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Tortura: de método a crime

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Academic year: 2017

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(1)

UNIVE RSI DADE FEDE RAL DE MINAS GERA IS

FACULDA DE DE D IREITO

CARLOS HENR IQUE ALV AREN GA U RQUIS A MAR QUES

TORTURA: DE MÉTODO A CRIME

BELO HORIZONTE

(2)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, sob orientação do Professor Doutor Felipe Martins Pinto, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre.

CARLOS HENR IQUE ALV AREN GA U RQUIS A MAR QUES

TORTURA: DE MÉTODO A C RI ME

BELO HORIZONTE

(3)

MARQUES, Carlos Henrique Alvarenga Urquisa

M357 t Tortura: de método a crime./ Carlos Henrique Alvarenga Urquisa Marques – 2014 195 f. enc.

Orientador: Prof. Dr. Felipe Martins Pinto

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito. Referências: f. 11-179

1. Tortura. 2. Inquisição. 3. Humanismo. 4. Garantias processuais penais. 5. Processo penal. I. Pinto, Felipe Martins.. II. Universidade Federal de Minas Gerais – Faculdade de Direito. III. Título

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Dissertação apresentada e aprovada junto ao Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais visando a obtenção do título de Mestre em Direito.

Belo Horizonte, 05 de fevereiro de 2014.

CAR LO S HENR IQ UE ALV AREN GA URQU IS A M ARQUES

TORTURA: DE MÉTODO A C RI ME

Componentes da banca examinadora:

__________________________________________________________

Professor Doutor Felipe Martins Pinto (orientador) Universidade Federal de Minas Gerais - U FM G

___________________________________________________________ Professor Doutor Antônio de Pádova Marchi J únior

Centro Universitário de Belo Horizonte - UN IBH

_______________________________________________________ ____ Professor Doutor Fernando Gonza ga J ayme

Universidade Federal de Minas Gerais - U FM G

___________________________________________________________ Professor Doutor Leonardo Au gust o Marinho Marques

(5)
(6)

“Será que tu, ao assumires o sofrimento, já não apagas

metade do teu crime?”.

(7)

AGR ADEC IMENTOS

Agradeço, primeiramente, a Deus por atender minhas preces e permitir que toda minha vida confluísse a este ponto de realização profissional.

Agradeço à minha mãe por me ensinar que , com fé , ousadia e luta, é possível conquistar os tesouros do céu e da terra.

Ao meu pai por me mostrar o valor do passado e das tradições. Também, pelo incentivo a sempre almeja r novas conquistas intelectuais.

Ao meu orientador, o Professor Dr. Felipe Martins Pinto, por me guiar não apenas academicamente, mas com conselhos pessoais e profissionais .

Ao s professores , colegas e amigos d o Programa de Pós Graduação da U FM G, por vi venciarem comigo esta experiência, especialmente ao Gabriel La go e à J éssica Freitas, q ue dividiram comigo desde as aspirações iniciais , até as aflições dos últimos instantes.

Agradeço também à minha família pelo apoio. A todas tias, tios, primos e primas, principalmente ao Gustavo por sempre apoiar meus projetos pessoais. Ao s meus amigos Armanis, que festejaram comigo cada conquista e se compadeceram de cada sacrifício , em especial à Marialice, pelo apoio, carinho e compreensão nesta fase da minha vida.

Ao Dr. Luciano Santos Lopes por compartilhar sua experiência, investir sua confiança e s er uma inspiração tanto profissional quanto acadêmica.

Agradeço, por fim, aos amigos e colegas do Escritório Salomão Cateb. A o Dr. Renato Machado e ao Dr. Leonardo Barbosa , também aspirantes a mestres, com os quais dividi as dúvidas, descobertas e angústia s dessa fase.

(8)

RESUMO

Este estudo é voltado para a identificação das transformações trazidas pelo humanismo para a concepção jurídica de tortura. Para tanto, divide -se a pesquisa em três partes. A primeira destina -se a compreensão da realidade pré moderna em que a tortura é um instrumento legítimo do sistema. Em seguida, apresenta -se a fundamentaç ão teórica que é empregad a pelo sistema inquisitorial para justificar a utilização da tortura. Na segunda parte da pesquisa , o pensamento humanista é apresentado . O contexto histórico de seu surgimento é descrito para, então, demonstrar -se como o humanismo critica a utilização da tortura . A terceira e última fase da pesquisa é utilizada para descrever a maneira como o humanismo provocou mudança nos ordenamentos jurídicos levando a um processo de criminalização da tortura.

Palavras-chave: Tortura; Inquis ição; Humanismo; Garantias Pro cessuais

(9)

ABSTRA CT

This study is focused on identifyi ng the changes brought b y humanism to the legal conception of torture. To do so, this work is divided into three parts. The first is aimed at understanding the pre modern reality that torture is a legitimate tool of the s ystem. It th en presents the theoretical foundation that is employed b y inquisitorial s ystem to justify the use of torture. In the second part of the research, humanist thought i s presented. The historical context of its emergence is described to then be shown as humanism criticizes the use of torture. The third and final phase of the research, is used to describe how humanism caused change in the legal s ystems, leading to a proce ss of criminalization of torture.

Keyw ords: Torture; Inquisition ; Humanism; Criminal Guarantees; Criminal

(10)

SUMÁRIO

INTRODU ÇÃO ... 11

CAPÍTULO 1: INQ U IS IÇÃ O E O PROCESSO PEN A L INQ U IS ITÓR IO ... 14

1.1 As raízes do sistema inquisitorial ... 15

1.2 Inst itucionalização do sistema pela igreja ... 17

1.3 A transposição do procedimento inquisitório para a ordem jurídica ... 26

1.4 Elementos do procedimento investigatório inquisitorial ... 32

1.4.1 Verdade real ... 34

1.4.2 Sistema de provas tarifadas ... 39

1.4.3 Instrumentalização institucionalizada da tortura ... 44

CAPÍTULO 2: A TORTUR A CO MO INSTRU MENTO DE OBTEN ÇÃO D A VERD ADE RE AL EN QU ANTO C ORRESPON DÊNC IA ... 54

2.1 A tortura como ferramenta do sistema persecutório inquisitorial ... 54

2.2 O correspondismo no processo penal ... 60

2.3 Verdade correspondista e tortura ... 70

2.4 Tortura: a verdade a todo custo ... 79

CAPÍTULO 3: O ROMP IME NTO P AR AD IGMÁT ICO : HU M AN ISM O LIBER A L E O SUJ EITO DE D IRE ITOS ... 86

3.1 Revolução do pensamento humanístico e as raízes do rompimento de paradigma no plano jurídico ... 93

3.2 Elevação do ser humano ao status de sujeito de direitos ... 103

(11)

CAPÍTULO 4: IM P LIC AÇÕES D A MU D ANÇ A P AR A U M P AR AD IGM A DE

RESPEITO À D IGN ID ADE D A PE SSO A HUM AN A ... 123

4.1 A consolidação do humanis mo através dos Direitos Fundamentais de Primeira Geração ... 125

4.2 A formação do Estado Liberal e a implementação dos Direitos Fundamentais de Primeira Geração ... 132

4.3 Processo Penal Moderno regido sob os princípios do pensamento humanitário ... 140

CAPÍTULO 5: TORTUR A C OMO CRIME NO OR DEN AMENTO J U RÍDIC O BR AS ILE IRO ... 166

5.1 O tratamento legal da tortura criminalizada, anteriormente à Constituição Federal de 1988 ... 166

5.2 O tratamento legal da tortura a partir da Constituição de 1988 e a tipificação deste crime ... 170

CONCLUS ÃO ... 177

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFIAS ... 182

(12)

INTRODU ÇÃO

A tortura já foi um método legítimo utilizado pelo sistema jurídico brasileiro. Durante as Ordenações Filipinas , que vigiam no Bra sil em seu período colonial (1500-1822), a utilização da tortura era prescrita como método para extrair dos suspeitos, aquilo que se julgava ser a verdade sobre o acometimento de um crime.

Em 1821, o então príncipe regente, Dom Pedro, proibiu o emprego dos tormentos com esta finalidade. Todavia, a tipificação do crime de tortura se deu apenas em 1997 através da l ei nº . 9.455/971.

A diferença entre as concepções de tortura do Brasil Colônia e do Brasil contemporâneo, revelam o distanciamento entr e as ment alidades dos legisladores nos dois períodos.

No primeiro, à época das Ordenações Filipinas, a submissão dos investigados aos tormentos parecia uma maneira eficaz de se averiguar a suspeita de um crime . Isso se de ve à formação do sistema processual penal português. Em sua origem, ele recebe direta influência do sistema utilizado pela Inquisição Católica para a perseguição de hereges.

Por outro lado, naquele s egundo momento, em que a tortura é abolida do ordenamento jurídico, o precedente histórico é o movi mento iluminista do século XVIII. A Coroa Portugues a foi influenciad a pelas ideias humanistas que tomavam a Europa, talvez temerosa de que sua recusa em se adequar às diretrizes iluministas, levasse repercussões violentas como se operou na França em 1789.

1

(13)

Mesmo após a abolição do emprego institucionalizado dos suplícios, os relatos de um passado ditatorial recente - entre 1964 e 1989 - trazem casos de utilização extralegal da tortura enquanto um método de investigação por parte das autoridades militares. Tais relatos levaram o descontentamento da sociedade brasileira . Desse inconformismo surgiram iniciativas, subsistentes até os dias atuais, de resgate da memória e punição aos torturadores2.

Mais recentemente , a notícia de policiais paulistas torturando p essoas, levou a população brasileira a clamar por justiça, grito este que foi atendido com a aprovação da atual lei que tipifica o Crime de Tortura3.

Percebe -se, com esses casos, que a sociedade moderna introjetou o pensamento humanista em relação à ina dmissão da tortura. Não por outro motivo é que se observou a revolta popular quando se torn ou público e notório a sua utilização.

Do ponto de vista jurídico, a implementação do humani smo no sistema persecutório , em relação à tortura, aconteceu através de um processo que parte da proibição e vai até a tipificação do crime de tortura. A evolução normativa que se dá neste ínterim , implica na gradual construção de um Processo Penal de garantias voltadas à proteção da dignidade humana.

Para a compreensão de q uais são essas garantias e como elas são o resultado de um processo histórico de exorcismo da tortura enquanto método institucionalizado, é que foram voltados os presentes esforços científicos.

A pesquisa realizada se deu em três fases , relatáveis em cinco capítulos. O primeiro capítulo é destinado a descrever as origens do sistema inquisitorial e sua utilização da tortura enquanto método.

No segundo capítulo, apresenta -se o resultado de uma análise jurídica científica sobre a estrutura do sistema inqui sitorial . A lógica que orienta o

2

S O AR E S , I nê s V ir g ín ia P r a d o ; KI S H I , S a nd r a Ak e m i S h i ma d a . Me mó r ia e V e r d a d e - A Ju st iç a d e T r a ns iç ã o no E st a do D e mo c r á t ic o B r a s i le ir o . ( B e lo H o r iz o nt e : 2 0 0 9 , E d it o r a Fó r u m) . p . 5 7 .

3

(14)

emprego i nstitucionalizado dos suplícios é descrita neste capítulo , para possibilitar o entendimento das críticas posteriormente formuladas, pelo movimento humanista, ao inquisitorialismo e à tortura.

A segunda fase da p esquisa inicia -se com o terceiro capítulo. Ele destina -se à contextualização e explicação do movimento humanista. Nessa parte, primeiramente se trata do contexto histórico que envolveu o período iluminista , para , então , se apresentar as críticas do ilumini smo à realidade social do ocidente, especialmente aquelas relacionadas ao sistema inquisitorial com seu procedimento persecutório característico . Neste ponto , o projeto humanista para a modernidade é apresentado através dos pensadores que se tornaram expoe ntes, ao tratarem de questões relacionadas ao assunto do presente estudo.

Como terceira e última fase da pesquisa desenvolveu -se o quarto e quinto capítulos. Naquele quarto capítulo descreve -se o processo de assentamento das teorias humanistas nos sistema s jurídicos modernos. Finalmente no quinto capítulo, desenvol ve -se a trajetória legislativa , através da qual a tortura se torn ou antijurídica para o ordenamento brasileiro.

Em resumo, e ssa fase final dos trabalhos é destinada a demonstrar como o processo penal contemporâneo absorveu o pensamento humanista e se tornou absolutamente avesso à tortura.

(15)

CAPÍTULO 1: IN QU ISI ÇÃO E O PROCESSO PENAL IN QU IS ITÓRIO

A primeira fase da pesquisa proposta se refere ao momento em que a tortura é utilizada enquanto um método institucionalizado de persecução criminal.

" D e p o is d e ha ve r s id o t r at a do no D ir e it o G r e go e no Ro ma no c o mo p e sso a , su je it o d e d ir e it o s, o a c u sa d o , p o r in flu ê nc ia d o s c o st u me s bá r ba r o s , p a sso u a se r v ist o co mo s imp le s c o isa , me r o o b je t o do p r o c e sso . Ar r a nc a d o d o la r s e m q u a lq u e r e xp l ic a ç ã o , e r a le va d o a u ma e n xo v ia q u e , d a li p o r d ia nt e , ir ia se r o e sq u i fe d e su a s a sp ir a ç õ e s e o t ú mu lo d e se u s a ns e io s. S o nho s q u e so n ha r a , p r o je t o s q u e c o nc e b e r a , d e se jo s q u e a c a le nt a r a , t u d o a li e n c o nt r a va o t er mo f in a l. O a c o nc h e g o fa m i l ia r d e sa p a r e c ia . E se e le sa ía d a ma s mo r r a e m q u e d e fin h a v a e r a p a r a se r c o nd u z id o à pr e se nç a d e u m ju iz q u e lh e fa z ia p e r g u nt a s va g a s so br e fa t o s q u e n e m se mp r e c o n he c ia . N ã o a lc a nç a nd o o o b je t ivo d a s ind a g a ç õ e s e a c o r r e la ç ã o e nt r e e la s, e r a le va d o a r e spo nd e r a o q u e sa b ia e a o q u e ig no r a va . A in d a q u a nd o d is se s se a ve r d a d e , n ã o se liv r a va d a a c u sa ç ã o d e e st a r me nt ind o o u d e ha ve r c a íd o e m c o nt r a d iç ã o . S e r e sp o nd ia c o m f ir me z a e r a t a c ha d o d e a u d a c io so e p et u la nt e ; se t r e mia e r a t id o c o mo d e lin q u e nt e c o n fe s so . E ssa int e r p r et a ç ã o d e su a s a t it u d e s a ind a ma is c o nt r ibu ía p a r a a u me nt a r lh e a c o n fu sã o , p e rt u r ba nd o -lh e a me nt e já c a ns a d a p e lo nú me r o e p e la d iv e r s id a d e d a s p e r g u nt a s q u e se su c e d ia m e m a t ro p e lo . A p a r t ir d a í, já nã o se le mb r a va n e m d o q u e ha v ia d it o ne m d o q u e r e a l me nt e a c o nt e c e r a . E fr a q u e ja va , c e d ia a o p a vo r . P a ssa v a a ne g a r a v e r d a d e , e nt r a va p e lo r e ino d a fa nt a s ia e d a i ma g in a . O u e mu d e c ia . U ma só p r e o c u p a ç ã o o do min a va : d iz e r o q u e o ju iz q u ise sse o u v ir e livr a r -se d a q u e la t o rt ur a "4.

Diante do que se propôs analisar, a passagem inicial de Hélio Tornaghi citada acima , serve a orientar o ponto de partida para os primeiros esforços .

Demonstra que a utilização instituciona lizada da tortura pelo ocidente situa -se, historicamente, posterior ao Direito Grego e Romano. Dá-se em um momento histórico em que os costumes bárbaros deram origem a um novo procedimento persecutório.

4

(16)

Trata -se do sistema inquisitorial. Tornaghi, sem se referir expressamente à Inquisição, faz menção ao indivíduo alvo de procedimentos arbitrários de investigação, que, conforme se demonstrará adiante, apresentam um evidente caráter inquisitorial.

Para se abordar a utilização dos suplícios enquanto métodos desse sistema far-se-á necessário, portanto, analisar o sistem a inquisitorial, sua origem histórica e suas características. A isso se voltarão os esforços seguintes.

1.1 As raízes do siste ma in quisitorial

O procedimento jurídico a que s e pode atribuir característ icas chamadas inquisitoriais tem existência anterior à consolidação da hegemonia Católica no ocidente. De fato, cronologicamente sucede um sistema acusatório que predominou na tradição jurídica até o Império Romano.

Note -se que o procedimento veio combater alguns perigos que se apresentaram no procedimento acusatório, como a facilitação da acusação falsa, inexiquibilidade da sentença e outros, conforme demonstra Denis Sampaio:

(17)

q u e o cr ist ia n is mo r e su lt o u na r e lig iã o o f ic ia l d o I mp é r io , t o r na nd o a q u e st ão nã o a p e na s r e lig io sa , ma s t a mb é m p o lít ica”5.

Portanto, o sistema jurídico que predominava no direito Romano foi inicialmente acusatório.

Porem, a necessidade de iniciativa particular e a publicidade dos atos processuais tornou o procedimento acusatório pouco a pouco indesejado. A influência de alguns particulares trouxe incerteza e corrupção para a prestação jurisdicional. A publicidade expunha ao vexame aqueles que era m levianamente acusados.

Foi, portanto, a necessidade de manutenção de um sistema judicial com garantias de imparcialidade que inspirou uma mudança de pa radigma na tutela jurisdicional no Império Romano:

“O discurso de mudança do sistema jurídico não era apenas u m

a p r imo r a me nt o na d e mo nst r a ç ã o do s fa t o s d e lit ivo s, ma s u ma ma io r se g u r a n ç a q u e se bu sc a va à é p o c a , p e la s d e c isõ e s d o I mp e r a d o r . I lu st r a To r na g h i q u e p a r a e v it a r q u e o s hu m i ld e s fo sse m v ít i ma s d a c ó le r a d o s p o d e ro so s, q u e o s ho me ns d e be m so fr e ss e m na bo a fa ma , n a e st ima p ú b l ic a e , fin a l me nt e , p a r a a sse g u r a r o bo m ê x it o d a s in v e st ig a ç õ e s, o p ro c e sso p a sso u a se r s e c r e t o e do c u me nt a d o p e la r e d u ç ã o a e sc r it o d e t o do s o s a t o s. O q u e nã o e st ive s se no s a u t o s e r a c o mo se nã o e x ist iss e : q u o n o s e st i n a c t i s n o n e st i n

mundo”6

.

Daí o procedimento ser caracteristicamente escrito e sigiloso. Procuro u -se, como se percebe das observ ações de Denis Sampaio, preservar a imagem dos acusados, permitir a previsibilidade dos atos, a segurança jurídica, e a efetividades das decisões7.

5

S A MP AI O , D e n is A V e r d a d e no P r o c e sso P e na l. A p e r ma n ê nc ia d o S ist e ma I nq u is it o r ia l a t r a vé s d o d isc u r so so br e a ve r d a d e ( R io d e Ja ne ir o : 2 0 1 0, Lu me n Ju r is) . p . 1 1 5 .

6

S AMP AI O , o p. c it .

7

FE R R I , E nr ic o . P r inc íp io s d e D ir e it o C r im in a l - O C r im ino so e o C r ime . ( C a mp in a s: 2 0 0 3 , R u sse l l) . p .

(18)

Mas não se resumia a isso. O modelo de processo cognitio extra

ordinem trazido, implementava o poder dos ju ízes do Estado em conhecer a

demanda por iniciativa própria. Eles poderiam ter conhecimento da notícia do crime, e dela dar início às investigações para apuração do fato. A estas providências preliminares deu -se o nome de inquisitio8.

Este procedimento, co ntudo não é ainda o que se denomina procedimento inquisitório. Na verdade, as características do inquisitio são utilizadas como a base estrutural do sistema investigatório criado pela Igreja Católica a partir do século XII. Por apresentar características s emelhantes, como que herdadas daquela fase do extra ordinem romano, é que se utiliza o

nome “inquisitório” quando do seu resgate pelo direito canônico, tudo,

conforme será analisado adiante.

1.2 Institucionaliz ação do siste ma pe la igreja

Com a queda do Império Romano e a ascensão da Igreja Católica no Ocidente, a expansão do cristianismo passou a se confundir com a própria noção de expansão da ocidentalidade9.

Nesse sentido, a começar pela Cruzada invocada pelo Papa Urbano II em 1095 , iniciou -se um movim ento de expansão da Igreja , pela violência, voltado para o Oriente10. Era uma luta sob o pretexto de “salvar” povos que não apenas se mostravam resistentes à conversão ao catolicismo, mas tinham seus próprios interesses expansionistas.

8

N a ve r d a d e , o po d e r do s ju íz e s a e st e t emp o e r a “desmesurado”. (BARROS, Marco A nt o n io d e . A B u sc a d a V e r d a d e no P r o c e sso P e na l. ( S ã o P a u lo : 2 0 1 0 , R e v ist a d o s T r ibu na is) p . 5 9 ) .

9

B AI G E N T , Mic h a e l. A I nq u is iç ã o ( R io d e Ja n e ir o : I ma g o , 2 0 0 1 ), p. 1 9.

10

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" O d ia bo e nt r o u na E u ro p a co m o c r ist ia n is mo , u n i f ic a d o so b se u d o mín io , u ma mu lt id ã o d e d e mô n io s d iv e r so s v in d o s d o p a g a n is mo g r e c o -ro ma no o u d a s nu me r o sa s c r e n ç a s p o p u la r e s. Ma s o d ia bo só se t o r na e sse c o ma nd a nt e s c h e fe d e t o da s a s c o r e s d o ma l a p a r t ir d o sé c u lo X I . Do r a va nt e e le c o nd u z o ba i le d o s fu t u r o s co nd e na d o s. N e m t o do s o s ho me n s e t o d a s a s mu lh e r e s su c u mb e m a e le , ma s t o do s sã o a me a ç a d o s, t e nt a d o s. A c r ist a nd a d e u n i f ic a d a c o n fe r e a o " in i m ig o d o g ê ne r o hu ma no " u m p o d e r u n i fic a d o . A he r e s ia é s e u in st r u me nt o . A I nq u i s iç ã o se r á a a r ma d a I g r e ja p a r a o c o mba t e r . Ma s su a p r e se nç a e su a a ç ã o d u r a r ã o mu it o t e mp o . A E u r o p a d o d ia bo na sc e u "11.

Para os soberanos de então, tratava -se de um interesse evidentemente político. Mas para o líder da Igreja, era uma jornada aparentemente pela salvação de almas e recuperação da Terra Santa , embora isso nada mais seja do que uma jornada pelo poder da Igreja, e , por isso mesmo, se resumindo também a um interesse político.

Cumpre observar que , nesse momento , a luta contra o herege - o dife rente – voltava -se para fora dos muros da cristandade, principalmente para os mouros. Os desvios do cidadão comum não interessavam muito à cúpula eclesiástica, já que o contro le da Igreja era inquestionável dentro dos feudos12.

A partir do século XII essa r ealidade apresentou sintomas de mudança. O surgimento das cidades burguesas , em detrimento do sistema feudal anteriormente instalado, trouxe consigo uma realidade de valorização do dinheiro e da propriedade material.

Não era por menos: os bur go s t iveram sua origem nos entrepostos comerciais criados com o objetivo de auxiliar a atividade comercial em expansão na Europa. Por óbvio, o coração do comércio é a noção propriedade, acompanhada pela valorização do patrimônio individual13.

11

LE G O FF, o p. c it . , p . 1 3 2 .

12

N A Z AR I O , Lu iz . Au t o s - d e - fé c o mo e sp e t á c u lo d e ma s sa ( S ã o P a u lo : A sso c ia ç ão E d it o r ia l H u ma n it a s, 2 0 0 5 ) , p. 3 8.

13

(20)

Sob um ponto de vista axi ológico, isso si gnifica a elevação do “desejo”, até então rebaixado à condição de pecado, ao status de valor.

Muito embora, sob essas bases, as cidades burguesas se diferenciassem fundamentalmente dos feudos da alta Idade Média .

“à I g r e ja C a t ó lic a ( o u p a r t e d e la ) i mp o rt a va , p o r é m, nã o o fa t o d e ha ve r d ife r e nç a e nt r e o bu r g o e o fe u d o ma s, s im, q u e na q u e le nã o t in ha u m d o mín io p le no , a g o r a e c lip s a d o p o r a q u e le d o s

“burgueses”, senhores das caravanas, do comércio e do grosso do

d in he ir o . E se m vo lt a , p e lo me no s a p a r e nt e . Aq u i, e nt ã o , o d ile ma :

o que fazer em relação a tal ponto?”14

A resposta veio em uma sequencia de medidas adotas pela Igre ja a fim de conservar seu poder, posto que a mera presença da Cúria nas Cidades, não foi suficiente para aplacar a perda de influência.

Dentre as novas posturas adotas, vale citar a decisão do então Papa Inocêncio III em transformar a confissão em sacramento e torná -la obrigatória15.

Pretendia com isso, estender sua influência ao lar de cada fiel, pois os sacerdotes que lhe serviam seriam seus olhos e ouvidos na vigia dos h ereges.

Também em relação à heresia, outra medida adotada por Inocêncio III foi a bula Vergentis in senium , baixada em 1199. No documento, o crime de heresia era equiparado ao de lesa majestade, o mais grav e dos delitos até então16.

Com isso a Igreja Católica revelou uma nova postura de manutenção de poder pela força.

14

C O U T I N H O , Ja c int o N e lso n d e M ir a nd a . S ist e ma Ac u sa t ó r io : C a d a p a r t e no lu g a r c o nst it u c io n a lme nt e d e ma r c a d o ( B r a s íl ia , v. 4 6 , n. 1 8 3, ju l. / se t . 2 0 0 9 ), p. 1 8 9.

15

D a í a r a íz d a imp o rt â nc ia q u e r e c e be no s ist e ma in q u is it o r ia l. ( Vi d e no t a nº 4 6 ).

16

(21)

Se antes o uso da força se direcionava exclusivamente para fora da cristandade, agora a luta pela expansão da fé católica e manutenção do pode r tinha como pano de fundo também as cidades cristãs. Explica -se.

A formação de novos núcleos populacionais e o intercâmbio de informações permitido pelo crescimento da atividade mer cante, possibilitou o surgimento de grupos religiosos que divergiam pontua lmente da doutrina Católica.

Eram seguimentos religiosos autônomos como os Cátaros, Valdistas e Maniqueístas.

Todavia, o ponto essencial de atrito em relação à Igreja, era a resistência em se submeter à ordem Hierárquica da Cúria. Eram grupos q ue prezavam pela independência religiosa e propagavam a própria fé pelo contato direto de seus líderes com a população.

“Em últ ima análise, claro, o próprio cristianismo é implicitamente dualista, exaltando o espírito, repudiando a carne toda a “natureza irredimida”. O s c á t a ro s p r e g a va m o q u e p o d e r ia se r v ist o co mo u ma fo r ma e xt r e ma d e t eo lo g ia c r ist ã – o u u ma t e nt at iva d e le va r a t eo lo g ia c r ist ã à s su a s c o nc lu sõ e s ló g ic a s. E le s p r ó p r io s v ia m su a s d o ut r in a s c o mo ma is p r ó x ima s d o q u e se d iz ia q u e Je su s e o s a p ó st o lo s ha v ia m e n s in a d o . C e r t a me nt e e st a va m ma is p r ó x i ma s q u e o q u e p ro mu lg a va R o ma . E e m su a s i m p lic id a d e e r e p ú d io a o lu xo mu nd a no , o s c á t a ro s a c ha va m - se ma is p r ó x imo s q u e o s sa c e r d o t e s r o ma no s d o e st ilo d e v id a a d o t a do p o r Je su s e se u s se g u id o r e s no s

Evangelhos”17

.

Assim, as novas cruzadas que foram empreendidas, não foram contra pessoas de uma sociedade alienígena e costumes avessos aos católicos, mas contra Cátaros, Maniqueístas e Valdistas, que possuíam hábitos cristãos e vi viam em um meio social indiscutivelme nte influenciado pela Igreja18.

17

B AI G E N T , Mic h a e l. A I nq u is iç ã o ( R io d e Ja n e ir o : I ma g o , 2 0 0 1 ), p. 2 4.

18

(22)

O que não se podia permitir era a divergência esse ncial desses cultos em recusarem -se a se sujeitar à hierarquia eclesiástica. Para o papa, isso era intolerável , pois representava um foco de oposição em seu próprio “quintal”.

Permitir a proliferação dos ideais de não sujeição à hierarquia imposta era pernicioso ao reve lar um descontrole sob os fieis ainda maior do que aquele que naturalmente decorria da situação histórica provocada pela ascensão da burguesia.

Os massacres que se procederam, foram a amostra de que a Igreja teria que promover uma luta religiosa em seu próprio território.

Como nas primeiras cruzadas, o inevitável enfrentamento era, novamente , uma luta do povo santo contra um exército herege. Até est e ponto, a lut a armada é o principal instrumento para manutenção da fé.19

Todavia, quando o mal combatido deixa de ter uma delimitação territorial mais ou menos definida (como em Albi, ao sul da França) e a luta contra o herético torna -se diss eminada pontualmente no coti diano, os mecanismos necessários passam a ser outros.

A is so se prestam as referidas medidas adotas por Inocêncio III: combater a heresia pontual que aflorava no dia a dia das cidades. Foram, contudo, ineficientes, pois o sur gimento da nova dinâmica burgue s a levou uma perda de poder longe do que a Igreja poderia esperar20.

Para se manter , seria necessário implementar um método institucionalizado de combate ao infiel, mais uma vez sob o argu mento de salvação de almas, e que aproveitasse da influência que a re ligião ainda tinha sob o imaginário popular , quando se tratava de vida após a morte e condenação eterna.

19

B AI G E N T , Mic h a e l. A I nq u is iç ã o ( R io d e Ja n e ir o : I ma g o , 2 0 0 1 ), p. 2 1.

20

(23)

Mas se nem a própria fé – já que as doutrinas católicas começavam a ser questionadas – nem o medo de incorrer nas iras de um Senhor Feudal – cujos poderes se dispersava m nas cidades burguesas, eram suficientes para manter os indi víduos longe das ide ias heréticas, como condensar uma sistemática que exigia um poder sancionador?

Ora, não obstante o gradual distanciamento entre a Igreja e o pod er estatal, o Bispo de Roma ainda gozava de prestígio suficiente para que os Estados dessem respaldo oficial a qu alquer nova tradição católica. As sim, apesar da ausência, nas cidades, de um controle tão direto do poder go vernante, em relação ao decadente sistema feudal, as autoridades ainda reconheciam a legitimidade da Igreja Católica em governar seus fiei21s.

A sistemática pensada para a perseguição dos here ges nesse no vo meio, trazia, como se verá adiante, valores nucleares para os quais o antigo modelo da inquisitio romana se adequou perfeitamente.

Lo go, adianta -se que o modelo inquisitorial não foi pensado a partir do procedimento, mas a partir dos objetivos traçados. Explica -se.

Considerando, por exemplo, que o propósito de uma perseguição herética era salvar a alma pelo conhecimento do pecado, então o método adequado necessariamente d everia alcançar essa verdade herética reconhecida pelo investigador . Observando o modelo inquisitorial romano, nota -se que essa finalidade aproxima -se muito daquela em que o acusador do Estado formula uma tese acusatória que pretende confirmar através do procedimento judicial . Por isso, a princípio, o modelo se adéqua tão bem às inte nções da Igreja naquele momento:

“A fines del siglo XII los juicios de Dios quedaron desacreditados;

u m C a no n d e l I V C o n c il io d e La t r á n d e 1 2 1 5 p r o hib ió t o do a po rt e l it ú r g ic o a lã s o r d a lía s y d e c r e t o s p a p a le s c o nd e na r o n t o d a p u r g at io vu lg a r is. La r e vo lu c ió n inq u is it o r ia l sa t is fa c e e x ig ê nc ia s c o mu ne s a d o s mu nd o s: e l e c le s iá st ic o , e sa c ha d o p o r lã s he r e j ía s, y e l c iv i l, e m e l c u a l la e xp a n s ió n e c o nô mic a o r ig in a c r i min a l id a d , lo s int e r e se s q u e se ha n d e p r o t e g e r e x ig e n u m a u t o ma t is mo r e p r e s ivo in c o mp a t ib le c o m lã s a c u sa c io ne s p r iva d a s ; la c u lt u r a ju r íd ic a

21

(24)

r o ma na , ya mu y d ifu nd id a , imp o ne d e c is io ne s t é c n ic a s ; e m e l c u a nt o a l mé t o do d e la in st r u c c ió n, no e s u ma no ve d a d la in d a g a c ió n d e t e st ig o s d e o fic íc io , e xp e r ime nt a d a d e sd e lo s iu d íc i a

synodalia carolíngios”22

.

Ainda, esse instrumento escolhido não necessitava de uma presença verdadeiramente ostensiva da Igreja, co mo se tornava cada vez mais difícil devido à expansão mercantil . Necessitava apenas que aparentasse um controle absoluto da Igreja naquela nova sociedade.

Bastava que qualquer demonstração de força possuísse mero caráter emblemático, para que um temor gen eralizado fi zesse seu papel entre as massas23.

Repita -se: também nesse sentido a estrutura de controle nos moldes da

inquisitio romana, serviria perfeitamente .

Em primeiro lugar, se o combate à heresia seria feito por uma instituição piedosa, como a Igreja Católica , ela se faria, ao meno s aparente mente , conferindo garanti as aos objetos de investigação: leia -se investigados24.

O si stema nas bases inquisitoriais poderia apresentar (ao menos em parte) essas garantias , ao passo que possuía características então peculiares, como o procedimento escrito, o julgamento impessoal e a predeterminação dos ritos.

Perceba -se que em relação aos sistemas jurídicos anteriormente vi gentes na Europa em razão do D ireito Romano pré cognitio extra ordinem , essas eram verdadeiras ga rantias posto que , de modo diverso , imperava a arbitrariedade e a incerteza nos procedimentos judiciais25.

22

C O R D E R O , Fr a nc o . P r o c e d im ie nt o P e na l, T o mo I I ( S a nt a Fé d e B o g o t á : T e mis , 2 0 0 0 ), p . 1 6 .

23

B AI G E N T , Mic h a e l. A I nq u is iç ã o ( R io d e Ja n e ir o : I ma g o , 2 0 0 1 ), p. 4 7.

24

B AT I S T A, N ilo . Ma t r iz e s ib é r ic a s d o s ist e ma p e na l br a s i le ir o . ( R io d e Ja ne ir o : 2 0 02, R e va n) . p . 2 3 4 .

25

(25)

Em segundo lu gar, a dinâmica inquisitória permitia uma espetacularização de atos , exatamente nos termos de que a Igreja necessitava . Afinal, a intençã o da cúpula não era outra senão disseminar o medo no coração dos hereges e desestimular os atos contrários ao ethos católico imposto. A publicidade das sansões26 mais tarde cumpriria este propósito através dos espetáculos de fé27.

Por fim, p ara a manutenção de um sistema nesses termos, era necessário uma estrutura administrativa orga nizada e pré determinada , com que a Igreja já contava pois, desde o século XI, expandia -se não apenas territorialmente, como também se apresentava mais enraizada e organizada den tro da sociedade ocidental:

“Nos dias de ignorância, era extraordinária a boa vontade para se

c r e r no sa c e r d ó c io c a t ó lic o e p a r a se j u lg á - lo bo m e p r u d e nt e . E na q u e le s d ia s e r a d e fa t o me lho r e ma is sá b io . E ss a c o n f ia nç a d e t e r mino u q u e se c o n f ia sse m à I g r e ja g r a nd e s p o d e r e s, a lé m d e su a s fu nç õ e s e sp ir it u a is. E r a m e xt r a o r d iná r io s o s d ir e it o s e p r iv ilé g io s d e q u e s e a r ma r a o se u g o v e r no . N ã o ho u ve va nt a g e ns q u e nã o c o lhe s se d a c o n fia n ç a q u e g o za va . A I g r e ja se t o r no u u m e st a d o d e nt ro do e st a do . Ma nt in ha se u s p r ó p r io s t r ibu na is. C a so s q u e e n vo lv e m n ã o a p e na s sa c e r d o t e s, ma s mo ng e s, e st u d a nt e s, c r u z a d o s, v iú va s, ó r fã o s e a ba nd o na d o s, e r a m r e se r va d o s a o s t r ibu n a is e c le s iá st ic o s; e se mp r e q u e o s r it o s o u r e g r a s d a I g r e ja e st iv e s se m e m c a u sa , a I g r e ja se a t r ibu ía a ju r isd iç ã o so br e a ma t é r ia q u e lh e e nt r e g a va t o do s o s c a so s d e t e st a me nt o , c a sa me nt o , ju r a me nt o e , na t u r a lme nt e , d e he r e s ia , f e it iç a r ia e b la s fê m ia . E r a m nu me r o sa s a s p r isõ e s e c le s iá st ic a s e m q u e o s t r a nsg r e s so r e s p o d ia m p u r g a r po r t o d a a v id a a s su a s o fensas à lei”28.

Essas características permitiam ao sistema inquisitorial um ar de oficialidade, mas sua necessidade, certamente demonstrava que, se a Cúria

26

D e ve - se a le r t a r p a r a a d ife r e n ç a e nt r e p u b l ic id a d e d e mé t o do s p a r a a p u b lic i d a d e d e a t o s. T a is c o nc e it o s nã o se c o n fu nd e m. N o s ist e ma in q u is it ó r io , o p ro c e d ime nt o e r a p ú b l ic o e fo i no t ó r io q u e , no bo jo d e q u a lq u e r p r o c e sso , o bse r va r - s e - ia m int e r r o g at ó r io s, su p líc io s e , no c a so d e co nd e n a ç ã o , a ut o s d e fé . N ã o é o me s mo q u e u m p r o c e s so p ú b lic o p o is é c e r t o q u e o co nt e ú do do s p ro c e sso s inq u is it ó r io s n ã o e r a le va d o a o co nhe c i me nt o d e t o do s. O d o mín io d o c o nt e ú d o d a s a c u s a ç õ e s e d e t o do su bst r at o p r o ba t ó r io q u e e me r g ia d o pr o c e d ime nt o a p lic a d o , e r a e xc lu s iv a me nt e d o co r po me mbr o s d a I nq u is iç ã o .

27

N A Z AR I O , Lu iz . Au t o s - d e - fé c o mo e sp e t á c u lo d e ma s sa ( S ã o P a u lo : A sso c ia ç ão E d it o r ia l H u ma n it a s, 2 0 0 5 ) , p. 1 6 1.

28

(26)

“estava a estender no mundo seu poder legal, estava a perder a sua força sobre

a consciência dos homens”29

Afinal, se àquele tempo. Essa característica permitia ao sistema inquisitorial um ar de oficialidade.

Portanto, em tudo o procedimento inquisitório serviria ao sistema de processamento dos atos hereges . Restava apenas que fossem devidamente importa das para a estrutura católica através de atos legítimos de poder, o que veio a ser observado ao final do século XII.

Referimo-nos, aqui, ao Ad Abolendam do papa Lúcio III em 1184. Foi com esse decreto que o procedimento adotado pela Santa Inquisição começa a ganhar corpo.

Mas se o sistema inquisitorial de base católica reputa -se criado pelo IV Concilio de Latrão, convocado por Inocêncio III em 1215, é com a bula de Ex

Excomuniamus de Gregório IX em 1231 que se tem o arcabouço técnico para o

seu nascimento. Também deste Papa emanou -se a bula Licet ad capiendos , que em 1233 foi catalisadora da perseguição aos hereges. Em menos de meio século, a Igreja Católica converteu sua missão de salvação das almas pelo amor, em uma luta cruenta contra o mal:

" O s é c u lo t r e z e a s s ist iu a o su r t o d e u ma no v a in st it u iç ã o na I g r e ja , a I nq u is iç ã o p a p a l. A nt e s d e s se t e mp o , ha v ia s id o c o st u me d o p a p a fa z e r o c a s io na is in v e st ig a ç õ e s so br e a h e r e s ia , ne st a o u na q u e la r e g iã o . Ma s e is q u e I no c ê n c io I I I e nx e r g a a g o r a na O r d e m d o s D o min ic a no s u m in st r u me nt o ma is p o d e r o so d e r e p r e ssã o . E so b a d ir e ç ã o d e ssa O r d e m, se o r g a n iz a a I nq u is iç ã o co mo u m p e r ma ne nt e in q u é r it o , u m i me n so a p a r e lho d e in v e st ig a ç ã o e r e p r e ssã o . E a ig r e ja s e e nt r e g a à t a r e fa d e m in a r e e n fr a q u e c e r c o m o fo g o e a t o rt u r a a c o nsc iê n c ia hu ma na , a p r ó p r ia c o nsc iê nc ia q u e r e s id ia a su a ú n ic a e sp e r a n ç a d e d o mín io mu nd ia l. A nt e s d o d é c imo t e r c e ir o sé c u lo , só r a r a me nt e se in fl ig ir a a p e na d e mo r t e a he r é t ic o s e in c r é d u lo s. Ag o r a , e m u ma c e nt e na d e p r a ç a s p ú b l ic a s na E u r o p a , o s d ig n it á r io s d a I g r e ja , c o m so le n id a d e d e g a la p r e s id ia m a s c e na s e m q u e o s c o r po s e ne g r e c id o s d o s se u s a nt a g o n ist a s, na su a ma io r p a r t e g e nt e po br e e in s ig n if ic a nt e , e r a m q u e ima d o s a t é se r e d u z ir e m a c inz a s. Ma s c o m e s se s c o r p o s qu e a r d ia m d o lo ro sa me nt e ,

29

(27)

q u e ima va - s e e se r e d u z ia a c in z a s a su a p r ó pr ia g r a nd e mis s ã o p a r a c o m a hu ma n id a d e "30.

A verdadeira implementação da Inquisição se dá, todavia, com a admissibilidade de seus métodos característicos através da Bula Ad

Extirpanda de Inocêncio IV datada de 1252 e estendida ao mundo em 125431.

Por métodos característicos leiam -se aqueles nec essários a alimentar o sistema persecutório a que havia se dado início no Concílio de 1215. É dizer que os métodos permitidos pela Ad Extirpanda seriam ferramentas da Inquisiç ão e de todo procedimento investigatório, que sur gia com a nobre aparência de uma cruzada pela fé, mas sob a sombra sínica do interesse político na manutenção do poder Católico , em um ocidente onde o controle social da Igreja pouco a pouco lhe escapava por entre seus dedos32.

1.3 A trans posiçã o do pr oce di ment o i n quisitório para a or de m jurí dica

Na Europa do século XIII, as monarquias tomavam conta do cenário político. Dentre as mais consolidadas, encontravam -se a Inglaterra, França e Castela33.

30

WE LLS , o p . c it . , p. 1 0 7 6.

31

T EI X E I R A, F lá v ia C a me l lo . D a To rt ur a . ( B e lo Ho r iz o nt e : 2 0 0 4 , D e l R e y) . p . 1 3.

32

N A Z AR I O , Lu iz . Au t o s - d e - fé c o mo e sp e t á c u lo d e ma s sa ( S ã o P a u lo : A sso c ia ç ão E d it o r ia l H u ma n it a s, 2 0 0 5 ) , p. 4 1.

33 “Nem todas essas mo narquias feudais atingiram o mesmo grau de desenvo lvimento e de

e st a b i lid a d e ne m p u se r a m, p o r t a nt o , e m t o d a p a rt e , t ão so lid a me nt e a s ba se s d a s fu t u r a s na ç õ e s e u r o p e ia s. N o mu nd o d a c r ist a nd a d e nó r d ic a e s c a nd in a va , no d a c r ist a nd a d e e s la va e hú ng a r a d a E u r o p a C e nt r a l e O r ie nt a l a s mo n a r q u ia s nã o a p r e se nt a v a m a s ba s e s só lid a s d o po nt o d e v ist a t e rr it o r ia l. A A le ma n ha e a I t á lia e st a v a m fr a c io na d a s p o r d ive r so s p o d e r e s, se nd o o ma is i mp o r t a nt e o d as c id a d e s, q u e se r á r e le mbr a d o . R e st am, p o is, a

(28)

Partindo d o Reino Ibérico, o controle social permitido à Igreja Católica através, da Inquisição atraiu a atenção do poder secular em um momento em que as monarquias demonstravam especial interesse na centralização do poder34.

A Península Ibérica foi referencial ness e sentido, afinal, trazer a Inquisição para o seio da monarquia era especialmente importante. Naquela

região, “cristãos, judeus e muçulmanos haviam convivido em harmonia até o

século XIV. Mas em 1331, cerca de 30 clérigos e escolares de Gerona invadiram o quarteirão judeu para tentar incendiá -lo”35. A partir deste evento, defla graram -se perseguições religiosas que conturbaram a paz social, de modo que a manutenção da ordem e da autoridade real passou a envolver uma intervenção de cunho religioso, por parte d o Estado. Os Reis Católicos, então, tentaram trazer a Inquisição para próxima da esfera de influência da Coroa .

“Importante ressaltar que a Península Ibérica fo i palco de

su b se q ü e nt e s d o min a ç õ e s bá r ba r a s, ju d a i c a s e mu ç u l ma na s. P o r e ssa r a z ã o , o s R e is I s a b e la e Fe r d ina nd o , a p ó s a e xp u lsã o d o s ju d e u s, e , e m se g u id a , d o s mu lç u ma no s, a ns io so s p a r a e st a be le c e r e m a u n id a d e na c io n a l d o jo ve m E st a d o e sp a n ho l, p r e o c u p a do s co m p r o b le ma s r e lig io so s e so c ia is su r g id o s c o m a c o n ve r sã o d o s ju d e u s e t e me r o so s c o m a i m in e nt e e me r sã o d e u ma c la sse mé d ia , int u ír a m u m T r ibu na l d o S a nt o O fíc io q u e c o ns ist iu e m in st r u me nt o e fic a z na ma nu t e nç ã o d o c o nt ro le so c ia l e na p r e se r va ç ã o d a he g e mo n ia p o lít ic a r e c é m-conquistada”36.

Os Reis Espanhóis, então consegu iram do Papa Sisto IV, a concess ão para nomear dois ou três bispos para exercer a função de inquisidores nas dioceses espanholas. Além disso, o mesmo Papa permitiu o estabelecimento de uma nova Inquisição nos reinos de Castel a e Aragão, onde a nom eação de Tomás de Torquemada com o inquisidor geral marcou o nascimento da Inquisição Moderna, conhecida pelo controle direto exercido pela Monarquia.

34

N A Z AR I O , Lu iz . Au t o s - d e - fé c o mo e sp e t á c u lo d e ma s sa ( S ã o P a u lo : A sso c ia ç ão E d it o r ia l H u ma n it a s, 2 0 0 5 ) , p. 1 6 0 .

35

N A Z AR I O , Lu iz . Au t o s - d e - fé c o mo e sp e t á c u lo d e ma s sa ( S ã o P a u lo : A sso c ia ç ão E d it o r ia l H u ma n it a s, 2 0 0 5 ) , p. 5 5.

36

(29)

Mas se podia ir além. Se o modelo inquisitório foi instrumento indispensável para que a Igreja Católica reinventasse sua presença nas cida des europeias do século XII, poderia fazer o mesmo para a Monarquia naquele instante crucial em que o feudalismo agonizava :

A u t il iz a ç ã o d o Tr ibu na l d o S a nt o O fíc io co mo br a ç o do po d e r r e a l é u m d a d o ind is c u t íve l, so br e t u d o d u r ant e o s sé c u lo s X V I e X V I I , q u a nd o c o ns ist iu no p r inc ip a l in st r u me n t o a pt o a p r e se r va r o p o d e r

dos soberanos e conferir efet ividade a suas determinações”37

.

Não sem razão que na Península Ibérica que o sistema persecutório da Inquisição migrou para o sistema jurídico estatal, afinal, "os domínios dos monarcas espanhóis compreendiam uma espécie de teocracia, com a Igreja e o Estado atuando conjugados, a Inq uisição espanhola era tanto um adjunto da Coroa quanto da Igreja"38.

A partir do bem sucedido exemplo Espanhol, outros Tribunais de Inquisição foram instalados em Portugal e em Roma, fazendo com que a influência inquisitorial se estendesse mesmo até as Américas.

Enquanto servia aos interesses seculares, o sistema inquisitivo teve influência viral nos ordenamentos jurídicos. Neste mome nto histórico de consolidação dos Estados Nacionais, a formação de um poder judiciário se apresentou como um requisito de manutenção da ordem.

Para tanto, a inegável organização institucional dos Tribunais do Santo Ofício, e a aparente eficiência da Inqui sição em identificar a heresia e puni -la, levava a crer que o sistema inquisitório seria o melhor parâmetro para a ordem jurídica. Essa opinião era corroborada pelo fato de haver enorme influência da Igreja Católica nas grandes Universidades da época e na formação da maioria dos estudiosos em matéria de Direito39.

37

P I N T O , Fe lip e Ma r t ins. I nt r o d u ç ão c r ít ic a a o P ro c e sso P e na l . ( B e lo H o r iz o nt e : D e l R e y, 2 0 1 2 ) , p. 1 0 - 1 1 .

38

B AI G E N T , Mic h a e l. A I nq u is iç ã o ( R io d e Ja n e ir o : I ma g o , 2 0 0 1 ), p. 8 1.

39

(30)

Contudo, f azer a transposição de procedimentos a partir de uma plataforma, em tese, espiritual, para um domínio eminentemente secular, requereu uma adaptação teleológica do sistema inquisitorial . Carece de esclarecimento.

O procedimento inquisitório começa a se infiltrar na ordem jurídica secular através do inquérito, conforme explica Foucault:

“Tem- se a ss i m p o r vo lt a d o sé c u lo X I I , u ma c u r io sa c o n ju nç ã o e nt r e le sã o à le i e a fa lt a r e lig io sa . Le s a r o so be r a no e c o me t e r u m p e c a d o sã o d u a s c o isa s q u e c o me ç a m a se r e u n ir . E la s e st a r ã o u n id a s p r o fu nd a me nt e no D ir e it o C lá s s i c o . D e ssa c o n ju nç ã o a ind a nã o e st a mo s t o t a lme nt e L iv r e s. O I nq u é r it o q u e a p a r e c e no sé c u lo X I I e m c o n se q u ê nc ia d e st a t r a ns fo r ma ç ã o na s e st r ut u r a s p o lít ic a s e na s r e la ç õ e s d e p o d e r, r eo r g a n iz o u int e ir a me nt e ( o u e m su a vo lt a se r e o r g a n iz a r a m) t o d a s a s p r á t ic a s ju d ic iá r ia s d a I d a d e Mé d ia , d a

época clássica e até da época moderna”40

.

O Direito Clássico, portanto, pelo que Foucault nos permi te concluir, se ocupou precipuamente dessa adaptação. Nele (direito clássico) a investigação pelo inquérito , estaria na vanguarda dos procedimentos que necessitavam se adequar à estrutura jurídica secular, a começar pelo que – em abstrato – se pretendia alcançar através de sua utilização.

Caso se quisesse importar o modelo inquisitorial , o argumento para a utilização dos seus métodos – como a tortura – e características próprias – como a sigilosidade – não poderia ser a salvação das almas e a manutenção da fé, mas a segurança do Estado através da ordem pública e da paz.

As bases inquisitoriais, transportadas para uma esfera jurisdicional secularizada, não serviriam a combater o pecado, mas o delito que colocasse em risco a ordem.

E o delito necessitava de um enfrentamento, por parte do sistema, diferente do que daquele que antes era oposto ao pecado. Isso porque, embora tanto o sistema eclesiástico quanto o laico sejam seletivos em relação aos

40

(31)

acusados, a Igreja necessitava se fazer presente por poucos e em blemáticos autos de fé, que serviriam disseminar espetacularmente o medo nos corações heréticos. O Estado, por outro lado, precisa se fazer presente através do conhecimento e sanção de cada pequeno delito. A ordem social prescindia de um controle tanto qua nto mais cerrado41. Por isso , o meio jurídico necessitava que o procedimento inquisitório fosse mais operacionalizável e dinâmico , do lhe era requisitado pela Inquisição.

Is so se nota pela normativização sistemática das regras de procediment ais da persecuç ão criminal. Se antes o Manual do Inqu isidor e o Martelo das Feiticeiras - que posteriormente serão apresentadas - davam orientações genéricas aos inquisidores, diplomadas como as Ordenações Manuelinas traziam normas de aplicação imediata e irrestrita pelo s juízes laicos42.

O transporte, para o sistema jurídico, do procedimento antes justificado pela expiação dos pecados , reivindicou mudanças, mas , na sua origem histórica , permaneceu incrustada a noção de um mal anterior ao procedimento investigatório, como motivador incondicional de seus métodos característicos, tornando -se, posteriormente injustificáveis quando a noção de verdade construída no processo se apresenta como mais condizente com o projeto iluminista do século XVIII43.

De qualquer maneira, com a formação de sistemas jurídicos nacionais à imagem da sistemática de perseguição de hereges da Inquisição , como na Espanha e depois Portugal e França, houve um aumento abrupto de processamentos sob bases inquisitoriais44. Leia -se : o s procedimentos característicos adotados pela Igrej a Católica, com as necessárias adaptações, passaram a servir amplamente ao Estado no exercício jurisdicional.

41

N ã o p o r me no s, q u e a u t il iz a ç ã o d a t o rt u r a r e c r u d e sc e u e se t o r no u ma is a mp la a p a r t ir d o sé c u lo X V . ( T E I XE I R A, F lá v ia C a m e llo . D a T o rt u r a . ( B e lo H o r iz o nt e : 2 0 0 4 , D e l R e y) . p . 7 5 ).

42

T EI X E I R A, o p. c it . , p . 7 3 .

43

C o n fo r me s e a p r e se nt a r á , d e nt r o d a p ro po st a d e st a p e sq u isa , no c a p ít u lo 4 , q u a nd o d a d e mo n st r a ç ã o do p a p e l hu ma n ist a no P ro c e sso P e na l.

44

(32)

O Processo J udicial abduziu a procedimentalização de perseguição aos hereges de tal maneira, que nas áreas do Direito em que a pretensão punitiva do Estado se assemelha à da Santa Sé, como é o caso da esfera Criminal, o próprio sistema passou a receber a nomenclatura de inquisitório45.

Não se pode perder de vista que, de um elemento de manutenção de poder, pela igreja , até a transformação em processo judicial, o sistema inquisitório passa por modificações em sua estrutura operacional, passando das mãos de inquisidores escolhidos pelo Papa46, à J uízes escolhidos pelo Rei.

Inicialmente os objetivos da Inquisição orientavam o proc esso inquisitivo. O procedimento, com todos seus elementos característicos, era voltado a cumprir as metas políticas da Igreja Católica e por isso a expiação de pecados e salvação da alma eram justificativas invocadas p ara toda arbitrariedade do sistema, c om os procedimentos secretos, os imensos poderes instrutórios dos inquisidores e, como não poderia deixar de ser, o emprego da tortura . Todavia, depois que a esfera jurídica estatal abs orve a sistemática inquisitória, ao processo penal não resta escolha a não ser buscar, nas finalidades do Estado, justificativas análogas àquelas dadas pela Igreja quando da implementação do sistema no século XII. É o papel que passa a ser conferido à manutenção da ordem pública47.

Daí parte a questão de quão pernicioso é um sistema processual que , herdado pela ordem jurídica moderna, é analogamente justificável pel os fins perseguidos pela Inquisição (relativos à sal vação da alma) .

Para que seja possível, em esforços posteriores, d emonstrar apropriadamente a crítica iluminista à busca da verdade através da tortura nos procedimentos investigatórios inquisitoriais, faz -se necessário deter -se, neste

45

Ad m it e - se , a p a r t ir d o Code d’Instruction Criminelle, a c o e x ist ê n c ia d e u m s ist e ma in q u is it ivo na fa se p r é p r o c e ssu a l, c o m u m s ist e ma a c u sa t ó r io na fa s e ju d ic ia l ( Vi d e p o nt o 4 . 3 ) .

46

N a E sp a n ha e r a d ife r e nt e . A I nq u is iç ã o E sp a n ho la " nã o e r a u m in st r u me nt o do P a p a do . P r e st a va c o nt a s d ir e t a me nt e a Fe r na nd o e I sa be l" . ( B AI G E N T , Mic ha e l. A I nq u i s iç ã o ( R io d e Ja n e ir o : I ma g o , 2 0 0 1 ), p. 8 1 ).

47

(33)

instante, da análise dos elementos que compõe a ritualística de tais procedimentos.

Antes, vale esclarecer que, por procedimento , a ssume -se o conceito adotado por Frederico Marques, segundo o qual, o procedimento se reduz a ser uma coordenação de atos em marcha, relacionados ou ligados entre si pela unidade do efeito final48.

1.4 Element os do pr oce di ment o inves tigatório inquisitorial

Conforme se afirmou, a base teórica utilizada para justificar a ritualística empregada pela Inquisição foi a doutrina católica.

É interessante notar como a Igreja se esforçou para buscar a justificação para o s métodos inquisitorial na base da doutrina cr istã. Textos sagrados não escaparam desta intenção, de modo que Cordero aponta uma referência retirada da Bíblia e usada pela Inquisição:

“Lo dicen fuentes bíblicas: cuando Le llega um clamor sobre

S o do ma y G a mo r r a , Y a h vé d e sc ie nd e a v e r q u é e st á o c u r r ie nd o , y

luego manda a dos ángeles a imponer orden”.49

Lo go, o sistema processual emergente apresenta -se como em completa

sintonia com esta fonte doutrinária, servindo como “efetiva” ferramenta de

salvação da humanidade e expiação dos pecados. Através das fer ramentas institucionalizadas, os agentes da Santa Inquisição tornaram -se especialistas na perseguição e abate do mal , e o mal estava em todo aquele obstáculo aos

48

M AR Q U E S , Jo sé Fr e d e r ic o . E le me nt o s d o D ir e it o P ro c e ssu a l P e na l . v. 1 . ( C a mp in h a s: 2 0 0 9 , Mil le n n iu m) p . 3 2 9 .

49

(34)

interesses da igreja, como se observou inicialmente em relação aos movimentos religiosos Valdi stas e Maniqueístas já citados50.

O caminho da laicização do procedimento inquisitório começou pela ampliação da “jurisdição” da Inquisição Católica, para além da mera perseguição ao s Herege s, conforme esclarece Nicolau Eymérico :

“Todos os hereges sem exceç ã o e st ã o su je it o s à ju r isd iç ã o d o S a nt o O fíc io e fo r a ist o e x ist e m d e l it o s q u e , se m se r p r o p r ia me nt e

herét ico, sujeitam os que cometem ao tribunal da Inquisição”51

.

Essa expansão da compet ência originalmente atribuída ao Tribunal do Santo Ofício (persegu ição dos heréticos) , demonstrava que a ritualística do Santa Inquisição serviria como mecanismo de controle social , afinal o controle do poder punitivo é o próprio exercício de controle social:

“Na realidade essa prát ica t inha por fim a busca da so lução par a o s c r ime s – o u t a lve z p e c a d o s, fo r ma nd o o s d e lit o s d e le sa - ma je st a d e d iv in a – a t r a vé s d e t o do s o s me io s p o ss í ve is, in c lu s iv e a o c o rr ê nc ia na t u r a l d a t o rt ur a , u ma ve z q u e o e xe r c íc io d o p o d e r so be r a no na p u n iç ã o d e c r ime s é se m d ú v id a u ma d a s p a r t e s e sse nc ia is na

administração da just iça, como afirmara Foucault”.52

Assim, quando a "ordem pública" é chamada a substituir a "luta contra o mal" e o procedimento inquisit ório passa a ser empregado como instrumento de controle social pelo Estado, surge , no siste ma jurídico laico, um sistema

50 Detendo métodos “infalíveis” de investigação da alma, a Inquisição afirmava

- se c o mo in st â n c ia p r iv ile g ia d a d e in sp ir a ç ã o d iv in a p a r a a p a n h a r su sp e it o s, a r r a nc a r c o n f issõ e s e c o nd e n a r o s in im ig o s d a ma ssa . E la o s d e t e ct a va e nt r e o s e le me nt o s so c ia is q u e ma i s in c o mo d a va m o E st a do e a I g r e ja , e d o s q u a is p o d ia t ir a r p r o ve it o . S e u s q u a li f ic a d o r e s e xa m in a v a m a s p r o va s e a c u sa ç õ e s fo r mu la d a s c o nt r a o s r é u s e d e t e r min a va m s e o s fa t o s na r r a d o s e n vo lv ia m he r e s ia s, c e nsu r a nd o , a lé m d o s liv r o s e imp r e sso s, ima g e ns e p int u r a s.

Eles det inham o que hoje chamaríamos de “conhecimento cient ífico” do Mal e que na época se entendia ser o “conhecimento teológico” para ident ificar os hereges – u m

conhecimento “certo”, “justo”, “trascendente”, que não cabia ao ho mem co mum e que esse

d e v ia s i mp le s e mnt e a c a t a r , po r v ir d e u ma a u t o r id a d e le g it i ma d a p o r D e u s. ( N A Z AR I O , Lu iz . Au t o s - d e - fé c o mo e sp e t á c u lo d e ma ssa ( S ã o P a u lo : Asso c ia ç ã o E d it o r ia l H u ma n it a s, 2 0 0 5 ) , p. 8 1 - 8 2 ).

51

E Y ME R I C O , N ic o la u . Ma nu a l d a I nq u is iç ã o . ( C u r it iba : Ju r u á E d it o r a , 2 0 0 9 ), p. 9 7 .

52

(35)

penal de natureza inquisitório. Então, diversas daquelas características anteriormente atribuídas a o sistema persecutório da Santa Inquisição , como a sigilosidade, a valorização do procedimento escrito, et cetera, são replica dos no processo penal laico. Dentre elas, três elementos dessa "importação", revelam -se essenciais para o que propôs para a pesquisa desenvolvida : a verdade real, o sistema de provas t arifadas e a u tili zação da tortura.

1.4.1 Verda de real

O princípio d a Verdade real alinha -se com uma estrutura de poder teocentrista da Igreja Católica, que se edifica a partir de mitos e dogmas.

A doutrina Católica estabelece a existência de um mal ao qual o homem é eternamente inclinado a participar através do pecado. O mundo material, essencialmente perverso, corrompe o fiel para longe do Reino de Deus e o atrai para o erro capital. Desta maneira, o papel da Igreja de Deus co mo guia espiritual do homem na T erra, é resguardá -lo contra as tentações do Demônio, fonte de t odo mal.

Esta lógica de enfrentamento do pecado traz um elemento essencial para o sistema inquisitorial: a inegável existência de um mal anterior.

Ora, se o homem será sempre pecador e o mal é uma força eternamente presente no mundo contingencial, então o enfrentamento do pecado parte, antes de mais nada, de combater sua existência no meio social.

Nesse sentido, passar pelo procedimento inquisitório é servir de objeto para a certificação de uma situação anterior presumidamente existente53. O

53

(36)

papel do inqu isidor em tal contexto é o de estabelecer qual é esta hipótese real que deverá ser co mprova da e então verificar sua existência, d aí sua dupla função de acusar e julgar.

O que se as sume como a verdade real no processo Inquisitorial é justamente a hipótese predeterminada pelo investigador baseada na eterna propensão da humanidade ao pecado.

" Ass i m, c it a nd o B e t t ia l, r e t r at a S a lo q u e o p r o c e sso inq u is it ivo é in fa l ív e l, p o is o r e su lt a d o é d e t e r min a d o p r e v ia me nt e p e lo p r ó p r io ju iz - a c u s a d o r . A se nt e nç a é p o t e st a t iva e p le na , e , na ma io r ia d a s ve z e s, nã o a d mit e r e c u r so , po is o d iv ino e n c a r n a d o p e lo S a nt o O fíc io n ã o se c o nt r a d iz e nã o a d mit e q u e st io n a me nt o , o u se ja , é p e r fe it o e nã o su sc e t íve l a o e r ro . De ssa fo r ma , Ju iz - Ac u s a d o r fo r mu la u ma h ip ó t e se s e r e a liz a a v e r if ic a ç ã o . A ve r d a d e a d m it id a

como ‘adaequatio rei et intellectus’ é atingível e deve ser

a lc a n ç a d a . E st a ve r d a d e , ve r d a d e ma t e r ia l [ ve r d a d e r e a l] , já e x ist e c o mo h ip ó t e se na me nt e d o Ju iz - Ac u s a d o r, d e ve , po r o ut ro la d o , se r a t ing id a so lip s ist ic a me nt e . O c o nt r a d it ó r io p e r t ur ba e st a in v e st ig a ç ã o . A p o lu iç ã o d a p r o va d a q u e la ve r d a d e já p o st u la d a é o ma io r d e t o do s p e r ig o s. D a í r e su lt a o s i g ilo d o p r o c e sso , a a u sê nc ia d e ind ic ia d o o u do se u d e fe nso r na a q u is iç ã o d a p ro va q u e po d e r á se r v ir p a r a fu nd a me nt a r a s e nt e nç a d e c o nd e na ç ã o . D e ve - se le mbr a r a ind a q u e o mo d e lo inq u is it ó r io nã o se r e st r ing ia a p e na s no p r o c e d ime nt o c r imin a l, ma s na c u lt u r a so c ia l e na l in g u a g e m ju r isd ic io na l. P o rt a nt o , nã o só a fo r ma d e ss e s ist e ma d e v e r ia se r id e nt ific a d a , ma s, p r inc ip a l me nte, sua essência”54.

Assim o inquisidor deve formular a essa verdade pressuposta que servirá de parâmetro para buscar novo s indícios e organizar as prova s colhidas. Tudo com o objetivo de comprovar a hipótese formulada, como peças de um quebra -cabeça cuja tela final foi criada por ele mesmo:

“El inquisidor labora mientras quiere, trabajando em secreto sobre

lo s a n i ma le s q u e c o n fie s a n ; c o nc e b id a u ma h ip ó t e s is, so br e e lla e d if ic a c a ba la s ind u c t iva s ; la fa lt a d e l d e ba t e c o nt r a d ic t o r io a br e u m P o rt il lo ló g ic o a l p e nsa m ie nt o p a r ano id e ; t r a ma s a la mb ic a d a s e c lip sa n lo s he c ho s. D u e ño d e l t a b le r o , d isp o n e lã s p ie z a s c o mo Le c o nv ie ne : la inq u is ic ió n e s u m mu nd o v e r ba l s e me ja nt e a l o n ír ic o ;

ma l. E st e axio ma elimina todo escrúpulo de la invest igació n” (CORDERO, Fr a n c o . P ro c e d im ie nt o P e na l, T o mo II (S a nt a Fé d e B o go t á : T e mis, 2 0 0 0 ) , p . 2 3 ).

54

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