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4 UMA ANÁLISE CRIMINOLÓGICA CRÍTICO-FEMINISTA SOBRE A

4.1 METODOLOGIA

A Metodologia Científica é muito mais do que regras para a realização de uma pesquisa, ela proporciona a oportunidade de lançarmos um “novo” olhar sobre o mundo: um olhar científico, curioso, indagador e criativo. Assim, o Método Científico é a forma como a pesquisadora usa os instrumentos de pesquisa para desvendar o conhecimento e evidenciar o objeto estudado. A característica central do Método Científico é a investigação organizada, o controle rígido de suas observações e o uso de conhecimentos teóricos.

Com relação ao tema de estudo, é oportuno frisar que a escolha de um assunto não surge despretensiosamente, mas decorre de interesses e circunstâncias socialmente condicionadas. Essa escolha é consequência das vivências da pesquisadora na sociedade. O olhar sobre o objeto está condicionado historicamente ao lugar que a cientista ocupa na sociedade e pelas correntes de pensamentos existentes (GOLDENBERG, 2015).

E comigo não aconteceu de forma distinta. Caicó foi a cidade que nasci, estudei, me formei em Direito e vivi a maioria das experiências de minha vida. Foi na capital do Seridó potiguar que trilhei meus caminhos enquanto pesquisadora e é sobre ela que volto meu olhar científico.

A identificação com o tema de estudo se deu por meio da aproximação com outras mulheres residentes em Caicó e que se auto intitulavam feministas26. A partir desse contato me engajei em diversos eventos que discutiam a questão de gênero em nossa localidade e, a violência sempre era matéria de destaque em nossas reuniões, palestras e demais atividades.

Somado a isto, me deparei, em novembro de 2015, com uma notícia no Portal do Judiciário do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN), onde havia a informação de que existiam quase treze mil processos em tramitação no Judiciário Estadual envolvendo casos de violência contra a mulher. A matéria também dizia que nosso estado, à época, era o quinto no Brasil com maior índice de violência doméstica.

Outro aspecto importante dessa reportagem foi a exposição da forma como estes processos estavam distribuídos numericamente e por localidade. Estando 1.956 processos em tramitação no 1º Juizado da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher em Natal, 1.964 tramitando no 2º Juizado da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher em Natal, 2.058 processos em tramitação na Vara de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Mossoró, 1.996 processos no Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Parnamirim e 4.972 processos em tramitação nas unidades não especializadas do interior do Estado, totalizando 12.946 processos.

Diante da quantidade de processos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) orientou que fossem criados mais dois Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, sendo mais um em Natal e outro em Caicó. Em consequência disso, por meio de resolução aprovada pelos desembargadores do Tribunal na sessão administrativa de 09 de novembro de 2016 do TJRN, foi determinado que a Vara Criminal da Comarca27 de Caicó passaria a ser chamada de Vara Criminal e Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência para atuar quanto às condutas previstas na Lei Maria da Penha.

Apesar disso, ainda não havia nenhum estudo específico quanto aos procedimentos de violência doméstica e familiar contra a mulher em Caicó, reforçando a necessidade de nos

26 O Movimento Mulheres do Seridó é o grupo mais atuante e com maior visibilidade local, tendo se destacado na

imprensa e na sociedade como um todo por meio da luta pela implementação do Hospital da Mulher em Caicó. Houve também a tentativa de implementação de outro grupo, a “Coletiva Juremas” com foco na juventude e meio acadêmico, mas, este último não vingou, tendo apenas realizado um evento externo denominado “Primavera Feminista no Sertão do Seridó”, em outubro de 2016.

27 A comarca corresponde ao território em que o juiz de primeiro grau exerce sua jurisdição e pode abranger um

ou mais municípios, dependendo, entre outros aspectos, do número de habitantes e de eleitores, do movimento forense e da extensão territorial dos municípios do estado. Os municípios que não possuem comarca são “termos”, ou seja, os processos tramitam em outra localidade, de acordo com os limites jurisdicionais da comarca.

debruçarmos sobre a situação dessa localidade, tendo em vista a importância deste Município para o Seridó e para o Rio Grande do Norte.

Com o propósito de suprir essa lacuna foi que me alvitrei a realizar esta pesquisa. O trabalho se destinou a investigar a intervenção punitiva estatal através da análise dos procedimentos criminais que foram catalogados e arquivados em caixas de arquivos judiciais especificamente organizadas pela matéria de violência doméstica e familiar, sob a égide da Lei Maria da Penha, na Comarca de Caicó/RN.

É oportuno mencionar que o arquivo judiciário do Fórum Municipal Amaro Cavalcanti não era um completo desconhecido para mim. No período em que atuei como estagiária vinculada ao TJRN na Comarca de Caicó, entre os anos de 2010 e 2012, pude conhecer e ter acesso a alguns processos que se encontravam lá. Todavia, o volume de “coisas”28 guardadas aumentou substancialmente de 2012 até a última vez que lá estive, em 30 de maio de 2019.

Talvez por eu ser, também, uma velha conhecida de alguns serventuários da Justiça, não encontrei nenhuma espécie de resistência à realização da pesquisa, ao contrário, fui tratada com cordialidade e presteza em todos os momentos em que precisei estar imersa no campo. No primeiro dia da pesquisa fui acompanhada pelo diretor de secretaria da 3ª Vara29, que me apresentou aos funcionários responsáveis pela guarda das chaves do arquivo e me mostrou o corredor e prateleiras onde estavam alocados os procedimentos de meu interesse.

Após isso, ganhei “passe-livre” para poder transitar pelo arquivo sempre que se fizesse necessário, desde que, a cada ida e vinda, depositasse as chaves no local de praxe. Assim, durante quase três meses, o meu vai e vem com caixas empoeiradas passou a ser parte da rotina da instituição. É que, recolhia no arquivo a caixa que seria objeto de investigação e me dirigia à “Sala Lilás” para proceder à análise detalhada dos procedimentos.

Ficou estabelecido que eu executaria minha pesquisa na “Sala Lilás” porque o arquivo, além de ser bastante cheio e empoeirado, não possuía condições de comportar a instalação de uma mesa e cadeira para que eu pudesse trabalhar em meu notebook.

28 Além de processos arquivados, há também livros e alguns objetos de informática distribuídos sem ordem

aparente pelo corredor vertical do arquivo.

29 Como os processos referentes à violência doméstica, antes da resolução 30/2017 do TJRN, eram competência

da Vara Criminal e Juizado de Violência Doméstica e Familiar da cidade de Caicó, atualmente 3ª Vara, o referido servidor era o responsável pela gestão desses processos e por isso, foi quem me acompanhou até o arquivo para a apresentação do ambiente.

A Sala Lilás foi inaugurada em julho de 2016 com o objetivo ser um local de realização de audiências cuja matéria versasse sobre a Lei Maria da Penha. De início, a sala só era aberta nessas ocasiões, mas depois passou a funcionar como uma espécie de secretaria judiciária, com a transferência de todos os processos com tramitação pela Lei 11.340/2006 para a localidade. Assim, formou-se uma pequena unidade de atendimento especializado, com a realização de audiências, atendimento ao público, em especial às mulheres, e procedimentos processuais em ambiente distinto dos demais.

As paredes do ambiente são cor de lavanda, diferente do bege pastel que predomina no Fórum, e em cada canto da sala, se percebe que foi dada especial atenção à localidade. As pilhas de processos têm nomes de flor: gardênia, vitória-régia, tulipa, margarida etc. Os armários são enfeitados também com flores, feitas manualmente em material Etil Vinil Acetato (EVA), quadros delicados enfeitam o local, chás e cafés são oferecidos a todas as pessoas que por lá passam.

Lá, ganhei mesa e sala “próprias”. Como a “Sala Lilás” é vinculada à 2ª Vara, não tem juiz ou juíza titular, nem assessor(a) de gabinete. O espaço físico destinado a esses profissionais restou vago, sendo, sem nenhum embraço de ordem burocrática, ocupado por mim. Além disso, ganhei atenção e todo suporte possível da servidora Fabiane que se mostrou completamente dedicada à organização e bom funcionamento do lugar e depois, de Ridalvo30.

Na pesquisa de campo, sob o enfoque crítico-feminista da criminologia, buscamos encontrar as respostas que o sistema penal dá ao conflito doméstico, durante o procedimento judicial, a partir de critérios previamente estabelecidos.

A fim de traçar um perfil dos atores e do andamento e desfecho processual, foram analisados: gênero do agressor, tipos penais, grau de parentesco, profissão do suposto agressor e da suposta vítima, bairro onde moram os supostos agressores e supostas vítimas, média de idades de vítimas e réus, deferimento de medidas protetivas, intervalo de tempo médio entre pedido de medida protetiva e respectivo deferimento, prisão em flagrante, conversão de flagrante em medida protetiva, tempo médio de duração das prisões preventivas, recorrência dos casos de violência doméstica com os mesmos sujeitos, números de condenações, absolvições e ratificações, além das extinções por outros fins, quantidade de processos que

30 Nos primeiros dias de minha pesquisa, o servidor Ridalvo estava de férias, porém, já o conhecia do meu período

contaram com a atuação direta de defensores públicos ou advogados de defesas particulares, o meio pelo qual se deu a iniciativa desses processos e a duração média deles.

Cabe ainda mencionar que era nossa intenção obter dados com relação à raça/etnia dos sujeitos, mas não restou possível tendo em vista que essa informação não foi preenchida na maioria dos procedimentos verificados, prejudicando nossa pesquisa sobre esse aspecto.

Durante a coleta dos dados, alguns casos nos chamaram atenção, porque refletiam as principais críticas da criminologia feminista e da criminologia crítica ao tratamento judicial dado à violência doméstica e familiar contra as mulheres, o que nos levou à análise desses casos concretos. Nessa fase, “os documentos começaram a ser apreendidos e vasculhados a partir de um esforço epistemológico de “fazê-los falar” ou de “segui-los” a fim de se alcançar uma pluralidade de vozes e caminhos percorridos [...]” (CHAVES, 2018, p. 273).

Isso tudo levando em consideração que os documentos também têm capacidade construtiva, sendo compostos por ideologias, subjetividades e discursos que afastam a neutralidade, mostrando-se, pois, algo além de meros instrumentos burocráticos do Estado, ou seja, os documentos carregam uma carga ideológica e a forma como eles são manejados, possibilitam caminhos possíveis para se acessar e interpretar as narrativas neles contidas. Nas palavras de Lilian Leite Chaves:

O olhar antropológico para os documentos recai em fazê-los falar e em segui-los nas diversas tramas que eles proporcionam e são articulados. Tais documentos, mesmo os legislativos e administrativos como leis e portarias, possuem frestas por onde é possível espiar as diversas vozes que os compõem, as relações de poder que neles se afixaram, as biografias e afiliações. Os documentos são linguagem, caminho, prova e chave para uma infinidade de questões que se dão na interface entre instâncias estatais e sociedade; eles permitem acessar as instâncias estatais, iluminando as suas práticas e tomadas de decisões (2018, p. 279).

Partindo desse entendimento e dada a minha liberdade em transitar pelo arquivo e o acesso aos documentos que eu necessitava, como já mencionado, seguindo por eles e através deles, pude fazer o exercício de enxergá-los como instrumentos detentores de múltiplas vozes, dada a quantidade de indivíduos que os manejaram e neles deixaram marcas próprias como heranças dos diversos pontos de vistas ali contidos.

Essa tessitura de novas realidades a partir do olhar lançado para o documento pode ser entendida como consequência do que Maricato (2015) chamou de performatização do

documento. Essa performatividade perpassa os diversos interesses produzidos nas instâncias estatais, nas relações de poder que permeiam as suas construções e neles são incorporadas, atuando de maneira a transformar a realidade das pessoas que estão em conflito e esperam pela resposta jurídica.

Dessa forma, entendendo o arquivo como um campo etnográfico, a coleta de dados se deu entre os meses de março e maio de 2019 e, como o método utilizado já sugere, envolveu a imersão da pesquisadora na análise de todos os procedimentos criminais arquivados em caixas específicas sobre violência doméstica e familiar contra a mulher, totalizando 29 caixas e 239 procedimentos. Chegamos a esse número após serem excluídos os processos que tramitaram em Caicó, mas são oriundos de casos ocorridos em São Fernando, Timbaúba dos Batistas e Serra Negra do Norte, termos da Comarca de Caicó.

Cada caixa foi então, identificada em um documento do Word, onde foram feitos resumos e levantamento dos dados relacionados a todos os processos existentes nelas. De início, foi possível identificar elementos comuns nos processos, entretanto, numa análise posterior sobre os dados construídos, alguns, apresentaram andamentos muito diferentes. Desses, foram selecionados três processos para serem abordados detalhadamente, dadas as peculiaridades e performances dos documentos que destoaram em grau maior da massa de procedimentos analisados, conforme veremos. Com os casos quantificados diante os critérios estabelecidos e que viessem a atender também ao alcance dos objetivos, seguiu-se para a análise qualitativa, objetivando assim uma compreensão aprofundada do objeto que se estuda (GOLDENBERG, 2015).

Nesse passo, os casos selecionados permitirão uma maior compreensão dos fenômenos sociais e irão se coadunar com as conclusões apresentadas pelos referenciais teóricos estudados. Confiamos que o modelo de análise de dados proposto é capaz de trazer à tona as percepções e significados para a construção de um saber sobre a aplicação da Lei Maria da Penha no Município de Caicó/RN, sob o viés crítico-feminista da criminologia.

Tudo isso aliado as escolas teóricas ligadas à criminologia crítico-feminista, que consideram o Direito um espaço de disputas de narrativas e lugares sociais que necessita de mudanças dentro e fora do sistema de justiça criminal, de modo a incorporar o ponto de vista das mulheres e das classes marginalizadas como forma de diminuir a criminalização e estigmatização dos alvos mais fáceis de serem alcançados pela seletividade penal.