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DIREITO E JUSTIÇA EM S. TOMÁS DE AQUINO. Introdução, tradução e notas das Questões 57 e 58 da Summa Theologiae IIa-IIae 1

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Introdução, tradução e notas das Questões 57 e 58

da Summa Theologiae IIa-IIae

1

Bento Silva Santos (UFES – Departamento de Filosofia)

AS RELAÇÕES ENTRE DIREITO E JUSTIÇA

Em razão do tema abordado e de sua organização, o tratado da justiça constitui uma das elaborações mais pessoais de S. Tomás de Aquino2, mesmo que as fontes predominantes aduzidas no sed contra sejam Aristóteles (384-322 a.C.), dito “o Filósofo”, com o seu tratado “Ética a Nicômaco” (Livro V sobre a justiça)3, M. Túlio Cícero (106-43 a.C.) com a obra “Sobre os deveres”4, S. Isidoro de Sevilha (570-636) com as “Etimologias (Livro V: “Acerca das leis e dos tempos”)5 e o Código Justiniano no qual, sob a ordem do Imperador Justianino I (527-565), são reunidos extratos dos 39 jurisconsultos mais célebres sobre questões jurídicas6.

O estudo acerca da justiça na obra de S. Tomás de Aquino se consolida dentro do estudo da lex, que possui um tríplice acepção: lex é entendida ora no sentido humano, ora no sentido natural, ora no sentido divino, como assinalamos anteriormente. As páginas que se seguem constituem a tradução anotada das questões 57 e 58 da “Suma de Teologia” (IIa-IIae) que tematizam as relações entre Direito e Justiça.

1

Publicado em VV.AA. Linguagem e socialidade.1 ed.Vitória : EDUFES, 2005, 99-119 2

Cf. especialmente EMILIO G. ESTÉBANEZ, La virtud de la Justicia. Introducción a las

cuestiones 57 a 60, in S. TOMAS DE AQUINO, Suma de Teología III: Parte II-II (a).

Madrid,BAC, 1995, 457-469; Eduardo C. B. BITTAR, Teorias sobre a Justiça. Apontamentos

para a História da Filosofia do Direito.São Paulo, Editora Juarez de Oliveira,2000, 123-151

3

Cf. ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco (ed. R.A. GAUTHIER & J. Y. JOLIF, Aristote.

L’Étique à Nicomaque. Introduction, traduction et commentaire II/1: Commentaire, Livres I-V.Louvain-Paris,Publications Universitaires de Louvain-Éditions Biatrice/Nauwelerts,1970).

Estudos acessíveis sobre o Livro V, cf. E. C. B. BITTAR, A Justiça em Aristóteles.Rio de Janeiro, Forense Universitária,2001, 68-152; IDEM, Teorias sobre a Justiça, 33-71

4

Cf. CICERO, De Officiis; ed. Opere politiche e filosofiche 1: Lo Stato, Le leggi, I doveri (a cura di L. FERRERO & N. ZORZETTI).Torino, UTET,1995

5

Cf. ISIDORO, Etimologias; ed. Bilíngüe de J. OROZ RETA & M.-A. MARCOS CASQUERO, San Isidoro de Sevilla, Etimologías.2vol. (I = Livros I-X; II = Libros

XI-XX).Madrid, BAC,1994, 508-565 [o Livro V Acerca das leis e dos tempos].

6

Acerca das fontes do pensamento jurídico de S. Tomás de Aquino, cf. Noel FRANCESCHI FRANCESCHI, La política en Tomás de Aquino. Sus fuentes, sus fundamentos y su articulación

(2)

OBJETO DA JUSTIÇA É O DIREITO7 (S.T., IIa-IIae, q.57, a. 1)8

A JUSTIÇA DIZ RESPEITO À ALTERIDADE “A justiça, diferentemente das outras virtudes, tem como função própria ordenar o homem para aquelas coisas que dizem respeito a outrem. Com efeito, ela implica uma certa igualdade, como seu próprio nome indica: vulgarmente falando, das coisas que se tornam iguais se diz que ‘se ajustam’. Ora, a igualdade se refere ao outro, ao passo que as outras virtudes aperfeiçoam o homem somente no âmbito daquilo que lhe concerne pessoalmente.

Em conseqüência, aquilo que é reto nos atos das outras virtudes, e que constitui o escopo ao qual tende a intenção virtuosa como ao seu próprio objeto, é determinado unicamente em relação ao sujeito que age. Aquilo que é reto no agir da justiça, ao contrário, é definido em relação ao outro, feita também abstração da relação com aquele que age: de fato, o nosso agir é dito justo enquanto corresponde ao outro segundo uma determinada igualdade: por exemplo, pagamento de salário que é devido em razão de um serviço prestado.

Em conseqüência, diz-se, portanto, justa uma coisa que, quase possuindo em si a retidão da justiça, representa o termo ao qual conduz o ato da virtude da justiça, mesmo sem considerar o modo pelo qual o sujeito o realiza; enquanto, ao contrário, nas outras virtudes a retidão da ação é estabelecida unicamente pelo modo como o sujeito age.

É este o motivo pelo qual, diversamente das outras virtudes, à base de um critério especial, na justiça o objeto se determina por si mesmo e é dito justo; e isto é o direito. Assim é evidente que o objeto da justiça é o direito.

7

Após uma brevíssima introdução ao tema, segue a tradução de excertos das questões 57 e 58 da Summa Theologiae, IIa-IIae. Todos os títulos em itálico são de minha autoria.

8

Lê-se a abreviatura da obra da seguinte maneira: S.T. = Suma de Teologia, IIa-IIae = Segunda

parte da segunda parte, q. 57 = Questão 57, a.1 = Artigo 1. Na solução do artigo 1, S. Tomás de

Aquino desenvolve a vox da autoridade, isto é, S. ISODORO (Etimologias, Livro V (De legibus

et temporibus), cap. 3 (Quid differunt inter se ius, leges et mores): “o direito é assim chamado

porque é justo [“ius dictum est quia est iustum”;]) e ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, Livro V, cap. 1: “todos querem chamar justiça tal hábito, mediante o qual realizam coisas justas (“omnes talem habitum volunt dicere iustitiam a quo operativi iustorum sunt”).

(3)

DIREITO NATURAL9 E POSITIVO (S.T., IIa-IIae, q.57, a. 2)10

Como vimos, o direito ou o justo é uma ação adequada a outrem segundo um critério preciso de igualdade: existe um duplo modo pelo qual uma coisa pode ser adequada ao homem:

1o) De um primeiro modo, pela mesma natureza do objeto: por exemplo, quando alguém dá tanto para receber tanto, e isto é dito direito natural11;

2o) De um segundo modo, uma coisa pode ser adequada ou proporcionada a uma outra em razão de um pacto ou de um acordo comum, quando alguém se julga satisfeito por receber tanto. Mas aqui dois casos podem apresentar-se12:

9

Quanto ao problema da formulação sistemática do conteúdo do Direito Natural, S. Tomás de Aquino (cf. especialmente Summa Theologiae Ia-IIae, q. 91, a. 2; q. 94) se coloca ao lado daqueles que adotam um sistema normativo aberto, ou seja, em sua doutrina do Direito Natural não se pode fala em sentido próprio de formulações sistemáticas do conteúdo, mas somente de aproximações ou indicações programáticas do mesmo. Um exemplo desta visão dinâmica pode ser encontrado na estrutura tripartida do conteúdo do Direito Natural: 1a) Preceitos primários, isto é, preceitos ou princípios universais, evidentes por si mesmos para todo homem com uso da razão. Por exemplo, os primeiros princípios da razão prática: bonum est faciendum, malum est

vitandum (o bem deve ser feito, o mal deve ser evitado); 2a) Preceitos secundários, isto é, conclusões próximas ou imediatas deduzidas com facilidade dos princípios anteriores por todos os homens como, por exemplo, os preceitos do Decálogo, exceto o terceiro, que é mandamento positivo (celebração do dia do Senhor, o sábado, na Antiga Aliança – Ex 20, 8-10, ou o domingo, dia da ressurreição de Cristo, na Nova Aliança, para os cristãos); 3a) Preceitos de terceiro grau, isto é, conclusões mais remotas deduzidas dos preceitos anteriores por aqueles sujeitos que têm conhecimentos e uma formação especial como, por exemplo, as da ilicitude do divórcio, da poligamia, do duelo, da mentira.

10

S. Tomás de Aquino segue também a sua fonte enunciada no Sed contra, a saber: ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, Livro V, cap. 7: “Do justo político, um é natural e outro, legal, isto é, estabelecido pela lei (politici iusti hoc quidem naturale est, hoc autem legale, idest

lege positum”).

11

É inequívoca a densidade de ordem imanente à estrutura racional que é implícita nesta formulação: com o termo “natural”, no campo da lei e do direito naturais, entendemos aquilo que é causado por princípios intrínsecos da natureza humana (a natura). No homem, como ser espiritual e dotado de razão, a lei eterna é participada também de uma maneira formal, isto é, não como uma impressão recebida do alto, mas segundo a própria formalidade da lei, ou seja, o homem é, enquanto animal racional, autor e fonte de regulação: “Inter caetera autem rationalis creatura excellentiori quodam modo divinae providentiae subiacet, inquantum et ipsa fit providentiae particeps, sibiipsi et aliis providens [...] talis participatio legis aeternae, in rationali creatura, lex naturalis dicitur” (S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae Ia-IIae, Q. 91, a. 2,

resp.). Cf. também R. BAGNULO, Il concetto di diritto naturale in San Tommaso d’Aquino.

Milano, A. Giuffrè,1983 12

Justamente porque não é intrínseco à natureza, o Direito que não é natural chama-se “positivo”: este é colocado pela livre escolha racional humana seja ao nível privado, seja ao nível público. É claro que a norma colocada externamente deve corresponder ao critério do “justo”: do contrário, cai-se no voluntarismo, isto é, em uma concepção aberrante do ser humano em sua racionalidade.

(4)

a) Em razão de um contrato privado, como quando se estabelece um pacto entre pessoas particulares;

DIREITO POSITIVO b) Em razão de uma convenção pública, quando, por exemplo, a adequação ou a proporção com outrem resulta do consentimento popular, ou da ordem do príncipe que tem cura da comunidade e representa o povo. Isto é dito direito positivo.

DIREITO DAS GENTES DISTINTO DO DIREITO NATURAL (S.T., IIa-IIae, q.57, a. 3)13

AMPLITUDE DO DIREITO NATURAL Como vimos (q.57, a.2), direito (ius) ou justo natural é aquele que por natureza se ajusta ou é proporcional a outrem. Mas isto pode acontecer de dois modos:

1o) considerando a coisa absolutamente e em si mesma; por exemplo, o macho que, como tal, se adapta à fêmea para ter filhos, ou o genitor ao seu filho para educá-lo;

2o) em um segundo modo, uma coisa é naturalmente adequada à outra, não mais considerada absolutamente, mas relativamente às suas conseqüências; por exemplo, a propriedade privada. De fato, este campo, considerado absolutamente e em si mesmo, nada há nele que o faça pertencer, antes, a um indivíduo do que a um outro; se, porém, se considera a oportunidade de cultivá-lo e o uso pacífico do próprio campo, tem alguma proporção que seja propriedade de um e não de outro, como observa o Filósofo.

Ora, o fato de considerar uma coisa de modo absoluto não convém somente ao homem, mas é uma capacidade da qual é dotado também o animal; por essa razão, o direito dito natural na primeira acepção é comum a nós e aos outros animais.

DIREITO DAS GENTES14 Escreve o Jurisconsulto: ‘Do direito natural se diferencia o direito das gentes, uma vez que o primeiro é comum a todos os animais; o segundo, ao contrário, é comum somente aos homens entre si’15.

13

A fonte imediata da solução do artigo 3 é S. ISIDORO, Etimologias, Livro V, cap. IV (Quid

sit ius naturale): “O direito pode ser natural, civil ou de gentes. Direito natural é o comum a

todos os povos e existe em todas as partes, não por lei ou constituição, mas por instituto da natureza; como a união do homem e da mulher, o reconhecimento e educação dos filhos, a mesma liberdade para todos, a posse comum de todas as coisas e o direito de adquirir tudo o que no céu, na terra e no mar existe”.

14

A questão que se coloca em relação ao “ius gentium” consiste em saber se este direito é

positivo, como expressa e repetidamente afirma S. Tomás de Aquino, ou se é natural, como

parece indicar algumas expressões de nosso Doutor; cf. Summa Theologiae Ia-IIae, q. 95, a. 4. S. Tomás de Aquino encontrou uma tradição confusa e até mesmo contraditória sobre o tema em questão. A posição de nosso autor pode ser resumida da seguinte maneira: o Direito das gentes é o “intermediário entre a lei natural e a lei positiva”, representando a “lei comum da civilização” (J. NEDEL, Ética, Direito e Justiça.Porto Alegre, Edipucrs,1998, 100-101)

15

Digesto 1,1,1. Cf. especialmente a explicação desta distinção em JUSTINIANO, Institutas.

Manual didático para o uso dos estudantes de direito de Constantinopla, elaborado por ordem do Imperador Justiniano no ano de 533 d.C.São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais,2000, Livro I,

(5)

Ora, o fato de considerar uma coisa comparando-a com suas conseqüências é específico da razão: por essa razão isto também é dito natural ao homem a título de ser racional. Donde o jurisconsulto Gaio afirma: ‘aquilo que a razão natural estabeleceu entre todos os homens, é observado por todos os povos, e é denominado direito das gentes’16.

DEFINIÇÕES DA JUSTIÇA (S.T., IIa-IIae, q.58, a. 1)17

REQUISITOS DA VIRTUDE Deve ser dito que esta definição da justiça é conveniente, se a entendemos retamente18. Toda virtude é um hábito (habitus) que é princípio de um ato bom: é preciso, portanto, definir a virtude pelo ato bom tendo por objeto a matéria mesma da virtude. A justiça tem como matéria própria aquelas coisas que estão em relação de alteridade, como veremos (a. 2 e 8): por essa razão, se indica o ato da justiça em relação com sua matéria específica e seu objeto, com a expressão ‘dá a cada um o seu direito’, porque – como escreve Isidoro, no livro das Etimologias – ‘diz-se justo enquanto guarda o direito’.

Mas para que um ato, qualquer que seja a matéria sobre a qual se exerce, seja virtuoso, é preciso que seja voluntário e que seja estável e firme; pois o Filósofo observa que o ato da virtude deve ser realizado, antes de tudo, ‘sabendo’ (sciens); em segundo lugar, ‘fruto de uma escolha e em vista de um determinado escopo’ e, em terceiro lugar, que ‘se aja sem mudanças’.

APLICAÇÕES À JUSTIÇA Ora, o primeiro requisito está incluído no segundo porque ‘a ação feita por ignorância é involuntária’, diz ainda Aristóteles na Ética; por essa razão, na definição da

título II: Do Direito Natural, das Gentes e Civil: o Direito natural “não é peculiar ao gênero humano, mas comum a todos os animais que nascem no céu, na terra e no mar. Dele resulta a união do macho e da fêmea, a que chamamos matrimônio, a criação dos filhos, e a sua educação” (23).

16

Digesto 1,1,9.Cf. a definição mais ampla de “Direito das gentes” em JUSTINIANO,

Institutas..., Livro I, título II, § 2: Do Direito Natural, das Gentes e Civil: “O direito das gentes

é comum a toda espécie humana. Com as exigências dos costumes e das necessidades, os povos humanos criaram certas regras. Surgiram depois as guerras, seguiram-se a prisão e a escravidão, todas contrárias ao direito natural, porque, pelo direito natural, todos os homens nascem livres. Do direito das gentes se originaram quase todos os contratos, como a compra e venda, a locatio

conductio, a sociedade, o depósito, o mútuo e inúmeros outros” (24).

17

O artigo procura uma resposta à pergunta central: Que é a Justiça? De um lado, tem-se a definição dos juristas: “justiça é a constante e perpétua vontade de dar a cada um seu direito” (“iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum unicuique tribuens”); de outro lado, a definição aristotélica: “justiça é um hábito que dispõe a realizar o justo e pelo qual se realizam e se desejam as coisas justas (“est habitus a quo sunt aliqui operativi iustorum, et a quo operantur et volunt iusta” (Ética a Nicômaco, Livro V, cap. 1).

18

(6)

justiça, se coloca, em primeiro lugar, a vontade para explicar que o ato da justiça deve ser voluntário; em seguida, acrescentou ‘a constância e a perpetuidade’, para indicar a firmeza do ato.

E esta definição da justiça está assim completa, exceto o fato de que se coloca o ato no lugar do hábito, uma vez que é o ato que o especifica; de fato, o hábito é dito tal em função do ato. Se se desejasse colocar esta definição em uma forma lógica perfeita, seria preciso dizer que ‘a justiça é um hábito graças ao qual o homem dá a cada um o seu direito com vontade constante e imutável’19. Tal definição se aproxima muito daquela de Aristóteles: ‘a justiça é um hábito pelo qual se diz que alguém age escolhendo aquilo que é justo’20.

JUSTIÇA E ALTERIDADE (S.T., IIa-IIae, q.58, a. 2)21

A IGUALDADE Como foi dito anteriormente (q.57, a.1), o termo justiça implica a igualdade, razão pela qual a noção mesma de justiça faz referência ao outro, pois nada é igual a si mesmo, mas a um outro.

De outro lado, é tarefa da justiça conferir retidão aos atos humanos, como já foi dito (Ia-IIae, q.60, a.2), com a conseqüência de que esta alteridade postulada pela justiça seja de diferentes sujeitos capazes de agir. De fato, rigorosamente falando, as ações não se atribuem às partes nem às formas ou às potências, mas às pessoas e àquelas que formam um todo. Não se diz, falando propriamente, que a mão golpeia, mas, sim, o homem, servindo-se da mão; nem é exato afirmar que o calor esquenta, mas, sim, o fogo por meio do calor: trata-se de frases que se usam em sentido figurado.

A ALTERIDADE Mas a justiça entendida em sentido exato postula diversidades de sujeitos, e não há justiça senão de um homem em relação a um outro22.

19

No original: “Iustitia est habitus secundum quem aliquis constanti et perpetua voluntate ius suum unicuique tribuit”.

20

ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco V, 17, 1134 a 1 21

A fonte imediata da solução é a definição de M. T. Cícero (106-43 a.C.): a justiça “é aquela razão pela qual se mantém a sociedade dos homens entre si e também a comunidade da vida” (De officiis, cap. 7).

22

A relação de justiça é uma relação que tem a nota de alteridade, também chamada intersubjetividade, e isto significa que a relação de justiça requer dois ou mais sujeitos em

posição distinta e complementar; um ou uns como credores, outro ou outros como devedores.

Sendo a justiça em dar a cada um o seu direito, a relação de justiça requer necessariamente pelos menos dois sujeitos: o titular do direito e o devedor. Ambos os sujeitos ou grupos de sujeitos se encontram unidos por uma relação obrigatória ou vinculante, ou seja, por um vínculo de natureza pública. Temos assim na relação de justiça os seguintes elementos: a) os sujeitos; b) o vínculo jurídico; c) o conteúdo ou situações jurídicas (direitos subjetivos, deveres, faculdades, poderes, etc.).

(7)

Todavia, por analogia, encontram-se em um só e mesmo homem diversos princípios de ação, como se fossem diversos agentes, como a razão, o irascível e o concupiscível; por essa razão, se diz metaforicamente que a justiça é atribuída a um único e mesmo ser enquanto a razão comanda o irascível e o concupiscível, potências que, por sua vez, estão sujeitas à razão; e, em sentido geral, na medida em que se atribui a cada parte do homem aquilo que é próprio da pessoa. Por isso, Aristóteles adverte que tal justiça deve ser entendida metaforicamente23.

A JUSTIÇA LEGAL COMO VIRTUDE GERAL (S.T., IIa-IIae, q.58, a.5)

Vimos que a justiça regra o homem em relação ao outro, o que pode acontecer de dois modos: primeiramente, considerando o outro como pessoal singular; em segundo lugar, considerando o outro socialmente, isto é, enquanto aquele que serve a uma comunidade; por isso mesmo serve a todos os indivíduos que a compõem.

A justiça pode referir-se a ambos os casos, segundo sua própria natureza.

O TODO E A PARTE De fato, é evidente que todos aqueles que integram alguma comunidade se relacionam com a mesma, do mesmo modo que as partes com o todo: ora a parte, enquanto tal, é do todo, com a conseqüência de que também qualquer bem da parte é ordenável ao bem do todo. Sob este aspecto, portanto, o bem de cada uma das virtudes, ora ordene o homem para si mesmo, ora ordene para outras pessoas singulares, é susceptível de ser referido ao bem comum, ao qual nos ordena a justiça. Desde ponto de vista, pode-se dizer que os atos de todas as virtudes pertencem à justiça, na medida em que esta ordena o homem ao bem comum. É neste sentido que denominamos a justiça virtude geral.

O CONCEITO DE LEGAL Vimos anteriormente (Ia-IIae, q.90, a.2), que ordenar ao bem comum é tarefa da lei, daí por que tal justiça, que é geral no sentido explicado, é dita justiça legal (iustitia

legalis), isto é, por meio dela o homem se coloca em harmonia com a lei que ordena os

atos de todas as virtudes ao bem comum24.

23

ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco V, 11, 9, 1138 b 5 24

Uma vez estabelecida a essencialidade do aspecto de “alteridade” fundamental da justiça, S. Tomás de Aquino passa a considerar um segundo “outro”, além do indivíduo: trata-se da comunidade. Tal relação indivíduo-comunidade tem um aspecto de globalidade (virtude geral), considerando, porém, que a comunidade é aquela que promove o bem comum do qual é também a expressão; e como tudo aquilo que diz respeito à comunidade como Estado é regulado pelas leis, este tipo de justiça que se apresenta como geral é também uma justiça legal, na medida em que toda ação do indivíduo no âmbito estatal é regulada pelas leis.

(8)

EXISTE TAMBÉM UMA JUSTIÇA PARTICULAR (S.T., IIa-IIae, q.58, a. 7)

Como foi dito (a.6), a justiça legal na sua essência não se identifica com todas as outras virtudes, razão pela qual, além da justiça legal que ordena o homem imediatamente ao bem comum, é necessário que existam as outras virtudes que imediatamente ordenem o homem aos bens particulares, os quais podem se referir ao homem em si mesmo ou a uma outra pessoa singular.

RACIOCÍNIO POR ANALOGIA Portanto, assim como, além da justiça legal25, é necessário que haja algumas virtudes particulares que ordenem o homem em si mesmo, como a temperança e a fortaleza, assim também é conveniente que haja, além da justiça legal, uma justiça particular que ordene o homem em suas relações com outra pessoa singular.

MATÉRIA ESPECIAL DA JUSTIÇA PARTICULAR (S.T., IIa-IIae, q.58, a. 8)

MORAL DA RETA RAZÃO Como põe em evidência Aristóteles26, matéria da virtude moral, que se define pela reta razão, é tudo aquilo que é regulável pela razão. Ora, a razão pode regular seja as paixões internas da alma, seja as ações exteriores, bem como as coisas exteriores que se apresentam ao uso humano: com a diferença de que nas ações e nos bens externos, que representam os meios de comunicação entre os homens, considera-se a ordem de um homem a um outro, ao passo que, ao contrário, nas paixões internas considera-se a ordem do homem em si mesmo.

E, portanto, uma vez que a justiça se ordena ao outro, essa não se ocupa de toda a matéria moral, mas exclusivamente das ações e as coisas exteriores, sob a ótica de uma certa razão especial do objeto, isto é, na medida em que por elas um homem realiza uma relação com um outro homem.

25

A exigência de uma justiça particular é demonstrada através de uma dupla analogia. Antes de tudo, eis a primeira: a justiça legal em sua dimensão geral postula a existência das virtudes particulares, cujos atos são ordenáveis também ao bem da comunidade. Dentro desta instância, emerge uma segunda, que se desenvolve sobre a dimensão específica de “justiça”, evocada pela justiça geral: deve existir também uma justiça particular que ordena as ações humanas interpessoais.

26

Cf. ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco V,15, 1107 a 1. Aristóteles divide as virtudes entre duas partes: 1a) As virtude éticas, que derivam em nós do hábito: pela natureza, somo potencialmente capazes de formá-los e, mediante o exercício, traduzimos essa potencialidade em atualidade; 2a) As virtudes dianoéticas são as virtudes da razão, como por exemplo, sabedoria prática (phrónēsis) e a sabedoria (sophia) enquanto virtude típica da razão teorética.

(9)

O JUSTO-MEIO DA JUSTIÇA É O MEIO DA COISA EXTERNA (S.T., IIa-IIae, q.58, a.10)27

Vimos (a. 2 ad 4) que as outras virtudes morais têm por objeto principalmente as paixões, cuja instância de retidão não é considerada senão em relação ao próprio homem no qual as paixões se encontram, enquanto ele se vale do irascível ou concupiscível na medida em que isto é oportuno conforme as diferenças circunstâncias. Em conseqüência, o justo-meio de tais virtudes não se determina pela proporção de uma coisa a outra, mas somente em relação com o homem virtuoso considerado em si mesmo: nessas virtudes o justo-meio é unicamente segundo a razão relativa a nós28.

O VALOR DA RES EXTERNA Matéria da justiça é, ao contrário, uma operação externa que, por si mesma ou pela realidade que ela utiliza, implica uma justa proporção em relação a outra pessoa: em conseqüência, o justo-meio da justiça consiste em uma igualdade de proporção da coisa externa à pessoa externa. Ora, o igual é aquilo que está realmente no meio entre o maior e o menor, como encontramos em Aristóteles29; por essa razão, na justiça o justo-meio é o da coisa (iustitia habet medium rei)30.

27

S. Tomás de Aquino desenvolve a noção de “meio-termo” (mesotēs) aplicada à justiça: “medium iustitiae secundum proportionalitatem arithmeticam, quod est medium rei” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, Livro V, cap. 4). Segundo Aristóteles, não há virtude quando há excesso ou falta, ou seja quando há demais ou de menos; virtude implica, ao contrário, a justa proporção, que é a via do meio entre dois excessos. A virtude ética é, precisamente, o meio-termo entre dois vícios, dos quais um é por falta, o outro por excesso. Assim, por exemplo, a liberalidade é o “justo meio” entre a avareza e a prodigalidade; ela é, portanto, a justa atitude que a razão nos faz assumir diante da ação de gastar dinheiro.

28

Nos termos do tecnicismo teológico, qual é o meio das virtudes morais? O “meio” deve ser entendido em sentido causal, na medida em que a virtude moral tem como objeto o ponto eqüidistante do excesso e da privação daquilo que a razão iluminada e reta vê o que deve ser realizado. No caso da prudência, da fortaleza e da temperança, cujo âmbito está no interior do homem, é claro que tal meio é fixado pela reta razão.

29

ARISTÓTELES, Metafísica IX, 5, 6, 1056 a 22 30

Na justiça, o “meio” não é regido pela reta razão, ou seja, pelo juízo normativo do qual o homem dispõe para avaliar as próprias ações (levando-se em conta evidentemente todos os componentes subjetivos e circunstanciais), como é o caso específico da prudência, da fortaleza e da temperança, mas, sim, pela coisa, isto é, pela exigência de uma igualdade que emerge na relação interpessoal e que se configura em uma objetividade concreta: é esta a “coisa” que constitui o meio, o critério, a norma da justiça: cf .S. TOMÁS DE AQUINO, Suma Theologiae Ia-IIae, Q. 64, a. 1-3.

(10)

O ATO DA JUSTIÇA: A CADA UM O SEU (S.T., IIa-IIae, q. 58, a. 11)

PROPORÇÃO – O SEU Vimos (a.8 e 10) que a matéria da justiça é a operação exterior que, por si mesma ou pela realidade da qual ela se serve, é proporcionada a uma outra pessoa à qual somos ordenados pela justiça.

Ora, diz-se que pertence a uma pessoa aquela coisa que lhe cabe em uma igualdade de proporção; por essa razão, o ato próprio da justiça consiste em dar a cada um o seu (iustitiae actus non est reddere unicuique quod suum est)31”.

De tudo quanto foi dito do texto anotado das questões 57 e 58 da Summa

Theologiae (IIa-IIae), verifica-se que, para elucidar questões tais como “Que significa o Direito?... que significa a Justiça?”, não basta uma metodologia científica porque esta não pode responder certas interrogações meta-empíricas e porque toda Ciência Jurídica é, por definição, setorial e não totalizante. O meio mais adequado para tais questões é a reflexão filosófica, sistemática e metodologicamente elaborada. Quando um Direito é justo?... que é a legitimidade do Direito?... é inquestionável a obediência às leis?... Estas e outras perguntas pertencem ao âmbito da axiologia e, portanto, escapam à metodologia científica, de sorte que a reflexão deontológica (como deve ser o Direito) sobre o jurídico não pode deixar de apoiar-se na realidade fática do mesmo e de vincular-se com as ciências do Direito. A função metafísico-jurídica das questões comentadas é inequívoca e, ao leitor que souber apreender as riquezas perenes desta reflexão, não poderá jamais prescindir dos elementos basilares aqui enunciados se desejar elaborar uma Filosofia do Direito.

31

Qual é o sentido da célebre definição da justiça (dar a cada um o seu)? O termo “o seu” é uma tradução do “ius suum” da definição romana da justiça, sendo respaldada pelos testemunhos da Antigüidade. Cícero, por exemplo, afirmou que a justiça consistia no “suum cuique tribuere”. Segundo a solução clássica, formulada aqui expressamente por S. Tomás de Aquino, na fórmula da justiça, dar a cada um o seu, o seu é o justo concreto; é aquela coisa que a virtude da justiça impele a dar a outro por constituir o seu. Em outras palavras: o justo é o seu de cada qual, o seu direito, aquilo que a justiça dá.

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