D e s a f io s d a e d u c a ç ã o n a c o n t e m p o r a n e id a d e :
r e f le x õ e s d e u m p e s q u is a d o r * - En t r e v is t a c o m B e r n a r d
C h a r lo t
Entrevista concedida a
Teresa Cristina Rego
Lucia Emilia Nuevo Barreto Bruno
Universidade de São PauloEm ent revist a concedida à revist a Educação e Pesquisa em julho de 2009, o f rancês Bernard Charlot , radicado no Brasil desde o início dos anos 2000, ref let e sobre sua f ormação acadêmica, sua t rajet ória int elect ual e, principalment e, sobre alguns problemas relevant es da educação at ual (da escola básica e do ensino su-perior). Conhecido por seus import ant es est udos sobre a com-p reen são d a r el ação q u e as com-p esso as m an t êm co m o sab er, Charlot demonst ra nest e t ext o seu grande compromisso com a prát i ca edu cat i va e com a at i vi dade de pesqu isa. Nasci do em 1944 em Paris, Charlot é graduado em Filosof ia e dout or pela Universidade de Paris 10. Sua experiência como docent e é signi-f icat iva: signi-f oi prosigni-f essor da Universidade de Túnis, na Tunísia, e de vol t a à Fran ça, da Écol e Norm al e (In st i t u t o de Form ação de Prof essores), em Le M ans, e da Universidade Paris 8. Nessa ins-t iins-t uição, onde ains-t uou por 16 anos, idealizou e f undou a ESCOL (Educação, Socialização e Comunidades Locais), equipe de pes-quisa de grande projeção int ernacional, volt ada à invest igação das relações com os saberes (especialment e com o objet ivo de esclarecer de que f orma os alunos de dif erent es classes sociais se apropri am del es) e de ou t ros t emas cru ci ais rel aci on ados à educação como violência na escola, t errit orialização das polít i-cas educacionais e globalização. No Brasil, Charlot já t rabalhou como prof essor- visit ant e na Universidade Federal de M at o Grosso. Desde 2006, é prof essor visi t an t e n a Un i versi dade Federal de Sergipe. At ualment e é t ambém prof essor af iliado da Universidade do Port o (Port u gal ). É au t or de u m a séri e de l i vros, en t re os quais: A mist if icação pedagógica: realidades sociais e processos ideológicos na t eoria da educação. Rio de Janeiro: Zahar Edit ores, 1979; Da relação com o saber: element os para uma t eoria. Trad. Bruno M agne. Port o Alegre: Art med, 2000; Os jovens e o saber: perspect ivas mundiais. Trad. Fát ima M urad. Port o Alegre: Art med, 2 0 01 ; Rel ação co m o sab er, f o rm ação d o s p ro f esso res e g l o b al i zação: qu est ões para a edu cação hoj e. Port o Al egre: Art med, 2005; e Jovens de Sergipe: como são eles, como vivem, o que pensam. Aracaju: Governo de Sergipe, 2006.
Correspondência: Bernard Charlot
Núcleo de Pós- Graduação em Ensi-no de Ciências e Matemática - UFSe Av. Marechal Rondon, s/ n 49100- 000 - São Cristóvão – SE
e - m a i l :
bernard.charlot@terra.com.br
C h a lle n g e s o f e d u c a t io n in c o n t e m p o r a n e it y :
t h o u g h t s o f a r e s e a r c h e r * - A n in t e r v ie w w it h B e r n a r d
C h a r lo t
Conducted by
Teresa Cristina Rego
Lucia Emilia Nuevo Barreto Bruno
Faculdade de Educação - USP
Contact: Bernard Charlot
Núcleo de Pós- Graduação em Ensino de Ciências e Matemática - UFSe Av. Marechal Rondon, s/ n 49100- 000 - São Cristóvão – SE e-mail: bernard.charlot@terra.com.br
During an interview given to Educação e Pesquisa magazine in July 2009, Bernard Charlot , a French int ellect ual who has lived in Brazil since t he early 2000s, ref lect s on his academic background, his int ellect ual it inerary and especially on some current educat ion problems (f rom element ary school t o higher educat ion). Known f or his i m port an t st u di es on t he rel at i on shi p peopl e have w i t h knowledge, Charlot shows in t his t ext his great commit ment t o t eaching pract ice and t o research. Born in 1944 in Paris, Charlot graduat ed in philosophy and holds a Ph. D. in philosophy f rom t he Universit y of Paris 10. He has large t eaching experience: he was a prof essor at t he Universit y of Tunis, in Tunisia and, back in France, at Ecole Normale (an inst it ut e t hat licenses t eachers), in Le M ans, and at the University of Paris 8. In this institution, where he worked f or 16 years, he con cei ved an d f ou n ded ESCOL (Edu cat i on , Socializat ion and Local Communit ies), a research t eam known worldwide, which f ocuses on invest igat ing t he relat ionships wit h school disciplines (especially aiming at clarifying how students from dif f erent social classes gain knowledge) and ot her crucial t hemes related to education, such as violence at school, territorialization of educat ion policies, and globalizat ion. In Brazil, Charlot worked as visit ing prof essor at t he Federal Universit y of M at o Grosso and since 2006, as a visit ing prof essor at t he Federal Universit y of Sergipe. He is current ly working as an adjunct prof essor at t he Un iversit y of Oport o (Port u gal). He has w rit t en several books, including A mist if icação pedagógica: realidades sociais e processos ideológicos na t eoria da educação. Rio de Janeiro: Zahar Edit ores, 1979; Da relação com o saber: element os para uma t eoria. Trad. Bruno M agne. Port o Alegre: Art med, 2000; Os jovens e o saber: perspect ivas mundiais. Trad. Fát ima M urad. Port o Alegre: Art med, 2001; Rel ação com o saber, f orm ação dos prof essores e globalização: questões para a educação hoje. Porto Alegre: Artmed, 2005; and Jovens de Sergipe. Como são eles, como vivem, o que pensam. Aracaju: Governo de Sergipe, 2006.
C o n t e - n o s u m p o u c o d e s u a h is t ó r ia d e v id a , s u a in f â n c ia e s u a s o r ig e n s f a m ilia r e s .
Nasci em 15 de set embro de 1944, que era o dia do início do ano let ivo na França, o que já é simbólico. M eus pais t iveram t rês f ilhos e uma f ilha. Sou o segundo f ilho. Nós morávamos em Paris, cidade em que meus pais nasceram.
O m eu p ai n u n ca t erm i n o u o en si n o primário. Foi operário em vários set ores: pin-t ura de prédios, asf alpin-t o das ruas epin-t c. Foi pri-sioneiro na Alemanha e f ugiu depois de dois anos. Depois da guerra, ent rou na polícia por-que ela dava prioridade de emprego aos prisi-oneiros que haviam escapado.
Sociologicament e sou dessa f amília que passa da camada operária para a da pequena classe média, com uma mãe que f oi boa aluna e que acabou levando t odos os f ilhos para cima. Por ser boa aluna, ela t erminou a escola cedo, com doze anos, e ao invés de ir t rabalhar numa f ábrica, ent rou num escrit ório. Não f oi f ácil para ela na época da guerra com um f ilho que aca-bara de nascer. Ela t eve de cuidar dos f ilhos e cont inuar a t rabalhar. Foi uma vida dif ícil.
A minha mãe t eve um papel preponde-rant e na minha f ormação. A alt a expect at iva deposit ada no projet o escolar era mais dirigida a mim porque eu era considerado “ o int elect u-al da f amília”. No ent ant o, o meu irmão mais velho ent rou no comércio e agora ele é que é rico. O t erceiro f ilho se t ornou f isiot erapeut a. E a minha irmã, embora não t enha prosseguido seus est u dos n em f icado rica, t em u ma vida boa.
Q u a is s ã o s u a s m e m ó r ia s d e e s c o la : q u a n d o e n t r o u n a e s c o la , q u a l o p e r f il d a s e s c o la s c u r s a d a s e o e s t ilo p e d a g ó g ic o a q u e e s t e v e s u b m e t id o ?
Fu i u m pou co à escol a mat ern al , mas não sei com quant os anos. Tenho poucas lem-branças, acho que não gost ei muit o. Depois f ui para uma escola num dist rit o popular do les-t e de Paris. Enles-t rei na primeira série e, depois de duas semanas, colocaram- me na segunda
série, porqu e já t in ha sido alf abet izado pela m i n ha m ãe. Não sei se isso f oi bom porqu e sempre f ui o menor da t urma, o que não f oi f ácil. Ainda havia classif icação e prêmios. Fui sem pre o pri m ei ro ou o segu n do da t u rm a, mas não era um t ípico CDF, porque sempre t ive am i gos en t re os ú l t i m os da t u rm a. Era bom aluno, mas era perdoado pelos amigos. Eu vi-via os dois mundos. Fui um aluno um pouco complicado para os prof essores: muit as vezes o mel hor da t u rma, mas part i ci pan t e de u m grupo que gost ava de rir e, às vezes, resist ia à escola. M ais t arde, isso me ajudou a ent ender coisas nesses dois mundos.
Fiz est udos num colégio que era mais t écnico- comercial, com ensino moderno, sem lat im nem grego. Eu gost ava muit o de f rancês e h i st ó r i a, m as t am b ém d e m at em át i ca. E quando cheguei ao penúlt imo ano do ensino médio, por meio da lit erat ura, t ive vont ade de passar para a f ilosof ia. Teria de mudar de co-l égi o, porqu e n ão t i n ha f i co-l osof i a n o m eu . A minha mãe, que sempre t eve sonhos ambicio-sos, f oi ver o diret or do Liceu Henri IV, uma das duas melhores escolas de Paris, sempre pú-blicas. O diret or era prof essor de mat emát ica e, com o eu t i n ha boas n ot as, el e m e perm i t i u ent rar. Nessa nova escola, no últ imo ano do ensino médio, no Concours Général, que era uma prova para os melhores alunos de t oda a França, ganhei o prêmio de hist ória.
Normale Supérieure, aquela em que se podia ent rar sem lat im nem grego. Queria ser prof es-sor de hist ória. No últ imo ano do ensino mé-dio, minha mãe f oi ver o prof essor que orien-t ava a orien-t urma e pergunorien-t ou- lhe o que eu deve-ria f azer para ser prof essor de hist ódeve-ria. Ele era prof essor de f ilosof ia e eu era o melhor aluno de f ilosof ia da t urma. Ele recomendou que eu m e t orn asse prof essor de f i l osof i a e n ão de hist ória. Nos est udos de f ilosof ia, t inha provas de lat im e grego, mas ele disse: “ é só apren-der”. Foi assim que aprendi, na École Normale Supérieur, o lat im com 20 anos e o grego com 21, que passei no concurso da Agregação e me qu al i f i qu ei com o prof essor de f i l osof i a, u m pou co por acaso. M as, an t es de com eçar a ensinar, devia prest ar o serviço milit ar.
E s e u s it in e r á r io s c o m o in t e le c t u a l e m ilit a n t e ? N a g r a d u a ç ã o , v o c ê c u r s o u f ilo s o f ia e s u a s p r im e ir a s p e s q u is a s s ã o r e la c io n a d a s à e p is t e m o lo g ia d a s c iê n c ia s . V o c ê c o m e ç o u a s e in t e r e s s a r p e lo s t e m a s v o lt a d o s à e d u c a ç ã o a o s 2 5 a n o s , g r a ç a s a u m t r a b a lh o d e f o r m a ç ã o d o c e n t e q u e v o c ê d e s e n v o lv e u n a T u n ís ia . É is s o m e s m o ?
Depois dos est udos, em vez de ir para o quart el, f iz a cooperação cult ural na Universi-dade de Túnis. Nomearam- me para o Depart a-m en t o de Ci ên ci as da Edu cação, ea-m bora eu nunca t ivesse est udado pedagogia. Como t o-dos os f ilósof os, eu t in ha bast an t e desprezo pela pedagogia. Tive que ensinar f ilosof ia da educação, psicologia e coisas assim sem saber nada de educação. Comecei f alando do Plat ão e, depois de algumas semanas de Plat ão, um est udant e me quest ionou sobre esse cont eúdo. M uit os dos alunos t inham 30 anos e eu era u m dos mais n ovos da t u rma. Era 1969, est ava com 25, 26 anos. Expliquei o que eu sabia f azer: analisar conceit os. Eles conheciam a real i dade da escol a n a Tu n ísi a, e eu , a da escola f rancesa por t er sido aluno. Decidimos est u d ar j u n t o s, co m u m a p art e d e t eo ri a e out ra part e de t rabalho ligado a sit uações
re-ai s. Eu l i a o s l i vro s cl ássi co s – Frei n et , Claparède, Dewey, M ont essori, M akarenko et c. – à n oi t e e n o f i m de sem an a. El es t razi am casos da escola, do t ipo: “ Enviei um aluno para procurar giz no escrit ório do diret or. Ele en-t rou, nem conseguiu f alar e recebeu uma bo-f et ada de imediat o. O que podemos bo-f azer?”
Ent ão, t rabalhávamos assim ent re os li-vros e a realidade. Nessa época, já const at ava o f osso enorme exist ent e ent re ambos. Ao invés de f icar apenas dois anos na Tunísia, f iquei qua-t ro. Assim f iz a minha “ licenciaqua-t ura” em peda-gogia. Fiz um esf orço para me adapt ar ao país. Lá, nasceu meu primeiro f ilho, cujo segundo n ome é Kari m, u m n ome árabe. Est u dei seis horas de árabe por semana durant e um ano. Saber ler árabe t ambém f oi út il depois na Uni-versidade de Paris 8, onde est udavam muit os imigrant es.
Quando volt ei da Tunísia, t rabalhei numa Écol e Norm al e por 14 an os. Lá const at ei o m esm o probl em a qu e j á havi a percebi do n a Tunísia: a dif erença ent re a realidade e a t eo-ria era enorme. Comecei a escrever A M ist if ica-ção Pedagógica, não para dizer que a pedago-gia é uma mist if icação, mas para dizer que exis-t e um discurso pedagógico – seja o exis-t radicional, seja o chamado const rut ivist a – que é uma mis-t if icação porque não f ala da simis-t uação real.
Com um pouco mais de 30 anos, para-l epara-l amen t e ao t rabapara-l ho como prof essor, at u ei numa revist a semanal muit o à esquerda como jornalist a volunt ário, especializado em educa-ção. Na ocasião, recebi a propost a de ser con-t racon-t ado como jorn aliscon-t a prof ission al – o con-t ra-balho com qu e son hara qu an do adolescen t e. M as deci di ser pesqu isador por du as razões. Eu já t in ha t rês f ilhos, e f u n cion ário pú blico era u ma prof issão mais segu ra do qu e jorn a-list a. Além disso, como jorn aa-list a, f azia per-gu n t as para as qu ais, com o pesqu isador, eu t inha respost as. E percebi que pref eria ser en-t revisen-t ado a ser en en-t revisen-t ador.
t empo das Escolas Normais est ava para t ermi-n ar. Em 1985, def eermi-n di ermi-n a Fraermi-n ça u m a t ese sobre obras já publicadas: t rês livros e 42 ar-t igos, mais de mil páginas. Prear-t endia def ender u m a t ese d e d o u t o rad o n o rm al , m as Gi l l es Ferry, meu “ orient ador” , me propôs uma Thèse d’Ét at (que seria, no Brasil, um conjunt o: dou-t orado mais livre- docên cia). Tive qu e redigir em 15 dias, em pleno início do ano let ivo, uma not a de pesquisa sobre t udo o que havia es-cri t o. Eu escrevi a à n oi t e e a m i n ha esposa levava para alguém digit ar. Nem t ive t empo de reler. Era t ão ingênuo que f iz 59 páginas em espaço simples, quando geralment e se f az com espaço maior para parecer mais sério e prof un-do! Depois, com essa t ese, ent rei diret o como prof essor t it ular em Paris 8, no primeiro pedi-do, em 1987. Isso f oi import ant e porque não t i ve qu e sof rer, esperar e passar a m ão n as cost as dos “ grandes prof essores”. Assim, est an-do no t opo da hierarquia, pude viver f ora da hierarquia e mant er a minha liberdade de pen-sament o.
O poder nunca me seduziu. Já t ive po-der. Em Paris 8, dirigi a graduação e a pós- gra-duação. Pediram duas vezes para me candidat ar a reit or, mas não quis. Fui president e da Asso-ciação dos Pesquisadores da Educação, o equi-valent e à ANPED no Brasil, por seis anos, du-rant e dois mandat os. M as nunca aceit ei ent rar no Conselho Universit ário Nacional, que avalia os colegas para as carreiras. Não gost o de exer-cer o poder, porque poder é responsabilidade e, além disso, sint o- me um pouco ridículo.
M u it o p r o v a v e lm e n t e , s e u in t e r e s s e p e la e d u c a ç ã o t a m b é m t in h a r e la ç ã o c o m o p e r ío d o p o lít ic o v iv id o n a F r a n ç a n a q u e le m o m e n t o h is t ó r ic o . V o c ê c o m e ç o u a d a r a u la s u m a n o d e p o is d e m a io d e 19 6 8 . Q u e t ip o d e j o v e m v o c ê f o i? E r a e n g a j a d o p o lit ic a m e n t e ?
Sempre f ui de esquerda, inclusive por-que os meus pais eram de espor-querda, embora nunca t enham se f iliado a um part ido polít i-co. Sempre ouvi na minha juvent ude que eu
t eria sucesso e que depois esqueceria as mi-nhas origens. Isso f oi um desaf io para mim.
Em 1968, t erminei o concurso da Agre-g ação e f u i d o rm i r, p o rq u e o co n cu rso era muit o dif ícil. No dia seguint e, ouvi no rádio qu e t i n ha com eçado a Revol u ção. Part i ci pei d o s even t o s, cl aro . Nu n ca erg u i b arri cad as porque não é o meu est ilo, mas part icipei de reuniões, ocupei a Sorbonne, dist ribuí panf le-t os na porle-t a de usinas ele-t c.
Fu i o t i po de est u dan t e popu l ar qu e pert en ce à esqu erda qu ase por ori gem , m as nunca ent rei em part ido polít ico, porque rapi-dament e ent endi que, em part ido polít ico, não se t em liberdade para pensar. Ia ser expulso.
Qu an do t i ve de dei xar a Tu n ísi a, n ão t inha cont at os universit ários, não pert encia a nenhuma panela universit ária. Pedi uma vaga para uma universidade da Áf rica negra e obt i-ve uma no Togo. Só que ela sumiu de repen-t e das lisrepen-t as of iciais. Fui sindicalisrepen-t a na Tunísia, do Si n di cat o do Ensi n o Su peri or, e u ma vez ocupamos a embaixada da França lá. A Fran-ça obviament e não queria enviar para Áf rica um prof essor universit ário desses!
Vol t ei para a Fran ça, para u m a Écol e Normale. Lá, f iz sindicalismo de minoria para mudar t odas as prát icas, inclusive as sindicais. Eu t inha esse t ipo de milit ância, sempre des-conf iando dos part idos.
M ais t arde, já na Universidade de Paris 8, f ui vereador da cidade de Saint - Denis, na perif eria de Paris. Saint - Denis é uma das cida-des mais populares da França, com um passa-do operário e que t em f ama de violent a. Por sinal, f oi lá que f iz a maioria das minhas pes-quisas sobre a relação com o saber. Na Fran-ça, o vereador t em uma at ividade sociopolít ica não remunerada e é eleit o numa list a com um programa. Apresent ei- me numa list a com um pref eit o comunist a, com socialist as, ecologis-t as e pessoas sem parecologis-t ido, como eu.
inst it ucionalizado.
Ach o q u e so u i n t el ect u al n o sen t i d o f rancês: pesquisador que part icipa dos debat es sociais, dos moviment os sociais, sem f icar preso num part ido polít ico.
S e u p r im e ir o liv r o la n ç a d o n o B r a s il ( A m is t if ic a ç ã o p e d a g ó g ic a , E d . Z a h a r , e s g o t a d o ) t e v e g r a n d e r e p e r c u s s ã o n o s a n o s 8 0 . N a q u e le t r a b a lh o , v o c ê a p o n t a a s ig n if ic a t iv a d e f a s a g e m e n t r e o
d is c u r s o t e ó r ic o p e d a g ó g ic o e a p r á t ic a , a r e a lid a d e s o c ia l. Q u a l é a s a íd a p a r a s u p e r a r e s s e d is t a n c ia m e n t o ?
Falemos do Brasil. O prof essor t em prá-t icas basicamenprá-t e prá-t radicionais porque a esco-la é f eit a para t er prát icas t radicionais: t empo e espaço f ragment ados, f ormas de dist ribuir os alunos de acordo com a sua idade e, sobret u-do, avaliação individual que gera uma hierar-qu ia. Só hierar-qu e o prof essor brasileiro t em u ma especif icidade: ele sabe que deve dizer que é const rut ivist a para não t er problemas.
O prof essor universit ário, sem levar em cont a as condições em que os prof essores do ensino básico t rabalham, explica que eles de-vem ser const ru t ivist as. E qu an do est es per-gunt am como f azer, o prof essor universit ário brasileiro f az como o seu colega f rancês: ele diz que não vai dar receit as. Ele não dá recei-t as porque ele não as recei-t em. Se as recei-t ivesse, da-ria. Se soubesse como f azer, dida-ria. Acho que t emos que sair desse impasse. M uit as escolas brasileiras est ão em sit uação mat erial que é do sécu l o XI X. Fal ar p ar a o p ro f esso r d e const rut ivismo é complet ament e f ora da rea-lidade. Sabemos que, em muit as escolas, a di-f iculdade principal é com o prodi-f essor que não vai dar au la. Na Amazôn ia, por exemplo, há t odo o problema da chuva, alunos que andam duas horas at é a escola e não t em prof essor. Não est ou crit icando ninguém, sei que é dif í-ci l , m ais di f íí-ci l aqu i do qu e n a Fran ça, m as essa é a realidade. Se quisermos mudar a es-cola brasileira, t eremos que t rabalhar a realida-de. El a t em qu e ser t omada como pon t o de part ida.
N u m d e s e u s a r t ig o s , v o c ê a f ir m a p r e f e r ir a ‘ c r is e ’ d e u m a e s c o la d e m o c r a t iz a d a à p a z d e u m a e s c o la e lit is t a . C o n s id e r a n d o o q u e v o c ê a c a b a d e d iz e r e t e n d o e m v is t a a s d iv e r s a s d if ic u ld a d e s e o s m ú lt ip lo s p r o b le m a s e n f r e n t a d o s h o je p e la e s c o la , o q u e v o c ê s u g e r e p a r a o s e d u c a d o r e s e p e s q u is a d o r e s q u a n t o à f o r m a d e e n f r e n t á - lo s ?
Decert o, não podemos dar receit as, ist o é, m o d o s d e f azer q u e sem p re f u n ci o n am , qualquer que seja o cont ext o. M as podemos e devemos of erecer t écnicas de t rabalho. Senão, explicamos uma pedagogia ideal para o prof es-sor “ normal” , que t em alunos “ normais” , em condições de t rabalho que muit as vezes nem são normais e culpamos o prof essor, o que o l eva a pensar qu e é i n capaz, qu e n ão sabe como enf rent ar suas dif iculdades.
Devemos t rabalhar com os prof essores “ normais” e, desse pont o de vist a, desconf io dos discursos sobre a escola ideal. Há exemplos de escolas, como a Escola da Pont e, de Port u-gal, que impressionam muit o. Claro que essa escol a é m u i t o i n t eressan t e, f ora da n orm a, mas esse é o problema: ela est á f ora da nor-ma. Ent re os prof essores muit o emocionados por esse exemplo, quant os por cent o querem ent rar numa avent ura dessas? E qual a f unção real desses exemplos heróicos? Ao dá- los, di-zemos aos prof essores qu e se pode mu dar a escola brasileira agora. É verdade, mas, para t ant o, t em que t er heróis. No Brasil, há cerca de 1.800.000 prof essores. Não são 1.800.000 heróis. São t rabalhadores que querem f azer um bom t rabalho e não podemos exigir que sejam t odos sant os, milit ant es, heróis. No Brasil, nós – digo nós porque vivo aqui agora e compar-t ilho suas preocupações e alegrias – devemos t rabalhar mais com a realidade da escola bra-sileira e não com o que deve ser uma escola ideal.
só no Brasil. M as a especif icidade dest e país é que ele deve resolver t odos os problemas ao mesmo t empo e em pouco t empo. A França e ou t ros países da Eu ropa t i veram u m sécu l o para a const it uição da escola primária e t ive-ram 20 anos para const ruir a segunda part e do ensi n o f u n dam en t al . No Brasi l , t em os qu e f azer t udo ao mesmo t empo: t erminar o ensi-no f undament al, que f oi est at ist icament e re-solvido, mas que sabemos que ainda t em pro-b l em as; t em o s q u e reso l ver o p ro pro-b l em a d o Ensino M édio, que é o mais grave nest e mo-ment o, porque não f oi suf icient emo-ment e ampli-ado, const it uindo um gargalo ent re o ensino f undament al e o ensino superior. Além disso, é necessário organizar uma universidade para a gl obal i zação. Aqu i há escol as dos sécu l os XXI, XX e XIX. Às vezes, num mesmo bairro! Isso signif ica que o discurso f ora da realidade t em consequ ên ci as m ais graves n o Brasi l do qu e n a Fran ça, já qu e lá a dist ân cia en t re a realidade e o discurso é menor do que aqui. Não é culpa de ninguém – aliás, não gost o do discurso da culpa – mas t emos de resolver es-ses problemas.
V o c ê f o i u m d o s p r im e ir o s a u t o r e s n o c a m p o d a e d u c a ç ã o a c h a m a r a a t e n ç ã o p a r a a r e la ç ã o q u e o s s u j e it o s , e m p a r t ic u la r o s e s t u d a n t e s m a is p o b r e s , e s t a b e le c e m c o m o s a b e r , c o m a q u ilo q u e é e n s in a d o n a e s c o la . V o c ê a c h a q u e e s s e t e m a a in d a p r e c is a s e r m a is b e m c o m p r e e n d id o ? Q u a is n o v a s p e r g u n t a s e s s a t e m á t ic a e n s e j a ?
Vo u t en t ar resp o n d er d a f o rm a m ais si m p l es p o ssível . Só ap ren d e q u em est u d a, quem t em uma at ividade int elect ual. M as só f aço um esf orço int elect ual se a at ividade t em sen t i do para m i m e m e t raz u m a f orm a de prazer. Port an t o, a qu est ão da at ividade, do sent ido e do prazer é cent ral. Ir à escola, es-t u dar (ou recu sar- se a eses-t u dar), apren der e com preen der, sej a n a escol a sej a em ou t ros lugares: qual sent ido isso t em para os jovens, em part icular nos meios populares? Em out ras
palavras: qual a relação dos alunos com a es-cola e com o saber?
Essa abordagem, essa f orma de quest io-n ar, i m pl i ca u m a ru pt u ra com m u i t os quest ionament os ant eriores e isso é o que impor-t a, animpor-t es de impor-t udo. M as é preciso impor-t er cuidado: relação com o saber não é uma respost a, é uma f orma de pergunt ar. Na França, já ouvi prof es-sores dizendo: ele f racassa porque não t em re-lação com o saber. É um erro: cada um t em uma relação com o saber, inclusive quando não gos-t a de esgos-t udar. É, ainda, uma cagos-t ásgos-t rof e ideológi-ca, uma vez que, ao dizer que alguém não t em uma relação com o saber, reint roduz- se a análi-se em t ermos de “ carências” , just ament e aquela que a noção de relação com o saber permit e af ast ar. O problema não é dizer se a relação do aluno com o saber é “ boa” ou não, mas, sim, ent ender as cont radições que o aluno enf rent a n a escola. Ele vive f ora da escola f ormas de aprender que são muit o dif erent es daquelas que o êxit o escolar requer. Essas cont radições é que se deve t ent ar ent ender. Por isso, insist o muit o sobre a het erogeneidade das f ormas de aprender. Há coisas que só se pode aprender na escola e, port ant o, não se deve menosprezar est a inst it ui-ção. M as t ambém se aprendem muit as coisas import ant es f ora da escola.
sociolo-gia, isso leva a reavaliar a quest ão do sujeit o, que a sociologia deixou de lado para se cons-t icons-t uir. Na pesquisa em educação, devemos con-si d erar o al u n o co m o ser h u m an o indissociavelment e social e singular– e t alvez essa seja a especif icidade da disciplina Educa-ção.
V o c ê c r it ic a u m a t e n d ê n c ia d a s o c io lo g ia a n ã o c o n s id e r a r o s in g u la r e a p o n t a t a m b é m o r e d u c io n is m o d a p s ic o lo g ia d e n ã o c o n s id e r a r o c o le t iv o , o p lu r a l, o s o c ia l. P a r a v o c ê , a q u e s t ã o d o s u j e it o t e m p a r t ic u la r im p o r t â n c ia . E s s a é a r a z ã o d e s e u d iá lo g o c o m o s t r a b a lh o s d e L a c a n e , m a is r e c e n t e m e n t e , c o m o s d e V y g o t s k y ?
En con t rei a psi can ál i se n a década de 1960, bem ant es de Vygot sky, aut or que só che-gou à França nos anos 1980. E a perspect iva da psicologia hist órico- cult ural, encont rei- a no Bra-sil.
De i m edi at o con cordei com Vygot sky, um dos poucos na educação que é realment e marxist a. A perspect iva hist órico- cult ural me int eressa e, para mim, é quase evident e que o homem se const rói int egrando uma part e do que f oi criado pela espécie humana. De cert a f orm a, é a própri a def i n i ção da perspect i va hist órico- cult ural. M as preciso t ambém da psi-canálise, que Vygot sky não aceit ou int egrar à sua perspect iva, conf orme o marxismo da épo-ca. Com ef eit o, o que escrevo supõe a noção de desejo: por nascer incomplet o, o ser huma-no vive procurando o que lhe permit iria com-plet ar- se. É o que Lacan chama de objet o “ pe-qu en o a” , ape-qu el e obj et o pe-qu e n u n ca se pode at ingir, já que nenhum objet o pode f inalizar o ser humano, seja ele amor, dinheiro ou poder. Por con di ção, o ser hu m an o é e perm an ece i n com pl et o, à procu ra de al gu m a coi sa qu e nunca consegue sat isf azê- lo. Ademais, por nas-cer in complet o, o homem en t ra de imediat o em relações com out ros seres humanos. Como dizia Descart es, somos levés à bras, ist o é, car-regados no colo. Depois de nascer, o
bebeznho não t ransf orma a nat ureza. Na perspect i-va marxist a clássica, é a espécie humana que t ransf orma a nat ureza. O que o bebezinho deve f azer? Seduzir os seus pais para t er o que ele quer, para sat isf azer os seus desejos. Qual dis-ciplina me ajuda a ent ender essa problemát i-ca do desejo e das relações? A psii-canálise, em-bora eu não pret enda ser um especialist a nes-sa área.
Port ant o, preciso de Vygot sky e de Lacan. Preciso daquele para ent ender que o psiquismo humano se const rói no decorrer da hist ória e qu al é a rel ação en t re a hist óri a da espéci e humana e a do sujeit o. Preciso dele, ainda, para compreender que o sujeit o não é um conjunt o de pulsões biológicas que, a seguir, socializa- se: ele é de imediat o social. M as preciso da psica-nálise, em part icular de Lacan, para ent ender quais são as raízes do desejo de aprender e sa-ber. Por sinal, Lacan f oi o primeiro que ut ilizou a expressão “ relação com o saber”. Para apren-der, devo me mobilizar numa at ividade int elec-t ual. Qual é o moelec-t or dessa mobilização? Um desejo. M as como se pode t er desejo por um t eorem a de m at em át i ca ou u m a f órm u l a de química? Essa é uma quest ão muit o “ concret a” : um ensino é int eressant e quando um cont eúdo int elect ual encont ra um desejo prof undo. Aliás, Vygot sky percebe esse probl em a qu an do el e dist ingue e t ent a art icular signif icado hist órico-cult ural e sent ido pessoal, dist inção essa que f oi t rabalhada por Leont iev.
Por f i m , n ão posso esqu ecer qu e esse su j ei t o deve m an t er o seu corpo bi ol ógi co, sust ent ar- se, t rabalhar e que, assim, ele ent ra em rel açõ es d e d o m i n ação e exp l o ração . A psican álise sabe qu e o su jeit o é desejo, mas que t ambém é est rut urado por normas, o que a levou à noção de superego. M as a sociolo-gia da psicanálise é t ão sumária quant o a psi-cologia dos sociólogos. A noção do superego, de normas sociais, não f oi t rabalhada pela psi-canálise, como se t al noção f osse clara.
in d iv íd u o e s o c ie d a d e , s u j e it o e in s t it u iç õ e s s o c ia is , e n t e n d e n d o a s in s t it u iç õ e s n ã o n o s e n t id o n o r m a t iv o , m a s c o m o t o d a s a s r e la ç õ e s q u e
d e f in e m u m p a d r ã o p a r a s e r e p r o d u z ir e s e in s t it u c io n a liz a r . E s s a r e la ç ã o , c la r o , é c o n t r a d it ó r ia . M a s e m q u e t e r m o s v o c ê e n t e n d e q u e e s s a c o n t r a d iç ã o s e
c o lo c a ?
Não sei se sou capaz de respon der a essa quest ão. Vou f azer o que se f az quando n ão se sabe respon der: respon de- se a ou t ra. Quero dizer duas coisas, uma part indo da so-ciologia e out ra, da psicanálise.
Hoje, a quest ão do sujeit o é import an-t e para a sociologia. É uma quesan-t ão polían-t ica. Em primeiro lugar, é muit o int eressant e anal isar a soci edade at u aanal como f on t e de sof ri -ment o e abandono do sujeit o. Nunca ant es o i n di vídu o f oi t ão l i vre e, ao m esm o t em po, n u n ca o su j ei t o f o i t ão ab an d o n ad o co m o hoj e. Isso val e t am bém qu an do se t rat a dos jovens: a nossa sociedade gost a de juvent ude, mas n ão gost a dos jovens; ela valoriza t u do qu e é n ovo, m as n ão dei xa espaços para os jovens.
O p r ó p r i o Bo u rd i eu en co n t ro u essa quest ão do sujeit o que sof re: ant es de publi-car A m iséri a do m u n do , escreveu , sobre o mesmo t ema, um art igo que se chamava O so-f ri m en t o. M as n ão dava para u m soci ól ogo f alar do sujeit o e Bourdieu propôs uma expli-cação sociológica do f enômeno: quando exis-t e uma def asagem enexis-t re o habiexis-t us, isexis-t o é, as disposições psíquicas socialment e est rut uradas, por um lado e, por out ro, as condições de f un-cionament o desse habit us, o sujeit o sof re. A explicação é int eressant e, mas, a meu ver, não é suf icient e. Parece- me dif ícil f alar do sujeit o sem levar em consideração o que nos ensina a psicologia e, mais ainda, a psicanálise.
Em segundo lugar, e de f orma mais geral, a sociologia deve levar em cont a aquele f enôme-no cont emporâneo que chamo de individuação da vida e das relações. Não se deve conf undir a individuação – processo psicológico e social – e
o individualismo – cat egorização ét ica e polít i-ca. Por exemplo, na França, o grande movimen-t o social da década de 1980 f oi conmovimen-t ra o racis-mo e f oi liderado por uma organização cujo nome era Touche pas à mon pot e (Não agrida o meu amigo). Não é individualismo, já que se trata de recusa do racismo. M as essa recusa é pensa-da na lógica pensa-da individuação: o conceit o de “ ra-cismo” é geral demais para mobilizar as pessoas, em part icular os jovens, mas a ref erência ao que sof re um indivíduo não branco mobiliza. Como pensar uma sociedade em que o indivíduo pas-sou a ser uma ref erência cent ral e, t ambém, onde o sujeit o sof re?
A segunda coisa que gost aria de comen-t ar remecomen-t e às quescomen-t ões da psicanálise concomen-t em-porânea. Escrevi muit o sobre a necessidade de levar em cont a o sujeit o. M as descobri recen-t emenrecen-t e, lendo coisas sobre Lacan, que a pró-pria noção de sujeit o não é nada clara. O que é o sujeit o? Quem é e o que é aquele que diz “ Eu” ? Essa é a quest ão que perpassa a obra de Lacan . M u i t as vezes, est e ú l t i m o ci t a o qu e disse Rimbaud, um grande poet a f rancês: “ Je est u n au t re” (Eu é u m ou t ro). Se Eu é u m out ro, preciso ent ender as suas relações com os out ros e, de f orma mais ampla, com a socie-dade e a cult ura em que ele vive, para compre-ender o que signif ica ser um sujeit o. E aí en-cont ro de novo Vygot sky.
V o c ê t e m u m a g r a n d e e x p e r iê n c ia c o m o in v e s t ig a d o r . A lé m d e d e s e n v o lv e r p e s q u is a s n a F r a n ç a , v o c ê c o o r d e n o u e s t u d o s n a T u n ís ia , n a R e p ú b lic a Tc h e c a e n o B r a s il. E m 19 8 7 , f u n d o u a e q u ip e E s c o l ( É d u c a t io n , S o c ia lis a t io n e t C o lle c t iv it é s L o c a le s ) a p a r t ir d e u m p r o g r a m a d e p e s q u is a s o b r e a r e la ç ã o c o m o s a b e r . G o s t a r ía m o s q u e v o c ê f iz e s s e u m b a la n ç o d e s t e s e u t r a b a lh o c o m o p e s q u is a d o r e f o r m a d o r d e n o v o s p e s q u is a d o r e s . Q u e c o n s e lh o s d a r ia p a r a u m j o v e m p e s q u is a d o r n a á r e a d a e d u c a ç ã o ?
ES-COL. Em 1987, quando cheguei à universida-d e, era a ép o ca universida-d as zo n as universida-d e euniversida-d u cação priorit árias. Est ava em Paris 8, num município muit o popular e eu queria t rabalhar com essas zonas. A ideia básica era t rabalhar o dent ro e o f ora da escola, a educação, a socialização e a colet ividade, que aqui no Brasil seria a co-munidade.
No i n íci o, n ão f oi f áci l porqu e qu eri a t rabalhar a quest ão das dif iculdades dos alu-nos mais f racos, num lugar f rágil. O equivalen-t e f rancês do Secreequivalen-t ário de Educação que, na França, t em aut oridade sobre as universidades e que era de direit a mandou a Reit ora de Pa-ris 8 me dizer que não era uma boa ideia. Pedi uma ordem por escrit o, já que um f uncioná-rio não t em obrigação de obedecer a uma or-dem oral. Ele não respondeu, sabendo que o seu of ício iria parar na imprensa nacional. Por-t anPor-t o, decidi prosseguir. Às vezes, a pesquisa é t am bém isso: u m con f ron t o pol ít i co com as aut oridades. Aliás, mais t arde, acerca de out ra pesquisa, t ive problemas t ambém com o pró-prio M inist ro da Educação, que era socialist a. Quem quer vida t ranquila e acesso às honras of iciais que desist a de ser pesquisador ou que apenas f aça de cont a que pesquisa! Essa é a primeira coisa que diria, e que digo, a um jo-vem pesquisador.
A segunda é: “ ouse invent ar” , escut e os argument os e conselhos do seu orient ador, mas não obedeça a suas ordens. No seu trabalho, você pode at é crit icar o que o seu orient ador escre-veu – o qu e j á acon t eceu com dou t oran dos “ meus”. No mundo do pensament o, pode haver t écnicos, como no f ut ebol, pode haver colegas com mais experiência, mas não pode haver che-f es. Também não conche-f ie demais nos livros de met odologia: quem pesquisa não t em t empo para escrever livros de met odologia e vice- versa. Por exemplo, esses livros gast am muit o papel para cl assi f i car as en t revi st as em n ão est rut uradas, semiest rut uradas e est rut uradas, mas, na verdade, os pesquisadores sempre usam ent revist as semiest rut uradas. As chamadas ent re-vist as est rut uradas são quest ionários aplicados
oralment e, não são ent revist as. E as ent revist as “ não est rut uradas” não passam de conversas de bot eco.
Vou lhes con t ar como in ven t ei aqu ele inst rument o de pesquisa, hoje bast ant e ut iliza-do, que chamei em f rancês de bilan de savoir, exp ressão essa q u e f o i t rad u zi d a n o Brasi l como “ balanço de saber” , “ escrit a de saber” , “ i n ven t ári o de saber”. O secret ári o de qu em f alei não escreveu nada, mas deu ordem aos diret ores de colégios para que eu não t ivesse acesso às classes. O diret or do colégio local era gent il, me of erecia um caf é, mas, por uma ra-zão ou ou t ra, n u n ca m e dei xava en t rar n as sal as. Fi qu ei assi m du ran t e oi t o m eses. Por f i m , os própri os prof essores i n t eressaram - se por minha pesquisa e pediram para me encon-t rar numa sala da comunidade. Disseram- me que t rabalhariam comigo e me pergunt aram o que f aríamos na próxima reunião. Eu não t i-nha pensado nisso e não sabia... Se respeit as-se a regra met odológica, deveria dizer que ía-mos t rabalhar com nossa própria relação com o saber. M as sabia que, f azendo isso, não t e-ria mais ninguém na t erceira reunião. Ent ão, disse, improvisando: “ Est amos no f inal do ano let ivo. Vamos f azer um balanço de saber com os alunos que vão sair do colégio”. Eles me pergunt aram o que era aquilo. Eu t ambém não sabia. A minha ideia era f azer um balanço. Ex-pliquei- lhes o que era um balanço de saúde, um balanço de carro, e pedi que eles explicas-sem a m esm a coisa a seus al u n os. Vol t aram com t ext os m u i t o i n t eressan t es. No an o se-g u i n t e, co m Él i sab et h Bau t i er e Jean - Yves Ro ch ex , q u e t i n h am se j u n t ad o a m i m , est rut urei o enunciado do balanço: “ Desde que nasci aprendi muit as coisas em casa, na esco-la, na rua ou em out ros lugares. O que é im-port ant e em t udo isso e o que est ou esperan-do agora?”. Eu t inha invent aesperan-do um inst rumen-t o de pesquisa.
a) vocês devem t er uma met odologia pert inent e para responder a suas questões centrais; e b) vocês devem t rabalhar com rigor. Sabendo isso, vocês não precisam pedir aut orização ao orient ador, embora possam pedir conselhos. Parem de pergun-t ar se podem ou não podem f azer algo. Ref lipergun-t am: com dados coletados assim, conseguem responder à sua quest ão cent ral de f orma rigorosa? Se po-dem, façam.” Acho que, no Brasil, há uma depen-dência f ort e demais do orient ador. Como f ormar “ mest res” com alunos por demais obedient es?
A t erceira coisa que diria, e que sempre digo, é a seguint e: o t rabalho específ ico do pes-quisador em ciências humanas é ident if icar e pensar sobre cont radições. Não é dizer que o povo est á cert o. Aliás, o povo não est á nem aí com essa legit imação que o pesquisador julga lhe conferir. Descobri isso e logo me livrei do discurso marxist a of icial e comecei a desenvolver um pen-sament o marxist a, quando escrevi, com uma co-lega, um livro sobre a hist ória da f ormação dos operários, na França, de 1789 a 1984. Descobri que não exist e um empresariado, mas pelo me-nos t rês – o grande, o médio e o dono de uma loja – e que os t rês nem sempre t êm os mesmos int eresses. Descobri ainda que o sindicalismo re-volucionário, quando nasceu, era sempre sexist a e às vezes racista. Encontrei a contradição, o meu mundo pré- organizado desmoronou e pude co-meçar a pensar.
Explico isso aos est udant es brasileiros. M uit as vezes, eles pret endem f azer uma pes-quisa, mas já t êm uma respost a polít ica, o que os impede de pesquisar. Eles vão a campo com muit as cert ezas e poucas dúvidas. Explico que a di f eren ça en t re a m i l i t ân ci a e a pesqu isa, inclusive quando se é milit ant e, é a quest ão da cont radição. O milit ant e, pelo menos o mili-t anmili-t e mili-t radicional, não pode levar em conmili-t a a opinião do adversário, não pode t ent ar ent en-der de qual pont o de vist a o adversário est á cert o, porque isso vai impedir a ação milit an-t e. Pelo conan-t rário, o an-t rabalho do pesquisador é evi den ci ar as con t radi ções, i n cl usi ve aqu el as qu e exist em n o seu campo. É assi m qu e el e pode ajudar o povo e cont ribuir para o
avan-ço do moviment o social.
Darw i n sem pre carregava consi go u m caderninho para anot ar as objeções essenciais à sua t eoria, porque os argument os a f avor ele não ia esquecer, mas as objeções sim. Isso é pesquisa. Além do mais, a pesquisa é um pra-zer quando se t em uma pergunt a não respon-dida, quando há um pouco de suspense, quando se encont ram cont radições. Assim, é pesquisa viva e dá prazer pesquisar. Pesquisa sem igno-rância não é pesquisa, pesquisa sem esf orços não exist e, pesquisa sem prazer não vale a pena. A primeira pergu n t a qu e f aço a qu em pede a minha orient ação é: “ O que você quer saber que ainda ninguém sabe, inclusive eu?”. Essa p erg u n t a é o p r i m ei ro p asso n aq u el a avent ura que const it ui a pesquisa.
N o c o n t e x t o b r a s ile ir o , v o c ê é u m d a q u e le s a u t o r e s q u e c o n s e g u e m t r a n s it a r , c o m m u it a c o m p e t ê n c ia , p e lo m u n d o d a a c a d e m ia e d o c o t id ia n o e s c o la r . E m b o r a s e ja u m in t e le c t u a l, v o c ê é m u it o o u v id o e r e s p e it a d o p e lo s
p r o f is s io n a is q u e a t u a m n a s r e d e s d e e n s in o . A q u e v o c ê a t r ib u i is s o ?
ent endo as cont radições que o prof essor deve enf rent ar no seu t rabalho cot idiano e explico essas cont radições aos prof essores. E sempre t ent o abrir pist as “ concret as” , dizer o que eu t ent aria se est ivesse no lugar deles. Os prof es-sores ent endem isso. Ademais, não “ minist ro conf erência” ; explico coisas, o que é bem di-f eren t e. Uso m u i t os exem pl os, ci t o al u n os e prof essores, não uso palavras complicadas e, quando não posso evit á- las, explico o seu sen-t ido. Não sou um “ dousen-t or” f alando a prof es-sores, cu l pan do- os, hu m i l han do- os. Sou , ou pelo menos t ent o ser, um colega pesquisador t ransmit indo result ados de pesquisas, inst ru-ment os conceit uais e prát icas para eles se t or-narem mais f ort es, mais orgulhosos de seu t ra-bal ho, m ais f el i zes e t am bém para qu e el es f açam a mesma coisa com os seus alunos.
P o d e m o s d iz e r q u e a e d u c a ç ã o c o n t in u a s e n d o , n o B r a s il c o n t e m p o r â n e o , u m d o s m a is g r a v e s p r o b le m a s s o c ia is . N o q u e d iz r e s p e it o à s p o lít ic a s q u e s e s u c e d e m , e x is t e m á u t iliz a ç ã o d e v e r b a s
d e s t in a d a s a e s s e s e t o r , p r e c á r ia
f o r m a ç ã o d o c e n t e , a d o ç ã o d e c u r r íc u lo s p r o p e d ê u t ic o s e e x c e s s iv a m e n t e
p e s a d o s e d if ic u ld a d e s d e v á r ia s o r d e n s v iv id a s n o c o t id ia n o e s c o la r . H á t a m b é m u m a g r a n d e d e s c o n f ia n ç a a c e r c a d a c la s s e p o lít ic a d e m o d o g e r a l. C o m o v o c ê j á m o r a n o B r a s il h á u m b o m t e m p o , d e v e c o n h e c e r s u f ic ie n t e m e n t e e s s a s m a z e la s . N o s s a p e r g u n t a é a s e g u in t e : q u a l é o b a la n ç o q u e v o c ê f a z d e s s a s it u a ç ã o e q u a l s e r ia o p a p e l d o p e s q u is a d o r ?
Sou est rangeiro, não posso nem quero me met er na polít ica brasileira, mas é claro que vocês est ão cert as ao dizerem o que acabaram de di-zer. Sobre o balanço, porém, gost aria de chamar a at enção para o f at o de que, apesar de t udo, o Brasil avança, inclusive na área da educação. Nessa área, anda devagar, mas anda. Quant o ao papel do pesqu isador, acho qu e j á respon di , quando f alei do t rabalho com as cont radições.
Vou aproveit ar a pergunt a para acrescen-t ar mais uma ideia: os jovens ainda são políacrescen-t icos, ao cont rário do que se diz. Eles não são part i-dários, claro, mas são políticos, eles participam de moviment os sociais. Temos de ent ender que, na sociedade cont emporânea, a f orma de milit ância mudou: não são mais grandes moviment os de part ido ou de sindicat o. São mais moviment os de mulheres, de ecologist as, moviment os ligados a vários event os (como o dos “caras pint adas” ). No Brasil, na pesquisa que f iz em Sergipe acerca dos jovens, a part icipação maior é nos moviment os da Igreja, mais pelas ações sociais do que pela quest ão da f é. Os jovens ainda levant am os pro-blemas da desigualdade, da discriminação, do racismo, da f ome no mundo, mas f azem part e dessa geração que quer ver o result ado de seus atos. Eles são marcados pela individuação da vida e desconf iam muit o dos polít icos. Na minha pes-quisa, as quat ro inst it uições em que eles menos con f i am são o govern o, as Assem bl ei as Legislat ivas e os vereadores, os part idos polít icos e o Congresso. A seguir, vêm o empresariado e o exércit o. Os jovens conf iam mais na f amília, depois no prof essor e no médico, e depois nos def ensores dos direit os humanos. Os jovens t êm quest ões e int eresses polít icos, mas sent em um prof undo desprezo e uma grande desconf iança de t udo que remet e à polít ica inst it ucionalizada.
N o B r a s il e e m v á r ia s p a r t e s d o m u n d o , o e n s in o s u p e r io r e o s p r o g r a m a s d e p ó s -g r a d u a ç ã o e s t ã o p a s s a n d o h o j e p o r g r a n d e s t r a n s f o r m a ç õ e s . V o c ê t r a b a lh o u q u a s e d u a s d é c a d a s c o m o p r o f e s s o r c a t e d r á t ic o n a U n iv e r s id a d e d e P a r is 8 e a q u i n o B r a s il a in d a a t u a c o m o d o c e n t e e p e s q u is a d o r n o E n s in o S u p e r io r . H o j e v o c ê e s t á c o m 6 5 a n o s , j á t e m , p o r t a n t o , u m b o m p e r c u r s o , u m a lo n g a t r a j e t ó r ia c o m o in t e le c t u a l, c o m o p e n s a d o r . C o m o a v a lia o m u n d o a c a d ê m ic o
m u it o , d e c o n s e g u ir f o n t e s d e f in a n c ia m e n t o e t c . ) ? E x is t e u m a
d if e r e n ç a m u it o g r a n d e d e o u t r a s é p o c a s e m q u e v iv e u ?
Essa pressão exist e na França t ambém, m as acho qu e est á pi or n o Brasi l . Con f esso que, às vezes, f ico perplexo ao observar as re-gras de avaliação da produt ividade dos pesqui-sadores. A minha pesquisa sobre os jovens de Serg i p e, real i zad a a p ed i d o d a UNESCO d e Brasíl i a e do Govern o de Sergi pe, gerou u m relat ório de 700 páginas com base em 3052 qu est i on ári os apl i cados e 33 gru pos f ocais, m as n ão val e n ada segu n do os cri t éri os da CAPES, porque f oi publicada sem número de INSS! Apesar de o relat ório de pesquisa ser a base de t rabal ho do pesqu isador, n o Lat t es, não há lugar para regist rar relat ório de pesqui-sa. Tem qu e col ocar em “ ou t ras produ ções”. Temos que ensinar os jovens a produzir rela-t órios de pesquisa e, com base neles, publicar art i gos. O probl em a é qu e os est u dan t es de mest rado devem publicar art igos ant es de de-f ender a sua dissert ação, já que esse é um dos crit érios de avaliação dos Núcleos de Pós- Gra-duação pela CAPES. Além disso, de acordo com as regras de avaliação vigent es, os livros não valem mais do que um art igo, o que, na área das ciências humanas, é um absurdo. Os pes-quisadores devem ser avaliados, mas est ranho alguns dos at uais crit érios de avaliação.
Em 1994, An drew Wi l es dem onst rou o t eorema enunciado por Fermat no século XVII, que muit os grandes mat emát icos não t inham conseguido demonstrar. Até então, Wiles era con-siderado perdido pela pesquisa: não publicava, não f requent ava os colóquios. Apenas se dedica-va à sua t ent at idedica-va de demonst ração. Nem sei se publicou a sua demonst ração com INSS... Hoje, o seu nome pert ence à hist ória da mat emát ica. A pressa que est amos sof rendo não deixa t em-po para amadurecer ideias imem-port ant es, t emos que correr de um t ema para out ro, conf orme as oport unidades de publicar. O que rest a dessas publicações? Pouquíssimas coisas. Alguns cole-gas, para sobreviverem academicament e,
depen-dem dos seus est udant es. Em um colóquio in-t ernacional organizado por nosso Grupo Edu-cação e Cont empo- raneidade (EDUCON), uma prof essora universit ária enviou t rezes t rabalhos, sempre com out ro aut or, que eram os seus es-t udanes-t es. Isso não f az senes-t ido. Sempre me re-cu sei a assi n ar u m t ex t o co m o s m eu s orient andos e cont inuo a recusar- me. M as eles f icam magoados. Digo que eu não cont ribuí para o t ext o e eles cont ra- argument am que os ajudei. M as ajudá- los é o meu t rabalho e o t ex-t o é deles.
E m u m d o s ú lt im o s liv r o s q u e v o c ê p u b lic o u n o B r a s il (R e la ç ã o c o m o s a b e r , f o r m a ç ã o d o s p r o f e s s o r e s e
g lo b a liz a ç ã o : q u e s t õ e s p a r a a e d u c a ç ã o h o j e , A r t m e d , 2 0 0 5 ) , v o c ê a f ir m a q u e o s liv r o s n ã o s ã o e s c r it o s s o m e n t e p a r a o s le it o r e s , q u e e le s s ã o t a m b é m ,
p r im e ir a m e n t e , f o n t e d e r e a liz a ç ã o e d e p r a z e r q u e o a u t o r s e p r o p ic ia .
G o s t a r ía m o s q u e v o c ê f a la s s e s o b r e s u a r e la ç ã o c o m o m u n d o d o s liv r o s , c o m a le it u r a e c o m a e s c r it a .
lu-gar para si mesmo.
Livros dos out ros eu t enho pouquíssimo t empo para ler. Trouxe da França muit os livros que gost aria de ler, pensando “ Vou me aposen-t ar”. E ainda não os li nem me aposenaposen-t ei. Além do mais, quando é um livro sobre educação, digo: “ Hoje, não. Est ou cansado.” Há uma pi-ada de que gost o. O Papa ent ra no quart o do hot el e vê um crucif ixo. Ele chama o f uncio-nário e diz: “ Tira isso. M e lembra o escrit ório” [risos]. Como f alo de educação o t empo t odo, pref iro ler romances. Ent rei na lit erat ura bra-sileira e port uguesa, o que é um prazer. Já es-t udei inglês, espanhol, russo, árabe, mas é a primeira vez na minha vida que domino bem uma segunda língua e curt o o prazer de ler ro-mances em port uguês. E às vezes em espanhol.
Q u e r d iz e r q u e v o c ê n ã o s e s e n t e m a is u m e s t r a n g e ir o n o s t r ó p ic o s ?
Não, já não sou um est rangeiro nos t ró-picos... Não leio sist emat icament e livros sobre educação. Leio- os quando t enho que t rat ar de um t ema part icular. Ent ão, sim, mergulho nos livros com um verdadeiro prazer, porque não é uma obrigação profissional. Preciso entender uma coisa e, port ant o, preciso dos livros. Leio- os sa-bendo o que est ou procurando. É leit ura como vida e não como obrigação. Aliás, essa prát ica con di z com as m i n has ref erên ci as epist emológicas, em especial com a minha ref e-rência pref erida, Bachelard, que escreveu “ Tout e connaissance est réponse à une quest ion” (O conheciment o é sempre respost a a uma quest ão).
D ig a a lg u m p e n s a d o r c o n t e m p o r â n e o q u e p a r a v o c ê s e j a im p o r t a n t e , p o r t r a z e r u m a a b o r d a g e m in t e r e s s a n t e , in s t ig a n t e .
Não é uma pergunt a de respost a f ácil... Se t ivesse mesmo que escolher, diria M ichel de Cert eau. É um grande aut or, que escreveu coisas f undament ais sobre a invenção do cot idiano, as art es de f azer, a dif erença ent re as est rat égias da classe média – que domina o t empo e os recur-sos – e as t át icas das classes populares – que
prat icam uma bricolagem conf orme as oport uni-dades do moment o. É um aut or f undament al para se livrar dessa praga que const it ui a noção de “carência”. Há aut ores import ant es que pou-co est udei, pou-como Wit t genst ein e Habermas; não precisei deles para pensar o que t ent ei pensar, mas sei o suf icient e para perceber a sua impor-t ância. E há os auimpor-t ores com quem penso, às vezes cont ra quem penso. Bourdieu, um gran-de pensador que nos permit iu ent engran-der que o inimigo est á dent ro da nossa cabeça, prenden-do- n os n o exat o m om en t o em qu e t em os a i l u são d e esco l h er co m t o d a l i b erd ad e. Foucault , que evidenciou os micropoderes que t ecem o nosso cot idiano. Lacan, de quem já f al ei . Os soci ól ogos Gof f m an e Becker, qu e evidenciaram que o desvio, a t ransgressão, o est igma são relações, ant es de caract eríst icas de um at o ou um indivíduo. Snyders, que in-sist iu a sua vida t oda na import ância da ques-t ão d o sab er. N a área d a ep i sques-t em o l o g i a, Bach el ard e seu h er d ei ro i n t el ect u al , Can gu i l hem , qu e ori en t ou a m i n ha pri m ei ra pesquisa – de t al modo que, de cert a f orma, sou net o de Bachelard... E os pais f undadores. M arx, em especial o M arx f ilósof o dos M anus-cri t os de 1844. E o m arxist a f ran cês Lu ci en Sève, que int roduziu a quest ão do sujeit o no debat e marxist a. Aquele grande marxist a per-seguido pelo marxismo of icial que f oi Vygot sky – e seu herdeiro Leont iev. E Freud, claro. Dá muit a gent e para responder a uma pergunt a sobre “ algum pensador cont emporâneo”... M as não sou homem de uma corrent e, assim como não o era M ichel de Cert eau.
Q u a l é a s u a p e s q u is a a t u a l e q u a is s ã o o s p r o j e t o s p a r a o f u t u r o ?
bási ca: para u ma cri an ça, qu al o sen t i do de aprender, quer na escola, quer f ora? Essa é a quest ão da relação com o saber, no singular. M as f ilosof ia, hist ória, mat emát ica, f ísica, in-glês, educação f ísica et c. são mat érias escola-res b em d i f eren t es e cad a u m a t em a su a normat ividade int erna. Por exemplo, em mat e-mát ica, um símbolo não pode t er dois signif ica-dos. Essa não é uma insuport ável normat ização impost a pela burguesia, mas sim uma norma sem a qual não há mais at ividade mat emát ica possí-vel. A poesia, pelo cont rário, caract eriza- se pela ambiguidade. Gostaria de entender as relações dos alunos com esses campos diferentes de saberes ou de cult ura.
Est am os desen vol ven do u m a pesqu isa de campo sobre esse t ema, na UFS, no Grupo EDUCON, f undado e liderado por minha espo-sa, Vel ei da An ahí da Si l va. Const i t u ímos u m
gru po de pesqu isa sobre as rel ações com os saberes, com 12 subgrupos, mais de 70 pesqui-sad o res (1 2 d o u t o res em vári as d i sci p l i n as, mest randos, graduandos, prof essores do ensi-no básico). É uma pesquisa calma, sem pressa, começada há quase dois anos e que precisará provavelment e de mais dois anos. Que eu saiba, essa quest ão ainda não f oi pesquisada de f or-ma sist emát ica e int erdisciplinar como est amos f azen do. Um a qu est ão n ova m erece t em po. Ademais, esse grupo const it ui um ót imo lugar de f ormação dos jovens para a pesquisa. De f or-mação “concret a” : const ruímos junt os um ques-t ionário, ensinei o que é uma análise longiques-t u-dinal, como cat egorizar et c. M ost rando e f azen-do com eles. Para quem quisesse, ensinei at é como u t i l i zar Excel , em vez de perder horas calculando percent uais. A pesquisa é, ant es de t udo, uma aprendizagem, um art esanat o. E não uma aula sobre hist oricismo, f enomenologia, marxismo e est rut uralismo – é út il saber o que é, mas isso não é f ormação para a pesquisa.