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PRIMEIRA INFÂNCIA 2 - na pandemia | Seleção de textos: Donizete Soares

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primeira

infância

S E L E Ç Ã O D E T E X T O S :

na pandemia

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São Paulo, janeiro de 2021 Olá!

Meu nome é Donizete Soares. Sou professor de filosofia e, há décadas, trabalho com formação de profissionais da área de educação.

Meu compromisso é contribuir para a constituição de sujeitos autônomos! Entendo a filosofia como um modo racional e crítico de olhar e lidar com o mundo e a educação, como expressão da necessidade e da capacidade dos seres humanos, de fato, se fazerem humanos.

É um prazer me dirigir a você que, por opção

profissional e/ou por interesse pela humanidade, se dedica à compreensão e à atuação junto aos que há pouco nasceram e trazem em si mesmos a real possibilidade de transformação do mundo.

Compartilho com você estudos interessantes sobre a fase mais importante da vida de cada um de nós: a que vai de 0 a 6 anos, chamada Primeira Infância, título desta coletânea de textos.

Para este segundo volume, selecionei estudos de pesquisadores que muito contribuem para a

compreensão do tema e a ação correspondente em tempos de pandemia, comuns na história da

humanidade, mas sempre algo difícil de aceitar, de vivenciar e de superar.

Marcas deste tempo já estão inscritas em nós e,

infelizmente, não serão poucas as que ainda ficarão em muitas de nossas crianças, em particular da primeira infância. Que nos preparemos, então, para bem realizarmos o que nos cabe: contribuir para que nos tornemos, cada vez mais, humanos.

Bons estudos!

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1. Impactos da pandemia na educação infantil

2 Tempos da escola em tempo de pandemia e necropolítica

3 Direito à educação igualitária e(m) tempos de pandemia: desafios, possibilidade e perspectivas no Brasil

4 Educação Infantil, políticas governamentais e mobilizações em tempos de pandemia

5. As implicações da pandemia do COVID-19 na saúde

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Pedagogia em Ação, Belo Horizonte, v. 13, n. 1 (1 sem. 2020) – ISSN 2175 – 7003.

96 IMPACTOS DA PANDEMIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL:

a pandemia acelerou a necessidade de se problematizar a questão digital na educação infantil?

IMPACTS OF THE PANDEMIC ON EARLY CHILDHOOD EDUCATION: Has the pandemic accelerated the need to address the digital issue in early childhood

education?

Marden de Pádua Ribeiro1 Fernanda Câmpera Clímaco2 Resumo

O presente texto aborda a importância da educação infantil para a educação básica, ressaltando como os recursos tecnológicos digitais e a questão do letramento digital podem contribuir para a qualidade do processo de ensino e aprendizagem deste segmento, sem contradições com os paradigmas conceituais fundantes da educação infantil, respaldados nas normativas oficiais. Para isso, faz um resgate das principais contribuições dos documentos curriculares oficiais e, com base em discussão bibliográfica, aponta caminhos para o uso da tecnologia digital no segmento.

Palavras-chave: Educação Infantil. Currículo. Tecnologias Digitais. Pandemia. Abstract

This text addresses the importance of early childhood education for basic education, highlighting how digital technological resources and the issue of digital literacy can contribute to the quality of the teaching and learning process in this segment, without contradictions with the fundamental conceptual paradigms of early childhood education. , supported by official regulations. For that, it retrieves the main contributions of the official curricular documents and, based on bibliographic discussion, points out ways to use digital technology in the segment. Keywords: Child education. Curriculum. Digital Technologies. Pandemic

1 Márden de Pádua Ribeiro. Graduação em História; em Pedagogia. Especialização em Gestão Escolar; em

Psicologia da Educação. Mestre e Doutor em Educação. Assessor Pedagógico do Bernoulli Sistema de Ensino

2Fernanda Câmpera Clímaco. Pesquisadora da Infância. Graduação em Pedagogia. Mestre em Educação, Gestão

Social e Desenvolvimento Local. Consultora Pedagógica e Professora de Professores da Infância Redatora Colaboradora do CRMG.

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Introdução

A Educação Infantil tem ampliado substancialmente sua presença no centro das preocupações educacionais no país. Uma delas reflete-se em um momento mundial como esse em que vivemos, um momento de pandemia provocado pelo vírus da COVID-19 e em que todos os segmentos da educação básica são impulsionados a executar o ensino remoto.

Diante desse contexto social caótico, na Educação Infantil, o Parecer n. 5/2020 do Conselho Nacional de Educação (CNE) sugere que a orientação para creche e pré-escola é que os gestores busquem uma aproximação virtual dos professores com as famílias, estreitando vínculos e sugerindo atividades às crianças e aos responsáveis. O parecer enfatiza que as soluções propostas pelas escolas e redes de ensino devem considerar que as crianças pequenas aprendem e se desenvolvem brincando, prioritariamente.

As crianças, cada vez mais, são apresentadas ao mundo por meio dos novos aparatos digitais, parecendo já terem habilidades inatas para tal. Entre tantos desafios vividos nesses tempos de recolhimento social, um deles é: A pandemia acelerou a necessidade de se problematizar a utilização das tecnologias digitais na educação infantil? Essa questão e suas consequências são os objetivos da reflexão a que este artigo se propõe.

Para tanto, utilizou-se a pesquisa bibliográfica e documental. A pesquisa bibliográfica trabalhou com os seguintes temas: marcos históricos, educação infantil e currículo, tecnologias digitais e práticas educativas.

A pesquisa documental buscou complementar a pesquisa bibliográfica, a partir do levantamento e da análise de leis e documentos voltados para a Educação Infantil. Para tanto foram observados os seguintes documentos: Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional, BNCC (Base Nacional Comum Curricular), Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (DCNEI) e Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil (RCNEI).

Esse estudo se complementa com uma breve análise das tecnologias digitais na Educação Infantil em busca de colaborar com a reflexão de um tema presente nas discussões que envolvem as Linguagens digitais nas escolas de E.I. nesse momento de recolhimento social. Para isso, Brito (2001), Carlsson e Von Feilitzen (2002), Melo e Tosta (2008) e Levy (2010) trazem referências que contribuem com essa reflexão no âmbito da apropriação escolar das novas tecnologias digitais e nessa discussão sobre interação em tempos de pandemia também colaboram Lima(2020), Freire (1997), Vygotski (2002) e Gadotti (2007).

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Pedagogia em Ação, Belo Horizonte, v. 13, n. 1 (1 sem. 2020) – ISSN 2175 – 7003.

98 Pandemia, marcos regulatórios e a BNCC: um currículo para bebês e crianças pequenas na era digital

O mundo já não é mais o mesmo. Desde o final de 2019, a humanidade enfrenta os efeitos avassaladores de uma pandemia que, em 2020, atinge todos os continentes e chega ao Brasil provocando impactos em todos os setores, incluindo a Educação. Em todo o mundo, os sistemas educativos têm seus serviços suspensos, as creches e escolas foram fechadas e, nesse contexto, emerge a necessidade de se repensar a escola e os processos de aprendizagem digitais que parecem ser urgentes para o momento.

Foi preciso uma pandemia para a sociedade começar a pensar o lugar da escola de Educação Infantil? E que lugar é esse? Com certeza não é o lugar da escola do século passado, onde os adultos de hoje estudaram e agora exigem as mesmas práticas para as crianças. Também não é a escola meramente preparatória para o ensino fundamental. A escola não será a mesma pós- pandemia. O mundo está em transformação. É tempo de refletir profundamente e reafirmar as concepções que fundamentam a Educação Infantil e construir caminhos coerentes para inseri-la nesse contexto virtual. Para isso, faz-se necessário compreender os marcos reguinseri-latórios que orientam e regulamentam o primeiro segmento da Educação Básica em nosso país.

A Constituição Brasileira de 1988 estabelece, em seu artigo 208, que o dever do Estado com a Educação será efetivado mediante garantia de Educação Infantil, em Creche e Pré-Escolas. A validação e o reconhecimento do caráter educativo desse segmento conectam-se às conquistas constitucionais descritas no ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente, no ano de 1990.

Em 1996, a LDB, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, explicita, no artigo 29, que a Educação Infantil é a primeira etapa da Educação Básica e “tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade” (BRASIL, 1996, s.p). Diante disso, nos anos entre 1997 e 2000, foram construídos os RCNEI, Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, tendo como principal finalidade orientar a construção curricular e o trabalho pedagógico na educação infantil.

A Resolução nº 1/99 foi a primeira a instituir as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI). Posteriormente, e ainda em vigência, temos a Resolução n. 5/09, que comporta as principais definições de Educação Infantil, conceituando criança, currículo e proposta pedagógica, detalhando melhor a concepção pedagógica permeada pela Educação Infantil. As DCNEI contemplam, ainda, os princípios (éticos, políticos e estéticos) e há

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referência sobre a avaliação e a articulação com o Ensino Fundamental, assim como o seu processo de concepção e elaboração.

Os princípios contemplados nas diretrizes deveriam nortear o Projeto Político Pedagógico (PPP) de todas as instituições de Educação Infantil no país. Nessa proposta, os eixos estruturantes são a interação e a brincadeira, fundamentados no cuidar e educar como elementos indissociáveis.

As práticas pedagógicas devem adequar-se à realidade da infância, das etapas do desenvolvimento infantil e do ambiente a que se destinam, de maneira a promover a evolução integral da criança. Todas as concepções apresentadas nas DCNEI (2009) foram a base para a construção de uma nova proposta para a Educação Infantil apresentada em 2017 na BNCC (Base Nacional Comum Curricular).

Os processos de formulação e aprovação da BNCC geraram muitas discussões, debates e críticas. Há aprovações e desaprovações em relação à sua proposta, assim como um grande desafio e expectativas para que seja colocada em prática, atendendo às demandas de avanços da educação brasileira. Decorrente de um longo processo, a BNCC foi finalmente aprovada e homologada em dezembro de 2017 como um documento normativo para a Educação Básica.

A BNCC é um referencial para a construção de currículos dos diversos sistemas de ensino do Brasil. Define aprendizagens essenciais a serem promovidas, de maneira adequada à realidade de cada sistema ou rede de ensino e a cada instituição escolar.

A proposta de organização curricular apresentada na BNCC foi fundamentada nas DCNEI, que garantem toda a especificidade da Educação Infantil. Diferentemente do formato linear com listas de conteúdos, para esse segmento, a BNCC parte de Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento, articulados nos Campos de Experiências com Objetivos de Aprendizagem e Desenvolvimento para distintos campos etários.

Faz-se necessário destacar a inserção da Cultura Digital como uma das 10 competências gerais a serem desenvolvidas durante toda a educação básica. A expectativa é fomentar a reflexão para uma aplicação mais crítica e contextualizada da cultura digital no contexto escolar, alinhada à garantia dos direitos de aprendizagem e desenvolvimento propostas pela BNCC. A partir dessas mudanças curriculares e do momento crítico em que enfrentamos uma pandemia, o cenário que se descortina pode significar tanto uma real oportunidade de mudança, quanto um retrocesso que diz respeito às relações entre as práticas educativas e a utilização de tecnologias na Educação Infantil brasileira.

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100 Práticas educativas e tecnologias digitais na escola de infância em tempos de pandemia

A Educação também está sofrendo as consequências dessa pandemia. Em março de 2020, foram fechadas todas as instituições de ensino no país. As redes de ensino passaram, portanto, a tentar se mobilizar. Primeiramente, as privadas, por já terem uma estrutura educativa tecnológica nas redes e, posteriormente, as públicas, que, pela falta de uma estrutura tecnológica digital, algumas migraram para programas educativos na televisão, dando início ao atendimento às crianças e adolescentes, gerando uma nova discussão sobre o ensino remoto no país, notadamente no segmento da Educação Infantil.

No meio dessa discussão, o parecer homologado pelo CNE n. 5/2020 admite a possibilidade de interações virtuais com as famílias e crianças da E.I. com a utilização de internet, celular ou mesmo de orientações de acesso síncrono ou assíncrono, sempre que possível. Cada escola tem autonomia para definir a oferta do instrumento de resposta e

feedback, caso julgue necessário. Essa possibilidade pode se configurar como algo viável e

possível, mesmo para a rede pública em todos ou em determinados municípios ou localidades, respeitadas suas singularidades. Como sugestão, o documento aponta possibilidades de interação e participação das famílias como elemento crucial para o mínimo possível de desenvolvimento de um ensino remoto para esse segmento.

Para crianças das creches (0 a 3 anos), as orientações para as famílias devem indicar atividades de estímulo às crianças, leitura de livros pelos pais, brincadeiras, jogos, músicas infantis. Para auxiliar pais ou responsáveis que não têm fluência na leitura, sugere-se que as escolas ofereçam aos cuidadores algum tipo de orientação concreta, como modelos de leitura em voz alta, em vídeo ou áudio, para engajar as crianças pequenas nas atividades e garantir a qualidade da leitura.

Para as crianças da pré-escola (4 e 5 anos), as orientações indicam atividades de estímulo às crianças, leitura de textos pelos pais ou responsáveis, desenho, brincadeiras, jogos, músicas infantis e algumas atividades em meios digitais, se possível. A ênfase deve ser em brincadeiras, conversas, jogos, desenhos, entre outras para as famílias desenvolverem com as crianças. As escolas e redes podem também orientar as famílias a estimular e criar condições para que as crianças sejam envolvidas nas atividades rotineiras, transformando os momentos cotidianos em casa, em espaços de interação e aprendizagem.

Diante dessas possibilidades de interação e manutenção de vínculos afetivos, um novo desafio se apresenta: a necessidade de acessar o universo digital e a utilização de tecnologias

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para que professores, crianças e famílias possam manter a continuidade do vínculo e dos processos de aprendizagem fora da escola.

A questão agora é desenvolver práticas que sejam coerentes com as concepções dos documentos norteadores da E.I. utilizando meios digitais, um desafio e tanto para um segmento que dificilmente imaginou esse tipo de interação com os pequenos.

Por outro lado, há inúmeras questões que discutem o acesso da E.I. à utilização de tecnologias, visto que crianças pequenas não devem ser longamente expostas às telas e carecem de maior autonomia para estar com aparatos tecnológicos, geralmente, por isso, dependem da companhia de adultos responsáveis, nunca sozinhas.

A partir desse novo contexto, conforme Melo e Tosta (2008), a escola, enquanto instituição formadora, e os professores, enquanto agentes dessa formação, assumem junto com as famílias a grande responsabilidade em relação às tecnologias na escola e para a escola. O fato de o tema em questão estar contemplado na BNCC aparenta uma grande conquista e entende-se que as circunstâncias da pandemia parecem favoráveis. Mas essa realidade merece ser problematizada.

Diante dessa perspectiva, caracterizam-se como dificultadores a falta de capacitação profissional, de equipamentos e estrutura física adequada, além das dificuldades em concretizar o currículo no cotidiano fora da escola. A questão das desigualdades sociais e do acesso das famílias às tecnologias também é obstáculo para o bom rendimento de práticas virtuais.

De fato, muitos ainda questionam qual a necessidade da tecnologia na escola de infância e, embora pesquisadores como Ferreira (2009) e Silva (2010) tenham demonstrado que estamos diante de uma realidade inquestionável, ainda existem muitas lacunas importantes no que diz respeito à educação infantil. De acordo com Santos (2012), a educação infantil não tem sido foco de estudos quando se trata da utilização de tecnologias em suas práticas, mostrando-se mais impermeável e resistente a essa inovação na prática docente que outros níveis escolares.

Nesse atual contexto educacional, o desafio aumenta, pois é preciso que o professor esteja preparado para o domínio e a assimilação crítica da linguagem digital em caráter de urgência. Essa é uma preocupação. Que práticas digitais devem ser utilizadas com os pequenos? Qual a qualidade das interações nesse formato virtual? O que as crianças podem aprender com esse tipo de interação?

A interação é essencial ao desenvolvimento e à construção de conhecimentos, conforme sinaliza Vygotski (2002). De acordo com suas afirmações, o desenvolvimento do pensamento infantil acontece em dois momentos:

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Primeiro no nível social, e, depois, no nível individual; primeiro entre pessoas (interpsicológica), e, depois, no interior da criança (intrapsicológica). Isso se aplica igualmente para atenção voluntária, para a memória lógica e para a formação de conceitos. Todas as funções superiores originam-se das relações reais entre indivíduos humanos (VYGOTSKI, 2002, p. 61).

A partir dessa perspectiva, é possível observar o quanto as interações têm papel fundamental no desenvolvimento cognitivo da criança, pois, é a partir da interação entre diferentes sujeitos que se estabelecem processos de aprendizagem e, por consequência, o desenvolvimento de suas estruturas mentais existentes desde o nascimento.

Diante disso, a cibercultura de Lévy (2010) e suas ferramentas de comunicação social também contribuem no contexto educacional, sobremaneira para a promoção da interação. Porém, o que chama a atenção nos estudos do autor são suas posições sobre a nova relação que o sujeito estabelece com os saberes:

O que é preciso aprender não pode mais ser planejado nem precisamente definido com antecedência. […] Devemos construir novos modelos do espaço dos conhecimentos. No lugar de representação em escalas lineares e paralelas, em pirâmides estruturadas em ‘níveis’, organizadas pela noção de pré-requisitos e convergindo para saberes ‘superiores’, a partir de agora devemos preferir a imagem em espaços de conhecimentos emergentes, abertos, contínuos, em fluxo, não lineares, se reorganizando de acordo com os objetivos ou os contextos, nos quais cada um ocupa posição singular e evolutiva (LÉVY, 2010, p. 168).

Nesse sentido, o autor coloca em xeque toda a organização do sistema educacional, especialmente os currículos e o papel do professor. O professor deveria abandonar o lugar historicamente construído de detentor do conhecimento para se tornar um incentivador da inteligência coletiva, ser um mediador e aprendiz.

Sendo assim, acredita-se que o professor da E.I. deve se apropriar das inovações junto à criança e suas famílias, deixando para trás uma postura distante, a de um ser inalcançável de outros tempos, para agora estar junto à comunidade escolar, cuidando e educando para os novos tempos. Essa nova postura proporcionará uma via de mão dupla, do docente para a criança e vice-versa. Ao longo dos processos de interações digitais, resultará uma construção eficiente de saberes coletivos, compartilhados e, dessa forma, ambos se informam e constroem conhecimento.

Manarcorda (2010) corrobora Vygotski (2002) que “a atividade humana, de fato se caracteriza como atividade mediada por instrumentos que são o resultado da história da humanidade e do desenvolvimento do indivíduo” (MANACORDA, 2010, p. 390).

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No indivíduo, as funções, ou seja, o pensamento, nascem nas relações interpsíquicas, ou seja, entre os homens e somente depois tornam-se intrapsíquicas, internas ao indivíduo. Esta concepção atribui claramente um papel essencial não somente à linguagem, mas também à educação e ao trabalho, isto é, ao uso dos instrumentos auxiliares materiais na educação (MANACORDA, 2010, p. 390).

Segundo Carbonell (2002), para motivar a criança e contribuir para sua formação, faz-se necessária a incorporação de propostas inovadoras, pois elas “facilitam uma aprendizagem mais atraente, eficaz e bem-sucedida”. Tais propostas requerem, segundo o autor, uma série de intervenções em vários campos, exigindo:

modificar atitudes, ideias, culturas, conteúdos, modelos e práticas pedagógicas. E, por sua vez, introduzir em uma linha renovadora, novos projetos e programas, materiais curriculares, estratégias de ensino e aprendizagem, modelos didáticos e outra forma de organização e gerir o currículo, a escola, e a dinâmica da classe (CARBONELL, 2002, p. 19).

Dessa maneira, assim como a sociedade atual, a criança com a qual se convive hoje apresenta também novas demandas de aprendizagem. Coelho (2012) afirma que

a Geração Y (nativos digitais) alterou, definitivamente, os rumos da Comunicação e da Educação. Portanto, a escola e o professor, dentro do modelo tradicional, já não conseguem mais prender a atenção desse novo tipo de aluno. Assim, evidencia-se a urgência de uma transformação pedagógica e, principalmente, curricular, uma vez que a Educação assume um novo papel de usuários das novas TIC para acolher esse novo tipo de aluno: nativo digital. (COELHO, 2012, p. 91.)

Sendo assim, os docentes devem reconhecer essa criança como um nativo digital, considerando novas formas de mediação no ensino. Nesse sentido, com o objetivo de aliar-se às práticas pedagógicas, o uso das mídias e tecnologias digitais pode colaborar com o professor de E.I. nesse processo de mudança de postura profissional, bem como a assumir uma nova postura frente às tecnologias que surgem a todo momento na sociedade.

Aqui entende-se como tecnologias digitais “um vasto conjunto de técnicas de capacitação, finalização, distribuição, recepção e reprodução de imagens e sons em diversos suportes” (CANNITO, 2010, p. 72-73). O conceito abrangeria uma infinidade de objetos, como, por exemplo, câmeras, computadores, programas, mas que se diferenciam das tecnologias não digitais “pela sua convertibilidade (a possibilidade de amálgamas entre esses mesmos objetos), pela comunicação entre eles e suas alternativas de alterações recíprocas” (NEGROPONTE, 1995 apud CANNITO, p. 74).

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104 Nesse sentido, os processos lineares, com os quais o educador está acostumado, são desafiados, uma vez que essas possibilidades oferecem novos pontos de contato e técnicas de interação. “Cada uma dessas técnicas específicas facilita determinados procedimentos de linguagem e ajuda a criar novos objetos estéticos” (CANNITO, 2010, p. 73). Sendo assim, o professor se vê diante de um aparato tecnológico, com o qual precisa interagir e, a partir daí, criar experiências educativas inovadoras para/com as crianças. Crianças que também não são como as de antigamente, trata-seagora de nativos digitais.

Há de se criar novas concepções e se sabe que, para os professores, essa mudança não é algo simples, mas, ao contrário, esse é um dos dilemas da educação.

Dessa forma, instauram-se aqui alguns entraves. O caminho para o acolhimento do novo não é fácil. Conforme Melo e Tosta (2008), é uma questão crucial manter as práticas pedagógicas atualizadas e sintonizadas com nossa realidade social. São muitos os novos processos de troca de informação e produção de conhecimentos e não é tarefa fácil a incorporação dessas novas tecnologias na escola. E não é o caso, também, de utilizar as tecnologias digitais a qualquer custo.

Para tanto, é preciso fomentar a pesquisa, suscitando ideias e propostas para a superação do descompasso entre educação e utilização das mídias, instrumentalizar escolas com as tecnologias possíveis e, a partir delas, incentivar programas de formação docente continuada com socialização de práticas exitosas, a fim de estimular e inspirar os docentes a experimentar tais posturas em sua realidade educativa com as crianças.

De acordo com Melo e Tosta (2008), se, a partir da escola, a criança tiver acesso a instrumentos mais especializados, como uma educação para lidar com a tecnologia comunicacional, se ela tiver maiores oportunidades de expressão e desenvolvimento de suas habilidades comunicativas, seguramente estará formando um sujeito mais bem preparado, capaz de tomar decisões frente às mensagens midiáticas recebidas.

A utilização de tecnologias tem deixado muitos educadores de E.I. à deriva, sem saber o que e como fazer. Se o desejável é que os professores incorporem tecnologias digitais à prática pedagógica, transformando-a para melhor integrá-las no contexto atual, é preciso ir além. Nesse momento em que estamos em atividades virtuais,

impõe-se dar mais atenção aos sistemas expressivos, função simbólica, emoção e empatia, favorecer comportamentos criativos e estimular cooperação integrados aos conteúdos das áreas de conhecimento. Além disso, destacamos a formação de comportamentos necessários para as aprendizagens escolares, tais como atividades de estudo, comportamento leitor, metodologia de pesquisa, desenho e escrita (LIMA, 2020, p. 10.)

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De acordo com Freitas (2010), os professores precisam compreender os gêneros discursivos e as linguagens digitais que são usados pelas crianças, para integrá-los, de forma criativa, construtiva e contextualizada, ao cotidiano escolar. Integrar não significa abandonar práticas existentes, que são produtivas e necessárias, ao contrário, implica que a elas se acrescente o novo.

Nesse sentido, conforme Freitas (2010), é imprescindível que professores e toda a comunidade escolar sejam letrados digitais, isto é, que famílias, professores e alunos se apropriem, criativa e criticamente da tecnologia, atribuindo-lhe significados e funções, em vez de apenas consumi-la passivamente. Espera-se que o letramento digital seja compreendido para além de um uso meramente técnico e instrumental.

Formação docente e letramento digital na Educação Infantil

Diante desse contexto, diversos autores, como Lankshear, Snyder e Green (2000), Buzato (2006) e Souza (2007), apresentam um conceito importante para a formação docente. O conceito de Letramento Digital (Digital Literacy) tem sido bastante discutido no mundo e no Brasil. Conforme afirmação de Buzato (2006),

letramentos digitais (LDs) são conjuntos de letramentos (práticas sociais) que se apoiam, entrelaçam e apropriam mútua e continuamente por meio de dispositivos digitais para finalidades específicas, tanto em contextos socioculturais geograficamente e temporalmente limitados, quanto naqueles construídos pela interação mediada eletronicamente (BUZATO, 2006, p. 16.)

Em outras palavras, compreende-se letramento digital como o conjunto de competências e habilidades necessárias para que o sujeito compreenda e utilize a informação de maneira crítica e construtiva, de variadas formas, vinda de variadas fontes e apresentada por diferentes meios digitais.

De acordo com Souza (2007), ser letrado digital inclui, além do conhecimento funcional sobre o uso da tecnologia, um conhecimento crítico desse uso. Assim, para o docente, tornar-se digitalmente letrado significa detornar-senvolver novas habilidades, aprender novos tipos de discursos e, segundo a autora, por vezes, assemelha-se até a aprender outra língua. Trata-se de um desafio aos docentes da atualidade e aos que estão por vir. Soares (2002), autora brasileira, referência em alfabetização e letramento, define letramento digital,

como “certo estado ou condição que adquirem os que se apropriam da nova tecnologia digital e exercem práticas de leitura e de escrita na tela diferentes do estado ou

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condição – do letramento – dos que exercem práticas de leitura e de escrita no papel” (SOARES, 2002, p. 151).

Diante dessa definição, a autora acrescenta que se devepluralizar a palavra letramento

e se reconhecer que diferentes tecnologias de escrita criam diferentes letramentos. Conforme Soares (2002), essa necessidade de pluralização do termo letramento já estava na pauta de diversos autores, entre eles Lankshear, Snyder e Green (2000).

Nesse sentido, compreende-se que o letramento digital possa fazer parte de um projeto de formação docente nas escolas de E.I. não como uma disciplina isolada, mas como linguagem presente em práticas interdisciplinares, nas quais o docente experiencie o letramento digital, constituindo, assim, o próprio processo de formação profissional. Segundo Buzato (2006):

Se aceitarmos que os letramentos digitais, as práticas, tecnologias e significados que os constituem não estão separados por uma "brecha" das práticas, tecnologias e significados que nos trouxeram até aqui, mas, ao contrário, são o fruto de uma ação social coletiva que gerou apropriações, amalgamamentos e sínteses entre gêneros, linguagens e tecnologias até então vistas como coisas separadas, estaremos em posição de começar a pensar uma lógica de formação do professor que não é do tipo "agora isso e não mais aquilo", mas do tipo "transformar isso praticando aquilo”(BUZATO, 2006, p. 19).

Conforme Freitas (2010), isso é importante, uma vez que, nos processos formativos de professores, tanto iniciais quanto continuados, ainda se mostram tímidos os esforços de trabalho relacionados ao letramento digital. É necessário que a escola, por mais desafiador que pareça, assuma essas novas possibilidades de transformação e inicie esse processo de mudança.

De acordo com Brito (2001), é fato que, assim como a sociedade, a escola sente os impactos do surgimento e da incorporação das novas tecnologias. Dessa maneira,

do livro ao quadro de giz, ao retroprojetor, do rádio à TV, do cinema ao DVD, dos computadores aos laboratórios de informática e ao tablete, a escola vem tentando dar saltos qualitativos, sofrendo as transformações que levam junto um professorado mais ou menos perplexo, que se sente muitas vezes despreparado e inseguro diante do enorme desafio que representa a incorporação das tecnologias digitais ao cotidiano escolar (BRITO, 2001, p. 119).

Segundo a autora, esse fato não ocorre somente nos municípios do interior do Brasil, mas, principalmente, nas capitais, onde os professores são muito mais pressionados a utilizar essas novas ferramentas.

Sendo assim, compreendemos que as instituições escolares, de modo geral e, em especial, as de E.I., estão incorporando em seu contexto a utilização cada vez mais frequente de tecnologias, acreditando serem elas, “facilitadoras” do trabalho docente. Uma justificativa

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para isso se deve ao fato de que a criança enxergará uma aproximação entre a escola e sua realidade fora dela.

Diante do inesperado, as redes de atendimento à educação infantil, que não tinham e nem viviam uma cultura digital, de repente se veem pressionadas e lançam mão de oferecer “qualquer coisa on-line” como atividade escolar para as crianças, afinal, essa é a demanda do momento. A realidade é que, em grande parte das creches e escolas públicas e particulares, esse universo digital ainda é algo bem distante da realidade em que se encontram. E, para agravar o cenário, surge uma grande histeria pedagógica na Educação Infantil em torno desse movimento digital e da necessidade de se fazer atividade on-line.

Mas o que fazer? E como fazer? O sentimento é que professores estão à deriva nesse mar de novas tecnologias e informações. Ficar assim não é possível. É preciso enxergar possibilidades, traçar rotas objetivas, ter escuta apurada das demandas das crianças e suas famílias, ver modelos e buscar mediadores eficientes na construção de novas aprendizagens a partir da utilização das mídias digitais. De acordo com Lima,

a escola se apresenta, nesta situação, como um campo promissor de ação. Ela envolve várias gerações e, por sua própria natureza, implica um espaço cultural de interação humana, ao qual todos retornarão futuramente, mas que por ora funciona à distância (LIMA, 2020, p. 15).

É urgente que a escola faça, segundo Melo e Tosta (2008), uma reflexão que implica a utilização das tecnologias como princípio incorporado no projeto político pedagógico das instituições de ensino. Em outras palavras, que sejam inseridas no cotidiano escolar as linguagens digitais como objeto de estudo e reflexão por parte dos gestores, dos professores e de toda a comunidade escolar.

Uma possível alternativa é buscar caminhos de integração entre a prática escolar e a utilização das mídias digitais de forma significativa e contextualizada, em contrapartida às ações educativas fragmentadas, mecânicas e sem sentido para as crianças. Ao pensar em práticas pedagógicas digitais nesse momento para a E.I, não podemos deixar de considerar a casa como espaço de experiências e aprendizagens e as práticas de acolhimento,

observamos, ainda, que a sensibilidade e a formação estética se destacam como prioridades do momento, uma vez que o impacto das artes na liberação de químicas de bem estar e ativação da área de recompensa do cérebro é crucial para buscar um equilíbrio emocional com diminuição do medo, angústia, ansiedade que a pandemia do Covid 19 acarreta (LIMA, 2020, p. 10).

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108 O que se espera dentro de uma nova perspectiva curricular para este momento e para o pós-pandemia é que ocorra utilização das tecnologias digitais como potencializador da contribuição do processo de ensino-aprendizagem, numa abordagem construtiva, reflexiva e compartilhada entre professores, crianças e comunidade na utilização das mídias digitais na escola de infância.

Conclusão

Se, por um lado, num esforço em acompanhar o desenvolvimento das sociedades, as escolas de infância incorporam em suas propostas e currículos a utilização da Linguagem Digital, por outro, professores sentem-se impotentes para lidar com essa mudança. Municípios e instituições responsáveis por essa etapa de ensino se veem diante de mais uma provocação, que é o da formação docente com foco na utilização das mídias digitais.

Práticas educativas que utilizam as tecnologias digitais têm o poder de dar visibilidade a diferentes formas culturais que fazem parte de um território e que não constam nos livros. As mudanças provocadas pelas tecnologias nos tempos do COVID-19 serão assimiladas pela sociedade, já que elas implicam em uma nova postura e a escola pós-pandemia pode ser a instituição a potencializar esse debate.

Num futuro próximo, deve-se esperar que a situação atual da pandemia evolua para uma etapa em que seja possível um retorno das crianças pequenas às creches e pré-escolas e, então, como essas práticas digitais serão incorporadas, ou como terão continuidade nesse novo momento que a Educação Infantil viverá? Como serão as propostas de formação docente e o letramento digital? Como construir um novo currículo que inclua a linguagem digital de forma contextualizada e não instrumentalizada? Como a comunidade escolar pode participar dessa construção? Sigamos em busca das respostas.

Assim, este trabalho se propôs a contribuir, apresentando uma discussão sobre propostas curriculares para a infância e suas relações com as tecnologias digitais na escola de E.I. nos tempos de pandemia. Identificaram-se caminhos possíveis, rumo a uma premissa: o desafio em propor uma educação para as crianças que acompanhe as mudanças sociais e se integre a elas através da utilização de recursos digitais, de maneira crítica, criativa, construtiva e coerente com as concepções propostas nos documentos orientadores para a Educação Infantil no Brasil.

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eISSN 1809-4309

https://doi.org/10.5212/PraxEduc.v.15.16212.067

Tempos da escola em tempo de pandemia e necropolítica

School times in a time of pandemic and necropolitics

Tiempos de la escuela en tiempo de pandemia y necropolítica

Walter Omar Kohan* https://orcid.org/0000-0002-2263-9732

Resumo: O presente texto está inspirado em uma live apresentada junto à Maura Corcini, organizada pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd). Ele tem quatro seções. A primeira, “A necrologia, a pandemia, o Brasil”, descreve a forma em que o governo bolsonarista desenvolve uma necropolítica, inclusive a partir da trágica pandemia do COVID-19 que, atualmente, se expande pelo Brasil e pelo mundo. A segunda, “A educação, entre a necropolítica e a pandemia”, anuncia duas dimensões dessa mesma pandemia e o que ela nos permite perceber em relação à escola, como instituição e como forma. A terceira, “A pandemia e os tempos da escola”, apresenta a especificidade de três tempos presentes na educação: khrónos, kairós e aión. Finalmente, a ultima seção, “O tempo da infância: Isabel(a) e o tempo imprevisível da leitura e da escrita”, retoma uma inspiração infantil e alguns sentidos que dela emanam para lembrar do valor e do sentido da infância na educação.

Palavras-chave: Tempo. Escola. Necropolítica.

Abstract: The present text is inspired by a live presented with Maura Corcini, organized by the National Association of Graduate Studies and Research in Education (ANPEd). It has four sections. The first section, “The necrology, the pandemic, Brazil”, describes the way in which the Bolsonarist government develops a necropolitics, including from the tragic COVID-19 pandemic that is currently expanding throughout Brazil and the world. The second section, “Education, between necropolitics and pandemic”, announces two dimensions of this same pandemic and what it allows us to perceive in relation to school, as an institution and as a form. The third section, “The Pandemic and the school times”, presents the specificity of three educational times: chronos, kairos and aion. Finally, the last section, “The time of childhood: Isabel(a) and the unpredictable time of reading and writing” resumes a childlike inspiration and some senses that emanate from it to remember the value and meaning of childhood in education.

Keywords: Time. School. Necropolitics.

Resumen: El presente texto está inspirado en una presentación en vivo con Maura Corcini organizada por la Asociación Nacional de Posgrado e Investigación en Educación (ANPEd). Tiene cuatro secciones. La

* Professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador do Conselho Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Coordenador do Projeto “Filosofia na Infância da Vida escolar” (CAPES-PrInt). E-mail: <wokohan@gmail.com>.

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Tempos da escola em tempo de pandemia e necropolítica

Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 15, e2016212, p. 1-9, 2020 Disponível em: <https://www.revistas2.uepg.br/index.php/praxiseducativa>

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primera, “La necrología, la pandemia, Brasil”, describe la forma en que el gobierno bolsonarista desarrolla una necropolítica, incluso a partir de la trágica pandemia del COVID-19 que actualmente se está expandiendo por Brasil y por el mundo. La segunda, “La educación, entre la necropolítica y la pandemia”, anuncia dos dimensiones de esta misma pandemia y lo que ella nos permite percibir en relación con la escuela, como institución y como forma. La tercera, “La pandemia y los tiempos de la escuela”, presenta la especificidad de tres tiempos presentes en la educación: khrónos, kairós y aión. Finalmente, la última sección, “La época de la infancia: Isabel(a) y el imprevisible tiempo de la lectura y de la escritura”, retoma una inspiración infantil y algunos sentidos que emanan de ella para recordar el valor y el sentido de la infancia en la educación.

Palabras clave: Tiempo. Escuela. Necropolítica.

À Isabel(a), que me ensina tanto sobre ler e escrever Introdução

Este texto é um texto de infâncias. Ele nasceu de uma apresentação em uma live junto à Maura Corcini, em 13 de maio de 2020, organizada pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd). Agradeço à Maura, pela inspiração e pela hospitalidade daquela tarde, e à Geovana Lunardi, presidenta da ANPEd, pelo convite para a live e, depois, para tornar aquela apresentação em um texto escrito para o presente Dossiê.

Quando estava tentando dar forma escrita aos rascunhos daquela tarde, sacudido pelas mortes pretas causadas pelo racismo que abala o Brasil, os Estados Unidos e o mundo, e pelas mortes causadas, em parte, pelo COVID-19 e, em parte, pela brutal irresponsabilidade do governo brasileiro, fui mexido pela inspiração decisiva que estava precisando de uma voz infantil. Compreendi que este texto não poderia apenas dar voz à gravíssima situação política e sanitária em que se encontra atualmente o Brasil, e que qualquer pensamento em torno da educação e da escola também deveria honrar a infância e a dimensão infantil do tempo que estamos vivendo e do tempo educacional que a infância pode nos fazer viver.

Com essa pretensão e inspiração, o texto está dividido em quatro partes principais. Na primeira, “A necrologia, a pandemia, o Brasil”, descrevemos a forma em que a necropolítica do governo bolsonarista encontra na atual pandemia do COVID-19 uma extensão do seu modus

operandi. Na segunda, “A educação, entre a necropolítica e a pandemia”, anunciamos duas

dimensões da pandemia e o que ela nos tem permitido perceber em relação à escola. Na terceira, “A pandemia e os tempos da escola”, apresentamos a especificidade de três tempos presentes na educação. Finalmente, em “O tempo da infância: Isabel(a) e o tempo imprevisível da leitura e da escrita”, retomamos a inspiração infantil e alguns sentidos para repensar a forma em que nos relacionamos com a infância na educação.

Já é hora de começar e apresentar a primeira inspiração infantil. Vem de uma fala de Isabel(a), menina açoriana de 9 anos: “Não é quando a gente quer que pode ir escrever. As palavras vão sair más se escrevermos sem disposição”1. Obrigado, Isabel(a), pela preciosa dica: o tempo da escrita, efetivamente, não é o da nossa vontade, mas o de nossa disposição. Precisamos dispor-nos, inteiramente presentes, se não queremos que nossas palavras saiam más. Com essa disposição, presença e atenção infantis, começamos a escrever um texto que voltará à Isabel(a) e a sua voz infantil.

1 Isabel(a), criança açoriana, de 9 anos, é filha da minha colega e amiga Magda e do Ricardo. Ela me autorizou a colocar assim seu nome, porque ela gosta. E também achou muito “gira” uma versão inicial do presente texto.

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A necrologia, a pandemia, o Brasil

Vivemos um momento muito difícil no Brasil. Uma guerra. Em certo sentido, a guerra não é nova pois faz parte do projeto colonizador imposto ao longo dos últimos séculos em toda a América. As comunidades indígenas, negras e, de forma mais geral, as mais empobrecidas que o digam. Trata-se de uma guerra permanente, constante, persistente, um projeto racista, misógino, assassino que se afana em excluir todas as formas da diferença que não se encaixam nele. O mais específico do atual momento brasileiro é a virulência dessa guerra, seu caráter ostensivo, brutal, exterminador, o que o nosso colega da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), João César Castro Rocha, denomina “a guerra cultural bolsonarista/olavista2” (ROCHA, 2020, n.p.). Como Rocha mostra, o governo Bolsonaro vive da morte, do extermínio que fazem parte do seu

modus operandi de maneira essencial. É a consumação da necropolítica baseada em um conceito de

soberania, como o que A. Achile Mbembe afirma: “[...] a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações” (MBEMBE, 2018, p. 10-11). Nesse sentido, Foucault tinha apresentado o trânsito do poder da soberania ao biopoder, por volta do século XVIII europeu, como um trânsito do mote do fazer morrer e deixar viver ao mote do fazer viver e deixar morrer (FOUCAULT, 2006, p. 285ss.). Entre os séculos XVII e XIX, consolida-se a noção de população e, com ela, a de biopolítica. Autores como G. Agamben e o próprio Mbembe têm descrito a passagem mais contemporânea do império da biopolítica (do grego bíos = vida) à necropolítica (do grego nékros = morte). Essa passagem talvez corresponda a um movimento recente nas sociedades europeias: de nosso lado do mundo, estamos já instalados na necropolítica desde a chegada dos europeus. O que é a necropolítica? Digamo-lo de forma simples, com a inspiração de M. Foucault: entre nós, a necropolítica é um dispositivo de governo para fazer morrer

e não deixar viver.

O momento atual é elucidativamente cruel. A pandemia gerada pelo COVID-19, longe de ser combatida firmemente, está sendo veiculizada como mais um instrumento dessa necropolítica, quase como uma oportunidade de consolidar a política da morte de forma mais rápida, segura, econômica. O bendito “mercado” tem dado sinais mais do que claros nesta primeira semana de junho de 2020: a mesma semana em que o Brasil bateu recorde de mortes, ultrapassando os 35 mil mortos3; o real valorizou-se quase 7% frente ao dólar; a bolsa de valores de São Paulo subiu mais de 8%; “os mercados mostram sinais de recuperação”, anunciam os jornais. Há necessidade de dados mais claros para ver a aliança entre a versão local do capitalismo e a necropolítica? Se houver alguma dúvida, basta escutar a Bolsonaro ainda nesta mesma semana (ou em qualquer outra): “A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo” (2 de junho de 2020)4. Naturalizar e banalizar a morte faz parte da necropolítica. Antes, no começo da pandemia, o próprio tinha deixado ver antecipadamente o caráter higienista de sua necropolítica: “Vão morrer alguns [idosos e pessoas mais vulneráveis] pelo vírus? Sim, vão morrer. Se tiver um com deficiência, pegou no

2 No dia 7 de junho de 2020, a guerra tornou-se também interna com o desabafo insultante de Olavo de Carvalho ao Jair Bolsonaro com um vídeo cheio de afrontas e insultos, postado nas redes sociais. Nas mesmas redes, ele voltou logo atrás. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/midia/olavo-rompe-com-bolsonaro-ameaca-derruba-lo-e-depois-volta-atras/>. Acesso em: 8 jun. 2020.

3 Painel COVID-19 do Ministério da Saúde. Disponível em: <https://covid.saude.gov.br/>. Acesso em: 5 jun. 2020. Nos últimos três dias, o Ministério da Saúde atrasou os dados. Dia 5 de junho, logo depois de colocar os dados diários, o portal entrou “Em manutenção” e o ministério da saúde emitiu nota dizendo que iria recontar casos porque afirma que há “dados fantasiosos”. Faltou dizer de quem é a morbosa fantasia. Sobre as cotações do dólar, ver bcb.gov.br; sobre as cotações da Bolsa de São Paulo, ver <http://www.bmfbovespa.com.br/pt_br/servicos/market-data/cotacoes/>. Acesso em: 16 jun. 2020.

4Disponível em:

<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/06/02/interna_politica,860325/a-gente-lamenta-todos-os-mortos-mas-e-o-destino-diz-bolsonaro.shtml>. Acesso em 16 jun. 2020.

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Tempos da escola em tempo de pandemia e necropolítica

Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 15, e2016212, p. 1-9, 2020 Disponível em: <https://www.revistas2.uepg.br/index.php/praxiseducativa>

4 contrapé, eu lamento”5. São apenas exemplos, o desprezo à vida e à diferença é cotidiano, insultante, abominável. Hoje morre uma pessoa por minuto pelo vírus no Brasil. Dolorosamente, quando este texto estiver sendo lido, os números da morte serão ainda mais impactantes. E, em uma sociedade racista e machista, já podemos antecipar quais serão os principais alvos da necropolítica.

Uma das coisas que Bolsonaro não diz é que, pelo seu cargo, ele deveria se ocupar, em um momento de pandemia, de gerar as melhores condições possíveis para que a morte não chegue desnecessariamente antes do tempo. Também não diz que uma boa parte dessas mortes poderiam estar sendo evitadas. A vizinha Argentina é, desta vez, um bom exemplo, quase oposto em termos de como o governo reagiu perante a pandemia. Se, no Brasil, o governo desde o início da pandemia insistiu em minimizar e desqualificar a importância do COVID-19 e que a economia não poderia parar; na Argentina, adoptou-se, desde março, um isolamento estrito nacionalmente. O primeiro caso de COVID-19 identificado na Argentina foi no dia 3 de março, e a primeira morte foi anunciada em 7 de março. No Brasil, o primeiro óbito foi em 17 de março e, embora existam diversas versões sobre o efetivo primeiro caso no país, podemos considerar que os dois países receberam o COVID-19 em um período bastante próximo. Em 10 de junho de 2020, o Brasil tinha mais de 650.000 casos e mais de 35.000 mortes6; a Argentina tem pouco mais de 21.000 casos e 632 mortes7 - 30 vezes menos casos de infectados e... 50 vezes menos mortes! Mesmo que a população do Brasil seja quase cinco vezes maior do que a da Argentina, a diferença dos índices proporcionada é assustadora: no Brasil, há um índice de 167 mortes por milhão de habitantes; na Argentina, o índice é de 15 – 11 vezes menos o número de mortos em proporções relativas ao número de habitantes.

Ainda é preciso dizer mais alguma coisa? Talvez sim: estamos nos referindo à Argentina (não à Alemanha, à França, a Singapura, à Coreia do Sul ou ao Canadá), que tem uma crise econômica muito mais aguda do que a do Brasil e um sistema de saúde pública igualmente desatendido pelas políticas públicas dos últimos anos; e que os setores que governavam a Argentina, até final de 2019, responsáveis em boa parte por essa crise e essa desatenção da saúde pública, impulsam agora uma campanha contra o isolamento social, ao que chamam ironicamente de “infectadura”, com argumentos semelhantes aos defensores da necropolítica no Brasil.8 Em outras palavras, se o vírus tivesse chegado o ano passado, talvez a Argentina estaria em uma situação não tão diferente da que o Brasil padece hoje: a necropolítica e o capital entre nós não têm nacionalidade ou atravessam todas elas.

A educação, entre a necropolítica e a pandemia

Nesse cenário, a educação no Brasil encontra-se encurralada entre a pandemia e a necropolítica. Enquanto assistimos a cenas de corpos apilhados nos hospitais e nos cemitérios das grandes cidades, alguém poderia perceber, com diferente grau de satisfação, a morte da própria escola. Com efeito, para os discursos mais conservadores e regressivos, a pandemia poderia ser uma oportunidade propícia para distancializar de vez a educação: se as práticas educativas podem

5 Disponível em:< https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2020/03/27/bolsonaro-quer-convencer-que-vida-de-idoso-e-pedagio-a-pagar-ao-coronavirus.htm>. Acesso em 16 jun. 2020.

6 Dados extraídos do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), disponível em: <http://www.conass.org.br/painelconasscovid19/>. Acesso em: 10 jun. 2020.

7 Dados extraídos do Ministerio de Salud, República Argentina, disponível em: <https://www.argentina.gob.ar/coronavirus/informe-diario/junio2020>. Acesso em: 10 jun. 2020.

8 Ver, por exemplo, Los anticuarentena marcharam ao Obelisco, disponível em: <https://www.pagina12.com.ar/269259-los-anticuarentena-marcharon-al-obelisco>. Acesso em: 6 jun. 2020.

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continuar a distância, qual seria a real necessidade de seguir mantendo escolas abertas com as pretensões explicitadas até o cansaço de ajuste nos gastos públicos? Para que manter uma instituição que vive em permanente crise, que exige recursos que poderiam ser usados com outros fins e que dá conta pifiamente de suas funções e sentidos sociais? Não deveríamos aproveitar o vírus e desescolarizar de vez a sociedade?9

A pandemia tem nos oferecido a possibilidade de pensar e de perceber as coisas de outra maneira. Eis a dupla cara do COVID-19: de um lado, ele infecta, contamina, atrofia, pelo menos temporalmente, alguns sentidos, principalmente o olfato e o paladar; também ataca sobretudo os pulmões, gerando a falta de ar que, em muitos casos, leva à morte. Ele é letal e, como todo vírus, vive da morte do corpo que o aloja. Ele é necrófilo. Contudo, ao mesmo tempo, ele tem suspendido um sistema que parecia inquebrantável, imparável, incontornável. Como o sistema que suspende também vive da morte, podemos dizer que, implicitamente, ele é também biófilo. Ao mesmo tempo, o vírus ama a morte e a morte da morte, a vida que pelo menos potencial e indiretamente libera. Um dos aspectos do sistema capitalista que tem sido suspendido pelo vírus é a experiência frenética, exigida, produtivista do tempo que esse sistema estimulava e da qual vivia. Voltaremos a essa experiência temporal.

Também seus efeitos sobre as escolas10 mostram a dupla cara do vírus: pela primeira vez desde sua existência, todas as escolas foram obrigadas a fechar de vez. Ficamos todos subitamente sem escolas, no Brasil e no mundo. Em um sentido, então, o vírus decretou uma morte, pelo menos temporariamente, das escolas: as deixou sem vida interna, sem cheiros, sabores, sem ar. Contudo, ao mesmo tempo, até os mais críticos da instituição escolar, pudemos perceber o que não percebíamos, pelo menos, com a clareza que a pandemia nos oferece, pois devemos também aceitar que a pandemia tem a potência de mostrar tudo mais claramente.

Notemos alguns dos principais aspectos relativos a essa escola que não percebíamos tão claramente e que esse tempo de pandemia nos tem mostrado com chamativa nitidez (a relação não é exaustiva): a diferença radical entre as escolas públicas e particulares e, de um modo mais geral, entre a educação pública e a educação privada; o tanto de coisas que se fazem em uma escola, que não dizem respeito a apenas ao ensinar e ao aprender, mas à dimensão social da escola em um país como o Brasil, onde, para muitos setores da população, a escola é o local onde se faz a principal (ou única) refeição do dia e que não há como fazer quando ela fecha as suas portas; a insubstituível presença de professoras e de professoras que não podem ser substituídos(as) por quem não está preparado para isso e menos ainda por sistemas tecnológicos auto programáveis e executáveis; a inescusável necessidade de formar os e as docentes atuantes nas escolas para que possam ser os e as docentes que desejam ser; as gritantes desigualdades da sociedade brasileira com uma altíssima parte da população sem as mínimas condições de conectividade e aparelhagem como para atender a uma educação remota ou a distância; a impossibilidade de se fazer escola sem corpos presentes, corpos que se tocam, se abraçam, se cheiram e até se empurram e se atropelam; a tensão entre a casa e a escola ou, em outras palavras, a importância de a escola ter um espaço próprio, separado, apartado das outras instituições sociais; ainda, em outras palavras, a impossibilidade de ser mãe e

9 A referência implícita a Iván Illich é explícita e deliberada. Recentemente, em “Razones para reivindicar a esa vieja vaca sagrada llamada escuela”, Nicolás Arata lembra a intervenção de Iván Illich no Congresso Pedagógico Nacional Boliviano, em 1970, exortando os professores e as professoras bolivianos(as) a liberar a Bolívia de seu sistema escolar. A expressão “velha vaca sagrada” é do próprio Illich. Como esclarece Arata, muito longe dos interesses libertários de Illich, estão os que hoje querem aproveitar o momento para se livrar da escola. O texto de Arata está publicado na série “Pensar a Pandemia” do Observatorio Social del Coronavirus de CLACSO, disponível em: https://www.clacso.org/razones-para-reivindicar-a-esa-vieja-vaca-sagrada-llamada-escuela/. Acesso em: 10 jun. 2020. 10 O termo “escola” tem aqui um sentido genérico, abrangendo creches, escolas de Ensino Fundamental e Ensino Médio, universidades e qualquer outra forma de espaço pedagógico.

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Tempos da escola em tempo de pandemia e necropolítica

Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 15, e2016212, p. 1-9, 2020 Disponível em: <https://www.revistas2.uepg.br/index.php/praxiseducativa>

6 docente, pai e docente ou filha/filho e aluno ao mesmo tempo. Como podemos perceber, não são poucas coisas as que o vírus tem permitido apreciar. E, mais uma vez, a lista está longe de ser exaustiva.

Em outras palavras, uma visão atenta aos efeitos da pandemia mostram, ao contrário do que as vozes que advogam pelo fim da escola querem concluir, o valor extraordinário e insubstituível da escola, como instituição histórica e social e, também, como forma de suspensão e de profanação (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014), que permite aos que a povoam colocar o mundo sobre a mesa para colocá-lo em questão, entendê-lo, problematizá-lo e, quem sabe, imaginar e viver outros mundos. Vamos deter-nos em alguns aspectos específicos que a pandemia nos fez notar, em particular uma certa experiência do tempo e, também, uma especial relação com a infância.

A pandemia e os tempos da escola

Um dos efeitos principais provocados pela pandemia naqueles envolvidos em processos educacionais recai sobre nossa experiência do tempo. Certamente, ela nos afeta diferentemente e não pretendo simplificar algo tão complexo. Partirei de uma distinção primária entre os que atuamos na educação pública e os que atuam na educação privada. Naqueles submetidos às exigências de empresas dedicadas ao negócio educativo, a pandemia pode estar provocando uma sensação de vertigem ainda maior em função da necessidade de se adequar veloz e violentamente a uma situação em que “a empresa educativa” não pode parar. As cobranças continuam as mesmas, só que com efeito multiplicado pela dificuldade de um contexto para o qual ninguém estava preparado. Ao contrário, em aqueles que trabalhamos na educação pública, e mais especificamente nas universidades que suspenderam suas atividades de ensino, a pandemia provoca uma desaceleração e até uma suspensão da experiência do tempo educativo pela possibilidade de repensar os sentidos e as condições do que se faz. Explicitaremos mais amplamente essa ideia.

Com efeito, para os que temos o privilégio (que deveria ser um direito) de manter o isolamento social, a pandemia gera a sensação do mundo ter se detido. Para os que ficamos em quarentena, isso significa uma experiência de tempo suspenso, como se ele não passasse ou como se sua passagem tivesse efeitos relativamente pouco relevantes em função da detenção do mundo exterior. Efetivamente, estávamos habituados a pautar o que fazíamos em casa aos compromissos fora de casa; todavia, quando o fora de casa para, o tempo em casa fica liberado dessa pressão. Esse efeito é muito semelhante ao que Masschelein e Simons (2014) chamam de “suspensão”: na escola, enquanto forma escolar, o que vale fora da escola está suspenso para que a escola possa fazer as suas operações pedagógicas. Por isso mesmo, eles argumentam que a escola nasce simbolicamente quando ela fecha as suas portas, porque ela vive da separação, da suspensão do que vale socialmente. Nesse sentido, seria impossível pensar uma escola-casa ou uma escola em casa, pois justamente a escola nasce da separação da casa e das outras instituições sociais.

Lembremos que a palavra escola tem na sua raiz etimológica uma palavra grega, skholé, que significa justamente “tempo livre”, no sentido de tempo liberado das exigências extraescolares. Nessa dimensão, enquanto dure a quarentena – e “suspendendo” também por um momento a radical distinção de Masschelein e Simons entre escola e casa –, nossa experiência do tempo torna-se escolar, no torna-sentido de estar liberada das exigências habituais do mundo de trabalho. Nestorna-se sentido, curiosa e paradoxalmente, aqueles submetidos às pressões de instituições educativas privadas viram-se impedidos de experimentar um tempo escolar pelo mercado educativo escolar. Nesse mesmo sentido, vale perceber que os que fazem negócio com a escola negam a escola pois negócio vem do latino neg-otium, sendo otium um equivalente latino de skholé, tempo livre. Quem faz

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neg-otium, negócio, faz de fato uma anti-escola, negam o que a escola é, tempo liberado. A pandemia

também permite apreciar isso com maior claridade.

Uma compreensão mais específica do tempo experimentado na pandemia exige-nos uma exploração mais detalhada de sentidos possíveis da experiência temporal. Nesse marco, faz algum tempo que temos trabalhado a diferença entre três formas de temporalidade que vêm da Grécia antiga: khrónos, kairós e aión (KOHAN, 2004). Apresentemo-las novamente de forma sucinta e mais atenta ao tema que aqui estamos abordando: khrónos é o tempo de relógio, do calendário, da instituição. É o tempo que não para, que segue movimentos uniformes, sucessivos, consecutivos, irreversíveis, qualitativamente indiferenciados. É um tempo composto de duas partes (passado e futuro) e uma terceira que apenas tem a materialidade de um limite entre as outras duas: o presente em khrónos é apenas o instante, o agora. Kairós é o tempo da oportunidade, o momento oportuno, a ocasião adequada para se experimentar algo como não se poderia experimentar em qualquer outro momento; é um tempo qualificado, preciso, singular, único. Aión é a duração no tempo; o tempo intensivo, da experiência, do acontecimento. Ele é puro presente. É o tempo daquelas experiências que nos fazem sentir que o presente dura, nas quais estamos como suspendidos no presente: a arte, o amor, a filosofia e, pensando na escola, a leitura, a escrita, o estudo.

Essas três formas de experiência temporal têm importância singular na educação: khrónos é um tempo adulto: o tempo do sistema educativo, das instituições educacionais, da organização do trabalho pedagógico. Tudo o que acontece nas escolas contemporâneas é regido por khrónos: os níveis de ensino, as planificações docentes, a sequência curricular... e a importância de khrónos para a vida social é uma das principais coisas que ensina a instituição escolar, desde a creche até a universidade: as crianças entram nas creches no seu tempo aiónico e saem adultos adequadamente cronologicados.

Por sua vez, kairós também é um tempo adulto: o cruzamento coincidente entre os tempos da inscrição das pessoas no sistema educativo e de certas experiências pedagógicas. É um tempo de coincidência que, por uma imensa variedade de condições, pode ou não acontecer. O sistema e as instituições que seguem khrónos estabelecem idades, fases e momentos para certos processos pedagógicos, organizam os e as estudantes cronologicamente. Por sua vez, as pessoas que dele participam têm suas histórias de vida, culturais, afetivas, pessoais. Desse cruzamento resultam experiências pedagógicas oportunas e inoportunas. Muitas vezes, é o próprio sistema que expulsa e impossibilita o acesso dos estudantes ao processo de aprendizagem no momento que para elas seria propício, oportuno; outras, é a professora ou professor ou a própria estudante que não oportunizam esse momento. As crianças sentem a dificuldade de oportunizar seu tempo da maneira em que ele é disposto pela instituição escolar. Finalmente, aion é o tempo infantil. Precisamente,

aión é o tempo da experiência educativa enquanto tal, do perguntar, do querer saber, do amar

pensar, do criar, do brincar como modo de habitar o mundo... é o tempo da educação como uma experiência durativa, intensiva, que prolonga a temporalidade presente: o acontecimento que interrompe a sequência cronológica e permite uma experiência que se faz presencial, em tempo presente. É o trabalho docente como presença no presente, durativo, intensivo.

O tempo que a pandemia mais afeta a primeira vista é a experiência de khrónos. É claro que a pandemia não afeta khrónos enquanto tal, pois os relógios continuam passando ao mesmo ritmo, com ou sem pandemia. Contudo, nossa experiência cronológica, nossa relação com o tempo do relógio (ou do celular) tem sido profundamente alterada. Para alguns, submetidos a uma exigência ainda maior que antes da pandemia, ele se tornou mais voraz e frenético. Para outros, ele desacelerou. A maior ou menor medida na passagem de khrónos traz como consequência possibilidades ou impossibilidades de experimentar as outras formas da temporalidade. Quanto mais estressados e atormentados pelas demandas em khrónos, menos tempo para pensar, assistir um

Referências

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