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Manual de. volume único. Processo Penal. Renato Brasileiro de Lima 9 ª. revista atualizada ampliada. edição

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2021

Renato

Brasileiro

de Lima

Manual de

Processo Penal

v

olume únic

o

9

ª

edição revista atualizada ampliada

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TÍTULO

1

NOÇÕES

INTRODUTÓRIAS

1. INTRODUÇÃO

Quando o Estado, por intermédio do Poder Le-gislativo, elabora as leis penais, cominando sanções àqueles que vierem a praticar a conduta delituosa, surge para ele o direito de punir os infratores num plano abstrato, genérico e impessoal, e, para o par-ticular, o dever de se abster de praticar a infração penal. A partir do momento em que alguém pratica a conduta delituosa prevista no tipo penal, este direito de punir desce do plano abstrato e se transforma no

ius puniendi in concreto.

Surge, então, a pretensão punitiva, a ser com-preendida como o poder do Estado de exigir de quem comete um delito a submissão à sanção pe-nal. Através da pretensão punitiva, o Estado procura tornar efetivo o ius puniendi, exigindo do autor do delito, que está obrigado a sujeitar-se à sanção penal, o cumprimento dessa obrigação, que consiste em sofrer as consequências do crime e se concretiza no dever de abster-se ele de qualquer resistência contra os órgãos estatais a que cumpre executar a pena.

Todavia, esta pretensão punitiva não pode ser voluntariamente resolvida sem um processo, não po-dendo nem o Estado impor a sanção penal, nem o infrator sujeitar-se à pena. Em outras palavras, essa pretensão já nasce insatisfeita. Afinal, o Direito Penal não é um direito de coação direta. Apesar de o Esta-do ser o titular Esta-do direito de punir, não se admite a imposição imediata da sanção sem que haja um pro-cesso regular, assegurando-se, assim, a aplicação da lei penal ao caso concreto, consoante as formalidades prescritas em lei, e sempre por meio dos órgãos ju-risdicionais (nulla poena sine judicio). Aliás, até mes-mo nas hipóteses de infrações de menor potencial ofensivo, em que se admite a transação penal, com a imediata aplicação de penas restritivas de direitos ou multas, não se trata de imposição direta de pena. Uti-liza-se, na verdade, de forma distinta da tradicional

para a resolução da causa, sendo admitida a solu-ção consensual em infrações de menor gravidade, mediante supervisão jurisdicional, privilegiando-se, assim, a vontade das partes e, principalmente, do autor do fato que pretende evitar os dissabores do processo e o risco da condenação.

É exatamente daí que sobressai a importância do processo penal, pois este funciona como o ins-trumento do qual se vale o Estado para a imposição de sanção penal ao possível autor do fato delituoso.

Mas o Estado não pode punir de qualquer ma-neira. Com efeito, considerando-se que, da aplicação do direito penal pode resultar a privação da liberdade de locomoção do agente, entre outras penas, não se pode descurar do necessário e indispensável respeito a direitos e liberdades individuais que tão caro cus-taram para serem reconhecidos e que, em verdade, condicionam a legitimidade da atuação do próprio aparato estatal em um Estado Democrático de Direi-to. Na medida em que a liberdade de locomoção do cidadão funciona como um dos dogmas do Estado de Direito, é intuitivo que a própria Constituição Federal estabeleça regras de observância obrigatória em um processo penal. É a boa (ou má) aplicação desses direitos e garantias que permite, assim, avaliar a real observância dos elementos materiais do Estado de Direito e distinguir a civilização da barbárie.

De fato, como adverte Norberto Bobbio, a pro-teção do cidadão no âmbito dos processos estatais é justamente o que diferencia um regime democrático daquele de índole totalitária. Na dicção do autor, “a diferença fundamental entre as duas formas anti-téticas de regime político, entre a democracia e a ditadura, está no fato de que somente num regime democrático as relações de mera força que subsistem, e não podem deixar de subsistir onde não existe Es-tado ou existe um EsEs-tado despótico fundado sobre o direito do mais forte, são transformadas em relações

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de direito, ou seja, em relações reguladas por nor-mas gerais, certas e constantes, e, o que mais conta, preestabelecidas, de tal forma que não podem valer nunca retroativamente. A consequência principal dessa transformação é que nas relações entre cida-dãos e Estado, ou entre cidacida-dãos entre si, o direito de guerra fundado sobre a autotutela e sobre a máxima ‘Tem razão quem vence’ é substituído pelo direito de paz fundado sobre a heterotutela e sobre a máxima ‘Vence quem tem razão’; e o direito público externo, que se rege pela supremacia da força, é substituído pelo direito público interno, inspirado no princípio

da ‘supremacia da lei’ (rule of law)”.1

É esse, pois, o grande dilema existencial do pro-cesso penal: de um lado, o necessário e indispensá-vel respeito aos direitos fundamentais; do outro, o atingimento de um sistema criminal mais operante e

eficiente.2 É dentro dele que se buscará, ao longo da

presente obra, um ponto de equilíbrio no estudo do processo penal, pois somente assim serão evitados os extremos do hipergarantismo e de movimentos como o do Direito Penal do Inimigo ou do Direito Penal da Lei e da Ordem.

2. SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS 2.1. Sistema inquisitório

Adotado pelo Direito canônico a partir do sé-culo XIII, o sistema inquisitório posteriormente se propagou por toda a Europa, sendo empregado in-clusive pelos tribunais civis até o século XVIII. Típi-co dos sistemas ditatoriais, tem Típi-como característica principal o fato de as funções de acusar, defender e julgar encontrarem-se concentradas em uma única pessoa, que assume assim as vestes de um juiz acu-sador, chamado de juiz inquisidor.

Essa concentração de poderes nas mãos do juiz compromete, invariavelmente, sua imparcialidade. Afinal, o juiz que atua como acusador fica ligado psicologicamente ao resultado da demanda, perden-do a objetividade e a imparcialidade no julgamento. Nesse sistema, não há falar em contraditório, o qual

1. BOBBIO, Norberto. As ideologias e o poder em crise. Tradução de João Ferreira; revisão técnica Gilson César Cardoso. 4ª ed. Brasília: Editora Uni-versidade de Brasília, 1999, p. 96-97.

2. Na linha do ensinamento de Antônio Scarance Fernandes, o vocá-bulo eficiência aqui empregado “é usado de forma ampla, sendo afasta-da, contudo, a ideia de eficiência medida pelo número de condenações. Será eficiente o procedimento que, em tempo razoável, permita atingir um resultado justo, seja possibilitando aos órgãos da persecução penal agir para fazer atuar o direito punitivo, seja assegurando ao acusado as garantias do processo legal”. (Sigilo no processo penal: eficiência e

garan-tismo. Coordenação Antônio Scarance Fernandes, José Raul Gavião de

Almeida, Maurício Zanoide de Moraes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 10).

nem sequer seria concebível em virtude da falta de contraposição entre acusação e defesa. Ademais, ge-ralmente o acusado permanecia encarcerado pre-ventivamente, sendo mantido incomunicável.

No sistema inquisitório, não existe a obriga-toriedade de que haja uma acusação realizada por órgão público ou pelo ofendido, sendo lícito ao juiz desencadear o processo criminal ex officio. Na mesma linha, o juiz inquisidor é dotado de ampla iniciativa probatória, tendo liberdade para deter-minar de ofício a colheita de provas, seja no curso das investigações, seja no curso do processo penal, independentemente de sua proposição pela acusa-ção ou pelo acusado. A gestão das provas estava concentrada, assim, nas mãos do juiz, que, a partir da prova do fato e tomando como parâmetro a lei, podia chegar à conclusão que desejasse.

Trabalha-se com a premissa de que a atividade probatória tem por objetivo uma completa e ampla reconstrução dos fatos, com vistas ao descobrimento da verdade. Considera-se possível a descoberta de uma verdade real, absoluta, por isso admite uma ampla atividade probatória, quer em relação ao ob-jeto do processo, quer em relação aos meios e méto-dos para a descoberta da verdade. Dotado de amplos poderes instrutórios, o magistrado pode proceder a uma completa investigação do fato delituoso.

Em tal sistema, o acusado é mero objeto do processo, não sendo considerado sujeito de direi-tos. Na busca da verdade material, admitia-se que o acusado fosse torturado para que uma confissão fosse obtida. O processo inquisitivo era, em regra, escrito e sigiloso, mas essas formas não lhe eram essenciais. Pode se conceber o processo inquisi-tivo com as formas orais e públicas.

Como se percebe, há uma nítida conexão en-tre o processo penal e a natureza do Estado que o institui. A característica fundamental do processo inquisitório é a concentração de poderes nas mãos do juiz, aí chamado de inquisidor, à semelhança da reunião de poderes de administrar, legislar e julgar nas mãos de uma única pessoa, de acordo com o regime político do absolutismo.

Em síntese, podemos afirmar que o sistema in-quisitório é um sistema rigoroso, secreto, que adota ilimitadamente a tortura como meio de atingir o es-clarecimento dos fatos e de concretizar a finalidade do processo penal. Nele, não há falar em contradi-tório, pois as funções de acusar, defender e julgar estão reunidas nas mãos do juiz inquisidor, sendo o acusado considerado mero objeto do processo, e não sujeito de direitos. O magistrado, chamado de inqui-sidor, era a figura do acusador e do juiz ao mesmo

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tempo, possuindo amplos poderes de investigação e de produção de provas, seja no curso da fase

in-vestigatória, seja durante a instrução processual.3

Por essas características, fica evidente que o processo inquisitório é incompatível com os direitos e garantias individuais, violando os mais elementa-res princípios processuais penais. Sem a pelementa-resença de um julgador equidistante das partes, não há falar em imparcialidade, do que resulta evidente violação à Constituição Federal e à própria Convenção Ameri-cana sobre Direitos Humanos (CADH, art. 8º, nº 1).

2.2. Sistema acusatório

De maneira diversa, o sistema acusatório carac-teriza-se pela presença de partes distintas, contra-pondo-se acusação e defesa em igualdade de condi-ções, e a ambas se sobrepondo um juiz, de maneira

equidistante e imparcial.4 Historicamente, tem como

suas características a oralidade e a publicidade, nele se aplicando o princípio da presunção de inocência. Logo, a regra era que o acusado permanecesse solto durante o processo. Não obstante, em várias fases do Direito Romano, o sistema acusatório foi escrito e sigiloso.

Chama-se “acusatório” porque, à luz deste sistema, ninguém poderá ser chamado a juízo sem que haja uma acusação, por meio da qual o fato imputado seja narrado com todas as suas cir-cunstâncias. Daí, aliás, o porquê da existência do próprio Ministério Público como titular da ação penal pública. Ora, se é natural que o acusado te-nha uma tendência a negar sua culpa e sustentar sua inocência, se acaso não houvesse a presença de um órgão acusador, restaria ao julgador o papel de confrontar o acusado no processo, fulminando sua imparcialidade. Como corolário, tem-se que o processo penal se constitui de um actum trium

personarum, integrado por sujeitos parciais e um

imparcial – partes e juiz, respectivamente. Somente assim será possível preservar o juiz na condição de terceiro desinteressado em relação às partes, estando alheio aos interesses processuais.

3. Como observa GIACOMOLLI (O devido processo penal: abordagem

conforme a CF e o Pacto de São José da Costa Rica. 3ª ed. São Paulo: Atlas,

2016. p. 90), “verifica-se um ‘donismo’ processual sem precedentes, endo e extraprocessuais: o processo é meu, o promotor é meu, o estagiário é meu, o servidor é meu, o carro é meu, eu sou eu, eu e eu. Então, eu posso investigar, eu posso acusar, eu posso julgar, recorrer e executar a sanção. Nesse modelo, confundem-se as funções dos agentes do Estado-Julgador com os do Estado-Acusador e com os do Estado-Investigador”

4. Nesse sentido: PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade

constitucional das leis processuais penais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora

Lumen Juris, 2005. p. 114.

Mas esta mera separação das funções de acusar e julgar não basta para a caracterização do sistema acusatório, porquanto a imparcialidade do magis-trado não estará resguardada enquanto o juiz não for estranho à atividade investigatória e instrutória. Com efeito, de nada adianta a existência de pessoas diversas no exercício das funções do magistrado e do órgão estatal de acusação se, na prática, há, por parte daquele, uma usurpação das atribuições deste, explícita ou implicitamente, a exemplo do que ocor-re quando o magistrado ocor-requisita a instauração de um inquérito policial, dá início a um processo penal de ofício (processo judicialiforme), produz provas e decreta prisões cautelares sem requerimento das partes, etc.

Portanto, quanto à iniciativa probatória, o juiz não pode ser dotado do poder de determinar de ofício a produção de provas, já que estas devem ser fornecidas pelas partes, prevalecendo o exame di-reto das testemunhas e do acusado. Portanto, sob o ponto de vista probatório, aspira-se uma posição de passividade do juiz quanto à reconstrução dos fatos. A gestão das provas é, portanto, função das partes, cabendo ao juiz um papel de garante das regras do jogo, salvaguardando direitos e liberdades fundamentais. Diversamente do sistema inquisitó-rio, o sistema acusatório caracteriza-se por gerar um processo de partes, em que autor e réu constroem através do confronto a solução justa do caso penal. Segundo Ferrajoli, são características do sis-tema acusatório a separação rígida entre o juiz e acusação, a paridade entre acusação e defesa, e a pu-blicidade e a oralidade do julgamento. Lado outro, são tipicamente próprios do sistema inquisitório a iniciativa do juiz em campo probatório, a dispari-dade de poderes entre acusação e defesa e o caráter

escrito e secreto da instrução.5

O sistema acusatório vigorou durante quase toda a Antiguidade grega e romana, bem como na Idade Média, nos domínios do direito germano. A partir do século XIII entra em declínio, passando a ter prevalência o sistema inquisitivo. Atualmente, o processo penal inglês é aquele que mais se aproxima de um sistema acusatório puro.

Pelo sistema acusatório, acolhido de forma explí-cita pela Constituição Federal de 1988 (CF, art. 129, inciso I), que tornou privativa do Ministério Público a propositura da ação penal pública, a relação proces-sual somente tem início mediante a provocação de pessoa encarregada de deduzir a pretensão punitiva

5. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 518.

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(ne procedat judex ex officio), e, conquanto não retire do juiz o poder de gerenciar o processo mediante o exercício do poder de impulso processual, impede que o magistrado tome iniciativas que não se alinham com a equidistância que ele deve tomar quanto ao interesse das partes. Deve o magistrado, portanto, abster-se de promover atos de ofício na fase investi-gatória e na fase processual, atribuição esta que deve ficar a cargo das autoridades policiais, do Ministério Público e, no curso da instrução processual penal, das partes. É exatamente nesse sentido, aliás, o art. 3º-A do CPP, incluído pela Lei n. 13.964/19 (Pacote Anticrime), segundo o qual “o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação

pro-batória do órgão de acusação”.6

Como se percebe, o que efetivamente diferencia o sistema inquisitório do acusatório é a posição dos sujeitos processuais e a gestão da prova. O modelo acusatório reflete a posição de igualdade dos su-jeitos, cabendo exclusivamente às partes a produ-ção do material probatório e sempre observando os princípios do contraditório, da ampla defesa, da publicidade e do dever de motivação das decisões judiciais. Portanto, além da separação das funções de acusar, defender e julgar, o traço peculiar mais importante do sistema acusatório é que o juiz não é, por excelência, o gestor da prova.

Em síntese, pode-se trabalhar com o seguinte quadro comparativo entre os dois sistemas:

Sistema Inquisitório Sistema Acusatório

Não há separação das fun-ções de acusar, defender e julgar, que estão concentra-das em uma única pessoa, que assume as vestes de um juiz inquisidor;

Separação das funções de acusar, defender e julgar. Por consequência, caracteri-za-se pela presença de partes distintas (actum trium per-sonarum), contrapondo-se acusação e defesa em igual-dade de condições, sobre-pondo-se a ambas um juiz, de maneira equidistante e imparcial;

6. O art. 3º-A do CPP será objeto de análise mais detalhada no próximo título – “Juiz das Garantias” –, para onde remetemos o leitor.

Sistema Inquisitório Sistema Acusatório

Como se admite o princípio da verdade real, o acusado não é sujeito de direitos, sendo tratado como mero objeto do processo, daí por que se admite inclusive a tor-tura como meio de se obter a verdade absoluta;

O princípio da verdade real é substituído pelo princípio da busca da verdade, deven-do a prova ser produzida com fiel observância ao con-traditório e à ampla defesa; Gestão da prova: o juiz

in-quisidor é dotado de am-pla iniciativa acusatória e probatória, tendo liberdade para determinar de ofício a colheita de elementos in-formativos e de provas, seja no curso das investigações, seja no curso da instrução processual;

Gestão da prova: recai pre-cipuamente sobre as partes. Na fase investigatória, o juiz só deve intervir quando pro-vocado, e desde que haja necessidade de intervenção judicial. Durante a instru-ção processual, prevalece o entendimento de que o juiz tem certa iniciativa proba-tória, podendo determinar a produção de provas de ofício, desde que o faça de maneira subsidiária; A concentração de poderes

nas mãos do juiz e a inicia-tiva acusatória dela decor-rente é incompatível com a garantia da imparcialidade (CADH, art. 8º, § 1º) e com o princípio do devido pro-cesso legal.

A separação das funções e a iniciativa probatória resi-dual restrita à fase judicial preserva a equidistância que o magistrado deve tomar quanto ao interesse das par-tes, sendo compatível com a garantia da imparcialidade e com o princípio do devido processo legal.

2.3. Sistema processual misto ou francês

Após se disseminar por toda a Europa a partir do século XIII, o sistema inquisitório passa a sofrer alterações com a modificação napoleônica, que ins-tituiu o denominado sistema processual misto. Tra-ta-se de um modelo novo, funcionando como uma fusão dos dois modelos anteriores, que surge com o

Code d’Instruction Criminelle francês, de 1808. Por

isso, também é denominado de sistema francês. É chamado de sistema misto porquanto abrange duas fases processuais distintas: a primeira fase é tipicamente inquisitório, destituída de publicida-de e ampla publicida-defesa, com instrução escrita e secreta, sem acusação e, por isso, sem contraditório. Sob o comando do juiz, são realizadas uma investigação preliminar e uma instrução preparatória, objeti-vando-se apurar a materialidade e a autoria do fato delituoso. Na segunda fase, de caráter acusatório, o órgão acusador apresenta a acusação, o réu se defen-de e o juiz julga, vigorando, em regra, a publicidadefen-de,

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a oralidade, a isonomia processual e o direito de manifestar-se a defesa depois da acusação.

Quando o Código de Processo Penal entrou em vigor, prevalecia o entendimento de que o sistema nele previsto era misto. A fase inicial da persecução penal, caracterizada pelo inquérito policial, era inquisitório. Porém, uma vez iniciado o processo, tínhamos uma fase acusatória. Porém, com o advento da Constituição Federal, que prevê de maneira expressa a separação das funções de acusar, defender e julgar, estando assegurado o contraditório e a ampla defesa, além do princí-pio da presunção de não culpabilidade, estamos diante de um sistema acusatório.

É bem verdade que não se trata de um sistema acusatório puro. De fato, há de se ter em mente que o Código de Processo Penal tem nítida inspiração no modelo fascista italiano. Torna-se imperioso, portanto, que a legislação infraconstitucional seja relida diante da nova ordem constitucional.

3. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO PENAL

O vocábulo princípio é dotado de uma imensa variedade de significações. Sem nos olvidar da dis-tinção feita pela doutrina entre princípios, normas,

regras e postulados,7 trabalharemos com a noção

de princípios como mandamentos nucleares de um sistema.

A Constituição Federal de 1988 elencou vários princípios processuais penais, porém, no contexto de funcionamento integrado e complementar das garantias processuais penais, não se pode perder de vista que os Tratados Internacionais de Direitos Humanos firmados pelo Brasil também incluíram diversas garantias ao modelo processual penal bra-sileiro. Nessa ordem, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH – Pacto de São José da Costa Rica), prevê diversos direitos relacionados à tutela da liberdade pessoal (Decreto 678/92, art. 7º), além de inúmeras garantias judiciais (Decreto 678/92, art. 8º).

Embora seja polêmica a discussão em torno do status normativo dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, a partir do julgamento do RE 466.343, tem prevalecido no Supremo Tribunal Fe-deral a tese do status de supralegalidade da Conven-ção Americana sobre Direitos Humanos. Não por outro motivo, a despeito do teor do art. 5º, LXVII,

7. Para ampla análise dessa distinção, sugerimos a leitura da obra de Robert Alexy: Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Vírgilio Afonso da Silva. São Paulo: Editora Malheiros, 2008.

da Constituição Federal, que prevê, em tese, a pos-sibilidade de prisão civil do devedor de alimentos e do depositário infiel, a Suprema Corte entendeu que a circunstância de o Brasil haver subscrito o Pacto de São José da Costa Rica, que restringe a prisão civil por dívida ao descumprimento inescu-sável de prestação alimentícia (art. 7º, 7), conduz à inexistência de balizas visando à eficácia do art. 5º, LXVII, da Carta Magna. Logo, com a introdução do aludido Pacto no ordenamento jurídico nacional, restaram derrogadas as normas estritamente legais

definidoras da custódia do depositário infiel.8

Em face da incorporação da Convenção Ame-ricana sobre Direitos Humanos ao ordenamento pátrio, o Brasil assume, então, o dever de adotar medidas legislativas para dar efetividade aos direi-tos preconizados na referida Convenção (art. 2º).

Esta pode ser garantida em 3 (três) perspectivas:9

a) utilização da jurisprudência da Corte

Intera-mericana de Direitos Humanos (CIDH)10 e das

opiniões consultivas na interpretação dos casos penais internos de cada país; b) controle difuso da convencionalidade, a ser exercido pelos magis-trados em cada caso concreto, nos termos do art. 5º, §§ 2º e 3º, da CF; c) controle concentrado ou abstrato da convencionalidade, a ser realizado pela CIDH, em sua jurisdição contenciosa e consultiva, e pelos Tribunais, após a EC nº 45/04.

De se notar, portanto, que as decisões da CIDH gozam de eficácia vinculante, nos termos dos arts. 67, 68.1 e 68.2 da CADH. São dotadas de autoridade de coisa julgada formal e material, devendo, pois, ser cumpridas de forma eficaz e integral. Como observa Giacomolli,11 seus efeitos, todavia, não estão limita-dos às partes, mas irradiam um efeito hermêutico a todos aqueles que aderiram ao sistema interameri-cano, com eficácia erga omnes e standard interpre-tativo da convencionalidade do ordenamento inter-no. Daí a importância da análise dos diversos cases da CIDH, já que suas decisões funcionam como

8. STF, Pleno, HC 87.585/TO, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 118 25/06/2009.

9. É nesse sentido a lição de Nereu José Giacomolli: O devido processo

penal: abordagem conforme a CF e o Pacto de São José da Costa Rica. 3ª ed.

São Paulo: Atlas, 2016. p. 30.

10. Composta por sete juízes, eleitos por um período de seis anos, permitida uma reeleição, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) está situada em San José da Costa Rica. Existe desde 1978 como órgão jurisdicional internacional, vinculado à CADH, com competência consultiva automática (Convenção e Tratados) e contenciosa (violação aos preceitos da Convenção) sobre os Estados que ratificaram a Convenção e que reconheceram a sua jurisdição contenciosa (facultativa). O Brasil reconheceu a jurisdição contenciosa e obrigatória da CIDH por meio do Decreto-Legislativo nº 89, de 03 de dezembro de 1998.

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importante ferramenta hermenêutica do Pacto de São José da Costa Rica. Enfim, já não basta mais o conhecimento da jurisprudência dos Tribunais Superiores. Também se impõe o conhecimento da jurisprudência da CIDH.

3.1. Da Presunção de inocência (ou da não culpabilidade)

3.1.1. Noções introdutórias

Em 1764, Cesare Beccaria, em sua célebre obra

Dos delitos e das penas, já advertia que “um homem

não pode ser chamado réu antes da sentença do juiz, e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos

por meio dos quais ela lhe foi outorgada”.12

Esse direito de não ser declarado culpado enquanto ainda há dúvida sobre se o cidadão é culpado ou inocente foi acolhido no art. 9º da De-claração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). A Declaração Universal de Direitos Hu-manos, aprovada pela Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU), em 10 de dezembro de 1948, em seu art. 11.1, dispõe: “Toda pessoa acusa-da de delito tem direito a que se presuma sua ino-cência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa”. Dispositivos semelhantes são encon-trados na Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (art. 6.2), no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 14.2) e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92 – art. 8º, § 2º): “Toda pessoa acusada de delito tem direito

a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”.

No ordenamento pátrio, até a entrada em vigor da Constituição de 1988, esse princípio so-mente existia de forma implícita, como

decorrên-cia da cláusula do devido processo legal.13 Com a

Constituição Federal de 1988, o princípio da pre-sunção de não culpabilidade passou a constar ex-pressamente do inciso LVII do art. 5º: “Ninguém

será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Em síntese, pode

ser definido como o direito de não ser declarado culpado senão após o término do devido processo

12. BECCARIA, Cesare Bonesana, Marchesi de. Dos delitos e das penas. Tradução: Lucia Guidicini, Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 69.

13. Nesse sentido: STF, 1ª Turma, HC 67.707/RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 14/08/1992.

legal, durante o qual o acusado tenha se utilizado de todos os meios de prova pertinentes para a sua defesa (ampla defesa) e para a destruição da cre-dibilidade das provas apresentadas pela acusação (contraditório).

Comparando-se a forma como referido prin-cípio foi previsto nos Tratados Internacionais e na Constituição Federal, percebe-se que, naqueles, costuma-se referir à presunção de inocência, ao passo que a Constituição Federal em momento algum utiliza a expressão inocente, dizendo, na verdade, que ninguém será considerado

culpa-do. Por conta dessa diversidade terminológica,

o preceito inserido na Carta magna passou a ser denominado de presunção de não culpabilidade.

Na jurisprudência brasileira, ora se faz

referên-cia ao princípio da presunção de inocênreferên-cia,14 ora

ao princípio da presunção de não culpabilidade.15

Segundo Badaró, não há diferença entre presunção de inocência e presunção de não culpabilidade, sen-do inútil e contraproducente a tentativa de apartar ambas as ideias – se é que isto é possível –, devendo

ser reconhecida a equivalência de tais fórmulas.16

Do princípio da presunção de inocência (ou presunção de não culpabilidade) derivam duas regras fundamentais: a regra probatória (também conhecida como regra de juízo) e a regra de

tra-tamento, objeto de estudo nos próximos tópicos.17

3.1.2. Da regra probatória (in dubio pro reo)

Por força da regra probatória, a parte acusadora tem o ônus de demonstrar a culpabilidade do acu-sado além de qualquer dúvida razoável, e não este

de provar sua inocência.18 Como consectários dessa

regra, Antônio Magalhães Gomes Filho destaca: a) a incumbência do acusador de demonstrar a culpabi-lidade do acusado (pertence-lhe com exclusividade o ônus dessa prova); b) a necessidade de comprovar a existência dos fatos imputados, não de demonstrar

14. Vide súmula nº 09 do STJ. E também: STF, 1ª Turma, HC-ED 91.150/ SP, Rel. Min. Menezes Direito, DJe 018 01º/02/2008.

15. A título de exemplo: STF, 1ª Turma, AI-AgR 604.041/RS, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 092 – 31/08/2007; STF, 2ª Turma, HC 84.029/ SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 06/09/2007 p. 42.

16. BADARÓ, Gustavo Henrique. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 283.

17. Por força do disposto no art. 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (nº 2), Luiz Flávio Gomes acrescenta uma terceira regra, qual seja, a regra de garantia, segundo a qual a única forma de se afastar a presunção de inocência do acusado seria comprovando-se legalmente sua culpabilidade (Legislação criminal especial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 442). A nosso ver, e com a devida vênia, tal regra já está inserida na regra probatória.

18. Para mais detalhes acerca da divisão do ônus da prova no processo penal, remetemos o leitor ao capítulo de provas.

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a inconsistência das desculpas do acusado; c) tal comprovação deve ser feita legalmente (conforme o devido processo legal); d) impossibilidade de se obrigar o acusado a colaborar na apuração dos fatos

(daí o seu direito ao silêncio).19

Essa regra probatória deve ser utilizada sempre que houver dúvida sobre fato relevante para a deci-são do processo. Na dicção de Badaró, cuida-se de uma disciplina do acertamento penal, uma exigência segundo a qual, para a imposição de uma sentença condenatória, é necessário provar, eliminando qual-quer dúvida razoável, o contrário do que é garantido pela presunção de inocência, impondo a necessidade

de certeza.20 Nesta acepção, presunção de inocência

confunde-se com o in dubio pro reo. Não havendo certeza, mas dúvida sobre os fatos em discussão em juízo, inegavelmente é preferível a absolvição de um culpado à condenação de um inocente, pois, em um juízo de ponderação, o primeiro erro acaba sendo menos grave que o segundo.

O in dubio pro reo não é, portanto, uma sim-ples regra de apreciação das provas. Na verdade, deve ser utilizado no momento da valoração das provas: na dúvida, a decisão tem de favorecer o imputado, pois não tem ele a obrigação de provar que não praticou o delito. Enfim, não se justifica, sem base probatória idônea, a formulação possível de qualquer juízo condenatório, que deve sempre assentar-se – para que se qualifique como ato re-vestido de validade ético-jurídica – em elementos de certeza, os quais, ao dissiparem ambiguidades, ao esclarecerem situações equívocas e ao desfa-zerem dados eivados de obscuridade, revelam-se capazes de informar, com objetividade, o órgão judiciário competente, afastando, desse modo, dúvidas razoáveis, sérias e fundadas que pode-riam conduzir qualquer magistrado ou Tribunal

a pronunciar o non liquet.21

O in dubio pro reo só incide até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Portanto, na revisão criminal, que pressupõe o trânsito em julgado de sentença penal condenatória ou absolu-tória imprópria, não há falar em in dubio pro reo, mas sim em in dubio contra reum. O ônus da prova quanto às hipóteses que autorizam a revisão cri-minal (CPP, art. 621) recai única e exclusivamente

19. “O princípio da presunção de inocência na Constituição de 1988 e na

Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica)”, em Revista do Advogado, da AASP, nº 42, abril/94, p. 31.

20. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo

penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 285.

21. Nesse contexto: STF, 1ª Turma, HC 73.338/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19/12/1996.

sobre o postulante, razão pela qual, no caso de dúvi-da, deverá o Tribunal julgar improcedente o pedido revisional.

3.1.3. Da regra de tratamento

A privação cautelar da liberdade, sempre qua-lificada pela nota da excepcionalidade, somente se justifica em hipóteses estritas, ou seja, a regra é res-ponder ao processo penal em liberdade, a exceção

é estar preso.22 São manifestações claras desta

re-gra de tratamento a vedação de prisões processuais automáticas ou obrigatórias e a impossibilidade de execução provisória ou antecipada da sanção penal.

Portanto, por força da regra de tratamento oriunda do princípio constitucional da não culpa-bilidade, o Poder Público está impedido de agir e de se comportar em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao acusado, como se estes já hou-vessem sido condenados, definitivamente, enquanto

não houver o fim do processo criminal.23

O princípio da presunção de inocência não proíbe, todavia, a prisão cautelar ditada por razões excepcionais e tendente a garantir a efetividade do processo, cujo permissivo decorre inclusive da pró-pria Constituição (art. 5º, LXI), sendo possível se conciliar os dois dispositivos constitucionais desde que a medida cautelar não perca seu caráter excep-cional, sua qualidade instrumental, e se mostre ne-cessária à luz do caso concreto.

Há quem entenda que esse dever de tratamen-to atua em duas dimensões: a) interna ao processo: funciona como dever imposto, inicialmente, ao ma-gistrado, no sentido de que o ônus da prova recai inte-gralmente sobre a parte acusadora, devendo a dúvida favorecer o acusado. Ademais, as prisões cautelares devem ser utilizadas apenas em situações excepcio-nais, desde que comprovada a necessidade da medida extrema para resguardar a eficácia do processo; b)

externa ao processo: o princípio da presunção de

inocência e as garantias constitucionais da imagem, dignidade e privacidade demandam uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização do acusado, funcionando como limites democráticos à abusiva exploração midiática em torno do fato

cri-minoso e do próprio processo judicial.24

22. “Diz-me como tratas o arguido, dir-te-ei o processo penal que tens e o Estado que o instituiu” (FIGUEIREDO DIAS, Jorge. Direito processual

penal. 1º vol. Coimbra: Coimbra Editora, 1984. p. 428.)

23. STF – HC 89.501/GO – 2ª Turma – Rel. Min. Celso de Mello – DJ 16/03/2007 p. 43.

24. LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade

consti-tucional. Vol. II. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 47/48.

Especi-ficamente em relação à dimensão externa ao processo, vem bem a calhar a decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no

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Portanto, por força do dever de tratamento, qualquer que seja a modalidade de prisão cautelar, não se pode admitir que a medida seja usada como meio de inconstitucional antecipação executória da própria sanção penal, pois tal instrumento de tutela cautelar penal somente se legitima se se comprovar, com apoio em base empírica idônea, a real necessi-dade da adoção, pelo Estado, dessa extraordinária medida de constrição do status libertatis do

indicia-do ou indicia-do acusaindicia-do.25

Atento à regra de tratamento que deriva do princípio da presunção de inocência, o STF assen-tou, em Recurso Extraordinário com Repercussão Geral reconhecida (RE 560.900/DF, Rel. Min. Ro-berto Barroso, j. 05/02/2020), a seguinte tese: “Sem previsão constitucional adequada e instituída por lei, não é legítima a cláusula de edital de concurso pú-blico que restrinja a participação de candidato pelo simples fato de responder a inquérito ou ação penal”. Na visão da Corte, a simples existência de inquéritos ou processos penais em curso não autoriza a elimi-nação de candidatos em concursos públicos, o que pressupõe: (i) condenação por órgão colegiado ou definitiva; e (ii) relação de incompatibilidade entre a natureza do crime em questão e as atribuições do cargo concretamente pretendido, a ser demonstrada de forma motivada por decisão da autoridade com-petente. A lei pode instituir requisitos mais rigorosos para determinados cargos, em razão da relevância das atribuições envolvidas, como é o caso, por exemplo, das carreiras da magistratura, das funções essenciais à justiça e da segurança pública (CF, art. 144), sendo vedada, em qualquer caso, a valoração negativa de simples processo em andamento, salvo situações ex-cepcionalíssimas e de indiscutível gravidade.

caso J. vs. Peru (2013), no qual o Peru foi responsabilizado por violação

ao estado de inocência previsto no art. 8.2 do Pacto de São José da Costa Rica. Para a CIDH, os distintos pronunciamentos públicos das autorida-des estatais, sobre a culpabilidade de J. violaram o estado de inocência, princípio determinante que o Estado não condene, nem mesmo informal-mente, emitindo juízo perante a sociedade e contribuindo para formar a opinião pública, enquanto não existir decisão judicial condenatória. Para a Corte, a apresentação da imagem da acusada para a imprensa, escrita e televisiva, ocorreu quando ela estava sob absoluto controle do Estado, além de as entrevistas posteriores também terem sido levadas a cabo sob conhecimento e controle do Estado, por meio de seus funcionários. A Corte acentuou não impedir o estado de inocência que as autoridades mantenham a sociedade informada sobre investigações criminais, mas requer que isso seja feito com a discrição e a contextualização necessárias, de tal modo a garantir o estado de inocência. Assim, fazer declarações públicas, sem os devidos cuidados, sobre processos penais, gera, na so-ciedade, a indevida crença sobre a culpabilidade do acusado. Nessa linha: GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a

Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 3ª ed. São Paulo:

Atlas, 2016. p. 135-137.

25. Nessa linha: STF – HC 90.753/RJ – 2ª Turma – Rel. Min. Celso de Mello – DJ 23/11/2007 p. 116.

3.1.4. (In) constitucionalidade da execução pro-visória da pena26

Como bem sabe o leitor, muito já se discutiu – e ainda se discute – acerca da necessidade de se aguardar (ou não) o trânsito em julgado de sen-tença condenatória para o início da execução da pena. Entre fevereiro de 2016 e novembro de 2019, prevaleceu, no Supremo Tribunal Federal, por força do HC 126.292, o entendimento de que não havia necessidade de se aguardar o trânsito em julgado, justificando-se, assim, a denominada execução pro-visória da pena. Recentemente, porém, por ocasião do julgamento definitivo das Ações Declaratórias

de Constitucionalidade 43/DF, 44/DF e 54/DF,

houve uma mudança de orientação daquela Cor-te. Por razões didáticas, vejamos os argumentos de ambas as correntes, separadamente.

3.1.4.1. Desnecessidade do trânsito em julgado (STF – HC 126.292).

Pelo menos em regra, os recursos extraor-dinário e especial não são dotados de efeito sus-pensivo (CPP, art. 637, c/c arts. 995 e 1.029, § 5º, ambos do novo CPC). Por isso, prevaleceu, durante anos, o entendimento jurisprudencial segundo o qual era cabível a execução provisória de sentença penal condenatória recorrível, inde-pendentemente da demonstração de qualquer hi-pótese que autorizasse a prisão preventiva do acu-sado. O fundamento legal para esse entendimento era o disposto no art. 637 do CPP. Nessa linha, o STJ editou a súmula nº 267 (“A interposição de recurso, sem efeito suspensivo, contra decisão condenatória não obsta a expedição de mandado de prisão”). Portanto, mesmo que o acusado ti-vesse permanecido solto durante todo o processo, impunha-se o recolhimento à prisão como efeito automático de um acórdão condenatório proferi-do por órgão jurisdicional de segunproferi-do grau, ainda que a decisão condenatória não tivesse transitado em julgado em virtude da interposição dos re-cursos extraordinário e especial, e pouco, impor-tando, ademais, a ausência dos pressupostos que

autorizavam sua prisão preventiva.27

Ocorre que, no julgamento do Habeas Corpus

nº 84.078 no ano de 2009, o Plenário do Supremo,

26. Para mais detalhes acerca da possibilidade de execução provisó-ria de decisão condenatóprovisó-ria proferida pelo Tribunal do Júri no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclu-são (CPP, art. 492, I, alínea “e”, com redação dada pela Lei n. 13.964/19), independentemente do julgamento sequer de uma eventual apelação pelos Tribunais de 2ª instância, remetemos o leitor ao Título 11 (Processo e

Procedimento), mais precisamente ao Capítulo IV (Procedimento Especial

do Tribunal do Júri), onde o tema é objeto de análise nos comentários à “sentença do Júri”.

27. Nesse contexto: STF, 1ª Turma, HC 91.675/PR, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 04/09/2007, Dje 157 06/12/2007.

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por maioria de votos (7 a 4), alterou sua orientação jurisprudencial até então dominante para concluir que a execução da pena só poderia ocorrer com o trânsito em julgado de sentença penal condenató-ria. Logo, a despeito de os recursos extraordinários não serem dotados de efeito suspensivo, enquanto não houvesse o trânsito em julgado de sentença pe-nal condenatória, não seria possível a execução da pena privativa de liberdade, ressalvada a hipótese de prisão cautelar do réu, cuja decretação, todavia, estaria condicionada à presença dos pressupostos

do art. 312 do CPP.28

Todavia, no julgamento do HC 126.292 no dia

17 de fevereiro de 2016,29 e novamente por maioria

de votos (7 a 4), o Plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu que seria possível a execução pro-visória de acórdão penal condenatório proferido por Tribunal de segunda instância quando ali esgotada a jurisdição, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, e mesmo que ausentes os requisitos da prisão cautelar, sem que se pudesse objetar su-posta violação ao princípio da presunção de inocên-cia, já que seria possível fixar determinados limites para a referida garantia constitucional. Não se trata, portanto, de prisão cautelar. Cuida-se, na verdade, de verdadeira execução provisória da pena. Para justificar essa nova orientação foram apontados, à época, os seguintes fundamentos:

a) deve ser buscado o necessário equilíbrio entre o princípio da presunção de inocência e a efetividade da função jurisdicional penal, que deve atender a valores caros não apenas aos acusados, mas também à sociedade;

b) é no âmbito das instâncias ordinárias que se exaure a possibilidade de exame de fatos e provas e, sob esse aspecto, a própria fixação da responsabi-lidade criminal do acusado. É dizer, os recursos de natureza extraordinária não configuram desdobra-mentos do duplo grau de jurisdição, porquanto não são recursos de ampla devolutividade, já que não se

prestam ao debate da matéria fática probatória.30

Noutras palavras, com o julgamento implementado pelos tribunais de apelação, ocorreria uma espécie de preclusão da matéria envolvendo os fatos da

28. HC 84.078, Rel. Min. Eros Grau. Informativo nº 534 do STF – Brasília, 2 a 6 de fevereiro de 2009. No mesmo sentido: STF, 2ª Turma, HC 88.174/ SP, Rel. Min. Eros Grau, j. 12/12/1996, DJe 092 30/08/2007; STF, 2ª Turma, HC 89.754/BA, Rel. Min. Celso de Mello, j. 13/02/2007, DJe 04 26/04/2007; STF, 2ª Turma, HC 91.232/PE, Rel. Min. Eros Grau, j. 06/11/2007, DJe 157 06/12/2007; STJ – HC 122.191/RJ – 5ª Turma – Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima – Dje 18/05/2009.

29. STF, Pleno, HC 126.292/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 17/02/2016, DJe 100 16/05/2016.

30. As matérias fáticas que levariam apenas a um reexame da prova estão excluídas dos recursos especial e extraordinário, nos termos da

súmula nº 279 do STF (“Para simples reexame de prova não cabe

re-curso extraordinário”) e da súmula nº 7 do STJ (“A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”).

causa. Por consequência, não seria razoável inver-ter a lógica do sistema, de maneira a transformar os tribunais de segundo grau em meros tribunais de passagem, e Cortes Superiores, que não têm compe-tência constitucional para a plena análise do mérito, em instâncias finais de julgamentos penais;

c) se houve, em segundo grau, um juízo de in-criminação do acusado, fundado em fatos e provas insuscetíveis de reexame pela instância extraordiná-ria, parece inteiramente justificável a relativização e até mesmo a própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção de inocência até então observado. Faria sentido, portanto, negar efeito sus-pensivo aos recursos extraordinários, como o faz o art. 637 do CPP;

d) não se pode afirmar que, à exceção das prisões em flagrante, temporária, preventiva e de-corrente de sentença condenatória transitada em julgado, todas as demais formas de prisão foram revogadas pelo art. 283 do CPP, com a redação dada pela Lei 12.403/2011, haja vista o critério temporal de solução de antinomias previsto no art. 2º, § 1º, da Lei 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Di-reito Brasileiro). Se assim o fosse, a conclusão seria pela prevalência da regra que dispõe ser meramente devolutivo o efeito dos recursos ao Superior Tribu-nal de Justiça (STJ) e ao Supremo TribuTribu-nal Federal (STF), visto que os arts. 995 e 1.029, § 5º, do CPC têm vigência posterior à regra do art. 283 do CPP. Portanto, não há antinomia entre o que dispõe o art. 283 do CPP e a regra que confere eficácia imediata aos acórdãos proferidos por tribunais de apelação;

e) em nenhum país do mundo, depois de obser-vado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa, aguardando referendo da Corte Suprema;

f) a jurisprudência que assegurava a presunção de inocência até o trânsito em julgado de sentença condenatória vinha permitindo a indevida e sucessi-va interposição de recursos da mais sucessi-variada espécie, com indisfarçados propósitos protelatórios, visando, não raro, à configuração da prescrição da preten-são punitiva ou executória, já que o último marco interruptivo do prazo prescricional antes do início do cumprimento da pena é a publicação da sentença

ou do acórdão recorríveis (CP, art. 117, IV).31 Esse

31. Como exemplo do uso abusivo do direito de recorrer com a nítida intenção de procrastinar o trânsito em julgado de sentença condenatória podemos citar o caso do ex-Senador L. E., condenado a 31 anos de reclu-são pela prática dos crimes de peculato, estelionato, corrupção ativa, uso de documento falso e associação criminosa – os dois últimos delitos aca-baram prescrevendo. Desde 2006, quando foi condenado pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, o ex-Senador já havia interposto mais de 35 (trinta e cinco) recursos, obstando, assim, o trânsito em julgado. Com

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indevido incentivo à infindável interposição de re-cursos protelatórios acabaria reforçando a própria seletividade do sistema, pois a Defensoria Pública não litiga dessa forma e as pessoas pobres não têm recursos financeiros para pagar recursos judiciais indefinidamente;

g) quanto a eventuais equívocos das instân-cias ordinárias, não se pode esquecer que há ins-trumentos aptos a inibir consequências danosas para o condenado, suspendendo, se necessário, a execução provisória da pena, como, por exemplo, medidas cautelares de outorga de efeito suspensi-vo ao recurso extraordinário e ao recurso especial (art. 1.029, § 5º, do novo CPC) e o habeas corpus. Portanto, mesmo que exequível provisoriamente o acórdão condenatório recorrível, o acusado não es-taria desamparado da tutela jurisdicional em casos de flagrante violação de direitos. Isso seria possível, por exemplo, em situações nas quais estivesse carac-terizada a verossimilhança das alegações deduzidas na impugnação extrema, de modo que se pudesse constatar a manifesta contrariedade do acórdão com a jurisprudência consolidada da Corte a quem se destina a impugnação.

Posteriormente, o teor da decisão proferida no julgamento do HC 126.292 foi confirmado pelo Ple-nário do STF, ao indeferir medida cautelar em duas ações declaratórias de constitucionalidade (ADC’s 43 e 44), permitindo, assim, a execução provisória da pena privativa de liberdade após a decisão con-denatória de segundo grau e antes do trânsito em julgado, sob o argumento de que as decisões juris-dicionais não impugnáveis por recursos dotados de efeito suspensivo seriam dotadas de eficácia

imedia-ta. Assim, após esgotadas as instâncias ordinárias,32 a

condenação criminal poderia provisoriamente surtir efeito imediato do encarceramento, uma vez que o acesso às instâncias extraordinárias se dá por meio de recursos que são ordinariamente dotados de

efei-to meramente devolutivo.33 Esse entendimento foi,

posteriormente, confirmado pelo Plenário Virtual

a mudança de orientação jurisprudencial do STF acerca do assunto, o ex-Senador foi, enfim, recolhido à prisão, em data de 8 de março de 2016.

32. A execução da pena depois da prolação de acórdão em segundo grau de jurisdição e antes do trânsito em julgado da condenação não é

automática, quando a decisão ainda é passível de integração pelo Tribunal de Justiça, sobretudo quando o juízo de primeiro grau conceder ao

acu-sado, na sentença condenatória, o direito de recorrer em liberdade. Por isso, em caso concreto no qual ainda não havia se dado o esgotamento da jurisdição do Tribunal de Justiça, em virtude da interposição de Em-bargos de Declaração ainda não julgado, concluiu a 6ª Turma do STJ (HC 366.907/PR, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 06/12/2016, DJe 16/12/2016) ser indevido, naquele momento, o início da execução provisória da pena. 33. STF, Pleno, ADC 43 MC/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 05/10/2016; STF, Pleno, ADC 44 MC/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 05/10/2016.

do STF na análise do Recurso Extraordinário com

Agravo (ARE) 964.246,34 que teve repercussão geral

reconhecida. Assim, a tese firmada pelo Tribunal passou a ser aplicada nos processos em curso nas demais instâncias, pelo menos até o julgamento de-finitivo das ADC’s 43, 44 e 54.

3.1.4.2. Necessidade do trânsito em julgado (STF – ADC’s 43, 44 e 54).

Sempre nos posicionamos, mesmo antes do jul-gamento definitivo das ADC’s acima mencionadas, no sentido de que a execução provisória da pena estaria em desacordo com a Constituição Federal, que assegura a presunção de inocência (ou de não culpabilidade) até o trânsito em julgado de sentença condenatória (art. 5º, LVII), e com o art. 283 do CPP, que, mesmo após o advento do Pacote Anticrime (Lei n. 13.964/19), só admite, no curso da investi-gação ou do processo – é dizer, antes do trânsito em julgado de sentença condenatória –, a decretação da prisão cautelar por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente.

Não negamos que se deva buscar uma maior eficiência no sistema processual penal pátrio. Mas, a nosso juízo, essa busca não pode se sobrepor à Constituição Federal, que demanda a formação de coisa julgada para que possa dar início à execução de uma prisão de natureza penal. E só se pode falar em trânsito em julgado quando a decisão se torna imutável, o que, como sabemos, é obstado pela in-terposição dos recursos extraordinários, ainda que desprovidos de efeito suspensivo. A presunção de inocência não se esvazia progressivamente, à medi-da em que se sucedem os graus de jurisdição, pois só deixa de subsistir quando resultar configurado o trânsito em julgado da sentença penal condenató-ria. Não há, portanto, margem exegética para que o art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, seja interpretado no sentido de se admitir a antecipação ficta do momento formativo da coisa julgada penal de modo a concluirmos que o acusado é presumido inocente (ou não culpável) tão somente até o esgo-tamento da instância nos Tribunais de Apelação.

34. “(…) Em regime de repercussão geral, fica reafirmada a juris-prudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau recursal, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. Recurso extraordinário a que se nega provimento, com o reconhecimento da repercussão geral do tema e a reafirmação da jurisprudência sobre a matéria”. (STF, Pleno, ARE 964.246 RG/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 10/11/2016, DJe 251 24/11/2016).

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Por mais que a Convenção Americana sobre

Direitos Humanos (Dec. 678/92, art. 8º, n. 2)35

es-tenda o princípio da presunção de inocência até a comprovação legal da culpa, o que ocorre com a prolação de acórdão condenatório no julgamento de um recurso – lembre-se que a mesma Conven-ção Americana assegura o direito ao duplo grau de jurisdição (art. 8º, § 2º, “h”) –, não se pode perder de vista que a Constituição Federal é categórica ao afirmar que somente o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória poderá afastar o estado inicial de não culpabilidade de que todos gozam. Seu caráter mais amplo deve prevalecer, portanto, sobre o teor da Convenção Americana de Direitos Humanos, assegurando-se, assim, a máxima efeti-vidade da garantia constitucional da presunção de inocência. De fato, a própria Convenção Americana prevê que os direitos nela estabelecidos não poderão ser interpretados no sentido de restringir ou limi-tar a aplicação de normas mais amplas que existam no direito interno dos países signatários (art. 29, b). Em consequência, deverá sempre prevalecer a disposição mais favorável (princípio pro homine).

Não bastasse a Constituição Federal, é fato que a legislação infraconstitucional também não dá aco-lhida à nova orientação dos Tribunais Superiores. Explica-se: apesar de o art. 637 do CPP autorizar a execução provisória de acórdão condenatório pelo fato de os recursos extraordinários não serem dota-dos de efeito suspensivo, este dispositivo foi tacita-mente revogado pela Lei nº 12.403/11, que conferiu nova redação ao art. 283 do CPP.

O art. 283 do CPP, mesmo após a alteração promovida pelo Pacote Anticrime, é categórico ao estabelecer as hipóteses em que pode haver restri-ção à liberdade de locomorestri-ção no processo penal:

a) prisão em flagrante36 e prisão cautelar (leia-se,

temporária e preventiva): são as únicas espécies de prisão cautelar passíveis de decretação no curso da investigação ou do processo; b) prisão penal (carcer ad poenam): a prisão penal só pode ser objeto de execução com o trânsito em julgado de sentença condenatória. Há, portanto, um requisi-to de natureza objetiva para o início do cumpri-mento da reprimenda penal, qual seja, a formação da coisa julgada, que é obstada pela interposição de todo e qualquer recurso, seja ele ordinário ou

35. “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”.

36. Há controvérsias acerca da natureza jurídica da prisão em flagrante. Há quem entenda que se trata de medida pré-cautelar, e não uma espécie de prisão cautelar. Para mais detalhes acerca do assunto, remetemos o leitor ao Título 6, Capítulo IV, item 4.

extraordinário, seja ele dotado de efeito suspensivo ou não. Logo, o caráter “extraordinário” dos re-cursos especial e extraordinário, bem como o fato de serem recursos de fundamentação vinculada e limitados ao reexame de questões de direito não é um argumento legítimo para sustentar a execução antecipada da pena. Isso porque o caráter “extraor-dinário” desses recursos não afeta o conceito de trânsito em julgado expressamente estabelecido pelo art. 283 do CPP como marco final do processo para fins de execução da pena.

Por mais que as Leis 12.403/11 e 13.964/19, responsáveis pelas sucessivas mudanças da reda-ção do art. 283 do CPP, não tenham feito qualquer referência ao art. 637 do CPP, é no mínimo estra-nho admitirmos que um dispositivo legal autoriza a execução da pena tão somente com o trânsito em julgado de sentença condenatória, enquanto outro a autoriza pelo fato de não outorgar efeito suspensivo aos recursos extraordinários. É bem verdade que o art. 9º da LC 95/98, com redação dada pela LC nº 107/01, determina que a cláusula de revogação de lei nova deve enumerar, expressamente, as leis e disposições revogadas, o que não ocorreu na hipó-tese sob comento. No entanto, a falta de técnica por parte do legislador – que, aliás, tem se tornado uma péssima rotina –, não pode justificar a convivência de normas jurídicas incompatíveis entre si, tratando do conceito de execução da pena de maneira con-flitante. Por consequência, como se trata de norma posterior que tratou da matéria em sentido diverso, parece-nos que a nova redação do art. 283 do CPP conferida pelas Leis 12.403/11 e 13.964/19 revogou tacitamente o art. 637 do CPP, nos termos do art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.

Não se pode objetar que o novo CPC teria re-vogado tacitamente o art. 283 do CPP, por prever expressamente que os recursos extraordinários não são dotados de efeito suspensivo (NCPC, arts. 995 e 1.029, § 5º). A uma porque o novo CPC só pode ser aplicado no âmbito processual penal de maneira subsidiária e supletiva, ou seja, quando restar evi-denciada a existência de uma lacuna. Como não há qualquer omissão no âmbito do CPP, que prevê expressamente que a execução da pena pressupõe o trânsito em julgado (art. 283), não se pode admitir a revogação de seus dizeres por uma norma genérica prevista no novo CPC. Não bastasse isso, é fato que o art. 283 do CPP consiste em mera reprodução da cláusula pétrea do art. 5º, LVII, da Constitui-ção Federal, cujo núcleo essencial jamais poderia sofrer qualquer restrição, quer por parte de uma

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lei ordinária (Lei nº 13.105/15 – NCPC), quer pelo próprio Poder Constituinte.

Com base nesses argumentos, o Supremo Tri-bunal Federal voltou a apreciar a matéria em no-vembro de 2019. Porém, dessa vez, e novamente por maioria (6 a 5), julgou procedentes pedidos formu-lados nas Ações Declaratórias de

Constitucionali-dade 43/DF, 44/DF e 54 (Rel. Min. Marco Aurélio, j. 07/11/2019) para assentar a constitucionalidade

do art. 283 do CPP, que condiciona o início do cum-primento da pena ao trânsito em julgado do título condenatório. Como consequência, determinou a suspensão imediata de toda e qualquer execução provisória de pena cuja decisão a encerrá-la ain-da não tivesse transitado em julgado. Desse modo, determinou a libertação daqueles que tenham sido presos, ante exame de apelação, reservando-se o re-colhimento aos casos verdadeiramente enquadrá-veis no art. 312 do CPP, sem prejuízo, ademais, de implementação das cautelares diversas da prisão. Prevaleceu o voto do Min. Marco Aurélio (Relator), que foi acompanhado pelos ministros Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Dias Toffoli.

Preponderou o entendimento no sentido de que, ao editar o art. 283 do CPP por meio da Lei 12.403/2011 – a decisão em questão foi proferida antes da vigência da Lei n. 13.964/19 –, o Poder Legislativo teria se limitado a concretizar, no cam-po do processo, garantia explícita constitucional, adequando-se à óptica então assentada pelo próprio STF no julgamento do HC 84.078, julgado em 5 de fevereiro de 2009, segundo a qual “a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar”. Logo, não seria pos-sível a declaração de inconstitucionalidade de um dispositivo que simplesmente reproduz o texto da Constituição Federal. O princípio da não culpabi-lidade é garantia vinculada, pelo art. 5º, LVII, da CF, à preclusão, de modo que a constitucionalidade do art. 283 do CPP não comporta questionamen-tos. O preceito consiste em reprodução de cláusula pétrea cujo núcleo essencial nem mesmo o poder constituinte derivado estaria autorizado a restrin-gir. Coloca-se, enfim, o trânsito em julgado como marco seguro para a severa limitação da liberdade, ante a possibilidade de reversão ou atenuação da condenação nas instâncias superiores.

Não podemos negar que fortes razões de ín-dole social, ética e cultural amparem seriamente a necessidade de que sejam buscados desenhos institucionais e mecanismos jurídico-processuais cada vez mais aptos a responder, com eficiência, à

exigência civilizatória que é o combate à impunida-de, verdadeira desgraça que assola nosso país. No entanto, pelo menos do ponto de vista normativo--constitucional atualmente em vigor – cuja obser-vância irrestrita também traduz em si mesma uma exigência civilizatória –, não há como afastarmos a necessidade do trânsito em julgado para a execução de uma pena. Portanto, a nosso juízo, a solução para o caos do sistema punitivo brasileiro deve passar por uma mudança constitucional ou legislativa – e não jurisprudencial, como feita pelo STF –, para que seja antecipado o momento do trânsito em julgado de acórdãos condenatórios proferidos pelos Tribu-nais de 2ª instância, hipótese em que os recursos extraordinários obrigatoriamente teriam que ter sua natureza jurídica alterada para sucedâneos recursais

externos.37

De todo modo, pelo menos enquanto não so-brevém essa mudança legislativa – se é que um dia virá –, caberá aos Tribunais maior rigor na verifi-cação de eventuais excessos por parte da defesa no tocante ao exercício abusivo do direito de recorrer. Em outras palavras, quando restar evidenciado o intuito meramente protelatório dos recursos, apenas para impedir o exaurimento da prestação jurisdicio-nal e o consequente início do cumprimento da pena, incumbe aos Tribunais determinar o imediato início da execução mesmo antes do trânsito em julgado, haja vista o exercício irregular e abusivo do direito de defesa e do duplo grau de jurisdição e a conse-quente violação ao princípio da cooperação, previsto no art. 6º do novo CPC, ao qual também se sujei-tam as partes, tudo isso sem prejuízo da fixação de

multa por litigância de má-fé.38 Nessa linha, como

já havia se pronunciado o Supremo em momento anterior ao HC 126.292, “a reiteração de embargos de declaração, sem que se registre qualquer dos seus pressupostos, evidencia o intuito meramente prote-latório. A interposição de embargos de declaração com finalidade meramente protelatória autoriza o imediato cumprimento da decisão emanada pelo Supremo Tribunal Federal, independentemente da

publicação do acórdão”.39

37. A expressão “sucedâneos recursais”, introduzida por Frederico Marques (Instituições de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1960, v. 4, p. 377 e segs.), ora é utilizada para identificar o conjunto de meios não recursais de impugnação, ora é utilizada em acepção estrita, para referir apenas aos meios de impugnação que nem são recurso nem são ação autônoma.

38. Para mais detalhes acerca do assunto, remetemos o leitor ao título atinente aos “Recursos”, mais precisamente ao item 2 (“Natureza jurídica dos recursos”).

39. STF, 1ª Turma, RMS 23.841 AgR-ED-ED/DF, Rel. Min. Eros Grau, j. 18/12/2006, DJ 16/02/2007. No sentido de que a utilização indevida das espécies recursais, consubstanciada na interposição de inúmeros recursos

(14)

53

Daí a importância, aliás, da nova causa suspen-siva da prescrição, introduzida pelo Pacote Anticri-me no art. 116, inciso III, do Código Penal, segundo o qual antes de passar e julgado a sentença final, a prescrição não corre na pendência de embargos de declaração ou de recursos aos Tribunais Supe-riores, quando inadmissíveis. Com aplicação restri-ta aos crimes cometidos após a vigência da Lei n. 13.964/19 (23 de janeiro de 2020), o legislador passa a “punir” o exercício abusivo do direito de recorrer com a suspensão da prescrição nas duas hipóteses aí citadas. A despeito da expressão dúbia constante do novo dispositivo – inadmissíveis –, queremos crer que se refere às hipóteses em que tais recursos não forem conhecidos, e não quando forem improvidos, sob pena de evidente violação ao direito de recorrer.

Em conclusão, é de todo relevante não confun-dir a necessidade do trânsito em julgado da con-denação criminal para se superar a presunção de não culpabilidade e dar início ao cumprimento da pena (STF, ADC’s 43, 44 e 54), com a necessidade do trânsito em julgado de condenação criminal no juízo de conhecimento para fins de reconhecimento

de falta grave no curso da execução penal.40 Diante

da dinamicidade da fase executiva e da necessidade de se assegurar a ordem no estabelecimento prisio-nal, a decisão do juízo da execução, proferida após apuração de falta grave efetuada de modo válido, há de ser considerada apta a ensejar a imposição da respectiva sanção disciplinar, sem prejuízo, ob-viamente, do direito recursal do apenado. Por outro lado, inexiste óbice ao aproveitamento de sentença proferida no processo penal de conhecimento, após regular instrução criminal, com observância do con-traditório e da ampla defesa, pelo juízo da execução penal para o reconhecimento de falta grave. Esse

contrários à jurisprudência como mero expediente protelatório, desvirtua o próprio postulado constitucional da ampla defesa: STF, 2ª Turma, AI 759.450 ED/RJ, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 01/12/2009, DJe 237 17/12/2009; STF, Pleno, AO 1.046 ED/RR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 28/11/2007, DJe 31 21/02/2008. Para o STJ, quando verificada a oposição de recursos manifestamente protelatórios apenas para se evitar o exaurimento da prestação jurisdicional, tem sido admitida a baixa imediata dos autos, para o início da execução penal: STJ, 5ª Turma, EDcl nos EDcl no AgRg no Ag 1.142.020/PB, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 07/10/2010, DJe 03/11/2010. E ainda: STJ, 5ª Turma, EDcl nos EDcl no AgRg no Ag 862.591/MG, Rel. Min. Felix Fischer, j. 15/09/2009, DJe 05/10/2009. O abu-so do direito de recorrer no procesabu-so penal, com o escopo de obstar o trânsito em julgado da condenação e, por consequência, de se alcançar a prescrição da pretensão punitiva, autoriza inclusive a determinação mo-nocrática de baixa imediata dos autos por Ministro de Tribunal Superior, independentemente de publicação da decisão. Nessa linha: STF, Pleno, RE 839.163 QO/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 05/11/2014.

40. De acordo com o art. 52, caput, da LEP, a prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasionar subversão da ordem ou disciplina internas, sujeitará o preso provisório, ou conde-nado, nacional ou estrangeiro, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado.

título, diversamente dos autos de prisão em flagran-te, de inquérito policial ou das petições iniciais dos processos criminais, supre a exigência de instrução perante autoridade administrativa ou judicial no âmbito executivo, autorizando a consequente apli-cação das sanções disciplinares pela autoridade ju-diciária competente para decidir questões relativas à execução penal. Com base nesse entendimento, em Recurso Extraordinário com repercussão geral reconhecida (RE 776.823/RS - Tema 758), restou fixada a seguinte tese pelo Plenário do STF: “O re-conhecimento de falta grave consistente na prática de fato definido como crime doloso no curso da execução penal dispensa o trânsito em julgado da condenação criminal no juízo do conhecimento, desde que a apuração do ilícito disciplinar ocorra com observância do devido processo legal, do con-traditório e da ampla defesa, podendo a instrução em sede executiva ser suprida por sentença criminal condenatória que verse sobre a materialidade, a au-toria e as circunstâncias do crime correspondente

à falta grave”.41

3.2. Princípio do contraditório

De acordo com o art. 5º, inciso LV, da Consti-tuição Federal, aos litigantes, em processo judicial ou

administrativo, e aos acusados em geral são assegu-rados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Na clássica lição de Joaquim Canuto Mendes de Almeida, sempre se compreendeu o princípio do contraditório como a ciência bilateral dos atos ou termos do processo e a possibilidade de

contrariá--los.42 De acordo com esse conceito, o núcleo

fun-damental do contraditório estaria ligado à discussão dialética dos fatos da causa, devendo se assegurar a ambas as partes, e não somente à defesa, a oportuni-dade de fiscalização recíproca dos atos praticados no curso do processo. Eis o motivo pelo qual se vale a doutrina da expressão “audiência bilateral”, consubs-tanciada pela expressão em latim audiatur et altera

pars (seja ouvida também a parte adversa). Seriam

dois, portanto, os elementos do contraditório: a)

di-reito à informação; b) didi-reito de participação. O

contraditório seria, assim, a necessária informação às partes e a possível reação a atos desfavoráveis.

Como se vê, o direito à informação funciona como consectário lógico do contraditório. Não se pode cogitar da existência de um processo penal

41. STF, Pleno, RE 776.823/RS, Rel. Min. Edson Fachin, j. 04.12.2020. 42. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Editora Re-vista dos Tribunais, 1973. p. 82.

Referências

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