• Nenhum resultado encontrado

Lei Maria da Penha: uma análise crítico-feminista de sua aplicação no Município de Caicó/RN

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Lei Maria da Penha: uma análise crítico-feminista de sua aplicação no Município de Caicó/RN"

Copied!
128
0
0

Texto

(1)
(2)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

LUÍSA MEDEIROS BRITO

LEI MARIA DA PENHA: UMA ANÁLISE CRÍTICO-FEMINISTA DA

SUA APLICAÇÃO NO MUNICÍPIO DE CAICÓ/RN

NATAL - RN 2019

(3)

LUÍSA MEDEIROS BRITO

LEI MARIA DA PENHA: UMA ANÁLISE CRÍTICO-FEMINISTA DA

SUA APLICAÇÃO NO MUNICÍPIO DE CAICÓ/RN

Trabalho de Dissertação apresentado ao Programa de Mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.

Linha de Pesquisa: Dinâmicas e Práticas Sociais Orientador: Professor Dr. Edmilson Lopes Junior

NATAL - RN 2019

(4)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Brito, Luísa Medeiros.

Lei Maria da Penha: uma análise crítico-feminista de sua aplicação no Município de Caicó/RN / Luisa Medeiros Brito. - Natal, 2019.

131f.: il. color.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais,

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2019. Orientador: Prof. Dr. Edmilson Lopes Junior.

1. Movimentos Feministas - Dissertação. 2. Juizados Especiais Criminais - Caicó/RN - Dissertação. 3. Lei Maria da Penha - Dissertação. 4. Criminologia Crítica - Dissertação. 5.

Criminologia Feminista - Dissertação. I. Lopes Junior, Edmilson. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 343.6-055.2

(5)

LEI MARIA DA PENHA: UMA ANÁLISE CRÍTICO-FEMINISTA DA

SUA APLICAÇÃO NO MUNICÍPIO DE CAICÓ/RN

Trabalho de Dissertação apresentado ao Programa de Mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.

Natal, 30 de Agosto de 2019.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________ Professor Dr. Edmilson Lopes Junior

Orientador

__________________________________________ Profª. Drª. Lore Fortes

Membro Interno

________________________________________ Prof. Dr. Kilder Barbosa da Silva

Membro Externo

NATAL – RN 2019

(6)

Para Elis, a quem desejo um mundo sem prisões de qualquer natureza.

(7)

AGRADECIMENTOS

Eu não consigo enxergar este trabalho como fruto do “eu” e sim como obra, reflexo e resultado da potência que existe no “nós”, por isso, antes de tudo, afirmo que esta dissertação não é minha, é “nossa”! Deste modo, não faço uso deste espaço tão somente para agradecer, mas, sobretudo, reconhecer o papel de vocês na construção das linhas que seguem.

Começo agradecendo às duas pessoas que são a causa e razão de ser da concretização deste sonho: Mainha e Elis. Não consigo – nem quero – imaginar como seria sem vocês. Estou certa que, ao longo dessa trajetória, nos erguemos enquanto subimos, como fala Angela Davis. Por isso, tenho a certeza que temos a capacidade de subir tanto quanto podemos sonhar, desde que sigamos juntas. Sou e serei sempre grata por todo o amor que construímos.

Meus mais sinceros agradecimentos à minha amiga Cínthia que nunca mediu esforços para estar ao meu lado, em qualquer situação que seja. Cínthia me ensinou a sonhar grande, a ter coragem para enfrentar os obstáculos, a não paralisar ante os desafios, a valorizar as utopias e a crer que revolução só se faz com amor. Além disso, ela foi primordial no processo doloroso de escrita, colocando limites nas minhas digressões, lendo e corrigindo pacientemente cada linha desse trabalho, mas sobretudo, me mostrando que não sou, nem nunca serei só, pois, tenho sua amizade.

Toda a minha gratidão ao meu amigo, protetor, conselheiro e exemplo: Jorge Artur. Jorge me mostra a cada dia a beleza que há nos atos de bondade, sabedoria, afeto, dedicação, delicadeza e paz. Sua força libertária e suas pulsões de vida me tocam como ninguém consegue fazer igual e só tenho a dizer, como canta Arnaldo Antunes, que “seu olhar melhora o meu”. Obrigada por ser a fonte de inspiração teórica para este trabalho. Que sigamos juntos na luta pelo fim das grades que nos cerceiam... Nada nos aprisionará!

Gratidão aos meus irmãos Paulo de Tarso e Guilherme que, mesmo tão jovens, se dispõem a romper com o padrão de masculinidade hegemônico, renovando minha crença na construção de uma sociedade livre de machismo. À minha irmã Marília, pelas risadas, companheirismo e amor que, entre tapas e beijos, ternamente trocamos. Não há um dia sequer que não me orgulhe da inteligência de vocês. À Julinha por ter os olhos mais bonitos do mundo, porque, refletem seu olhar sobre a vida. Agradeço também a Marquinhos por estar sempre pronto a ajudar e por ser tão presente na vida de Elis. Meu muito obrigada.

Sou grata a Ivanberg, porque sem ele, não conseguiria organizar e sintetizar os resultados desta pesquisa. Você foi primordial! Só tenho a agradecer por tudo.

(8)

À minha amiga Valéria e seu esposo Pedro por terem aberto as portas de sua casa e estarem comigo, minha mãe e minha filha na concretização deste sonho. Sem o acolhimento de vocês, essa dissertação jamais existiria. Não tenho palavras capazes de externar minha eterna gratidão. Contem sempre comigo.

Também sou grata a meu orientador Edmilson, por ter se mostrado sempre compreensivo e por respeitar minhas limitações de tempo, espaço e dedicação a este projeto. Sobretudo, agradeço a confiança e respeito às minhas escolhas, me dando autonomia para concretizar esta pesquisa à minha maneira. Espero um dia conseguir ser uma pesquisadora à sua altura. Meu muito obrigada.

Não sou capaz de resumir em palavras tudo o que tenho para agradecer à Janaína Porto, a amiga que o mestrado me deu. A vida sabia que sem ela eu não conseguiria e tratou de colocá-la em meu caminho, para que as dores que eu carregava não me sufocassem e para que soubéssemos que a solidão da academia tinha chegado ao fim. Você é inspiração, amiga. Saiba que no sertão de Caicó existe um coração que caminha sempre contigo.

Minha gratidão a Flávio Medeiros que nos momentos mais difíceis me estendeu a mão. Graças a Flávio me tornei uma pessoa muito melhor. Obrigada por ser teoria e prática solidária. Agradeço também a Otânio, secretário do PPGCS, por ser sempre solícito e disposto a facilitar nossa trajetória acadêmica.

Para agradecer à Jeannie, eu me dispo de qualquer vaidade e afirmo que aprendi com ela a importância de se construir afetos verdadeiros, onde quer que estejamos. Jeannie é um exemplo de garra, inteligência, resiliência, honestidade e doação ao próximo. Minha orientadora, minha amiga, meu porto seguro na escrita dos capítulos deste trabalho, minha eterna gratidão.

Agradeço a Adailton por me fazer acreditar que, parafraseando Criolo, existe amor no PPGCS. Nossas risadas, nosso cuscuz e nossa falta de noção até para perceber que estava havendo um “apagão” nacional ficarão sempre em minha memória.

Às professoras Antoinette Madureira, Rozeli Porto e Elisete Schwade por terem, cada uma à sua maneira, fortalecido a minha confiança e por me acolherem enquanto mulher e mãe. Quero muito agradecer a vocês por nunca terem me deixado acreditar que a academia não era um lugar para mim. Vocês são preciosidade!

À Fabiane, amiga que esta pesquisa me deu. A Sala Lilás deixou um lugar de mero trabalho e passou a ser um ambiente acolhedor, graças ao seu empenho e delicadeza. Fabiane nunca perdeu uma oportunidade de me encorajar e me ouvir. Ela é uma das pessoas mais

(9)

dispostas a partilhar conhecimento, sem almejar nada em troca. É um verdadeiro exemplo pra mim. Estendo meus agradecimentos a todos os servidores que atuam no Fórum Municipal Amaro Cavalcante, por possibilitarem a realização desta pesquisa em seus arquivos.

Aos meus amigos e amigas que sempre torceram e acreditaram em mim, mesmo quando nem eu o fazia, em especial aos queridos amigos Breno Mariz e José Simões e às amigas, Juliana, Lívia, Fabiana Delgado, Fabiana Nóbrega, Lissandra, Maria Rosa e Pollyana, a vizinha que abriu as portas da casa e da vida para mim e Elis. Sempre disposta a colaborar com o que estivesse ao seu alcance, é uma das pessoas mais admiráveis deste mundo.

Agradeço profundamente à CAPES, pelo financiamento de minha pesquisa, em forma de bolsa, pois, sem ela seria impossível concretizar esse trabalho. Que a educação e a pesquisa científica pública e de qualidade no Brasil consigam sobreviver a essa série de ataques e tentativas de desmonte que vêm sofrendo.

E a todas as pessoas que de algum modo me ajudaram na descoberta que, na verdade, não há caminho, a caminhada se faz ao caminhar.

(10)

RESUMO

A questão da violência contra a mulher se apresenta como uma consequência do sistema patriarcal, sobretudo no que tange à esfera doméstica e familiar. Apesar da inegável estrutura de exploração e dominação que o patriarcado exerce sobre as mulheres, é equivocado dizer que não há, nem nunca houve resistência. A atuação dos movimentos feministas propiciou alternativas para que mulheres, em sua multiplicidade de vivências, pudessem usufruir do seu direito de participação política e social na busca por reconhecimento, igualdade e transformações sociais. A criação dos Juizados Especiais Criminais por meio da Lei 9.099/1995 foi encarada pelas feministas como um retrocesso, pois, elas acreditavam que o tipo de tratamento que a norma dava aos casos de violência doméstica era muito brando e proporcionava a banalização desse problema. Surge, então, para acolher os anseios sociais, a Lei nº 11.340/2006, popularmente conhecida como “Lei Maria da Penha”, que, entre outras mudanças, enrijeceu o tratamento penal dado aos casos de violência doméstica e familiar em nosso país. Esta dissertação se destinou a investigar a intervenção punitiva estatal através da análise dos procedimentos criminais que foram catalogados e arquivados em caixas de arquivos judiciais especificamente organizadas pela matéria de violência doméstica e familiar, sob a égide da Lei Maria da Penha, na Comarca de Caicó/RN. Para a concretização desses objetivos, além do estudo documental e bibliográfico, foi realizada uma pesquisa empírica nos arquivos da Vara Criminal e Juizado de Violência Doméstica e Familiar da cidade de Caicó e dos “Arquivos Lilás”, atualmente ligados à 2ª Vara de Caicó/RN. Os procedimentos foram analisados a partir de critérios previamente estabelecidos, a fim de traçar um perfil dos atores e do andamento e desfecho processual, quais sejam: gênero do agressor, tipos penais, grau de parentesco, profissão do suposto agressor e da suposta vítima, bairro onde moram os supostos agressores e supostas vítimas, média de idades de vítimas e réus, deferimento de medidas protetivas, intervalo de tempo médio entre pedido de medida protetiva e respectivo deferimento, prisão em flagrante, conversão de flagrante em medida protetiva, tempo médio de duração das prisões preventivas, recorrência dos casos de violência doméstica com os mesmos sujeitos, números de condenações, absolvições e ratificações, além das extinções por outros fins, quantidade de processos que contaram com a atuação direta de defensores públicos ou advogados de defesas particulares, o meio pelo qual se deu a iniciativa desses processos e a duração média deles. Durante a análise dos dados, alguns casos nos chamaram atenção, porque refletiam as principais críticas da criminologia feminista e da criminologia crítica ao tratamento judicial da violência doméstica e familiar, o que nos levou à análise desses casos concretos. Os resultados obtidos confirmaram a tendência seletiva dos mecanismos estatais de controle punitivo, que atraem com a possibilidade de assumirem a defesa das mulheres, mas não solucionam os conflitos de modo satisfatório e a urgência na consolidação de uma criminologia crítico-feminista.

Palavras-chave: Movimentos Feministas. Juizados Especiais Criminais. Lei Maria da Penha. Criminologia Crítica. Criminologia Feminista. Caicó/RN.

(11)

ABSTRACT

The issue of the violence against women presents itself as a consequence of the patriarchal system, especially on what touches the family and domestic sphere. Despite the undeniable exploitation structure that patriarchy exerts onto woman, it is wrong to say that there is not, nor that it never have been resistance. The feminists movement's acting provided alternatives so that women, in their multiplicity of livinghoods, could enjoy their right to social and political participation in the pursuit for recognition, equality and social transformations. The creation of Special Criminal Courts by the law 9.099/1995 was faced by the feminists as a drawback, because they believed that the kind of treatment that the norm gave to the cases of domestic violence was too mild and allowed the trivialization of that problem. It surged, then, to welcome the social wishes, the law number 11.340/2006, popularly known as "Maria da Penha's Law" that, among other changes, stiffened the criminal treatment given to the cases of domestic and familiar violence in our country. This dissertation is destined to investigate the Estate's punitive intervention through the analysis of the criminal procedures that were cataloged and archived in boxes of files specifically organized by the subject of domestic and familiar violence, under the aegis of the Maria da Penha's Law, in the county of Caicó/RN. To the concretion of these objectives, besides the study of the documents and bibliographies, it was done an empirical research in the files of the Criminal Court and County of Domestic and Familiar violence of the city of Caicó and in the "Lilac files", nowadays linked to the 2nd Court of Caicó/RN. The procedures were analyzed from previously established criteria, aiming to trace a profile of the actors and of the procedural courses and outcomes, which include: aggressor gender, criminal description of facts, degree of kinship, allegedly aggressor's and victim's professions, neighborhood where allegedly aggressor and victim live, average ages of victims and defendants, deferring of protective measures, average interval of time between soliciting of protective measure and respective deferment, prison in the act, conversion of flagrant in protective measure, average time of preventive custodies, recurrence of the cases of domestic violence with the same subjects, number of convictions, absolutions and ratifications, besides of extinctions by other purposes, quantity of processes that counted with the direct intervention of public or private defense attorneys, the means by which the initiative took place and their average duration. During the analysis of the data, some cases called out our attention, because they reflected the main critics of the feminist criminology and of the critical criminology to the judicial treatment of the domestic and familiar violence, which has led us to the analysis of these concrete cases. The obtained results confirmed the selective tendency of the Estate to the mechanism of punitive control, which attract with the possibility to assume the defense of women, but do not solve the conflicts in a satisfactory manner and an urgency to consolidate a critical feminist criminology.

Keywords: Feminist movements. Special Criminal Courts. Maria da Penha's Law. Critical Criminology. Feminist Criminology. Caicó/RN.

(12)

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Réus por Gênero ... 67

Gráfico 2 – Parentesco entre Vítimas e Réus ... 68

Gráfico 3 – Principais Profissões dos Réus ... 69

Gráfico 4 – Principais Profissões das Vítimas... 70

Gráfico 5 – Réus Cidade de Caicó – por Bairro ... 72

Gráfico 6 – Vítimas Cidade de Caicó – por Bairro ... 74

Gráfico 7 – Réus por Idade ... 75

Gráfico 8 – Vítimas por Idade ... 76

Gráfico 9 – Principais Tipos Penais ... 78

Gráfico 10 - Iniciativa... 80

Gráfico 11 – Prisão em Flagrante ... 86

Gráfico 12 – Prisão Preventiva Decretada ... 87

Gráfico 13 – Medida Protetiva ... 90

Gráfico 14 - Sentenças ... 92

LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Principais Pesquisas Nacionais sobre Reincidência ... 84

(13)

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 15

2 PATRIARCADO E VIOLÊNCIA: TRAÇANDO ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA A PARTIR DOS MOVIMENTOS FEMINISTAS ... 20

2.1 O PODER PATRIARCAL COMO FUNDAMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER ... 20

2.2 PATRIARCADO À BRASILEIRA E O TRATAMENTO JURÍDICO-LEGAL DA MULHER ... 27

2.3 FEMINISMOS E A LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA: A CRIAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA ... 34

3 DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES: ENTRE OS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS E A LEI MARIA DA PENHA ... 41

3.1 PELA NECESSIDADE DE DEMARCARÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES ... 41

3.2 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER: UMA ANÁLISE DAS LEIS 9.099/1995 E 11.340/2006 ... 45

3.3 PELA NECESSIDADE DE UMA CRIMINOLOGIA CRÍTICO-FEMINISTA ... 57

4 UMA ANÁLISE CRIMINOLÓGICA CRÍTICO-FEMINISTA SOBRE A APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA NO MUNICÍPIO DE CAICÓ ... 60

4.1 METODOLOGIA ... 60

4.2 RESULTADOS DA PESQUISA ... 66

4.2.1 Dos sujeitos das violências ... 66

4.2.2 Dos Tipos Penais ... 78

4.2.3 Das vias de entrada ... 80

4.2.4 Da primariedade e da reincidência ... 83

4.2.5 Das prisões processuais ... 85

4.2.6 Das medidas protetivas ... 89

4.2.7 Do encerramento dos processos ... 92

4.3 DA ANÁLISE CRÍTICO-FEMININISTA DE CASOS CONCRETOS ... 96

4.3.1 João e Maria ... 97

(14)

4.3.3 Zilda e Arnaldo ... 111

CONCLUSÃO ... 116

REFERÊNCIAS ... 121

(15)

1 INTRODUÇÃO

As desigualdades que acarretem a sujeição das mulheres perante os homens, longe de serem naturais, fazem parte do desenvolvimento socioeconômico da humanidade. Em outras palavras, a discriminação contra as mulheres não se apresenta como o legado de um mundo pré-moderno e sim, como consequência do modelo de formação capitalista, construída sobre as diferenças sexuais existentes e reconstruída para cumprir novas funções sociais.

Às mulheres, dentro nesse novo sistema, foram impostas condições extremamente desfavoráveis. Tanto na classe alta, por meio da propriedade privada, quanto nas classes mais baixas, porquanto, inicialmente, só os homens tinham direito a salários e poder sobre as mulheres e filhos. Assim, a impossibilidade de acesso ao dinheiro criou as condições materiais para a sujeição do feminino (FEDERICI, 2017).

A esse modelo damos o nome de patriarcado, nele, todo o poder era concentrado na figura do homem que desempenhava, ao mesmo tempo, as funções de marido, pai e patriarca. A exclusão das mulheres da vida social e a redução de suas existências ao espaço doméstico, formam uma das principais características do sistema patriarcal. Enquanto da mulher era exigido um comportamento dócil, amável e servil, o homem era sinônimo de força, virilidade, riquezas, honra e coragem.

Nesse deslocamento do feminino para o espaço privado do lar, houve uma massiva perda de direitos e prestígio social das mulheres em todas as áreas de suas vidas. Foi estabelecido que as mulheres eram naturalmente inferiores aos homens e tinham que viver sob o controle deles, tendo em vista que elas seriam incapazes de se autocontrolarem.

A dominação dos homens sobre as mulheres expressa-se frequentemente pela violência. Fazendo uso das armas de controle e medo, o patriarcado atua também enovelado com racismo e classes sociais, de modo que há uma inter-relação entre essas opressões (DAVIS, 2017).

Enxergando a violência contra a mulher como expressão do patriarcado, defendemos que ela atua em todas as esferas sociais, mas sobretudo nas relações afetivas/familiares. Segundo Saffioti (2009), ao nos referirmos à violência familiar, estamos diante daquela que envolve membros de uma mesma família extensa ou nuclear, levando-se em conta a consanguinidade e a afinidade, podendo ocorrer no interior do domicílio ou fora dele, embora seja mais frequente o primeiro caso. Já a violência doméstica apresenta pontos de coincidência

(16)

com a familiar, mas se diferencia ao alcançar pessoas que, não pertencendo à família, vivem, parcial ou integralmente, no domicílio do agressor, como é o caso de agregados e empregadas (os) domésticas (os).

A referida autora também aborda a violência de gênero, entendendo-o como a construção social do masculino e do feminino (SAFFIOTI, 2004). Para ela, este tipo de violência tem um conceito mais amplo, abrangendo vítimas como mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos. No exercício da função patriarcal, os homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio (SAFFIOTI, 2009).

Apesar das diferenças conceituais, as expressões violência contra a mulher, violência doméstica, violência familiar e violência de gênero se popularizam enquanto sinônimos e, neste trabalho, também nos referimos a elas como tais, de modo a evitar a exaustiva repetição de um único termo ao longo de nossas contribuições sobre o tema.

Partindo do pressuposto que as diferenças entre homens e mulheres não são naturais, houve a organização destas em grupos feministas que pautaram suas lutas em busca de alternativas para que mulheres, em sua multiplicidade de vivências, pudessem usufruir do direito de participação política e social na busca por reconhecimento, igualdade e transformações sociais. Isso porque, foi por meio das lutas feministas que as questões concernentes aos direitos das mulheres puderam adentrar na agenda pública de debates.

Uma das principais pautas desses movimentos em nosso país foi a luta contra a violência doméstica e familiar que afeta as mulheres. Para tanto, os movimentos feministas brasileiros apostaram nas esferas jurídicas/legislativas e institucionais como armas capazes de minimizar essa prática nefasta. Defendendo que a violência contra as mulheres constitui uma complexa teia de poderes, traçaram estratégias judicializantes de combate, por acreditarem ser essa esfera um importante instrumento para demarcar politicamente os direitos das mulheres.

Assim, pressionado pelos grupos de defesa dos direitos humanos, principalmente pelos movimentos feministas, o Estado brasileiro se viu obrigado a interferir de forma direta na coibição e punição da violência doméstica e familiar contra a mulher, por meio da promulgação da Lei 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha.

(17)

Foi nesse contexto de disputas políticas que houve a aprovação da referida norma. A lei destaca-se pelo seu caráter híbrido, abarcando soluções que ultrapassam o viés punitivo prevendo também interferências de caráter preventivo e assistencial. Nas palavras de Maria Berenice Dias (2015, p. 79) é um “verdadeiro microssistema que visa coibir a violência doméstica trazendo importantes mudanças”.

Contudo, setores que atuam diretamente na área, denunciam uma série de problemas na aplicação da lei aos casos concretos. Ante essa realidade, faz-se necessário pesquisar o assunto para saber se a Lei Maria da Penha, em sua atuação jurisdicional, tem atingido sucesso na concretização de sua função social de combate à violência contra a mulher.

Esta pesquisa, pois, se destinou a investigar a intervenção judicial aos casos de violência doméstica e familiar, sobretudo, no que tange ao uso dos mecanismos simbólicos da política criminal de combate aos conflitos desta natureza. Nosso principal objetivo é descobrir se o Direito Penal é o instrumento mais apropriado para solucionar os problemas domésticos e familiares.

Para tanto, procedemos à análise dos procedimentos criminais que foram catalogados e arquivados em caixas de arquivos judiciais especificamente organizadas pela matéria de violência doméstica e familiar, sob a égide da Lei Maria da Penha, na Comarca de Caicó/RN, sob o viés das perspectivas criminológicas crítica e feminista.

A partir da constatação da seletividade inerente ao sistema penal, as correntes criminológico-críticas articularam diversas ações no campo político, em sua grande maioria voltadas à diminuição das hipóteses de criminalização e superação do encarceramento. Já a criminologia feminista denuncia a lógica androcêntrica que define o funcionamento das estruturas do poder punitivo. Ao dar ênfase à perspectiva sobre os estudos criminológicos, a criminologia feminista apontou as violências produzidas pela hegemonia do pensamento masculina na interpretação e aplicação do direito penal.

Delimitamos o município de Caicó, localizado na região do Seridó potiguar, como lócus da pesquisa, porque, incialmente, foi a cidade na qual nasci, estudei, me formei em Direito e vivi a maior parte da minha vida. Como forma de retribuição, volto meu olhar científico para esta localidade, a fim de devolver à sociedade os resultados da pesquisa que ela me proporcionou realizar.

(18)

Além disso, foram veiculadas diversas notícias que apontavam o estado do Rio Grande do Norte como um dos mais perigosos para as mulheres, ocupando o quinto no ranking que media os índices de violência doméstica nos estados brasileiros e diante da constatação de que não havia nenhum estudo específico quanto aos procedimentos de violência doméstica e familiar contra a mulher em Caicó, reforçando a necessidade de nos debruçarmos sobre a situação dessa localidade.

Nosso trabalho se desenvolveu por meio dos métodos quantitativo e qualitativo, fazendo uso das técnicas de pesquisa documental, bibliográfica e de campo, pois, acreditamos que elas se completam por meio de uma interação dinâmica capaz de excluir qualquer dicotomia.

A dissertação foi, assim, dividida em três capítulos. O primeiro deles fala sobre o surgimento do poder patriarcal e a consequente sujeição das mulheres aos homens no contexto de consolidação do sistema capitalista. O exercício desse poder recorre frequentemente ao uso da violência, de modo a naturalizar as agressões dos homens sobre as mulheres. Trouxemos essa discussão para o contexto brasileiro, traçando um panorama de como elas eram tratadas nos códigos criminais. Além disso, apresentamos a importância dos movimentos feministas na luta pelo reconhecimento da violência contra a mulher como uma violação de direitos humanos e a criação da Lei Maria da Penha.

As discussões presentes no segundo capítulo perpassam pela importância da demarcação dos direitos humanos das mulheres e salientando a possibilidade de haver a condição de “reversibilidade do direito”, consistente na ideia de que os discursos podem violar direitos humanos, mesmo atuando de acordo com sua programação oficial. Seguimos fazendo uma análise comparativa entre a Lei 9.099/1995, conhecida como lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, e a Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha, partindo das distintas perspectivas doutrinárias acerca do instrumento legislativo mais adequado para enfrentar as situações de violência doméstica e familiar contra a mulher. Após, destacamos a necessidade de construção de um saber criminológico crítico feminista, para que sejam traçados novos paradigmas para o direito e para as discussões de gênero.

No terceiro capítulo apresentamos os resultados da pesquisa de campo realizada nos arquivos judiciais do Fórum Municipal Amaro Cavalcanti, localizado na cidade de Caicó/RN. Para testar a hipótese de nosso trabalho, qual seja, o Direito Penal e seu consequente poder punitivo, não representam o meio mais adequado e satisfatório para a resolução dos conflitos domésticos e familiares que envolvem violência contra a mulher, os procedimentos foram

(19)

analisados a partir de critérios previamente estabelecidos, a fim de traçar um perfil dos atores, bem como do andamento e desfecho processual.

Os critérios analisados foram: gênero do agressor, tipos penais, grau de parentesco, profissão do suposto agressor e da suposta vítima, bairro onde moram os supostos agressores e supostas vítimas, média de idades de vítimas e réus, deferimento de medidas protetivas, intervalo de tempo médio entre pedido de medida protetiva e respectivo deferimento, prisão em flagrante, conversão de flagrante em medida protetiva, tempo médio de duração das prisões preventivas, recorrência dos casos de violência doméstica com os mesmos sujeitos, números de condenações, absolvições e ratificações, além das extinções por outros fins, quantidade de processos que contaram com a atuação direta de defensores públicos ou advogados de defesas particulares, o meio pelo qual se deu a iniciativa desses processos e a duração média deles. . Cabe mencionar que era nossa intenção obter dados com relação à raça/etnia dos sujeitos, mas não restou possível porque, essa informação não foi preenchida na maioria dos procedimentos verificados.

Durante a análise dos dados, alguns casos nos chamaram atenção, porque refletiam as principais críticas da criminologia feminista e da criminologia crítica ao tratamento judicial da violência doméstica e familiar, o que nos levou à análise desses casos concretos.

Tudo isso para obtermos resultados a fim de saber se os atraentes mecanismos estatais de controle punitivo, são instrumentos legítimos para assumirem a defesa das mulheres e solucionar da melhor maneira os conflitos domésticos e familiares.

(20)

2 PATRIARCADO E VIOLÊNCIA: TRAÇANDO ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA A PARTIR DOS MOVIMENTOS FEMINISTAS

A questão da violência contra a mulher se apresenta como uma consequência do sistema patriarcal, sobretudo no que tange à esfera doméstica e familiar. Apesar da inegável estrutura de exploração e dominação que o patriarcado exerce sobre as mulheres, é equivocado dizer que não há, nem nunca houve resistência.

A atuação dos movimentos feministas propiciou alternativas para que mulheres, em sua multiplicidade de vivências, pudessem usufruir do seu direito de participação política e social na busca por reconhecimento, igualdade e transformações sociais.

Após um longo período de discriminações e esquecimentos jurídicos e legislativos, surge, para acolher os anseios sociais, a Lei nº 11.340/2006, popularmente conhecida como “Lei Maria da Penha”, que, entre outras mudanças, enrijeceu o tratamento penal dado aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.

2.1 O PODER PATRIARCAL COMO FUNDAMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

O padrão comportamental e as performances do feminino e masculino, antes de serem naturais (como a caatinga que floresce no sertão após o tão esperado inverno), têm suas trajetórias marcadas pelo surgimento da propriedade privada e acumulação de bens. Como bem fala Silvia Federici (2017, p. 11) “a discriminação contra as mulheres na sociedade capitalista não é o legado de um mundo pré-moderno, mas sim uma formação do capitalismo, construída sobre as diferenças sexuais existentes e reconstruída para cumprir novas funções sociais”.

Fazer essa reflexão é ter em vista que as diferenças relacionais entre homens e mulheres não podem ser apartadas do desenvolvimento socioeconômico da humanidade que propiciou a subjugação das mulheres. Porém, não é tarefa simples aceitar que nossas emoções mais íntimas e pessoais são frutos das alienações oriundas da propriedade privada. A organização familiar predominante, ou seja, a família monogâmica, é um fenômeno social decisivo na consolidação da sociedade de classes.

(21)

O patriarcado foi responsável pela transferência das mulheres para o mundo privado do lar, pois, com ele, surgiu também a necessidade de uma esposa virgem para gerar herdeiros cujo pai é certo e nominado. Portanto, “a família, tal como hoje a conhecemos, não surge como resultado do amor entre os indivíduos. Surge como a propriedade patriarcal de tudo o que é doméstico” (LESSA, 2012, p. 31).

A adoção da teoria do patriarcado nos é útil para explicar as razões da inferioridade social das mulheres, levando-se em consideração que essa estrutura social é baseada na hierarquia e se estabelece por meio de um pacto em que os homens garantem a solidariedade entre eles para consolidar a opressão das mulheres.

Christine Delphy explica que o uso do termo patriarcado é antigo e seu conceito foi mudando de sentido ao longo dos séculos, até ser incorporado pelas teorias feministas a partir da década de 1970. Nas palavras da autora, o patriarcado é “a formação social em que os homens detêm o poder, ou ainda, mais simplesmente, o poder é dos homens. Ele é, assim, quase sinônimo de “dominação masculina” ou de opressão das mulheres” (2009, p. 173)

Com a exclusão das mulheres da vida social, a existência delas foi reduzida ao restrito espaço do lar patriarcal, destinadas a trabalhos que não geravam riquezas. Deste modo, a família foi uma importante instituição para a apropriação e ocultamento do trabalho das mulheres no modo de vida capitalista e patriarcal. De acordo com Maria Lygia Quartim de Moraes:

A maternidade, limitando temporariamente a mobilidade da mulher, especialmente na gravidez e na amamentação, seria a base da divisão sexual do trabalho que hoje chamamos de “modelo patriarcal”. Afastadas da esfera criadora da riqueza social e submetidas ao poder masculino, as mulheres permaneceram sem o controle do poder econômico, enquanto os homens estabeleciam, por meio da violência e da persuasão, as regras do jogo. A perda do poder materno foi acompanhada pela submissão da mulher ao marido e da mãe ao pai (MORAES, 2017, p. 28)

As mulheres dentro desse novo sistema se viram em condições extremamente adversas. “Enquanto na classe alta era a propriedade que dava ao marido poder sobre sua esposa e seus filhos, a exclusão das mulheres do recebimento de salário dava aos trabalhadores um poder semelhante sobre suas mulheres” (FEDERICI, 2017, p. 194). A impossibilidade de acesso ao dinheiro criou as condições materiais para a sujeição do feminino.

(22)

Nesse deslocamento do feminino para o espaço privado do lar, houve uma massiva perda de direitos e prestígio social das mulheres em todas as áreas de suas vidas. Foi estabelecido que as mulheres eram naturalmente inferiores aos homens e tinham que viver sob o controle deles, tendo em vista que elas seriam incapazes de se autocontrolarem.

Por tais singularidades, o poder restou concentrado na figura do homem que representava, ao mesmo tempo, os papeis de marido, pai e patriarca. Em consequência, os demais membros dessa estrutura, como, a mulher, os filhos e os agregados em geral, lhes deviam total obediência.

Ao longo dos anos foi sendo construída a ideia de que as mulheres eram dóceis, gentis e submissas. Elas vão paulatinamente se transformando no ideal feminino que predominou ao longo dos anos: dependentes, delicadas, frágeis, incapazes, e dispostas sempre a agradar os homens aos quais devem servir com docilidade, beleza e compreensão. Em contrapartida, o masculino se tornou sinônimo de força, virilidade, riquezas, honra e coragem.

Nesse caminho, não há dimensão da personalidade humana que não tenha sido alterada por essas novas relações socioeconômicas. Nossos papéis enquanto mulheres, homens, mães, pais, filhos e filhas são totalmente permeados pelas relações sociais advindas da propriedade privada.

A discriminação contra as mulheres é basilar para o sistema capitalista, pois, indispensável para sua consolidação. Deste modo, a caça às bruxas foi essencial à acumulação primitiva do capital, como nos coloca Silvia Federici ao discutir a relação entre o controle dos corpos e da sexualidade das mulheres com a caça às bruxas ocorrida nos séculos XVII e XVIII:

Aos fatores econômicos no segundo plano da acusação de bruxaria, devemos acrescentar a política institucional cada vez mais misógina que confinava as mulheres a uma posição social de subordinação em relação aos homens e que punia com severidade, como subversão da ordem social, qualquer afirmação de independência de sua parte e qualquer transgressão sexual. A “bruxa” era uma mulher de “má reputação”, que na juventude apresentara “comportamento libertino”, “promíscuo”. [...] Na figura da bruxa as autoridades puniam, ao mesmo tempo, a investida contra a propriedade privada, a insubordinação social, a propagação de crenças mágicas, que pressupunham a presença de poderes que não podiam controlar , e o desvio da norma sexual que, naquele momento, colocava o comportamento sexual e a procriação sob o domínio do Estado (FEDERICI, 2019, p. 52-54).

(23)

Assim, a caça ás bruxas e sua política de terror foram muito importantes para a consolidação de uma nova forma de feminilidade: assexuada, obediente e submissa ao universo masculino, de modo a naturalizar o confinamento de seu trabalho ao lar e ver suas atividades completamente depreciadas no sistema capitalista.

O saldo negativo maior desse modelo pertence às mulheres que são tolhidas principalmente no desenvolvimento e uso da razão e no exercício do poder. Porém, os homens também são afetados por esse novo padrão, sendo estimulados a desenvolver condutas agressivas, perigosas, que revelem força e virilidade.

A condição de marido e provedor exige dos homens uma grande responsabilidade que para dar conta do que lhes era exigido - principalmente manter a família nos eixos - foi necessário que eles se embrutecessem. Os “machos” deveriam se impor, deixando evidente que todos os membros da família lhes deviam obediência, justificando até mesmo o uso da violência contra as mulheres e os filhos como principal recurso. É o que nos diz Angela Davis:

As mulheres eram punidas com frequência no domínio doméstico, e instrumentos de tortura eram por vezes importados por autoridades para dentro do lar. Na Inglaterra do século XVII, mulheres consideradas irascíveis e refratárias ao domínio masculino pelo marido eram punidas com uma “mordaça”, espécie de aro que envolvia a cabeça com uma corrente presa a ele e uma haste de ferro que era introduzida na boca da mulher. Embora o amordaçamento de mulheres estivesse muitas vezes preso a uma das paredes da casa, onde a mulher punida permanecia até que seu marido decidisse libertá-la (DAVIS, 2018, p. 44-45).

Além disso, o patriarcado fomenta a guerra entre as mulheres que não são cúmplices desse regime, mas colaboram para alimentá-lo, na medida em que desempenham com maior ou menor frequência e com mais ou menos rudeza, os papéis do patriarca no disciplinamento dos filhos, seguindo a lei do pai. Heleieth Saffioti (2009) nos alerta para o fato de que a máquina do patriarcado funciona por meio de engrenagens quase automáticas, pois, independe da figura humana singular detentora deste poder, podendo, inclusive ser acionada por qualquer um, até mesmo por mulheres.

O controle da sexualidade das mulheres também foi um dos mais importantes legados do modelo patriarcal. Enquanto às mulheres foi negado o direito ao prazer, por meio da ideia de que não sentem vontade nem desejo sexual, a alienação masculina se deu de modo oposto. Portadores de uma lascívia incontrolável, deles são exigidas um comportamento sexual

(24)

dissociado de qualquer afetividade, tornando-os insensíveis, quase como “animais” em pleno cio.

Michelle Perrot (2005) coloca a questão da subjugação dos corpos das mulheres como centro imediato e específico das relações de poder. As mulheres não têm direito aos seus corpos, eles não lhes pertencem. Primeiro o pai obtém esse domínio, depois o marido os “possuem” com potência viril e mais tarde, os filhos os absorvem inteiramente. Assim, a autora afirma que homens e mulheres são identificados com seu sexo, porém, as mulheres são presas cativas de seus corpos.

O patriarcado se constituiu, portanto, como uma instância social que supervaloriza a sexualidade masculina, fazendo dela um instrumento de poder dos homens sobre as mulheres, mas, essa não é sua única face. Seus domínios se estendem pelas muitas formas em que homens e mulheres são socializados. As alienações desse sistema são, por sua própria natureza, relacionais. Não há consequência do patriarcado que atinja um gênero1 de maneira isolada.

A estrutura patriarcal pode se revelar maleável e até mesmo permitir e estimular mudanças dentro dos limites das condições históricas concretas que enfrentamos. Mas isso não representa uma possibilidade de integração social plena para as mulheres. Esse modelo atua sempre no sentido de perpetuar as desigualdades de gênero, colocando as mulheres no lugar de desvantagem.

Para manter seu poder sobre as mulheres, os homens usam frequentemente a violência, conforme nos fala Michelle Perrot:

1 Existe uma linha de pensamento que acredita ser contraditória a utilização dos conceitos de patriarcado e gênero ao mesmo tempo, defendendo a ideia de que as “relações de gênero” vieram para substituir o “patriarcado”. Não nos aliamos a isso com base em Saffioti (2009), quando afirma ser o gênero as imagens do feminino e masculino, historicamente construídas, enquanto patriarcado é o pacto entre os homens para garantir a dominação-exploração feminina. Já Machado, aduz que gênero e patriarcado são conceitos que se situam em dimensões distintas e por isso, não podem ser tomados como opostos. Para a autora, “gênero é uma categoria engendrada para se referir ao caráter fundante da construção cultural das diferenças sexuais, a tal ponto que as definições sociais das diferenças sexuais é que são interpretadas a partir das definições culturais de gênero. [...] O suposto deste conceito é que todas as sociedades e culturas “constroem suas concepções e relações de gênero”. Ou seja, de que nada há de universal na configuração das relações de gênero, a não ser que são sempre construídas. Trata-se sempre de uma construção cultural histórica. São o resultado de um “arbitrário cultural”, isto é, nada há de determinante no sexo biológico que faça com que feminino e masculino se definam ou se relacionem desta forma. As idéias mesmas da diferença sexual são engendradas no campo simbólico (cultural e social). Assim, as corporeidades e as sexualidades passam a ser analisadas enquanto socialmente simbolizadas e subjetivadas” (2000, p. 5-6). Já o patriarcado se refere a uma forma, entre outras, de modos de organização social ou de dominação social que ainda se encontram presentes na contemporaneidade.

(25)

Dimensão maior da história das relações entre os sexos, a dominação dos homens sobre as mulheres, relação de forças desiguais, expressa-se frequentemente pela violência. O processo de civilização a faz recuar sem aboli-la, tornando-a mais sutil e mais simbólica. Subsistem, entretanto, grandes explosões de uma violência direta e sem dissimulação, sempre pronta a ressurgir, com a tranquila segurança do direito de poder dispor livremente do corpo do Outro, este corpo lhe pertence (PERROT, 2005, p. 454).

Apesar da inegável estrutura de exploração e dominação que o patriarcado exerce sobre as mulheres, não podemos dizer que não há nem nunca houve resistência. Tanto é que, mesmo diante de tanta subjugação, as mulheres foram conquistando espaços e frentes de luta e resistência na estrutura social. Por isso, corremos o risco de perder nossa articulação política ao acreditar que em tempos em que há regozijo na conquista do mercado de trabalho pelas mulheres, nos avanços em sua autonomia, na liberação sexual e na crescente participação política, pode parecer ultrapassado trazer à tona o conceito de patriarcado.

Contudo, endossamos as teorias que afirmam ser o patriarcado um sistema adaptável, podendo se apresentar de forma distinta da que fora concebida, de modo a abarcar os novos modelos sociais. Por isso, desarticular suas bases é imprescindível para a emancipação humana e pleno desenvolvimento social.

Não consideramos acertado abandonar o conceito de patriarcado nem ignorar sua existência em prol de outras categorias, porque, como coloca Heleieth Saffioti (2009, p. 24) “a recusa da utilização do conceito de patriarcado permite que este esquema de exploração-dominação [das mulheres] grasse e encontre formas e meios mais insidiosos de se expressar”. No mesmo sentido, Carole Pateman (1993, p. 39) quando afirma que perder de vista as bases sociais e materiais do patriarcado seria um grande desserviço às mulheres e “representaria a perda, pela teoria feminista, do único conceito que se refere especificamente à sujeição da mulher, e que singulariza a forma de direito político que os homens exercem pelo fato de serem homens”.

Assim também Neuma Aguiar (2000) quando afirma ser perfeitamente possível fazer uso dos conceitos de gênero e patriarcado, desde que se observe que o primeiro possui conotações que não estão presentes no último. Quanto ao patriarcado e o seu lugar na história, a autora observa que a diferentes momentos históricos corresponderiam distintas formas de organização patriarcal, sendo este um fenômeno variável.

(26)

Da mesma maneira, Lia Zanotta Machado defende o uso do termo “patriarcado contemporâneo” (2000). Segunda ela, as relações patriarcais, devidamente definidas em suas novas formas e na sua diversidade encontram-se presentes na contemporaneidade.

Trabalhando com essa categoria não nos tornamos alheias às diferenças sociais entre as muitas mulheres existentes, seja em razão de classe, raça, sexualidade ou etnia, pelo contrário, como Saffioti (2009), entendemos que o patriarcado atua enovelado com racismo e classes sociais2. Dando contribuição ao tema, Angela Davis afirma que:

As mulheres da classe trabalhadora e aquelas racialmente oprimidas confrontam a opressão sexista de um modo que reflete as interligações objetivas reais e complexas entre a exploração de classe, a opressão racista e a supremacia masculina. Ao passo que uma mulher branca de classe média sofre o sexismo enquanto uma forma relativamente isolada de opressão, a vivência das mulheres da classe trabalhadora necessariamente o coloca em seu contexto de exploração de classe, e as experiências das mulheres negras incluem ainda o fator social do racismo. Essas não são, de maneira nenhuma, experiências subjetivas; pelo contrário, há uma inter-relação objetiva entre racismo e sexismo no sentido de que o contexto geral das duas formas de opressão em nossa época é a luta de classes que se desenrola entre o capitalismo monopolista e a classe trabalhadora. (2017, p. 140)

Por isso, afirmamos ser o patriarcado um problema de ordem pública, pois, não pode ser resolvido apenas com a mudança individual das pessoas ou por meio de leis e políticas que visam estabelecer a igualdade formal entre homens e mulheres. Faz-se necessário destruir as bases materiais do sistema patriarcal, para que os avanços femininos, seja na área profissional, sexual, de representação política, entre outras, não se reduzam a meras concessões úteis para a manutenção desse sistema.

2 Também não ignoramos as contribuições de outros autores, como Bourdieu (2012), que trata da dominação masculina abarcando a dimensão simbólica, inconsciente e as representações sociais dessa dominação. Neste sentido, o autor aduz que a “ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina” (2012, p. 18). Para ele, os comportamentos masculinos e femininos são resultados de um trabalho intenso de construção e transformação duradoura dos corpos e mentes das pessoas, resultando na incorporação de disposições permanentes que não podem ser transformadas pelo mero esforço de vontade com base na “tomada de consciência libertadora”. O modo como a violência simbólica é imposta faz com que os dominados acatem a lógica de seu dominador por meio da incorporação da ideia de inferioridade por ele imposta. Essa condição socialmente construída é aceita como algo natural. As consequências da naturalização dessa violência são devastadoras, tendo em vista que é exercida de modo invisível e sem qualquer coação física ou coerção direta. No entanto, essa força age alicerçada nas predisposições internalizadas ao longo de toda a história, na zona mais profunda dos corpos. Tal processo dá à dominação masculina um caráter a-histórico, fazendo com que ela pareça inevitável e permanente, quando, na verdade, não passa de uma consequência do incessante trabalho coletivo de reprodução cultural, realizado por agentes e por instituições, a exemplo da família, da Igreja, do Estado, da escola, da medicina e dos meios de comunicação. Para o autor supracitado, só é possível romper com a relação de cumplicidade que as vítimas da dominação simbólica têm com os dominantes, por meio de uma mudança radical das condições sociais que levam os dominados a adotarem o próprio ponto de vista dos dominantes.

(27)

2.2 PATRIARCADO À BRASILEIRA E O TRATAMENTO JURÍDICO-LEGAL DA MULHER

O ideário de um Brasil “abençoado por Deus” e livre de preconceitos não passa de um mito construído pelos sujeitos ativos da dominação. Isso explica por que, mesmo diante dos inúmeros casos de violência propagados na mídia e nas conversas informais, comportamentos tais quais machismo, racismo e homofobia são tidos como valores normais de nossa sociedade e não como ações violentas.

A origem dessa sociedade violenta encontra raízes na colônia escravagista e seu patriarcalismo familiar. Marcadas pelas relações de autoritarismo e submissão, essas relações privadas prevaleceram sobre a vida pública. Nossa sociedade, fortemente influenciada pelo modelo familiar patriarcal3, tornou-se altamente hierarquizada em todos os aspectos. Nesse sentido, Sérgio Buarque de Holanda (1995) ao descrever o “homem cordial” não o estava colocando enquanto sinônimo de bondade, mas como um sujeito avesso às formalidades próprias do espaço público, com relações marcadas pela intimidade e “lhaneza no trato”.

No caso brasileiro, as leis trazidas pela Corte Portuguesa ditaram os comportamentos sociais dos colonos, antes mesmo dos costumes serem consolidados. A organização de nossa sociedade se deu sob a égide legislativa da Metrópole. Aqui, pôde-se observar uma inversão na ordem de surgimento das leis, tendo em vista que, de maneira geral, os costumes4 se apresentam como fonte do Direito e a lei é criada para regulamentar práticas sociais já assentadas como costumes.

A transplantação das Ordenações Filipinas fez com que a sociedade brasileira absorvesse de Portugal o uso da violência no âmago das famílias, por meio, inclusive, de seu aparato jurídico. É que essas Ordenações regulavam comportamentos e atribuíam punições para as transgressões relativas à vida moral, à ordem doméstica e às relações conjugais. Além disso,

3 Mesmo reconhecendo a predominância da família patriarcal nas origens do Brasil, não negamos a existência e consequente importância de outros modelos familiares, a exemplo da família nuclear, composta apenas pelo núcleo principal (marido, esposa e filhos) que ganhou força com a chegada da Corte Portuguesa ao Rio de Janeiro. 4 Os costumes “são as práticas longevas, uniformes e gerais, constantes da repetição geral de comportamentos, que, pela reiteração, passam a indicar um modo de proceder em determinado meio social. É a norma criada e afirmada pelo uso social, de maneira espontânea, sem a intervenção legislativa. Deve ser compreendido por dois diferentes ângulos: (i) objetivo, caracterizado pela repetição ou reiteração; (ii) subjetivo, percebido pela convicção de sua necessidade (FARIAS e ROSENVALD, 2015, p. 82).

(28)

a norma exaltava a condição de desigualdade de gênero, quando, por exemplo, versava expressamente sobre o direito de o marido agredir e, caso julgasse adequado, matar a esposa em flagrante adultério, enquanto esta não poderia agir da mesma forma, caso fosse traída.

A legalidade do assassinato da mulher na simples suspeita de adultério, não só escancara o viés patriarcal de nossa colonização, como também expõe a desigualdade jurídica-social que vivenciamos desde então. À mulher não era dado o direito de desonrar o seu “amo e senhor”. A honra além de ser um privilégio masculino, era também uma prerrogativa de classe, tendo em vista que, o traído também poderia matar aquele com quem sua mulher estava cometendo adultério, desde que fosse de uma classe inferior.

Exigia-se esse tipo de conduta, porque, no modelo de sociedade existente, a mulher seria o expoente da honra familiar, enquanto ela própria não era possuidora de honra e sim detentora de “virtude” – que nada mais é que a rígida obediência ao código comportamental imposto pelo patriarcado. Por essa razão, era infligido um severo controle sobre seu corpo, afastando-a da esfera pública para dedicar-se somente ao lar.

Foram essas Ordenações que estrearam a diferenciação das mulheres no polo passivo do Direito Penal. Mencionava-se a “mulher virgem”, “viúva honesta” ou “qualquer mulher” como alvo de determinados crimes. Por mais esdrúxulo que possa parecer, a categorização das mulheres nas legislações penais brasileiras teve guarida desde o século XVII até o ano de 2005. Enquanto nos códigos os homens eram apenas homens, no Código Criminal do Império, as mulheres eram divididas em “honesta”, “virgem” ou “prostituta” e havia previsão de penas distintas, caso o crime de estupro, por exemplo, fosse cometido contra uma mulher honesta ou contra uma prostituta.5

No tocante ao crime de adultério, havia pesos e medidas distintos para sua configuração. Qualquer deslize da mulher era enquadrado nesse tipo penal, mas para os homens, só haveria crime se ele mantivesse um relacionamento duradouro, ou seja, se mantive uma “concubina, teúda e manteúda”.

Após a adoção do regime republicano, o Código Criminal Imperial foi revogado e, em 1890, surge o “Código Penal dos Estados Unidos do Brazil”. Nesse período, o machismo já

5 Se a estuprada fosse “mulher honesta” a pena era de prisão de três a doze anos, caso fosse prostituta, a pena era mais branda, variando de um mês a dois anos.

(29)

havia se consolidado em nossa sociedade. Como prova, podemos citar a permanência das categorias mulher virgem, honesta, pública ou prostituta.

A expressão “mulher honesta” era tecnicamente classificada como um elemento normativo do tipo, ou seja, um requisito essencial para que houvesse a configuração do crime de estupro, por exemplo. Porém, tratava-se de um conceito aberto, cujo significado não era definido pela lei, cabendo à doutrina e à jurisprudência suprir essa lacuna.

Em outras palavras, a lei penal reputava a ideia de que o caráter da mulher deveria ser julgado e medido pelo seu recato sexual. Se fosse tida como “desonesta", a mulher não seria digna de crédito nem de respeito. Em consequência, não tinha direito à proteção jurídica de sua honra, umbilicalmente ligada ao controle de sua sexualidade e à possibilidade de contrair núpcias. Essas exigências faziam parte do código moral que determinava ser a virgindade e toda atividade sexual das mulheres objetos de tutela por parte do homem de sua vida, fosse seu pai ou seu marido.

No tocante à honra, houve a continuidade, embora implícita, da possibilidade do marido traído poder assassinar a esposa infiel, pois, o modo como esse código trata a legítima defesa – afirmando que ela não se limita à vida, mas compreende todos os direitos passíveis de lesão –, tem a consequência prática de dar licitude à morte da mulher adúltera.

A lei foi moldada pelo discurso jurídico, de modo a perpetuar o poder patriarcal sobre os corpos e acima de tudo, sobre a sexualidade das mulheres. Por meio da vinculação da honra masculina à pureza sexual feminina é que, amparados pela tese da “legítima defesa da honra”, esses maridos eram absolvidos no tribunal, sob a alegação de que seu nome só poderia ser salvo perante a sociedade, após ser lavado com o sangue da “mulher desnaturada”.

A legítima defesa da honra configura um verdadeiro malabarismo jurídico, tendo em vista que a honra é personalíssima, está em cada uma das pessoas e só pode ser maculada por atitude dela própria. Não há que se falar em desonra por atitude de terceiro. Nesses casos, os sistemas de justiça atuam para proteger a honra do homem e de sua família, negligenciando o direito à integridade física da mulher e, sobretudo, condenando à morte aquela que ousasse ser livre no exercício de sua sexualidade. São os valores patriarcais atuando a plenos pulmões.

Houve, em 1940, a promulgação do código penal que permanece vigente até hoje. Como nos explica Diva do Couto Gontijo Muniz:

(30)

A elaboração e promulgação de um novo código penal em 1940 apresentou-se como uma resposta às necessidades de adaptação das antigas prescrições legais à realidade de uma sociedade vincada pelas transformações inscritas no projeto de modernização conservadora do governo Vargas: industrialização, urbanização, difusão de novos meios de comunicação, cultura de consumo e de lazer, dentre outras. Nas mudanças de comportamentos ocorridas, enfocava-se a excessiva liberdade da “mulher moderna” como um dos efeitos daninhos da modernização (MUNIZ, 2005, p. 2)

Assim, em meio às campanhas por modernização, uma nova família começou a ser tida como a ideal. A intimidade passou a ser exaltada e o modelo de vida familiar era agora aquele do “lar doce lar”, em que seus membros encontravam em casa a “proteção”, o “aconchego” e a “higiene” que se opunham às “agruras” e à “poluição do mundo exterior”.

Essa nova família exigia uma “nova mulher”, ainda submissa ao marido, porém não mais completamente sem voz. Ao contrário do que poderíamos supor, essa nova organização familiar, que transforma a mulher na “rainha do lar”, manteve a hierarquia com relação aos papéis masculinos e femininos, o homem atuando como líder da casa e da família e a mulher como subordinada dependente (SCOTT, 2012).

Interromper o caminho público das “emancipadas” e reconduzir as mulheres ao confinamento do lar, o espaço feminino por excelência,para se dedicarem exclusivamente à maternidade e à família como “guardiãs da moral e dos bons costumes”, foi objeto de investimento do saber jurídico da época. A mulher, para a lei, era considerada um ser frágil, incapaz de tomar decisões, alvo de seduções, raptos e fraudes.

Esse código apesar de ter retirado o termo “mulher honesta” no crime de estupro, ainda previa essa categorização da vítima nos crimes de posse sexual mediante fraude e atentado ao pudor mediante fraude6. Como a lei não trouxe nenhuma definição sobre o que seria a “mulher honesta” a conceituação ficou a cargo da doutrina e jurisprudência.

Segundo Nelson Hungria (1959), mulher honesta não é somente aquela que possui moral sexual irrepreensível, mas também aquela que mantém o mínimo de decência exigido pelos bons costumes. Já a mulher desonesta é a mulher fácil, que se se entrega a muitos homens, ainda que não seja prostituta. O autor ainda afirma que nos crimes de fraude, a ausência de proteção legal não significa a perda da liberdade de disposição do próprio corpo, mas sim que o fato específico não possui relevância jurídica ou social para que se configure um ilícito penal.

6 Esse crimes foram revogados em 2005 por meio da Lei 11.106/2005. A concepção de “mulher honesta” também foi excluída do Código Penal a partir dessa lei.

(31)

O Código de 1940 alterou também a definição de “legítima defesa”. O artigo 25 afirma que a legítima defesa se configura quando alguém, “usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem” (BRASIL, 1940). Ou seja, para que a legítima defesa seja reconhecida, não se pode ultrapassar a necessidade de proteção, nem haver a desproporcionalidade entre os meios empregados na agressão e os meios utilizados para impedi-la ou repeli-la.

Nunca existiu, neste instrumento legislativo, qualquer artigo que contemple a “legítima defesa da honra”. A permanência dessa tese nos tribunais de todo país só corrobora a ideia de que, ao longo de toda sua existência, a mulher é tida como menos importante que a vida e a honra dos homens7.

Para eles, em nome da honra, e da função de provedor, podem controlar, fiscalizar e punir suas companheiras. Permitem-se porque homens provedores, cercear o direito de ir e vir, de impedir o acesso ao trabalho de suas companheiras, de inspecionar órgãos sexuais para garantir que não houve traição, e “bater” se sentem ciúmes ou se não recebem a atenção requerida. Contudo, ainda que saibam e se refiram à ilegitimidade da violência , em função dos direitos da companheira, prevalece a legitimidade do valor da “honra”, e a legitimidade do poder derivado de sua função de provedor, em nome do qual consideram legítimo o seu comportamento, minimizando e marginalizando o (re)conhecimento dos direitos individuais das companheiras (MACHADO, 2000, p. 14)

A visão da esposa como propriedade do marido é explorada nos processos criminais de julgamento dos homicídios em que a legítima defesa da honra era suscitada como principal argumento de defesa. É o que nos conta Luiza Nagib Eluf, quando resgata um julgamento em que o réu havia matado a esposa e a conduta homicida foi assim explicada: “O réu não podia suportar a ideia de que outro homem fosse ejacular nas entranhas de onde ele havia saído” (ELUF, 2007, p. 166).

Colocações como essa eram bastante comuns nesses processos e tinham como base o machismo da sociedade, pois, o ato sexual praticado por uma mulher fora do casamento era visto como algo “sujo”, “impuro”, passível de condenação moral e social. O recurso à desmoralização da vítima promovia o achincalhe da “adúltera” e transformava a mulher em

7 Apenas em 1991, essa figura jurídica foi definitivamente afastada por decisão do Superior Tribunal de Justiça, sob o argumento de que a “honra” é atributo pessoal e, no caso, a honra ferida é a da mulher, quem cometeu a conduta tida por reprovável (traição), e não a do marido ou companheiro que poderia ter recorrido à esfera civil da separação ou divórcio (Recurso Especial 1.517, 11.03.1991).

(32)

culpada por não ter seguido o código moral vigente, se transformando em uma mulher indigna, vulgar, desonesta.

Foi o que aconteceu no famoso caso do assassinato da socialite Ângela Diniz, pelo seu então companheiro Raul Fernandes do Amaral Street, popularmente conhecido como Doca Street. No dia 30 de dezembro de 1976, após um grande desentendimento do casal, Ângela foi morta com três tiros no rosto e um na nuca. Ao longo de todo o julgamento, o advogado de Doca construiu a imagem de Ângela como uma "femme fatale", "vênus lasciva" movida a cocaína e álcool. Sustentou ainda que Ângela era uma mulher sedutora que forçou Doca a abandonar família e amigos para depois desonrá-lo.

Em sua defesa oral no Tribunal do Júri, o advogado Evandro Lins e Silva descreveu o caso como se Ângela tivesse dado ensejo à sua própria morte. Segundo o jurista, ela seria uma “mulher fatal” o tipo que encanta, seduz, domina e leva o homem ao desespero, à prática de atos em que ele age contra a sua própria natureza. (PAULO FILHO, 2015). A defesa de Doca se sustentava na ideia de que a vida pregressa de Ângela e suas atitudes no dia da morte, levaram à deflagração da tragédia.

Ângela Diniz foi acusada de “macular os bons costumes”, “ter vida desregrada”, ser “mulher de vida fácil” etc. Na verdade, o que estava sendo objeto de julgamento era a sua vida e não o fato que culminou em sua morte. O assassinato de Ângela representava o expurgo de uma ameaça à moral da “família brasileira”.

O julgamento do homicídio de Ângela Diniz foi o primeiro a receber uma intensa cobertura da mídia e acabou se transformando num marco para a história do feminismo brasileiro. A importância dos movimentos feministas8 se dá a partir do alerta para o fato de que as relações entre homens e mulheres não são naturais e sim produto da socialização e da cultura dessas pessoas, sendo então passíveis de mudanças.

8 Entendemos por feminismo, o movimento coletivo organizado e orientado para lutar pela libertação das mulheres, específica e sistematicamente oprimidas. O feminismo tem caráter político e se funda na certeza de que as relações entre homens e mulheres, tal como estão constituídas, não são naturais e sim construídas socialmente, passíveis, pois, de transformação (FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL, 2009). Existem diversas formas de movimentos feministas, diferenciando-se, no que concerne às suas vertentes, quanto às origens da opressão da mulher. Como exemplos de vertentes feministas podemos dar o feminismo liberal, radical, marxista, anarquista e pós-moderno. Também há diferenciações quanto às epistemologias, caracterizadas pelas diversas perspectivas apresentadas pelas mulheres enquanto sujeitos políticos, de acordo com as localizações ocupadas por elas. Como epistemologias feministas entendemos o feminismo negro, classista, indígena, ecofeminista, transfeminista etc. As vertentes dão o tom político ao debate e a epistemologia, a experiência/consciência prática. Apesar dessas diferenças, existem temas que são caros a todos os movimentos feministas, como por exemplo, a luta contra a violência de gênero sofrida pelas mulheres.

(33)

Há quem considere a condenação de Doca como uma verdadeira vitória frente ao machismo imperante na nossa sociedade e este, inclusive, é o discurso predominante nos movimentos feministas. Mas devemos ter cuidado para não cairmos na armadilha de considerar o poder punitivo do Estado como o principal meio de enfrentamento à violência contra à mulher, pois, já vimos que a legislação, bem como a doutrina e a jurisprudência brasileira reproduziram, enquanto puderam, o papel de inferioridade da mulher na sociedade patriarcal.

Ainda que nos tribunais a tese da “legítima defesa da honra” tenha experimentado algumas derrotas, a realidade social demonstra que a população continuava acreditando que as atitudes transgressoras de uma mulher se apresentavam como justificativa válida para a sua morte.

Além do já mencionado caso Ângela Diniz, a morte de outra mulher da classe alta gerou comoção nacional. No que ficou conhecido como “o crime da mansão Pampulha”, Márcio Stancioli matou a mulher, Eloísa Ballesteros, enquanto ela dormia. A defesa apostou no conservadorismo e ao longo de todo o júri, reforçou o ideário machista de que as mulheres deveriam se dedicar exclusivamente ao lar. Os movimentos feministas lotaram o plenário, apresentando protestos contra o assassinato de mulheres.

Várias falas do advogado de defesa foram alvo de protesto das feministas ali presentes: “Família, lar, filhos, fidelidade: em que pese a crise moral, são conceitos a ser observados pelos jurados”. Além disso, ele afirmou que “Márcio trabalhava todos os dias e chegava às 18 horas, pois seus filhos estavam abandonados, já que Eloísa só pensava em ser empresária”. Completou afirmando que “a mulher se casa para o lar e os filhos: Eloísa casou-se depois de intensa vida social, e era experiente, enquanto Márcio era inexperiente”9.

O resultado do julgamento foi a condenação de Márcio por homicídio culposo10. A pena foi de apenas dois anos de prisão, mas o juiz concedeu um sursis, justificando ser o réu primário e ter bons antecedentes. Durante a leitura da sentença, as mulheres gritavam ‘chega!’, enquanto

9 Informações retiradas de veículos de imprensa. Disponível em:

https://glamurama.uol.com.br/o-crime-da-mansao-da-pampulha-que-chocou-a-sociedade-mineira/

10 Homicídio culposo é aquele em que o assassino age com imperícia, imprudência ou negligência, ou seja, não há a intenção de matar. Já o homicídio doloso conta com o elemento da vontade, o agente atua com o intuito de matar, ou assume o risco de produzir esse resultado. No caso de Márcio, foi comprovado que ele atirou sete vezes nas costas da mulher, enquanto ela dormia, restando clara a intenção de matá-la. Porém, contrariando as provas do processo, ele foi condenado por homicídio culposo, o que corrobora a tese de que as esferas jurídicas atuam reproduzindo a cultura patriarcal dominante.

Referências

Documentos relacionados

Purpose: This thesis aims to describe dietary salt intake and to examine potential factors that could help to reduce salt intake. Thus aims to contribute to

Muitos desses fungos podem ser encontrados nos grãos de café durante todo o ciclo produtivo, porém sob algumas condições especificas podem causar perda de

O presente trabalho foi realizado em duas regiões da bacia do Rio Cubango, Cusseque e Caiúndo, no âmbito do projeto TFO (The Future Okavango 2010-2015, TFO 2010) e

Foi membro da Comissão Instaladora do Instituto Universitário de Évora e viria a exercer muitos outros cargos de relevo na Universidade de Évora, nomeadamente, o de Pró-reitor (1976-

Contemplando 6 estágios com índole profissionalizante, assentes num modelo de ensino tutelado, visando a aquisição progressiva de competências e autonomia no que concerne

Figure 8 shows the X-ray diffraction pattern of a well-passivated metallic powder and a partially oxidized uranium metallic powder.. Figure 7 - X-ray diffraction pattern of

Acrescenta que “a ‘fonte do direito’ é o próprio direito em sua passagem de um estado de fluidez e invisibilidade subterrânea ao estado de segurança e clareza” (Montoro, 2016,

E para opinar sobre a relação entre linguagem e cognição, Silva (2004) nos traz uma importante contribuição sobre o fenômeno, assegurando que a linguagem é parte constitutiva