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A poesia de Manoel de Barros, que reinventa o homem como ser conjugado com o cosmo e a natureza, capaz de transitar entre o mundo contemporâneo e

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SUMÁRIO

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Aqui, uma análise comparativa entre uma

crônica de Machado de Assis e um trecho da peça Hamlet, de Shakespeare, em que o tema é tratado por Machado com ironia, como paródia. Por Adriana Silene Vieira. A autora segue a linha da “póetica das traduções.”

24

Partindo do pressuposto de que a semióticagreimasiana pode ser de grande valia para o estudo literário, Jacy Marcondes Duarte utiliza essa proposta teórica para analisar o conto de Lígia Fagundes Telles As Formigas.

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Guaraciaba Micheletti focaliza alguns usos

da língua portuguesa na poesia moderna e contemporânea, sob a perspectiva estilística. Coloca em relevo, em alguns fragmentos, particularidades a respeito do léxico, da morfologia e da sintaxe por julgar que são pertinentes para distinguir os usos linguísticos mais comuns no discurso poético de determinado período.

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SUMÁRIO

60

A poesia de Manoel de Barros, que

reinventa o homem como ser conjugado com o cosmo e a natureza, capaz de transitar entre o mundo contemporâneo e os valores tradicionais, é aqui apresentada por Zenaide Bassi Ribeiro Soares.

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Neste estudo, Roberto de Camargo Damiano revê aspectos da História da Criança e do Mito da Infância Dourada, para articular uma reflexão sobre o preconceito étnico na literatura infantil e juvenil de nosso país, a partir da seleção de textos de autores consagrados.

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Este estudo de Simone S. Goh resgata a

metalinguagem de Monteiro Lobato apresentada em um corpus único e cronológico e demonstra que ele registra marcas de oralidade, criando um discurso que o próprio autor denomina de “conversa em mangas de camisa”.

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ISSN 0103-8338

Edição de julho/dezembro de 2009: Letras e Artes

Revista das Faculdades Integradas Teresa Martin, instituição vinculada à UNIESP. nº 54, julho/dezembro, 2009

Publicação indexada no IBICT, no ULRICH’S International Periodicals Directory e no Latindex. Circulação regular desde 1986.

TEMA

TEMA

Editor Responsável:

Zenaide Bassi Ribeiro Soares – MTb 8607. Conselho Editorial:

Profa. Dra. Betina Rodrigues da Cunha Silva (UFU-MG), Prof. Dr. João Cardoso Palma Filho (UNESP-São Paulo), Profa. Dra. Lúcia Pimentel Góes (FFLCH-USP), Profa. Dra. Nelly Novaes Coelho (USP), Profa. Dra. Ana Lucia Jorge (UENF-RJ), Profa. Dra. Meire Mathias (UEL-Paraná), Profa. Dra. Dalva Alves Silva (UNIFESP), Profa. Dra. Maria Aparecida Bosschaerts de Camargo (Fac. Presidente Prudente -UNIESP), Profa. Ms. Luciane Nigro Charlariello (Fac. Teresa Martin - -UNIESP), Prof. Dr. Paulo Cunha (UNESP-Marília), Prof. Dr. Roberto Gonçalves (UFP), Profa. Dra. Rosa Maria Valente Fernandes (Fac. Teresa Martin - UNIESP), Profa. Dra. Rosa Manzoni (UNESP - Bauru), Profa. Dra. Zenaide Bassi Ribeiro Soares (Fac. Teresa Martin - UNIESP).

Capa:

Mariana Bassi. Ilustrações:

André Santos, Joanes Lessa e Mariana Bassi. Revisão de Inglês:

Profa. Ms. Luciane Nigro Charlariello. Editoração Eletrônica:

Lucia Maria Teixeira e Roberto de Camargo Damiano. Bibliotecária:

Janaína Mendonça Rodini - CRB - 8/7563.

Presidente:

Professor Doutor José Fernando Pinto da Costa

Instituto Educacional Teresa Martin

Diretor Geral:

Professor Doutor José Marta Filho

Rua Álvares Penteado, 184 - 3° andar - sala 302

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Revista

TEMA

Publicação indexada no IBICT, no ULRICH’S International Periodicals Directory e no Latindex. Circulação regular desde 1986.

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Apresentação

Professor Doutor José Marta Filho Diretor Geral

A Revista TEMA é um periódico desti-nado à divulgação da produção científica da comunidade da UNIESP e de outros au-tores, que contribui para o crescimento e desenvolvimento da produção científica sob enfoque multidisciplinar. É um instrumento que promove a interdisciplinaridade no ensino-aprendizagem da pesquisa, num processo reflexivo que leva à proposição de novas práticas.

A publicação desta edição de núme-ro 54 atesta a seriedade e a maturidade de seu comitê editorial e a senioridade em pes-quisa no conjunto dos seus representan-tes, preservando a memória da produção acadêmica.

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Adriana Silene Vieira*

DIÁLOGO ENTRE SHAKESPEARE E MACHADO DE ASSIS EM “A CENA DO CEMITÉRIO”: IRONIA E PARÓDIA

SHAKESPEARE AND MACHADO DE ASSIS

DISCUSSION ON “A CENA DO CEMITÉRIO”: IRONY AND PARODY Autor e Texto Author - Text PALAVRAS-CHAVE RESUMO ABSTRACT KEY WORDS

Esta é uma breve uma análise comparativa entre a crônica de Machado de Assis e um trecho da peça Hamlet, de W. Shakespeare. Damos ênfase à forma como o autor brasileiro parodia o bardo nesse texto, aproximando assuntos opostos, misturando discussões filosóficas com assuntos quotidianos.

* Doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Professora das Faculdades Integradas Teresa Martin - UNIESP.

This is a concise comparative analysis carried out on Machado de Assis’ chronicle and some part of Shakespeare’s Hamlet. We focus how Machado de Assis makes parodies the bard in this text by putting opposite subjects together, and jointing philosophical arguments to quotidian matters.

Machado de Assis. Crônica. William Shakespeare. Paródia. Comparação. Leitura.

Machado de Assis. Chronicle. William Shakespeare. Parody. Comparison. Reading.

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Adriana Silene Vieira

F

aremos uma breve apresentação e análise da crônica “A cena do cemitério”, de Machado de Assis, publicada em junho de 1894 em A

Semana, Gazeta de notícias, que apresenta um diálogo entre

a obra de Machado e a de William Shakespeare. Seguiremos a linha de análise da chamada “poética das traduções”, processo que ocorre nos textos de Machado, nos quais se coloca um texto sublime da tradição em uma situação “Não ajunteis para vós tesouros na terra onde a traça e a ferrugem os consomem, e onde os ladrões cavam e roubam. Acumulai para vós tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem os consomem, e onde os ladrões não cavem nem roubem. Porque, onde está o teu tesouro, aí também estará o teu coração.”

(Mateus. 6,19-21)

DIÁLOGO ENTRE SHAKESPEARE E MACHADO DE ASSIS EM “A CENA DO CEMITÉRIO”: IRONIA E PARÓDIA

SHAKESPEARE AND MACHADO DE ASSIS

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tema do amor e da traição e apresentava personagens do povo, este trata do tema da morte e faz uma paródia explícita à cena I do ato V de Hamlet. Escolhemos tal crônica por observarmos que é pouco conhecida, e também por não ter encontrado nenhuma referência a ela na fortuna crítica levantada. Pretendemos nos deter em sua análise textual e observar como se dá, nela, a paródia em relação ao texto shakespeariano.

Pela forma como se apresenta, a crônica “A cena do cemitério” faz uma reescritura de caráter parodístico do trecho homônimo de Hamlet. Além disso, segundo o narrador deixa claro no início, o fato que irá narrar não passa de um sonho sucedido após a leitura de Hamlet e dos jornais do dia. A paródia feita por Machado tem um aspecto moderno, mostrando que, em sua época (1894) não haveria lugar para o sublime dos textos shakespearianos. É importante também lembrar o gênero desse texto, uma crônica, que tem um caráter de “quotidiano” e por isso mesmo “popular” e “imediato”.

Porém, pode-se perceber que, apesar de pouco conhecido, fazendo parte do volume Páginas Recolhidas,1 não envelheceu, revelando-se surpreendentemente atual, como ocorre com toda a obra machadiana. Além disso, a idéia de exploração, descrença na humanidade e a paródia são motivos dos quais a arte moderna iria mais tarde usar e abusar. Vemos aí então mais uma antecipação do grande gênio machadiano.

Logo no início da crônica, nos deparamos com a frase “Não mistureis alhos com bugalhos”, uma frase de

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cunho popular, que destoa da gravidade da escrita de Machado e também do tema que irá ser abordado, uma cena da tragédia Hamlet. Porém, perceberemos que ela vem muito a propósito, pois o que se quer fazer é justamente vulgarizar o texto de Shakespeare, apresentando

Hamlet em outro contexto, o da modernidade, do capitalismo,

dos valores burgueses, em que não existiria mais lugar para o sublime e o questionamento feito pelo Renascimento em relação à velha ordem medieval.

Depois do provérbio, o narrador entra no assunto e nos diz que vai narrar um sonho, fazendo assim uma exegese, ou seja, uma interpretação do sonho. Quanto a isso, é interessante ressaltar que Machado, mesmo sendo um autor realista, algumas vezes trata em seus textos de momentos nebulosos como os sonhos, as visões e os delírios. Um destes momentos é o capítulo VII das

Memórias Póstumas de Brás Cubas, no qual a fantasia toma

lugar.

Outra característica interessante neste texto é que ele trata de leitura. O narrador nos relata sua experiência, um sonho que teve início em suas leituras, as quais foram “um jornal do dia” e a cena I do ato V de Hamlet. Juntando a concepção da leitura à do sonho, (ou do delírio) podemos observar certa semelhança entre a situação do protagonista e a célebre personagem Don Quixote, na obra homônima de Cervantes. Isso porque a leitura parece ter influenciado a ambos, enquanto Don Quixote enlouquece a partir das leituras de histórias de cavalaria, o narrador-protagonista de “A cena do Cemitério” tem um pesadelo

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Porém quando narra, o protagonista está em um momento de lucidez, no qual pode refletir:

Foi o caso que, como não tinha acabado de ler os jornaes de manhã, fi-lo à noite. Pouco já havia que ler, três notícias e a cotação da praça. Notícias da manhã, lidas à noite, produzem sempre o efeito de modas velhas, donde concluo que o melhor encanto das gazetas está na hora em que aparecem. (...) Afinal pus os jornais de lado, e, não sendo tarde, peguei d e u m l i v r o , q u e a c e r t o u s e r d e Shakespeare. O drama era Hamlet. A página, aberta ao acaso, era a cena do cemitério, ato V. Não há que dizer ao livro nem à pagina; mas essa mistura de poesia e cotação de praça, de gente morta e dinheiro vivo, não podia gerar nada bom; eram alhos com bugalhos. (Páginas

recolhidas, p. 248)

No trecho destacado, percebe-se que o narrador faz uma série de trocadilhos, no mesmo estilo da frase com a qual abre seu texto. Esses trocadilhos serão feitos tendo por base a paranomásia das palavras “coveiros” e “caveiras”. Além disso, já aparece a ironia do narrador ao contrapor “gente morta” “dinheiro vivo” usando de antíteses e mostrando que seu sonho chegava ao absurdo de “misturar” as duas coisas. E são os trocadilhos dos coveiros o que o narrador observa:

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Faziam trocadilhos, como os coveiros de Shakespeare. Um deles, ouvindo apregoar sete ações do Banco Pontual, disse que tal banco foi realmente pontual até o dia em que passou do ponto à reticência. (p. 250)

Tomemos agora a descrição do pesadelo feita pelo narrador, consequência de suas leituras:

Sucedeu o que era de esperar; tive um pesadelo (...) Sonhei que era Hamlet; trazia a mesma capa negra, as meias, o gibão e os calções da mesma cor. Tinha a própria alma do príncipe da Dinamarca. Até aí nada houve que me assustasse. Também não me aterrou ver, ao pé de mim, vestido de Horácio, o meu fiel criado José. Achei natural: Ele não o achou menos. (p. 248)

O humor e a carnavalização aparecem no trecho a seguir:

(...) atravessamos uma rua que nos p a r e c e u s e r a P r i m e i r o d e M a r ç o e entramos em um espaço que era metade cemitério, metade sala. Nos sonhos há confusões dessas, imaginações duplas o u i n c o m p l e t a s , m i s t u r a d e c o i s a s opostas, dilacerações, desdobramentos inexplicáveis; mas, enfim, como eu era Hamlet e ele Horácio, tudo aquilo devia

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Este trecho faz lembrar o delírio de Brás Cubas:

Como ia de olhos fechados, não via o caminho; lembra-me só que a sensação de frio aumentava com a jornada, e que chegou uma ocasião em que me pareceu entrar na região dos gelos eternos. Com efeito, abri os olhos e vi que o meu animal galopava numa planície branca de neve, com uma ou outra montanha de neve, vegetação de neve, e vários animais grandes e de neve. Tudo neve: chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei falar, mas apenas pude grunhir esta pergunta ansiosa:

-Onde estamos?

- Já passamos do Éden. (Memórias

Póstumas de Brás Cubas, p. 120)

Os trechos apresentam em comum o insólito e a figura do eu que se sente perdido em uma paisagem desconhecida, numa lógica do absurdo à qual precisa se adaptar. No episódio da cena do cemitério, a personagem consegue se localizar e perceber que em seu sonho desempenha uma espécie de papel. Enquanto isso, a personagem de Memórias

Póstumas precisa perguntar à deusa Natura em que lugar se

encontra. Todavia ambos os lugares, fazendo parte ou do mundo dos sonhos ou do mundo do delírio, têm a característica de estranhamento.

Na “Cena do cemitério”, sabemos que o narrador nos conta a respeito de seu sonho em um momento de lucidez, e que seu sonho termina justamente quando a narrativa toma uma sequência acelerada, isso também se dá no delírio de

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em seus últimos momentos por Virgília, o narrador da crônica afirma ser acordado por seu empregado José. Dessa forma, vemos que, apesar de o texto nos apresentar coisas inexplicáveis pela lógica, há a explicação racional do narrador, de que tudo não havia passado de sonho e que não se estava entrando no reino do fantástico.

O narrador-Hamlet, acompanhado de José-Horácio, ouve os trocadilhos dos coveiros que são outros, diferentes daqueles proferidos na tragédia original:

E n t r a m o s e e s c u t a m o s . C o m o n a tragédia, deixamos que os coveiros falassem entre si, enquanto faziam a cova de Ofélia. Mas os coveiros eram ao mesmo tempo corretores, e tratavam de ossos e papéis. (p. 249)

Já no Hamlet, um coveiro canta, propõe charadas ao companheiro e discute o fato de Ofélia ter ou não se suicidado e da impropriedade de ser enterrada em solo considerado sagrado.

Após a comparação feita entre as caveiras e as ações, vemos nomes muito interessantes que são dados a elas. Entre estes estão “Companhia Promotora

das Batatas Econômicas”, “Companhia Balsâmica”.

Entre os Bancos citados estão os nomes “Banco

Eterno”, “Ponto Alívio”, etc. Quanto à citação da

companhia das “Batatas Econômicas” é interessante o que o narrador comenta:

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outro que dava cinco mil réis por elas. Achei pouco dinheiro e disse isto mesmo a Horácio, que me respondeu, pela boca de José: ‘Meu senhor, as batatas desta companhia foram prósperas enquanto os portadores dos títulos não as foram plantar. A economia da nobre instituição consistia justamente em não plantar o p r e c i o s o t u b é r c u l o ; uma vez que o plantassem era indício certo da decadência e da morte.’ ( p. 249)

Enquanto os outros nomes de ações e bancos têm relação com a morte, o primeiro se refere a batatas, as mesmas célebres batatas que fazem parte da filosofia de Quincas Borba. Sendo assim, as palavras de José poderiam ser comparadas à filosofia do “Humanitismo”, segundo a qual “não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum”2. Essa idéia foi apresentada por Dirce Côrtes Riedel que apresentou sua semelhança com o princípio de Lavoisier, segundo o qual “na natureza nada

se perde, nada se cria, tudo se transforma.”. Além disso,

pode-se obpode-servar que esta exploração justificada pode pode-ser enquadrada na observação de Antonio Cândido sobre o tema da “transformação do homem em objeto do homem”3.

Porém, voltando ao trecho citado acima há uma tremenda ironia que é a volta ao tema da morte de uma forma que a frase destacada acima soa disparatada após a conversa sobre batatas. Soa estranha, assim como a frase de Jacobina no conto “O espelho” que diz: “o homem é, metafisicamente 2 "Razão contra sandice”. In BOSI, A. Machado de Assis, antologia e estudos.

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falando, uma laranja”4. Assim, em “A Cena do cemitério” Machado trata da alma humana no mesmo sentido que usava naquele conto.

Na referida cena de Hamlet o que o príncipe comenta com seu amigo Horácio é o fato de terem encontrado o crânio de Yorick e ele lamentar o fim que todos poderiam ter, afirmando que por mais que uma “a grande dama” se pinte ou se arrume, ela acabará da mesma forma que aquele crânio, e com o mesmo mau cheiro.

Porém o texto de Machado não discute o fim a que todos nos destinamos. O que ele apresenta é a completa vulgarização dos restos mortais, apresentados como batatas, títulos, dinheiro e outras “coisas rentáveis”. Além disso, são ainda mais rebaixados quando comparados, segundo sua forma e cor e do fato de serem arrancados da terra, com as batatas.

No texto shakespeariano, após cada estrofe que canta, o coveiro “faz saltar uma caveira”, como uma coisa qualquer, pois está acostumado com seu ofício. Porém Hamlet protesta veementemente com o fato de os coveiros profanarem assim o cemitério. O príncipe da Dinamarca se encontrava naquele espaço justamente para falar a respeito da morte como uma passagem para o outro mundo e lamentar o triste fim daqueles a quem amara em vida. Porém o Hamlet machadiano contempla a cena como mero espectador e não se envolve com aquilo que vê. Ele apenas constata que aquilo lhe parece confuso, mas o que lhe cabe, e ele faz, é encenar o seu papel. O cemitério é um espaço que, além de Memórias

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Aires, no qual o conselheiro Aires observa uma conversa

entre coveiros:

“Nesse momento, a viúva descruzava as mãos, e fazia gesto de ir embora. Primeiramente espraiou os olhos, como a ver se estava só. (...) mas havia gente perto, sem contar dois coveiros que levavam um regador e uma enxada, e iam falando de um enterro daquela manhã. Falavam alto, e um escarnecia do outro, em voz grossa: “Eras capaz de levar um daqueles ao morro? Só se fossem quatro como tu.” Tratavam de caixão pesado, naturalmente, mas eu voltei depressa a atenção para a viúva... (p.69)

Enquanto Hamlet se lamenta e se envolve, o conselheiro Aires apenas observa o fato e passa adiante. Da mesma forma, a morte, em “A cena do cemitério” não parece ter grande interesse para o narrador, a não ser para ser ironizada, comparada com a vida. Vejamos, por exemplo, o trecho da crônica “A cena do cemitério” no qual há uma conversa supostamente metafísica e materialista ao mesmo tempo:

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Os primeiros títulos, em março de 1891, subiram a conto de réis; mas se nada há seguro neste mundo conhecido, pode havê-lo no incognoscível? Esta dúvida entrou no espírito do caixa da companhia, que aproveitou a passagem de um paquete transatlântico, para ir consultar um teólogo europeu, levando consigo tudo o que havia mais cognoscível entre os valores. (p. 251).

É bastante forte a ironia neste texto com a contradição entre incognoscível e cognoscível, referindo-se ao fato de, para entender a espiritualidade é preciso ter meios materiais em boa quantidade.

Comparemos os trechos a seguir e vejamos o caráter corrosivo da paródia machadiana. No texto de Shakespeare, um dos mais representativos em termos gestuais, em que ele toma o crânio de Yorick na mão e se põe a refletir, com o seu contraponto machadiano:

Deixa-ma examinar (pega na caveira) Pobre Yorik! Conheci-o, Horácio. Era um rapaz com muita graça, duma alegria infinita e dum espírito vivíssimo: trouxe-me muitas vezes às cavaleiras. E agora, que horror causa à minha imaginação! O meu coração dilata-se! Aqui pendiam os lábios que eu beijei tanta vez! Que é feito neste momento dos trocadilhos? Das cabriolas? Das canções? Desses relâmpagos de gracejos que levantavam em toda a mesa uma

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facécia ficou para vos rirdes da vossa própria carantonha! A boca completamente fechada? Ide agora dizer ao gabinete da rainha que por mais caio que ponha no rosto há de ficar com uma cara assim. Fazei-a rir dizendo-lhe isso! (Hamlet, p. 214-5)

No texto de Machado, temos:

(...) Deixe ver, amigo. E, pegando nela, como Hamlet, exclamei, cheio de melancolia: - Alas, poor Yorick! Eu a conheci, Horácio. Era um título magnifico. Estes buracos de olhos foram algarismos de brilhantes, safiras e opalas. Aqui, onde foi nariz, havia um promontório de marfim velho lavrado; eram de nácar estas faces, os dentes de ouro, as orelhas de granada e safira. Desta boca saíam as mais sublimes promessas em estilo alevantado e nobre. Onde estão agora as belas palavras de outro tempo? Prosa eloquente e fecunda, onde param os longos períodos, as frases galantes, a arte com que fazias ver a gente cavalos soberbos com ferraduras de prata e arreios de ouro? Onde os carros de cristal, as almofadas de cetim? (p. 251-2)

Podemos ver pelos trechos destacados que, enquanto o texto de Shakespeare apresenta os nobres

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sentimentos de Hamlet em relação ao antigo clown chamado Yorick, o texto de Machado, repetindo a frase em inglês, é irônico, e a fala do narrador é recheada de vocábulos monetários e, quando trata da palavras do morto, mostra que este seria alguém de muito boa retórica, com grande poder de persuasão, semelhante ao dos grandes medalhões, que são tema do conto “Teoria do Medalhão”.

Tomemos mais dois trechos, primeiramente o de Shakespeare e depois do de Machado. O texto de Shakespeare diz:

(Hamlet - Acreditas que Alexandre tenha essa mesma cara na cova?

(Horácio) - Exatamente a mesma...

(Hamlet) - E que cheire assim? ... Fu! ... (pousa no chão a caveira).

(Horácio) - Absolutamente, meu senhor. (Hamlet) - A que grosseiras aplicações podemos descer, Horácio! A nossa imaginação não conseguirá facilmente seguir a viagem das nobres cinzas de Alexandre, até vê-las a tapar o buraco dum tonel! (p. 215)

E o narrador machadiano:

- Crês que uma letra de Sócrates esteja hoje no mesmo estado que este papel?

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- Assim que, uma promessa de dívida do nobre Sócrates não será hoje mais que uma debênture escangalhada?

- A mesma cousa.

- Até onde podemos descer, Horácio! Uma letra de Sócrates pode vir a ter os mais tristes empregos deste mundo; limpar os sapatos, por exemplo. Talvez ainda valha menos que esta debênture.

- Saberá Vossa Senhoria que eu não dava nada por ela.

- Nada? Pobre Sócrates! Mas espera, calemo-nos, aí vem um enterro. (p. 252)

A alteração do nome de Alexandre por Sócrates no texto machadiano já seria motivo de indagações a respeito de seus propósitos. Porém o narrador vai além, na corrosão do texto original, pois mostra que sua preocupação em relação ao grande filósofo grego era apenas com suas letras, ou seja, suas promessas de dívidas, o que mostra mais uma vez os valores mundanos e monetários, deturpando o texto original com a ironia.

Agora vejamos o seguinte trecho de Memórias

Póstumas no qual o narrador-protagonista trata da

decadência de seu amigo Quincas Borba:

Recuei espantado... Era o Quincas Borba, o gracioso menino de outro tempo, o meu companheiro de colégio, tão inteligente e abastado. Quincas Borba! Não podia acabar de crer que essa figura esquálida, essa barba pintada de branco, esse

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ruína fosse o Quincas Borba. (Memórias

Póstumas, p. 199).

Os trechos apresentados mostram que a crônica “Cena do Cemitério”, além de ser um exemplo de “poética das traduções” na obra de Machado de Assis, apresenta processos que ocorrem em vários momentos da obra machadiana. Vemos que o narrador, ao apresentar-nos uma tragédia shakespeariana e colocá-la no mesmo nível de uma notícia de jornal está, através do rebaixamento, fazendo uma reescritura corrosiva da obra literária. A este respeito podemos ver também a visão da morte apresentada por Machado como diversa da de Shakespeare logo no início de Memórias Póstumas:

(...) E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. (...) Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. (Memórias Póstumas de Brás

Cubas, p. 112-113).

O processo de paródia na obra de Machado apresenta-se como uma ironia à tragédia, à idéia da morte e todos os valores altos. É como se, ao dizer: “mas se nada há seguro neste mundo conhecido, pode havê-lo no incognoscível” estivesse não só parodiando a tragédia de

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afirmando que os tesouros do céu são mais seguros, pois a estes “nem a traça e a ferrugem consomem” e “os ladrões não cavam nem roubam. No texto de Machado não há preocupações metafísicas e tudo é colocado no mesmo nível - o material. Machado está, assim, vulgarizando e materializando a própria idéia da morte, mostrando as caveiras sendo exploradas, em seu aspecto material através das companhias “Batatas Econômicas” “Balsâmica” e também no aspecto espiritual, pelas companhias “Salvadora” e “Pronto Alívio”. Isso porque, para o próprio narrador, essas não eram “bem títulos nem caveiras; eram as duas cousas juntas, uma fusão de aspectos, letras com buracos nos olhos, dentes por assinaturas”.

Dessa forma, podemos ver o texto “A cena do cemitério” não só como antecipador de processos modernos de ficção, mas como uma paródia com um toque a mais – o humor de Machado de Assis. Este, ao apresentar o sublime e o grotesco em um mesmo patamar e ao apresentar sua crônica, gênero ainda novo que tentava ganhar um lugar entre as várias notícias do jornal diário, soube ironizar o próprio fato colocando um jornal diário em sua crônica apresentando o nonsense da mistura do sublime - a grande arte do gênero dramático - com o vulgar - a notícia de jornal. Dessa forma, parece que mais uma vez - e com muito requinte -o grande gênio dava um piparote em seu leitor.

BIBLIOGRAFIA

ASSIS, Machado de. A cena do cemitério. In: Páginas Recolhidas. Rio de Janeiro: Garnier, 1900.

ASSIS, Machado. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

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ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960.

_______. Memorial de Aires. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1977. BOSI, Alfredo. Machado de Assis: antologia e estudos. São Paulo, Ática, 1982.

BRAYNER, Sônia “O conto de Machado de Assis”. In. O conto de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira / INL, 1980. CÂNDIDO, Antônio. “Esquema de Machado de Assis”. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades. 1977.

MEYER, Augusto. Machado de Assis 1935-1958. Rio de Janeiro: S. José, 1958.

MIGUEL PEREIRA, Lúcia. “Machado de Assis” In: História da Literatura Brasileira - Prosa de Ficção (1870-1920). Rio de Janeiro: José Olympio, 1950.

PROENÇA FILHO, Domício. org. Os melhores contos de Machado de Assis. São Paulo: Global, 1988. (Antologia).

SHAKESPEARE, Willian. Hamlet. Lisboa: Porto. s/d.

TEIXEIRA, Ivan. Apresentação de Machado de Assis. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

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Jacy Marcondes Duarte*

O CONTO AS FORMIGAS SOB O ENFOQUE DA SEMIÓTICA GREIMASIANA

THE SHORT STORY “THE ANTS” THROUGH THE SEMIOTIC ANALYSIS Autor e Texto Author - Text PALAVRAS-CHAVE RESUMO ABSTRACT KEY WORDS

* Doutora em Linguística pela USP - Universidade de São Paulo. Professora das Faculdades Integradas Teresa Martin e Renascença - UNIESP.

A semiótica francesa de A.J.Greimas oferece para o professor de literatura um modelo eficaz para a análise de narrativas, que pode tanto beneficiar o aluno como leitor de textos literários ou como futuro professor. Com o objetivo de exemplificar a aplicação do modelo a um objeto literário, apresentamos a análise do conto de Lygia Fagundes Telles, As formigas.

A. J. Greimas french semiotics presents to the literature professor an efficient model for the narrative analysis, which can beneficiate the student not only as a literary texts reader, but as a future teacher. Looking forward to exemplificate the application of the model to a literary object, we present the analysis of the story written by Lygia Fagundes Telles, As Formigas.

Semiótica francesa. Análise da Narrativa. Contos.

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Jacy Marcondes Duarte

N

ão é nosso objetivo nem a descrição exaustiva da teoria semiótica greimasiana nem a discussão crítica de sua eficácia. O que pretendemos aqui defender é que os elementos teóricos dessa linha de investigação podem ser de valia para o estudo literário, constituindo para o aluno de Letras uma maneira de desvendar as estratégias discursivas que compõem a prosa. Acreditamos que a “fruição” estética está ligada à capacidade analítica, e que cabe a nós professores fornecer ao aluno instrumentos de análise para o desvendamento dos objetos literários.

Podemos entender a narrativa como um palco em que se apresentam vários actantes, que se opõem ou se aliam de acordo com seus projetos ou desejos (objetos de valor e respectivos programas narrativos). Há um percurso gerativo

O CONTO AS FORMIGAS SOB O ENFOQUE DA SEMIÓTICA GREIMASIANA

THE SHORT STORY “THE ANTS” THROUGH THE SEMIOTIC ANALYSIS

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ou fundamental, o nível narrativo e o nível discursivo. Fora do percurso, há o nível textual ou de superfície, no qual analisam-se os recursos literários utilizados, como linguagem figurada, recursos fônicos, vocabulário etc, nível este que tem merecido menos atenção dos semióticos, já que a proposta da Semiótica é analisar e explicar os sentidos do texto, ou seja, os mecanismos e procedimentos do Plano do Conteúdo, colocado sob a forma de um percurso gerativo. Nossa análise do conto de Lygia Fagundes Telles é focada no percurso gerativo de sentido.

A escolha do conto As Formigas deve-se ao fato de termos realizado em sala de aula um trabalho de análise a partir de contos, com resultados bastante positivos: os alunos passaram a enxergar o conto com outro olhar, percebendo suas estratégias discursivas e efeitos de sentido. O conto em questão é um dos que foram trabalhados e não é longo.

A narrativa conta a história de duas estudantes que, por necessidade, alugam um quarto no sótão de uma pensão decadente, onde passam três noites e do qual acabam fugindo às pressas, em função de acontecimentos insólitos (há no quarto um caixote com ossinhos de anão, deixado pelo morador anterior, e que vai sendo manipulado por formigas, as quais vão montando o esqueleto com ordenação perfeita, durante as noites).

Os Actantes em Cena (nível narrativo)

Como actantes principais temos as duas moças (Sujeito 1), cujo objeto de valor é o quarto de pensão, ou seja, premidas pela necessidade econômica (Destinador

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delas) querem e devem morar naquele lugar, que é o único que podem pagar. Como objeto de valor secundário – muito secundário, mas pertinente – temos que a estudante de medicina declara que pretende montar o esqueleto do anão. Como anti-sujeito se configura na narrativa o Sujeito 2 – as formigas – que se contrapõe ao objeto de valor das moças (as moças acabam indo embora às pressas). O objeto de valor desse Sujeito 2 pode ser dividido em dois: primeiro, as formigas querem e devem montar o esqueleto

do anão, tarefa à qual se dedicam cada noite. Em segundo

lugar, um objeto de valor implícito, que é o de expulsar as moças do quarto. O Destinador das formigas – a razão que as move – não é também explicitado. A montagem do esqueleto está ligada à expulsão das moças, pois elas se sentem ameaçadas por essa atividade misteriosa das formigas e fogem da pensão.

Como actantes secundários, elementos que ajudam ou atrapalham os sujeitos, temos o cheiro das formigas, a noite, o aspecto da pensão e da dona dela, que são adjuvantes das formigas e contribuem para assustar as moças; e o dia, o álcool, o sapato usado para matar as formigas, que são adjuvantes das moças.

(28)

O Nível Fundamental

Todo o conto gira em torno do eixo semântico natural

x sobrenatural, que é a oposição que fundamenta a história:

de um lado, as moças, estudando e vivendo o cotidiano normal; de outro lado, as formigas montando os ossos de anão, que é o elemento insólito, sobrenatural.

Esse eixo semântico que instaura no conto o insólito, o incompreensível, o desconhecido, é colocado não só pela ação inusitada das formigas, como pelo aspecto da pensão, de sua dona, dos móveis velhos, da sujeira. Tempo (noite) e espaço (fechado, o quarto) também são os elementos que contribuem para criar o clima de suspense.

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O Nível Discursivo

Tempo, espaço e pessoa são os elementos componentes desse nível. As formigas é narrado em primeira pessoa (debreagem enunciativa), o que causa um efeito de sentido bastante importante para o suspense do conto: como só sabemos o que sabe o narrador-protagonista, não temos como decifrar as razões ou explicações possíveis para os acontecimentos que se dão no quarto. Junto com o Sujeito 1, as moças, abandonamos a pensão (e a narrativa) ao final, sem saber realmente o que poderia acontecer se elas tivessem ficado lá.

Outro elemento discursivo formador do suspense do conto são as figuras (palavras referentes a elementos concretos) que permeiam o texto desde o início. O imóvel é-nos assim apresentado:

“Ficamos imóveis diante do velho

sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. (p.35)”

Temos neste excerto as figuras que favorecem o segundo polo do eixo semântico, o sobrenatural, que, digamos assim, configura-se em narrativas tradicionais aliado a elementos que lembram decadência, morte, escuro, noite, tristeza etc (não é à toa que o Drácula só vive e age à noite).

Agrupando as figuras em alguns campos semânticos, podemos ter:

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a) as que descrevem a pensão e sua dona – velho sobrado, olhos tristes, vazado,

sinistro, escada velhíssima, velha balofa, peruca mais negra do que a asa da graúna, desbotado pijama, unhas aduncas, crosta de esmalte vermelho-escuro, descascado nas pontas encardidas, charutinho, tosse encatarrada, bruxa, saleta escura, atulhada de móveis velhos, palhinha furada, estreita escada - que favorecem a leitura na isotopia

do insólito, do sobrenatural.

b) as que descrevem a vida das moças – as

malas, japona, gravura, lata de sardinha, pão, bolacha, chá, omelete, chocolate, urso de pelúcia, lâmpada de duzentas velas, álcool

-que levam à isotopia da condição sócio-econômica desfavorável (mostram os poucos haveres delas).

c) as que descrevem o sujeito 2, as formigas – ruivas, pequenas, compactas,

rápidas, inúmeras, disciplinadas, levava as mãos à cabeça, sacudia a cabeça (uma

formiga), cheiro ardido, trilha só de ida, trilha

espessa - que também favorecem a isotopia

do insólito.

d) as que descrevem os ossos do anão no caixotinho - brancos, perfeitos, limpíssimos,

miudinhos, brancura de cal, todos os dentinhos – levando-nos para o insólito,

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pois não há explicação razoável para tais características naquele ambiente, nem para o próprio anão (“raro à beça”, na fala da estudante de medicina).

O anão é o grande mistério, seus ossos limpos e brancos se contrapondo à obscuridade e sujeira próprias da pensão (“agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva

assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do caixotinho” (p.37). Em torno desse mistério gravitam os outros

elementos insólitos (as formigas), tristes (os móveis e o prédio velhos) e esquisitos (como a dona da pensão, chamada de bruxa pela estudante de medicina no final). O anão é o elemento insólito, que aparece também no sonho da estudante (“No

sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto” (p.37).

As figuras, portanto, em sua maioria recobrem temas (elementos abstratos, explícitos ou subjacentes) que têm a ver com o eixo semântico natural x sobrenatural: velhice, tristeza, pobreza, decadência, mistério, obscuridade, inexplicável, encaminhando o leitor inevitavelmente à percepção de que algo sobrenatural está ocorrendo no quarto de pensão e possivelmente pondo em perigo as moças.

O espaço no conto é sempre fechado, o quarto de pensão. As moças saem, estudam, vão a uma festa, mas isso nos é apenas informado; é só no quarto que há ação, tudo acontece lá. Dito de outro modo, o espaço aberto é apenas mencionado, e o quarto encerra as protagonistas, prende-as, constituindo parte da ameaça misteriosa que vai se construindo durante o conto.

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O tempo na narrativa é cronológico (três noites). Tudo acontece à noite, inclusive a chegada das moças à pensão e a fuga delas.

Os Episódios da Narrativa

É possível dividirmos as narrativas em episódios; toda vez que há uma transformação de estado, temos um episódio. No conto de Lygia, é possível utilizarmos a divisão em episódios como marca das fases do embate entre o Sujeito 1 (as moças) e o Sujeito 2 (as formigas). Para isso, dividimos a narrativa com base em disjunções temporais.

Antes da divisão, é importante lembrar que a narrativa como um todo está marcada pela oposição espaço aberto/fechado:

Situação inicial...transformação...Situação final Chegada das moças à pensão Montagem do esqueleto Saída das moças (do espaço aberto para (no espaço fechado) (do fechado para o

o fechado) o aberto)

Passemos aos episódios:

1º - ocupação do quarto:

S’... T ...S”

Disjunção com o quarto conversa com a dona Conjunção com o quarto

(S’ = situação inicial; T = transformação; S” = situação final)

Nesse primeiro episódio, há a conquista pelo S1 (as moças) do seu objeto de valor: elas conseguem um quarto barato para morarem. As moças vencem (sujeito glorificado).

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quarto. Há um deslocamento espacial das moças (de fora para dentro).

2º - aparecimento das formigas:

S’... T ...S”

Formigas trabalhando álcool e pisoteamento formigas mortas

Esse episódio marca o primeiro embate entre o S1 (as moças) e o S2 (as formigas), e o S1 vence, matando a trilha espessa de formigas com álcool e pisadas. A marcação temporal é uma noite (a primeira); não há deslocamento espacial das moças (permanecem no quarto).

3º - reaparecimento das formigas

S’... T ...S”

Formigas trabalhando amanhece formigas desaparecem

Nesse terceiro episódio, não há luta (as moças assustadas não atacam as formigas), e quem vence é o S2, pois trabalha sem ser incomodado. A marcação temporal é uma noite, a segunda; há um deslocamento espacial das moças dentro do quarto (dormem juntas na mesma cama).

4º - abandono do quarto

S’... T ...S”

Conjunção com o quarto montagem do esqueleto disjunção com o quarto

Nesse último episódio, temos o final do embate entre S1 e S2, vencendo as formigas, S2, pois não só concluem a montagem do esqueleto do anão (seu objeto de valor principal) como expulsam as moças do quarto pelo medo (objeto de valor implícito). Não há resistência por parte das moças, elas não atacam as formigas. A marcação temporal é

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perde seu objeto de valor, o quarto de moradia, voltando à situação inicial da narrativa (no espaço aberto, sem moradia). Temos aí uma circularidade: no final, retoma-se a situação inicial (de disjunção).

O desenlace marca uma falha de competência do S1, que prejudica sua performance. O S1 tem competência (modais poder / saber) para alugar o quarto, pode pagar por ele, soube escolher algo dentro de suas possibilidades financeiras, mas não tem competência para lidar com o insólito, o sobrenatural, o inexplicável: as moças sentem-se ameaçadas, têm medo, desistem de lutar contra as formigas e vão embora.

Observações Finais

Através da desmontagem analítica feita através dos elementos semióticos, o conto As formigas nos mostra como estão bem imbricados o tempo, o espaço e a ação, nessa pequena narrativa. É a velha história do desconhecido, sobrenatural, surreal influenciando a vida das pessoas: um dos grandes medos arquetípicos do ser humano é justamente o “além” e os elementos a ele relacionados. O conto ilustra muito bem esse medo: quando o comportamento das formigas sai do “natural” e passa para o outro polo, o “sobrenatural”, as moças desistem de lutar contra os bichos e também desistem de entender a situação. Desmontando o conto, percebemos sua arquitetura, que nos parece muito bem planejada: o paralelismo entre a marcação temporal (as noites), a recorrência espacial (espaço fechado) e as ações de ambos os sujeitos. Somem-se a isso os elementos descritivos, como as figuras, que

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2003.

EVERAERT-DESMEDT, Nicole. Semiótica da narrativa. Coimbra: Almedina, 1984

FIORIN, José Luís. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2000

TELLES, Lygia Fagundes. As formigas. In: Venha ver o pôr-do-sol e outros contos. São Paulo: Ática, 1988, p.35-42.

compõem um cenário adequado a acontecimentos insólitos, como formigas inteligentes capazes de montar um raro esqueleto de anão. Será que eram formigas mesmo? E o anão, representa o quê, na verdade? Acaba a história, não acaba o mistério.

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Guaraciaba Micheletti*

DISCURSO E ESTILO NA

POESIA BRASILEIRA DO SÉCULO XX SPEECH AND STYLE IN THE

BRAZILIAN POETRY OF 20TH CENTURY

Autor e Texto Author - Text PALAVRAS-CHAVE RESUMO ABSTRACT KEY WORDS

Este artigo focaliza alguns usos da língua portuguesa na poesia moderna e contemporânea, sob a perspectiva estilística. Considerando-se aspectos discursivos, são privilegiados aspectos lexicais, morfológicos e sintáticos em trechos de poemas de vários autores do período mencionado.

* Doutora em Teoria Literária, professora da Universidade de São Paulo.

Autora, entre outros livros, de A poesia, o mar e a mulher: um só Vinícius, São Paulo: Escuta. Na confluência das formas: o discurso polifônico de Quaderna /

Suassuna. São Paulo: Cliper, 1997.

This article highlights some uses on the Portuguese laguage in modern and contemporary poetry, from the stylistic perspective. Lexical, morphological and syntactic aspects are highlighteds in excerpts of poems from various authors of the abovementioned period.

Poesia brasileira. Estilística. Análise linguística. Enunciação.

(37)

Guaraciaba Micheletti

D

urante alguns anos, estudei, com um grupo de alunos, traços estilísticos da linguagem poética do século XX, focalizando especialmente alguns poetas brasileiros com o objetivo de descrever usos expressivos da língua portuguesa na poesia moderna. Partimos da Estilística Estrutural, desconsiderando algumas distinções como Estilística da Língua e Estilística Literária e combinando essa base teórica às da Linguística Textual, à da Semântica e à da Análise do Discurso. Foram desenvolvidos vários estudos monográficos que nos permitiram registrar algumas peculiaridades a respeito do léxico, da morfologia e da sintaxe, e mesmo da enunciação na poesia de autores modernos e contemporâneos.

Neste artigo, ponho em relevo, em alguns fragmentos, esses aspectos, por serem pertinentes para distinguir os

DISCURSO E ESTILO NA

POESIA BRASILEIRA DO SÉCULO XX SPEECH AND STYLE IN THE

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nesses estudos, em especial os traços sonoros, mas eles não são relevantes para marcar traços linguísticos mais comuns no discurso poético de um determinado período. Essa focalização compõe uma espécie de amostragem, da qual decorre o caráter um tanto fragmentário e enumerativo desse texto.

Nas análises, considero o caráter histórico-social da língua e de seus usos. Ainda que a Estilística busque identificar a materialidade linguística, evidenciando o uso da palavra e das estruturas em que ela se encontra, não se pode negligenciar o discurso quando se procura determinar um sentido e uma expressividade. Assim, ainda que privilegiando léxico e / ou sintaxe, o contexto e o processo enunciativo são fundamentais para qualquer análise de um texto.

1. Linguagem Comum, Cotidiana

(palavras consideradas mais comumente

como banais, não poéticas)

Nunca é demais lembrar que as palavras só adquirem realmente um sentido quando inseridas num enunciado, antes são apenas possibilidades referenciais e / ou expressivas. Logo não se pode pôr à margem a intencionalidade e as condições de produção, de modo particular quando se trata da linguagem poética.

Para se focalizar o léxico, é necessário conceituá-lo, o que não é uma tarefa simples, visto as inúmeras possibilidades apresentas por estudiosos dessa questão. Por uma questão operacional, trabalharemos com a divisão das palavras da língua portuguesa em duas categorias: as gramaticais e as lexicais, reconhecendo que ocorrem

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transposições bastante expressivas. As palavras lexicais também referidas como nocionais são as que apresentam um conteúdo externo relativamente estável, remetendo-nos a algo do mundo físico, psíquico ou social. Já as palavras gramaticais, também conhecidas como instrumentos gramaticais, estalecem as relações respondendo intrisecamente pela estruturação do frase e pelo ato de enunciação.

Este enfoque, ao apontar usos mais frequentes num determinado período, volta-se para três aspectos ligados a questões semânticas e a usos sociais de palavras lexicais: as da linguagem comum, cotidiana, chegando mesmo às palavras chulas ou ao calão; um uso acentuado de neologismos; e a desconstrução de palavras.

Frequentemente, termos do vocabulário mais usual transmitem a impressão de simplicidade e, de certo modo, dessacralizam um certo status de nobreza que, ainda, é atribuído à poesia por algumas pessoas. Descrevem atos cotidianos, como no poema Família, de Carlos Drummond de Andrade:

Três meninos e duas meninas, sendo uma ainda de colo.

A cozinheira preta, a copeira mulata, o papagaio, o gato, o cachorro,

as galinhas gordas no palmo de horta e a mulher que trata de tudo.

... O agiota, o leiteiro, o turco, o médico uma vez por mês, o bilhete todas as semanas

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em que, descritos por uma enumeração de substantivos, praticamente todos relacionados a cenas familiares ou à organização da vida familiar constroem uma mesmice. No final, na última estrofe, quando surgem os substantivos abstratos: esperança e felicidade, o eu lírico/enunciador1 coloca em relevo um questionamento sobre esse quadro em que a mulher mais parece ser uma peça da estrutura familiar. Não é muito distinta a situação figurada em Ritmo. A mesma mesmice dos vocábulos que, nos três quadros do poema de Mario Quintana, fazem o dia a dia das personagens descritas: varredeira, menininha, lavadeira. Três cenas familiares onde tudo se repete nada muda, permanecendo sempre igual, afinal o mundo gira imóvel como um pião! , é um ciclo de vida rotineiro e monótono.

Na porta

a varredeira varre o cisco varre o cisco

varre o cisco Na pia

a menininha escova os dentes escova os dentes

escova os dentes No arroio

a lavadeira bate roupa bate roupa

bate roupa

1 Emprego uma dupla nomenclatura para facilitar a leitura, já que o termo eu lírico que aponta a voz de quem emana o poema é o termo consagrado pelos estudos

(41)

até que enfim

se desenrola

toda a corda

e o mundo gira imóvel como um pião! (1987, 8)

Esse vocabulário comum também se encontra no lamento do eu lírico/enunciador feminino que, no poema de Alberto da Cunha Melo, As Penélopes urbanas não têm ajuda dos deuses, expressa os seus sentimentos em relação ao abandono do companheiro:

Os meninos fazem tantas coisas iguais que espero tua chegada:

único acontecimento do meu dia. Mas, quando o trinco

é aberto devagar

sei que não chegas para mim. A noite já devorou

tuas palavras maduras, teu modo antigo de chegar. Teu alvoroço

foi substituído

por um certo respeito pelas coisas distantes, e eu queria ser amada ou pisada

como uma coisa viva. (1979, 118)

Algumas palavras e expressões menos comuns, poucas (devorou, palavras maduras) que compõem imagens poéticas se associam a termos como “trinco” que “é aberto devagar”,

(42)

Num poema cujo tema político já se presentifica no título Maio 1964, de Ferreira Gullar (1980, 231), o eu lírico/ enunciador se descreve a si e a uma tarde de maio:

Na leiteria a tarde se reparte

em iogurtes, coalhadas, copos de leite

e no espelho meu rosto. São quatro horas da tarde, em maio. Tenho 33 anos e uma gastrite. Amo a vida

...

em que o rosto no espelho, cujas conotações nos permitem pensar em reflexão, repartem espaço com iogurtes, coalhadas, copos de leite.

Essas escolhas revelam um enunciador inserido em seu tempo, com preocupações sociais e existenciais do homem contemporâneo.

2. Vocabulário Vulgar,

Chulo, ou Mesmo Calão

O uso de termos mais próximos da realidade do cotidiano atinge, por vezes, em alguns autores, a utilização de um vocabulário vulgar, chulo, ou mesmo calão. Como não há discurso sem intencionalidade, esse uso, criando uma tensão, parece querer despertar o leitor pelo choque. É o caso do soneto Oficina irritada, de Carlos Drummond de Andrade.

(43)

... Esse meu verbo antipático e impuro há de pungir, há de fazer sofrer, tendão de Vênus sob o pedicuro. Ninguém o lembrará: tiro no muro

cão mijando no caos, enquanto Arcturo,

claro enigma, se deixa surpreender. (1998, 211)

Nele, o poeta mescla, numa forma de composição de regras clássicas – o soneto – com termos de um nível mais erudito a outros tão “impuros” quanto o desejo que externa para a confecção de um poema que desperte no leitor estranheza: Refiro-me especialmente ao vocábulo mijando, embora a estranheza já esteja no título: oficina irritada.

Drummond é parcimonioso na utilização desses termos menos nobres. Outros poetas recorrem a eles com maior frequência. Seguem-se alguns que se valem acentuadamente desse recurso.

Manoel de Barros, no poema 13 de o Desejar ser, em meio a neologismos e a referências culturais e religiosas utiliza o mesmo verbo empregado por Drummond, numa associação ao lírico “orvalho”:

... Com essa doença de grandezas:

Hei de monumentar insetos!

(Cristo monumentou a Humildade quando beijou os pés dos seus discípulos.

(44)

Charles Chaplin monumentou os vagabundos.) Com esta mania de grandeza:

Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas

de orvalho. (2004, 61)

Em Elegia de Seo Antônio Ninguém, Manoel de Barros abre o poema com os versos: Sou um sujeito desacontecido / Rolando borra abaixo como bosta de cobra. (2004, 79)

Com um título bastante lírico, Objeto de amor, Adélia Prado parece conduzir o leitor ao mundo dos sentimentos, mas termina a primeira estrofe com um verso desconcertante:

cu é lindo! – em meio a um estilo “mais elevado” em que emprega a majestática segunda pessoa do plural: Fazei o que puderdes com esta dádiva:

De tal ordem é e tão precioso o que devo dizer-lhes

que não posso guardá-lo

sem que me oprima a sensação de um roubo:

cu é lindo!

Fazei o que puderdes com esta dádiva. Quanto a mim dou graças

pelo que agora sei

e, mais que perdôo, eu amo. (1991,319)

No Poema Sujo, de Ferreira Gullar, considerado pelos críticos um dos melhores poemas longos da segunda metade do século XX, o uso de termos calão, mescla-se ao afetivo,

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diminutivo em tua bocetinha ou nos Cheiros de flor que se juntam à bosta de porco e o segmento se conclui em um montão de estrelas e oceano.

tua gengiva igual a tua bocetinha que parecia sorrir entre as

folhas de banana entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta

como uma boca do corpo (não como a tua boca de palavras)

como uma entrada para eu não sabia tu

não sabias fazer girar a vida

com seu montão de estrelas e oceano entrando-nos em ti (1980, 298)

Assim, como afirmou Gullar em outro poema (1980, 287) a poesia está por toda parte, é mesmo aquela que vai à esquina comprar jornal.

3. Os Neologismos

Sempre buscando novas formas de dizer, poetas desconstroem formas e significados, criando por meio dessa desconstrução/reconstrução novas palavras que melhor expressem o seu dizer. Nas palavras poéticas de Manoel de Barros, nesse processo, o olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê (2004, 75).

(46)

sistema linguístico. Dentre as quais se destacam os processos de composição por justaposição, amálgamas, derivação por afixos, derivação imprópria.

São relevantes os efeitos expressivos do termo desacontecido, para transmitir a desesperança do eu lírico / enunciador e o seu sentimento de insignificância:

Sou um sujeito desacontecido

Rolando borra abaixo como bosta de cobra. ... Meu desnome é Antônio Ninguém.

Eu pareço com nada parecido.

O poema é concluído com dois versos que reiteram a angústia expressa pelo sujeito desacontecido e finalizado por um estranho desnome, manifestando uma paradoxal negativa do existir.

Ainda que sem uma análise mais detalhada dos efeitos de sentido obtidos com esse uso, cabe registrar que despertam a atenção do leitor os versos marcados pela construção insólita de um prefixo des - que significa “ação contrária ou de um estado primitivo ou a cessação de algum estado primitivo” (CUNHA,1997, 249) Paradoxalmente, a existência de um poema e de um nome, além, é claro, do sujeito da enunciação marcados nos pronomes meu, eu e na pessoa do verbo, sou, apontam para um sujeito acontecido. Num dos poemas de Manoel de Barros, já citado, destaca-se a criação do verbo monumentar no qual o enunciador explora o sema de grandiosidade presente no termo para juntá-lo, paradoxalmente, a coisas menores,

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miúdas ou de grandezas tidas como opostas (empobreceram / Cristo monumentou a Humildade).

Venho de nobres que empobreceram. Restou-me por fortuna a soberbia. Com essa doença de grandezas: Hei de monumentar insetos!

(Cristo monumentou a Humildade quando beijou os pés dos seus discípulos. (2004, 61)

Em versos moldados por apenas um termo, José Paulo Paes tece uma crítica à sociedade, em seus diversos aspectos, de modo irônico e lúdico (afinal, para ele poesia é brincar com as palavras) apenas justapondo versos de palavras únicas criadas pelo processo de amálgama, fundindo palavras próprias do mundo ideológico e do econômico com outras cujos traços semânticos apontam para juízos de valor.

Seu Metaléxico economiopia desenvolvimentir utopiada consumidoidos patriotários suicidadãos. (1986, 68)

Fusão que, como se observa, reforça ainda que de uma forma lúdica a crítica à sociedade contemporânea. Aqui,

(48)

direcionamento do processo enunciativo não se explicita, pois o pronome contido no título mais indica um terceiro que o interlocutor.

Gilberto Mendonça Teles usa de amálgama no poema Falavra para traduzir o processo da criação poética. Assim, o poema é produto de um fazer que nasce do imbricamento da fala, da palavra e da lavra, numa reflexão assumida pelo enunciador pelo uso da primeira pessoa:

Ainda sei da fala e sei da lavra

e sei das pedras nas palavras áspedras. E sei que o leito da linguagem leixa pedregulhos na letra.

É como o logro

da poeira na louça ou como o lixo nos baldios do livro.

Ainda sei da língua e sei da linha do luxo e suas luvas, amaciando os calos e os dedais.

E sei da fala

e do ato de lavrá-la na falavra. (2002, 504)

Em Leminski (1995), no poema O mínimo do máximo, termos formados por justaposição, como em: espaçotempo ávido/ lento espaçadentro, ou por derivação com acréscimo de afixos, como em destempestades, ou por mudança de classe gramatical, como em: vai e vem como coisa/ de ou, de nem, ou de quase, têm uma importância fundamental na constituição do sentido.

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O mesmo ocorre em Carlos Drummond de Andrade, no poema Eterno: que discute a modernidade e o desejo de permanência:

Eternalidade eternite eternaltivamente eternuávamos

eternissíssimo

A cada instante se criam novas categorias do eterno. (1988, 257)

explorando todas as possibilidades do termo eterno, desdobrando o adjetivo em outro adjetivo — eternal, cujo sufixo remete à grandiosidade, — e criando o substantivo eternalidade, que adensa o sentido do termo, fazendo com que se estenda e permaneça no substantivo eternite, na circunstância, eternaltivamente, no processo, eternuávamos, acentuado pela supressão do jogo de desdobramento na superlativização, com o auxílio do redobro, do sentido do termo — eternissíssimo.

4. O Processo de Desconstrução

O processo de desconstrução de palavras para delas extrair outras tem-se mostrado muito expressivo. Como no poema de José Paulo Paes, Epitáfio para um banqueiro,

negócio ego ócio cio

(50)

em que ao decompor uma palavra encontra outras que, associadas, lhe permitem desenvolver uma crítica irônica e bem-humorada ao individualismo e à sociedade, pois como em ‘seu metaléxico”, o enunciador deixa palavras soltas para que um outro as apanhe e o acompanhe no seu percurso reflexivo.

Também, em Gênero, de Adélia Prado, o enunciador, um eu lírico feminino, utiliza o recurso criando um jogo de grande expressividade por meio do qual transmite uma visão de mundo e de um eu que se coloca diante de um dilema, expresso nos termos barro e oca e também artisticamente pelo barroca: Eu sou de barro e oca. / Eu sou barroca. (1991, 180)

Mesmo sem desconstruir, é frequente o aproveitamento de palavras cujos significantes são partes de outras, como nos versos de Mar, de Vinicius de Moraes:

... E ouço as cantigas antigas ... E anseio em teu misterioso seio Na atonia das ondas redondas Náufrago entregue ao fluxo forte Da morte. (1980, 198)

Esses são quatro traços do emprego lexical que marcam em maior ou menor grau toda a poesia do século XX. Devo ressaltar duas questões: devido às dimensões deste artigo, há apenas um pequeno número de poetas citados, mas os empregos apontados são recorrentes e podem ser

(51)

localizados na maioria dos poetas desse século; também, lembro que apresento aqui um recorte e que essas palavras só concretizam um sentido por estarem em determinados contextos, ou seja, seus valores semânticos advêm do fato de estarem presentes nas vozes de enunciadores contrutores de um discurso poético.

Discurso e Estruturas Sintáticas

Quando se trata de observar a questão sintática, especialmente na linguagem literária, o primeiro problema que surge é que a frase, quando isolada de um contexto e definida como tal, não consegue abarcar o enfoque discursivo. A designação de frase é bastante variável, não cabe no âmbito deste trabalho nenhuma discussão a respeito das classificações. Como a intenção não é focalizar a frase em si, mas as combinações frequentes numa determinada época, como elementos contitutivos de um discurso poético, empregarei os termos frase e oração com base na gramática tradicional: aqui a idéia de frase completa do ponto de vista estrutural, a oração que tem sujeito e predicado (verbo + possíveis complementos). E frase nominal aquela em que não se estrutura em torno de um verbo.

Mesmo que inversões nos elementos frasais mantenham espaço no fazer poético, essa não é a escolha mais frequente dos poetas. O que se observa é que a estrutura sintática na poesia desse período ora acompanha a organização da frase prosaica, com ordem direta e o registro dos nexos lógicos; ora apresenta uma organização bastante fragmentada, na qual não aparecem orações principais, nem

Referências

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