derramaram e eu não me queixei. E nessa hora verde-que-morre

nem sei qual culto bastardo titereia a procissão nula de indulto:

-inverno, verão, outono de novo...

Neste sulco descorado e escuro -como o manco remoinhar da hedionda medusa hesitante entre turva beira-mar

e baixa onda- sou chiar estridulante de eixo bichado na sórdida engrenagem duma asfixiante usina fundo-de-quintal.

Em muda catedral meus dedos ponho a rezar uma prece desnuda

e azucrinante: -desfilar sonâmbulo na alameda elegante do sistema, sem noção

de sucesso, de dilema, de impolidez, de pena.

(32)

SANGUE TRIBAL

Só um carimbo para um fantasma urbano:

“CLANDESTINO”

Veleiro menino sêmen de terra impura furor de sangue atávico em teu olhar balcânico brasão de sinistra febre tribal;

ânsia de desforra mais escura que teu tempestuoso cabelo cigano.

Valem respiros tuas unhas rapinando sujidade do pára-brisa

de um carro bufando no trânsito

-ultrajante rosário de vorticosos sinais sulfurinos;

feito náufrago tremente na hora mais ausente dessa infame cidade

-quem te dobra primeiro: espanto ou piedade?

Açor envelhecido a safar sorrisos de emperiquitadas damas proletárias -a descontar gemidos de antigos credos cruéis;

quite de remorso furando olhos de gato praguejando acocorado aos pés

da grande grade gélida de aço –quem chora, quem chora?!

Entretanto…

equinócios e bonança em teu fremente coração:

eu te vi dividir ternura e pão com o cego que esmolava

numa tarde lacerante de chuva infernal.

(33)

CLARA NOITE ENGANADORA

Ursa madrugando na oliveira…

Hesita em sua deriva o sussurro da vazante:

-pausada narra-se à terra.

Quando…

humilde moto adolescente

(e os nomes das estrelas inda eram simples) a abóbada turquês apascentava

insídias de planetas rancorosos.

Quando…

embrulhado em cório de veludo, sonos de neves misteriosas ecos descansavam de neolíticos fogos.

Quando…

aranhas de excessivos ouros vestiam meticulosas a íngreme geométrica pedreira.

É tarde,

e torta luz me escava em mórbida brancura de salina.

É tarde!

E da Górgone implacável se aproxima o diurno espelho ustório de meus erros.

(34)

A CAPITAL DO NADA

Deixado um mar outrora conhecido navega a velha escuna solitária, sua bússola apontando qual caminho em busca não de amor, e sim de olvido.

Assim um coração -morto à esperança- aos poucos desse mundo se faz pária,

e o deus que talvez tenha ferido degusta na ebriedade a sua vingança.

Veleja sem fraqueza, oh coração, deixando longe a pérfida fortuna que tanto te negou uma doce amada -perversa, cega e surda à tua oração.

Adentra mais e mais o frio do norte em teu curso errático de escuna e, posta a proa na direção da morte,

alcança enfim a capital do Nada.

(35)

O TESOURO DE MARTE

Nessa landa, humilde à ventania, ocras dunas em seu rebanho mesto viram sombras quando o sol deita-se lesto

em céu órfão de luar, e todavia,

como em lenda arcana de eldorado, a planura resguarda um grão tesouro que olvidado em seu cofre de choro, mudo aguarda, insone e inconformado.

Paradoxo de astro tão distante…

o que é puro se despe de seu encanto tal qual sol que, opaco, morre lento,

e na incôngrua espera da sua amante jaz inerte envolto em preto manto este amor maior que o firmamento.

(36)

VENTRE IMORAL

Vagas réstias de um enredo entreluzem no declive já mudo:

-são sinais de fado arrependido…

ou esperança de quem não foi amado?

Vale apetecer a rosa, ser de novo pungido?

Cuidado! Na auto-estrada do sentimento não vige a sintaxe do carburador (prazer e dor em proporção adequada).

Vã paixão sem passageiros

é malogro duma viagem, é deixar parada na garagem a viatura que sacode

coronárias em troca de emoção.

Quebra-molas novamente?

Na curva final da estrada madura só baixa octanagem e brusca freada

por um ventre imoral e inocente.

(37)

CANÇÃO DO MAR DE TÉTIS

Um inventado mar falto de moto recanto da sereia imaginária onde o eterno engodo duma foto

era o abono da criança solitária.

Infante mar -de linha delicada- dum nauta repousando no futuro o terror de tudo dando em nada, do amor espatifado contra um muro…

Não é justo que os vivos perturbem as praias tranquilas de Tétis, e é iniquo que olhos enturvem

as águas estéreis de Tétis.

Em seu fundo aporta a memória quimera de um sonho feliz e uma urna de cinzas sem glória

que a noite devolve à matriz.

(38)

MAR DE MARTE

Mar ingênuo outrora dominado pela ânsia da dádiva suprema que desfeito por pérfido teorema

virou lodo enxuto e inacabado.

Mar estranho que sobrevive à morte disfarçado de deserto colorido,

e apesar de seco e amortecido do velho Dom Quixote mostra o porte.

Duas palavras pra escapar do olvido restaurando planícies de verdura e gerar desse mar um novo ramo:

-pro seu nobre coração indormido duma bela, com voz sincera e pura,

bastaria ele escutar: ''TE AMO!''

Baço e afono um eco de marulho se dissipa entre óxidos de ferro que, testemunhas do seu primário erro,

pastoreiam o que sobrou do orgulho

de ter -quem sabe- insulto diferente dum fado posto ao despertar do tempo decretando com seu dito o cumprimento:

curso e foz duma vida só aparente.

Nesse mar que já se agacha à sombra, nem de amor uma jura agora basta -inepta a decompor tão pétrea sorte.

Só uma voz tetra e final hoje ribomba reiterando a sua gélida proposta:

''Mais não espere e já antecipe a morte!''

(39)

MY BEST GRISLY FRIEND

Good gosh! She's really the best friend I have!

She came by land shuffling through numberless, cheeky ants;

it was a dirty, ghastly road longer than 65 miles, devoid of emotions like a trashy

infinite telephone twisted pair cable.

What time was it when she called on my dorky little sister?

(I just remember that Juliet stopped at home to watch ''The True Story of Pollyanna'' and went away quietly, lost in reverie...)

Poor sister, I still miss her rubbish.

Well! Now I am an only child, like She is.

Baffled? Not at all!

She's the only grim depth I am not afraid of since She's always sweet and gentle with her friends.

And it's high time to debunk her grisly myth!

Then, my friend, do not put off your indispensable game:

- Now, I’m ready, and really too sleepy to go on.

However...

''Quero roubar à morte esses rostos de nácar, esses corais de aurora, esses véus de safira,

e antes que em mim também se acabe o céu das pálpebras'' (Cecília Meireles)

(40)

CASCA DE CARANGUEJO

Apenas te pergunto, alma querida, (agora que o meu sol tá declinando)

se o astral que me resta dessa vida vai resgatar meu fado miserando

trazendo não paixão, e sim ternura a quem, ignaro da ríspida matéria,

foi à mercê do rasgo da planura.

Rogo a ti, não me iludes com vã léria...

''Não foi puro o tempo concedido, a má sorte alternava tua fortuna, e no entanto tiveste um certo ensejo.

Mas não foste bastante resolvido e foi esta a tua máxima lacuna:

-casca és ora do lerdo caranguejo!''

(41)

O AMOR QUE FAZ DA VIDA UM PARAÍSO

Eu não sei se o destino reconhece dum amante mudo e empobrecido

o protesto iníquo recebido e a mágoa que ácida o envilece

ou se ainda lhe tira -igual pirata- o talão de outro sentimento e o lança de novo no tormento:

-bancarrota de amor sem concordata.

E se o céu chovesse mais ventura sobre o amante fraudado de sua glória,

e suave o brindasse com sorriso

de seus sonhos a lindérrima figura?

Venha agora -e não na promissória- o amor que faz da vida um paraíso!

(42)

CURSO DE PEOTA

Desce a noite calma no adriático mar, e com sua rede o pescador aldeota larga o lar seguro e embarca na peota cantarolando um casto canto milenar.

Refletem as maretas a imperturbável luz de estrelas frias distantes e de lua

que pele tão escabrosa não tatua coberta apenas por uma lígnea cruz.

Mais longe e longe ao leste ele se avança até os humanos limites do universo:

quer escapar dum mundo mui perverso, sedento de Absoluto e de bonança.

Já enxerga em distância a lúcida torrente que rega o domínio dos seres imortais:

-entra o seu barco em ocas espirais antecipando a paz proscrita no poente.

A aurora iluminando o pobre vilarejo acolhe com seus raios uma vazia peota enquanto em distância uma cândida gaivota

segue do Sol o esplêndido cortejo.

(43)

MAR ETERNO

Recebo raras fotos duma praia:

amarelas, denteadas… sou eu aquele menino? Será meu o calar prono ao degredo,

aquele sorrir forçado

como se fosse de afago desnutrido?

Sim… elfo serpentino e vacilante ora se apaga, ora se reacende

qual fogo retraído de lareira que em véspera de noite arrefecendo

se agita sem alarido, docemente.

Sinto da morta alga o odor pungente, quando a exausta manta

murcha e se apodrece, e precipita seu sabor ferruginoso

a água-imensidade na garganta:

-de novo me sufoca, quase desce...

Vejo âncoras e cordas incoerentes, redes salsuginosas,

ciclópicas correntes

enferrujadas na quilha dum barco ou sobre um corta-mar

abandonadas…

Durmo recifes de basalto ignoto que mais que luas distantes ou infaustas

liturgias, fugaz e impercebido meu olhar triste entristecia.

Tênues agora o olor do antigo pão e a molíce do figo suculento:

-último fruto que amadurece no verão.

Não sei mais se o mar amado estranha a realidade e nem se já encarnou-se em duro inverno…

(44)

mesmo que traga insulto e tempestade:

-dêem-me o fremir que nunca basta, e que esse mar me leve -eterno!

(45)

ODE AO BICARBONATO

Relegado num armário de cozinha esse humilde ingrediente alimentar

poderia passar até por cocaina se não fosse salgado ao paladar.

Todo objeto faz brilhar com muito esmero e a empregada valoriza tão portento:

-ouro e prata (acredite, não exagero!) se renovam pela ação desse fermento.

Aliviada agradece até a fumante cujos dentes da cor da nicotina fulgem mais que faceta de diamante em sua boca que ficou mais feminina.

E o guloso, que não quer baixar a dose das gorduras que o deixaram aturdido,

já resolve o problema da pirose:

basta pouco, arroto é garantido!

(46)

SONETO DO AMOR IMPOSSÍVEL

Desolado é meu ir pela cidade na vã busca dum amor que tanta ânsia de carinho inebrie com sua fragrância nesse charco contraponto à realidade.

Na muralha a figura opalescente duma jovem já viva e apaixonada, mas agora só luzeiro nessa mente que por falta de amor é fustigada.

E no entanto florescem do passado feito eco de paixão as doces notas da donzela entoando uma cantiga:

-quão impossível o amor entressonhado entre quem -da vida- só tem gotas e a mocinha que foi da Roma Antiga.

(47)

BIKINI

Architectes de mélancolie ont terrassé les jongleurs de la rosée.

Une boueuse risée de chacal dans l'atoll de l'égalité brûle orgueilleuse étoile à midi.

Mutation d'alchimie il est poussière de la mer et douzième ciel sous la terre.

Maintenant…

yeux de silence, petit pluvier dérouté.

(48)

A MAGNÍFICA PROCISSÃO DA SEXTA-FEIRA SANTA COM BANDA, ESTANDARTE E FOGOS DE ARTIFÍCIO

• a grande enchente de novembro de um ano qualquer

• o primeiro carnaval, tímido caubói

• o segundo carnaval, triste pierrô

• as pombas aturdidas, os holofotes na catedral sem calor

• uma cerca viva como amiga, os vaga-lumes inocentes

• os álamos do outro lado da muralha

• o velho pescador risonho que tomava banho de perfume para repelir os mosquitos do rio

• as bolas de gude, a réstia oblíqua nas tardes de verão

• o gelo nos vidros, o inverno sem luz, a acetona no sangue

• os sapatos impecáveis, os pés aprisionados, a pigra primavera

• a magnífica procissão da sexta-feira santa com banda, estandarte e fogos de artifício

• rodopiar até tombar na grama

• o Nautilus, Moby Dick, o Bounty e os coqueirais em preto e branco

• o sol vermelho através das pálpebras

• o professor homossexual que fumava cigarros mentolados em sala de áula

• B.E., que tirava boas notas em latim e era o meu único amigo

• uma carteira de Muratti Ambassador e o lento fim da eternidade no cinema paroquial

• o tímido sacristão diabético que sabia falar inglês

• os Beatles na vitrola, Carla e as minhas mãos suadas

• a neve de cinza e as andorinhas que não chegam

• o barbeiro marxista que vendia livros proibidos e garrafas de kümmel falsificado

• os loucos bem afinhados no coreto do hospital psiquiátrico

• o desfile do primeiro de maio, as bandeiras vermelhas, a banda municipal

• o paletó, a gravata, a asfixia sem um lamento

• o riso cristalino de Laura na sede decadente do Partido Comunista

• o sono no vulcão, o confessionário carcomido, o pecado inexistente

• o baú abarrotado, o choro silencioso dos brinquedos

• as horas perdidas entre as glicínias, os lábios da adolescente apaixonada

• a morte distraída, a ácida saliva da mulher casada

• a marcha diurna de um vaga-lume sem rumo

• um jaleco branco, um anfíbio dissecado, as mãos finas da aluna anoréxica

• os álamos cortados do outro lado da muralha, o holocausto dos vaga-lumes

• a enxente furiosa do final de abril de um ano qualquer

(49)

SINFONIA DE AMOR

No ar de Marte, ermo e rarefeito, quedos lírios em composta geometria

cantam árias de lene melodia, mas o canto sequer lhe sai do peito

abafado por um’alma que soluça num penedo despojado de semente:

-cada lágrima que a rega, urente, mais e mais sua dor aviva e aguça.

Venha o amor e espante a fera cujo nome –tremendo- é soledade transmutando desalento em harmonia:

-lá nos cumes ou à sombra da cratera de mil beijos infinita a variedade, e os estalos… a mais quente sinfonia.

(50)

PRIMEIRO DE MAIO

(Três amigos)

Falam de motos e de mulheres, falam de Deus e de filosofia,

fede a cigarro a roupa deles -só a lua lhes faz companhia.

(Dois amigos)

Falas inquietas em dinâmica era (o socialismo comanda o destino?)

-bandeiras na ridente primavera, e moto morta no esplendor do trigo.

(Um amigo)

Nele a maré áfona de praia que o arrefecer deixou vazia -uma fanfarra o Primeiro de Maio

só lhe faz companhia.

(51)

ARGONAUTA DO AMOR

A bela nau cortava o mar sagrado guiando intrépida um ardido grego que por fama ou talvez por puro ego

foi ao resgate de um tosão dourado.

Arrojado com monstros e serpentes, tomou prêmio além dum mar bem vasto:

-lã cardada oportuna pro seu fasto.

Assim sou eu, no meio das correntes,

à procura de um amor desconhecido, um andarilho que vai de porto em ilha

com lastros de esperança lá na estiva.

Rogo aos deuses que o pélago temido transforme suas maretas numa trilha:

-reta final após tanta deriva!

(52)

LÁGRIMA DE AMOR

O que um homem pode oferecer aos belos olhos da mulher amada

se no mundo não existe nada

mais valioso que o bem que ele lhe quer?

Nada servem artefactos de valor e nem pérolas preciosas do Levante:

-o sorriso radioso da sua amante não tem preço em todo o seu esplendor.

Ele é ciente de sua essência de mortal, desprovido de uma dádiva divina…

Renitente e aflito permanece

antevendo da jornada o seu final e da amada a triste queda vespertina.

Uma lágrima no rosto ora lhe desce.

(53)

CINCO HAIKAIS

O ANTICONCEPCIONAL IDEAL

seria genial inventar a camisinha

do dia depois

O PROCESSADOR DE ALIMENTOS

pobre comida sob processo sumário

sem Perry Mason

O PINGUIM

em fraque social no coquetel on the rocks

da nata austral

O AMOR

fino sagitário -assola os corações

sem machucá-los

DOMINGO DOS ANOS ’60

missa e café o totó na penumbra

um gol de Pelé

(54)

MAIS ARDENTE QUE AS LAVAS DO VESÚVIO

O inverno a regelar a majestade do bem que vence o monstro do egoismo:

- secou-se o invejoso cetisismo de quem do amor negava a divindade.

Sublime esse triunfo de magia mais ardente que as lavas do Vesúvio:

- mondando a sua alma com o eflúvio a mágoa maligna se esvaía.

(55)

DIVINAS PERSPECTIVAS

Uma tela brilhando na memória ofuscando do sol tanto esplendor,

e qual ninfa em vestes de vapor até a aurora inunda com sua glória.

Suas cores parece que estão vivas, rutilantes que nem penas de pavão:

-fica deslumbrado o aquático tritão perante tão divinas perspectivas.

Bendito sempre seja o grande artista que com pincel, tinta e paleta à vida deu mais vida o seu pintar.

Ah, se o cego pudesse ter a vista uma só olhada o tornaria poeta e feliz mergulharia no colorido mar.

(56)

PRIMAVERA EM COR

Gorjeiam os nuelos em seus ninhos no ar brando que enternece o coração e entre as pétalas se mostra uma feição

de ninfa nata dos zéfiros marinhos.

Esse é o tempo melhor da nossa vida onde o pôr-do-sol numa tardinha se alegra com o canto da andorinha

distante muito tempo de sua ida.

Mas quando o astro-rei perder seu cetro e a morna luz ficar mais cupa e fria

o calmo ocaso tornará-se tetro,

e a juventude que era tida eterna, feita estrela de clara luz vazia se mudará em velhice áspera e erma.

(57)

ODE AO CHOCOLATE

Transportado nos armados galeões -mais precioso que o ouro dos Astecas-

foi à base de inúmeras criações pra vencer a pior das enxaquecas.

Não adianta resistir à tentação desse fruto que crescia no paraíso:

sua fragrância derrete o coração do guloso tirando-lhe o juízo.

Ceda, então! E sem falsos pudores a sua boca de sabor faça uma orgia compensando desse mundo seus horrores,

mas defenda a nossa Terra do distrate e a preserve divulgando a ecologia pois só nela é que existe o chocolate!

(58)

ASSIM SERÁ DEPOIS DA NOSSA MORTE

Aqui não me castiga a chuva fria do inverno e nem gritos ecoam de demônios arrogantes cujas ordens pavorosas em hediondo caderno são cinza de cinzas de vanglórias distantes.

Irão findar-se as eras sem meu sono turbar, igual bonança de lago em remoto planeta que em vão barcos estranhos cobiçam navegar

enquanto espelha a luz dum plácido cometa.

Brados e lamúrias da multidão furente, para o meu rosto já sem vida e sem feição

nada serão se não borrasca evanescente qual zéfiro que sopra em noite de verão.

Mais não me fere o caminhar do tempo, mas esse corpo em pó que deixou de palpitar

preferiria sangrar até sem lenimento se pelo menos uma vez pudesse amar.

Rogo aos amigos que ao ler esse poema lembrem de mim com um gesto de ternura:

-ponham do sol, de seu fúlgido diadema, uma réstia a amornar tão silente sepultura.

(59)

MAR SIBILINO

O mar que aflige a alma ao marinheiro -que relembra da família já distante-

emana da saudade um acre cheiro quando o amado se separa de sua amante.

Não tudo é esplendoroso no oceano e onde roçam as asas do albatroz esconde a correnteza um triste engano:

-o da esfinge enigmista e mui feroz.

Onde foram os navios desventurados nesta lama virente de sargaços?

e o que foi dos mil sonhos estivados nos veleiros que viraram estilhaços?

Insepulto jaz o nobre encouraçado atingido pelos rápidos torpedos e seu sino que badala inda dourado narra mesto aos navegantes seus segredos.

Lá no fundo vagam sombras de afogados multidão que a luz no pélago perdeu:

-feito espectros vis e inconformados clamam silentes a piedade de Morfeu.

(60)

O EGITO, BERÇO DE HIPÁCIA

Deslumbrante foi a ciência dos Egípcios inventores da divina geometria que as pirâmides -admiráveis edifícios-

levantaram com requintes de ousadia.

Lá Pitágoras, sedento de saber, foi buscar solução pro seu problema

e dos sábios não foi fácil receber o famoso -do triângulo- teorema.

Os Hebreus que no Leste se gabavam de seus dez importantes fundamentos com certeza da Maat inda ignoravam os cinquenta notáveis mandamentos.

Aquenáton, renomado faraó, ab-rogou o vazio politeísmo dando ao povo um único xodó mensageiro dum novo misticismo.

Mas num dia de arrogante decadência, um prelado que bradava com falácia

tão rancor criou contra a sapiência que a seu mando foi queimada a culta Hipácia.

(61)

O TRÁGICO FIM DE POMPEIA E HERCULANO

Tranquilos pastores chegaram lá um dia com flautas e armentos, e os viticultores

aos numes fizeram oblatas de flores ignaros ainda da pérfida insídia.

Tão manso era o morro de nome Vesúvio, agreste seara de vinhas brilhantes:

-artistas, poetas e jovens amantes chamava -dos bosques- um plácido eflúvio.

Mui rica a cidade de nome Pompeia tão bela de templos, de praças e ornatos,

mas poucos dão fé aos obscuros boatos enquanto –debaixo- a lava serpeia.

Inquieto é da terra o contínuo tremor (as fontes não jorram mais água nenhuma):

-no cume do monte aparece uma bruma que inspira na turba um silente temor.

Se espalha o terror duma negra coluna que imenso ciclope as nuvens alcança:

-do céu vai descendo, qual trágica dança, de pedras a chuva, de cinzas a bruma.

Escapam os jovens das pernas esbeltas por sendas cobertas por metros de pomes;

em vão de seus pais eles clamam os nomes:

-tragados já foram por ondas revoltas!

Os bairros noturnos são infernos dantescos varridos sem fim pelos fluxos ardentes:

-os poucos que restam ‘tão mais do que cientes que as rezas não passam de atos grotescos.

Aplaca-se enfim a violenta erupção...

A amorfa mortalha encobre a cidade e aonde reinava a afabilidade é antro pra sempre do negro escorpião.

(62)

ADEUS, AMADA...

A lenta chuva cai no triste outono levando embora o eixo da esperança e o meu grito que silente não te alcança

cala-se no peito que já deseja o sono.

O meu curso vai ser o da gaivota que volta ao ninho casta e baleada:

-gastou sua vida e não obteve nada, tanto voou e no entanto ficou imota.

Do fado foi a promessa –acho que a fez- de ser eterna a etérea primavera, mas veio o fim da áspera jornada:

-inoportuno é semear mais uma vez...

aliás é tarde, a quietude espera

e doce o infinito se aproxima: -Adeus, amada!

(63)

VIAGEM

Toda viagem é um percurso ao avesso:

-a memória, o trem, a vida…

Efeito de moto em contínuo regresso -em trilhos impossíveis à saída- sou refém num comboio sem nexo

que átono badala: "Ou a liberdade ou a vida..."

Não é pavor o que o meu grito entala, mas desta caixa-preta o râncido reflexo no riso do menino que o apercebe e cala.

Toda viagem é um matrimônio baço que aos poucos desnuda o seu segredo:

-a partida nada mais que um arremedo, a meta o outro polo do cansaço.

(64)

CLINICAMENTE MORTO

Nessa mata de compacta solidão já me impede o meu gênio desditado

e no túnel que leva ao fim do fado desmorona o arcabouço da ilusão.

Na vil ânsia que precede o esquecimento minha alma se debate e busca o ar, e vislumbo na garrafa do "Ocean Bar"

o teu olhar propenso ao ferimento:

-é a tua jura que (agora se confessa) vindo fofa qual música de Orfeu maquiou do teu instinto o lado torto.

Eu, com licença, me retiro nessa deixando para ti -fútil troféu- meu coração clinicamente morto.

(65)

SONETO DO POETA ACAMADO

Dorme a garrafa de água mineral quase seca atrás do telefone que, em luz embaçada feita cone, jaz silencioso em cima dum jornal.

Passam lentas as horas sem descanso numa cama que de amor já foi febril, mas que agora –proscrita- só se abriu para abrigo dum corpo lasso e manso.

O remédio adocicado não abranda a aflição da garganta arrebentada, muito menos o pesar dum coração:

-no trajeto maçante que não anda o delírio divisa a doce fada e seu lábios de divina perdição.

(66)

AMOR TORPEDEADO

Quem julga as coisas apenas pelo prisma de seu contentamento ou por sofisma

afirma ser a vida um mar de rosas, desconhece as manobras perniciosas

que ribombam quais urros de tambores afundando um coração já machucado.

Mas bem sabe quem na flor não vê mais cores que um amor pode ser torpedeado

e não serve aviltar-se aos pés da amada se a equação não for balanceada:

-é melhor anestesiar sua alma e mente que engolir um placebo inconsequente.

E o que resta se não olhar-se num espelho perguntando a si mesmo: inda valho?

procurando no olho já sem brilho qual poder o deixou feito trebelho desgastado mais que ínfimo retalho.

(67)

GÉLIDO AMOR

Um mar gélido, sem moto, quase morto em luz fraca de inverno ilimitado;

um castelo sem porta, inacabado, numa angra que outrora foi bom porto.

Só uma ave em baixa revoada se dispersa qual mesto pensamento:

-lenta vai, sem rumo e sem lamento, para sempre embora da enseada.

Este mar que já fora radioso (quando o sol brilhava em teu sorriso)

foi aos poucos lacrado com um selo

congelando seu rangido lamentoso, e o amor, do qual restou só um friso,

foi esculpido em lágrimas de gelo.

(68)

CORAÇÃO CANSADO

Amei de longe, quase à revelia, tal qual Ulisses da Ítaca pedrosa que quanto mais se aproximava à esposa

um deus obscuro da praia o repelia.

De quantas ilhas já vi luzes no porto que na noite infundiam vaga esperança

mas que no curto espaço duma lança

sumiam, mudando o sonho em incipiente aborto.

Pare o destino de ser tetro inimigo e tenha dó dessa alma revoltada

que sem amor jamas se satisfaz

-o meu sobejo seja doce quanto um figo nos braços claros da amante cobiçada...

ou ponha o sono o seu carimbo de paz.

(69)

NEVE ETERNA

Quanta neve caiu naquele inverno…

O dia sístole estranha, o pôr-do-sol incerto. Meus olhos infância desalegre

balbuciando teu rosto sem sorriso -eclipses d'intenso amar materno.

Na vazante da estréia da matéria meus passos lutavam contra o piso;

um ressaibo triunfo primitivo os insetos se abrasando na lareira.

Aéreo aroma de alforrias antigas nossas salas fulgia com suas promessas (lembra?):

debalde fogos, tímpanos, bodas…

salas sem fora e asfixia de festas!

O sol -amnésia pura- já descora, o frio diz e aleija o meu caminho:

convém você na grama aqui bem perto, muita neve está caindo nesse inverno…

(70)

HOMENAGEM A UMA ESTRELA INOCENTE

Apaga-se lenta a estrela inocente aos anjos paliando a sua luz maltratada:

-suas lágrimas regam a terra mirrada doando seu amor à nova semente.

As fadas têm pena da doce estrelinha desfeita de tanto chorar sem conforto e mesmo bem cientes dum fado contorto transformam a estrela em linda andorinha.

(71)

O VENTO E A SUA MAGIA

Lá chega o vento e num instante de pequenino vira um gigante:

-não poupa nada, vira telhados, invade a casa por vidros quebrados.

Não tem respeito, tira os chapéus que logo espalha lá em cima nos céus;

ele adora fazer brincadeiras:

-da burguesia ignora as maneiras.

É uma criança com força de touro, mas pode ser um menino de ouro:

-leva sementes pra longe na terra e traz as chuvas que aguam a serra.

As aves temem seu pérfido efeito (os peixes porém não tem preconceito);

as nuvens gostam da valsa do vento enquanto o sertão aguarda sedento.

E quando explode com tanta energia o matuto o apelida de ventania, mas de repente se aplaca perplexo...

como um amante depois dum amplexo.

(72)

CHUVA DE LUZ NO METRÔ DE MILÃO

Km 313. Chove.

Km 299. Estou voltando sem Milão.

O ponto final –meu papel de esparrela preferido- se aproxima rapidamente. Ainda haveria tempo para alinhavar pseudo-versos estraçalhados mas não

consigo… a caneta não me obedece, a mão também não me obedece. Sinapses perfeitamente

amorais (deve ser por causa da chuva).

Km 265. O trem -mais vulgar que monótono- ameaça acelerar. Apesar de estar lotado ninguém existe de verdade, ninguém se olha ou me olha: as sombras são sombras de sombras, fingem de respirar.

Meus pensamentos soçobram como cegas enguias em seus opacos mares de pano. Decerto é quinino

que um pouco ainda os escora, quinino e laços hemostáticos (sonhos? não!).

Km 189. Galpões onívoros, sem meta, passam diante da janela-espelho. Ás vezes vem à tona um salgueiro fatigado, um relho sem raiz ou um tambor

gordo de mofo. Nem me dói reacender na memória a paisagem do poeta Horácio: grutas e fitas vermelhas. E mais ainda centúrias, grinaldas,

crianças famintas, mas vivas. Vivas! Porque incorrupta chuva pagã em serena noite sem pecado.

Km 141. Precoce um telégrafo ululando o fim do Aquário. Uma ninfa torturada pelo axioma de Savonarola. Címbalos -horror entre os etíopes-

a oxidar-se e estragar-se como esse atávico vagão rinha de promissórias e rins infectos.

Compulsivo banco da frente comungando paranoia nas glândulas dos fósseis suburbanos.

Km 87. Mais trilhos se perdem em labirintos de caspa e desamor enquanto as rodas de ferro deslizam sobre camadas de fétido creme dental

e capas rasgadas de obscenas revistas pornográficas. Barbeadores elétricos raspam

(73)

corruptos pelos de sovaco de quinhentos passageiros disfarçados de rubicundos missionários budistas.

Km 19. Enfim desmorona o relâmpago da luzente puttana maquiada com aragem de sol que hoje de manhã olhou para o lado de cá no metrô de Milão. Suas tornozeleiras de arame magnetizado (como ela sabia que adoro pernas ostentosas?) brilhavam otimismo na estação

subterrânea enquanto histéricos cirros de querosene blasfemavam o céu. Instinto de entregar miocárdio obscuro, mas a imagem

saiu sem peso do metrô e eu cansado...

cansado… cansado...

Km 7. Sempre afirmo que ando desarmado, mas é claro que

minto. É claro… É?

Km 0. Chegamos (uma viagem verdadeira nunca começa e nunca termina).

A chuva não para...

(74)

AOS ANJOS CONFESSO O MEU MEDO DE AMAR

Entre crateras e cinzas de cometa, nem te alenta a vaga estrela-d’alva;

e nessa plaga assim tão seca e calva alguém olha para ti, aqui, poeta?

-Espreitam-me as pedras, os seixos no chão!

São olhos já cegos, retinas secretas de rochas partidas, gastas, discretas:-

entreguem ao tempo a tua solidão…

* * *

No vale mais baixo do findo planeta a luz chega exausta, sem voz, ofegante;

o sol sempre altivo, embora distante:

quais raios te aquentam? Me conte, poeta…

-Me esquenta a ternura de estrelas menores!

São luzes humildes na espera que some, irmãs na tristura que o pranto carcome:

apaguem tua mágoa n’areia sem cores…

* * *

E se o tolo, de seu tino um descarte, até no vácuo algum prazer se inventa,

um poeta no degredo de Marte como se cuida se em sua alma venta?

-No ar tão quedo, sem lágrimas a destilar, no surdo espaço de cromo e de ouro pressente um enterro sem eco de choro:

aos anjos confessa o seu medo de amar!

Referências

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