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Reparação do Crime de Tortura *

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Academic year: 2021

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Reparação do Crime de Tortura

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Cecília MA B. Coimbra ** O Horror da Tortura

Reparação, segundo o “Guia para Denuncias de Torturas”, lançado nesta cidade, em sua versão espanhola, consiste em “reparar dano causado a uma pessoa” 1. Parece à primeira vista, uma definição simples e clara. Entretanto no território das violações dos direitos humanos o tema da reparação, especialmente quando articulado ao crime de tortura, é extremamente complexo.

“Infelizmente setores importantes da sociedade não fazem a menor idéia do que significa tortura (...). Tortura é uma das práticas mais perversas: é a submissão do sujeito, da vontade, ao impor-se a ele a certeza da morte. Mas não uma morte qualquer: é a morte com sofrimento, a morte com muita agonia, é a morte que vai acontecendo bem devagar, porque o desespero deve ser potencializado. O choque elétrico rasga, em solavancos, as entranhas do indivíduo e o coração parece que vai explodir. O afogamento mistura ar e água, é a consciência da parada cardíaca, a dor dos pulmões que vão se encharcando. O pau de arara, o cigarro aceso queimando a pele e a carne. Várias horas seguidas e em várias horas do dia, noite, madrugada”2.

Esta travessia ao inferno, os suplícios físicos, psíquicos, os sentimentos de desamparo, solidão, medo-pânico, abandono, desespero de transformar-se em coisa, de “cisão entre corpo e

mente” 3 são alguns fatos ligados à tortura. Estes tem suscitado reflexões não somente daqueles

*

Trabalho apresentado no seminário regional, quando do lançamento do “Guia Para la Denuncia de Torturas” em sua versão espanhola, na cidade do México, em março de 2001.

**

Psicóloga, Professora Adjunta na Universidade Federal Fluminense, Pós-Doutora em Ciência Política, Presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia e Vice- Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ

1

Giffard, C. – Guia Para La Denuncia de Torturas – Reino Unido, Human Rigths Center/ University of Essex, 2000, p.1.

2

Depoimento de um ex-preso político brasileiro in Jornal do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, ano 8, no 18, Dez/94, p.5.

3

Célebre artigo do psicanalista brasileiro Hélio Pellegrino intitulado a “Tortura Política” in Pellegrino, H – A burrice do Demônio – Rio de Janeiro, Rocco, 1988, 19-21, p.19.

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que passaram por essas situações limite, mas de filósofos, psicólogos e outros preocupados com o tema.

“A loucura da situação de tortura e esta:

deseja-se que através da dor e degradação, um deseja-ser humano vire “coisa” (...). A resistência é encarada como esforço gigantesco para não perder a lucidez, isto é, para não permitir que o torturador penetre na alma, no espírito, na inteligência do torturado” 4, afirma a filósofa Marilena Chauí.

Já o psicanalista Hélio Pellegrino apontava:

“A tortura transforma nosso corpo – aquilo que temos de mais íntimo – em nosso torturador, aliado aos miseráveis que nos torturam. Esta é a monstruosa subversão pretendida pela tortura. Ela nos racha ao meio (...). O corpo na tortura nos acua (...). Ele se volta contra nós, na medida em que exige de nós uma capitulação ...). O corpo sob tortura, nos tortura, exigindo de nós que o libertemos da tortura, seja a que preço for. Ele se torna, portanto, (...) o porta voz dos torturadores, aliado destes na sinistra empreitada que nos quer anular (...), nos transformar em objeto”5 .

Muitas outras descrições e reflexões têm sido feitas sobre esta perversa prática. Diante do pouco que apresentamos acima, podemos nos perguntar se é tão simples assim falarmos de reparação, em especial, para os atingidos por tais práticas.

4

Chauí, M. - “Um Regime Que Tortura” in I Seminário do Grupo Tortura Nunca Mais – Petrópolis, Vozes, 1987, 21-37, p.34.

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A Reparação Enquanto Processo

Ainda segundo o “Guia para Denúncias de Torturas”, a reparação pode ocorrer de muitas formas distintas, sendo a mais utilizada a tradicional compensação econômica.

Diante do horror e mesmo da complexidade que é a prática da tortura, assim como a de outras violações, entendemos que a reparação, enquanto compensação econômica, só tem sentido se for parte integrante de um processo. Este deve incluir, necessária e fundamentalmente, a investigação e o esclarecimento dos fatos, a punição dos responsáveis e o pedido público de desculpas por parte do Estado. Sem isto, as compensações econômicas se transformam – e é o que tem acontecido em muitos países que sistematicamente violam os direitos humanos – em um “cala boca”, em especial, para o afetado e para a sociedade como um todo. Ou seja, os governos, em alguns casos, pagam pecuniariamente pelos crimes cometidos por seus agentes e, por isso, não se sentem obrigados a investigar e esclarecer tais violações, a punir seus responsáveis e a assumir publicamente suas responsabilidades. A impunidade, assim, aduba e alimenta novos desrespeitos aos direitos humanos, como num círculo vicioso.

Sabemos que em um Estado capitalista tudo é transformado em mercadoria, tendo um preço no mercado. O corpo, o tempo dos homens, a sua vida, por exemplo, são disciplinados e normatizados, em/e por diferentes instâncias e meios, para serem também transformados em mercadorias e vendidos no mercado como força de trabalho e como tempo de trabalho. Dessa maneira, um Estado ao compensar economicamente alguém por algum crime cometido por alguns de seus agentes, sem dúvida, está reconhecendo sua responsabilidade em relação ao delito cometido. Entretanto, entendemos que tal reconhecimento não é suficiente, pessoal-socialmente.

Para quem sofreu os horrores e terrores da tortura, do seqüestro, da prisão ilegal, da morte de amigos e familiares, da ocultação de seus restos mortais, a reparação puramente econômica é pouco. Da mesma forma, para uma sociedade em que cotidianamente se utilizam todas essas práticas – que acabam sendo aceitas e até aplaudidas por vastos segmentos da população – contra os considerados perigosos, uma compensação econômica tem pequeno valor educativo; não funciona pedagogicamente no sentido de fomentar mudanças.

O que estamos afirmando, em realidade, é que para a pessoa atingida e para a sociedade a reparação econômica pode ser transformada em um eficiente “cala boca”, fazendo com que

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acreditem que o possível já foi feito; ela também pode trazer efeitos ainda mais perversos e nefastos. Portanto, tanto pessoal quanto socialmente – até porque não entendemos esses dois aspectos como territórios isolados e estanques, mas como campos que se articulam, se cruzam indissociavelmente – a compensação econômica, isolada de uma reparação enquanto processo, ou seja, fora de um contexto onde investigação, esclarecimento, punição e autocrítica pública estejam presentes, pode ser extremamente danosa. Pode, sem dúvida, ajudar a produzir pessoal-socialmente a apatia, a omissão, o descompromisso, sentimentos de impotência, de frustração e imobilismo. Ou seja, afirma-se, fortalece-se a crença de que nada é possível mudar, de que nada há para ser feito. Estas produções – que encontramos em determinados momentos de nossas histórias, como hoje, por exemplo, nesses tempos neoliberais – são perigosíssimas, pois levam à desmobilização e à descrença, aliadas fundamentais para a manutenção do status quo e contra toda e qualquer possibilidade de mudança.

No Brasil, no continente latino-americano e em muitos outros países, a tortura continua sendo utilizada, sem a menor cerimônia, em dependências policiais e carcerárias e em muitos outros estabelecimentos como os utilizados para o que chamam de “reeducação” de jovens e infratores. Em especial, em países que passaram por recentes regimes de força, ainda se sofre “os efeitos das marcas deixadas pelos longos anos vividos sob a égide da Lei de Segurança

Nacional 6, como é o caso de muitos da América Latina. Também, por isso, no Brasil

“(...) não se verifica um consistente esforço para capacitar as polícias e agentes de segurança penitenciária a atuar conforme a lei, e o que é pior, hoje tudo se dá em um contexto em que a população se habituou a considerar natural e legítima a tortura e o extermínio dos suspeitos de crimes (...). Freqüentemente intimidados (...) os médicos (e outros) responsáveis pela

assistência dos (diferentes detidos),raramente

documentam adequadamente as lesões sugestivas de tortura (...) Os Institutos Médicos Legais continuam, como à época da ditadura, vinculados à policia e, com

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No Brasil, o período da ditadura militar foi de 1964 a 1985. Sobre o assunto consultar Kolker, T. – Ética Profissional, Direitos Humanos e a Participação dos Profissionais de Saúde na Luta pela Erradicação da Tortura – AnteProjeto do 1o Seminário de Direitos Humanos para Profissionais de Saúde do DESIPE ( Departamento do Sistema Penitenciário e DEGASE (Departamento Geral de Ações Sócio – Educativas), Rio de Janeiro, 2001, mimeogr., p.2.

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5 freqüência, é o próprio torturador quem conduz a vítima

da tortura para exame de corpo delito” 7.

Daí, por mais perigoso, delicado e doloroso que seja o ato de denunciar as violações sofridas, ele é o início fundamental de uma caminhada para que pessoal-socialmente possamos superar os terríveis efeitos produzidos em nós por essas práticas. A denúncia, o tornar público, retiram-nos do território do segredo, da clandestinidade, do privado. Com isso, saímos do lugar de vítima fragilizada, despontencializada e ocupamos o da resistência, da luta, daquele que passa a perceber que seu caso não é um acontecimento isolado; ele se contextualiza, faz parte de outros e sua denúncia, esclarecimento e punição dos responsáveis abre caminho e fortalece novas denúncias, novas investigações. A dimensão coletiva desse caminho se afirma e, com isso, temos a possibilidade de começar a tocar na impunidade; de mostrar que tal quadro – onde as punições nunca acontecem – pode ser mudado, pode ser revertido.

Pessoal-socialmente a impunidade produz uma dupla violação: além da que foi sofrida – se nenhuma atitude for tomada por parte do atingido e/ou das autoridades governamentais – continua-se, no dia a dia, a ser violentado. O desrespeito da não investigação, não esclarecimento dos fatos e da não punição dos responsáveis significa uma nova violação. Não é por acaso que o atendimento clínico a pessoas afetadas por violações de direitos humanos articula-se com a luta contra a impunidade e tem um caráter pedagógico-social. O Projeto Clínico-Grupal Tortura Nunca Mais8, por exemplo, aponta para tais questões: a assistência clínica não é um território isolado, separado, onde se trataria exclusivamente do psiquismo, do interior do sujeito. Estes não são esferas autônomas e independentes do contexto histórico que atravessa e constitui permanentemente esse sujeito. Falar do psiquismo é falar dos inúmeros e múltiplos atravessamentos histórico-sociais que constituem e se atualizam nesse sujeito9.

7

Idem, p.2.

8

Desde de 1991 funciona junto ao Grupo Tortura Nunca Mais/RJ uma equipe de psicólogos, psicanalistas, psiquiatras, fisioterapeutas e reabilitadores sociais que atendem a pessoas atingidas direta e indiretamente pela violência do Estado ontem e hoje. Este projeto, além do atendimento, hoje no Rio de janeiro a 95 pessoas, pensa também a formação, participando e fomentando cursos, treinamentos, seminários e vários outros eventos.

9

Sobre o assunto ver as inumeras contribuíções trazidas ao campo da clínica por Gilles Deleuze e Félix Guattari em várias de suas obras, em especial, O Anti-Édipo – Rio de Janeiro, Imago, 1976. Ainda sobre o assunto consultar algumas produçòes da Equipe Clínico-Grupal Tortura Nunca Mais como: Leitão, M.B.S. et alli – “Intervenção Clínica quanto à Violação de Direitos Humanos: por uma prática desnaturalizadora na teoria, na ética e na política” in Anuário do Laboratório de Subjetividade e Política – No 02 – Rio de Janeiro, MC Ed., 1994, 61-74; Ética e Intervenção Clínica em Relação à Violação dos Direitos Humanos. - RJ, 1994, mimeogr. ; A Herança da Violência: o silêncio e a dor de famílias atingidas – aspectos de tratamento – RJ, 1994, mimeogr ; As Práticas da Neutralidade: seus efeitos e produções de subjetividade – RJ, 1995, mimeogr; Práticas Clínicas e Direitos Humanos – RJ, 1996, mimeogr.

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A própria concepção de superação dos efeitos produzidos por essas práticas de violação vincula-se, portanto, às lutas político-sociais, como a luta

contra a impunidade e por uma sociedade sem torturas, por exemplo. O slogan “transforme sua

dor num instrumento de luta político-social” utilizado para muitos atingidos pela violência do

Estado tem apontado para a superação do papel de vítimas e para a aceitação da força que esses sofrimentos lhes trazem. Publicizar, retirar do espaço privado, coletivizar e politizar a luta para que os danos sofridos sejam reparados tem sido, portanto, um importante caminho para os atingidos direta e indiretamente pela violência do Estado.

Assim, entendemos a reparação econômica como um direito de todos aqueles que foram violados, mas um direito que não pode vir sozinho. Um direito que, necessariamente, deve estar aliado às lutas para que se possa construir não somente outras formas de viver, de existir, outras sensibilidades, mas uma outra memória histórica diferente da que nos tem sido imposta pela chamada história oficial.

Desta maneira, quando o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ realiza uma série de ações, elas se inscrevem num típico processo de reparação que se desdobra em diferentes eixos, como: a denúncia de violações de direitos humanos praticadas ontem e hoje e a exigência de investigações; a denúncia contra membros do aparato de repressão de ontem e de hoje ocupando cargos públicos de confiança e a exigência de seu afastamento imediato; a denúncia contra médicos que, num passado recente, assessoraram torturas a presos políticos ou forneceram laudos de óbitos falsos, confirmando as versões oficiais da ditadura brasileira de que aqueles militantes morreram, não sob torturas, mas em tiroteios, atropelamentos ou por suicídio e a exigência da cassação dos registros desses médicos colaboracionistas. Entendemos que esses diferente eixos dizem respeito a um processo de reparação que aponta para a luta contra a impunidade, para a construção de uma outra memória histórica e para uma sociedade sem torturas.

“A América Latina sempre foi vista como uma terra em que os crimes ficavam impunes. Isto está deixando de ser verdade. Uma das grandes virtudes da nova revolução tecnológica é que os tiranos não podem

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7 mais se esconder nas sombras (...). Os direitos humanos

hoje são universais e não uma questão de soberania”10.

Esperamos que a observação acima do intelectual mexicano, Carlos Fuentes, possa cada vez mais se fortalecer e, com isso, também fortalecer os diferentes movimentos de direitos humanos. Que estes possam ser entendidos e defendidos como direitos internacionais, como dizendo respeito a todos que lutam pela vida em nosso planeta. Daí, a importância das diferentes instâncias internacionais vinculadas aos direitos humanos. Daí, a necessidade de uma efetiva articulação entre elas e os diversos movimentos que, em seus países, muitos de forma anônima, se mantêm vigilantes e se esforçam para criar condições favoráveis a vida.

10

Depoimento do escritor mexicano Carlos Fuentes ao Jornal do Brasil, Rio de janeiro, 18/02/01, p.21 (Internacional).

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