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NOVAS PERSPECTIVAS DE CRIAÇÃO FICCIONAL: UM DIÁLOGO SOBRE ESTÉTICA E LITERATURA EM WILDE E KIERKEGAARD

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202 Revista Entrelinhas – Vol. 6, n. 1 (jul/dez. 2012)

NOVAS PERSPECTIVAS DE CRIAÇÃO FICCIONAL: UM DIÁLOGO SOBRE ESTÉTICA E LITERATURA EM WILDE E KIERKEGAARD

NEW PERSPECTIVES OF FICTIONAL CREATION: A DIALOGUE ON AESTHETICS AND LITERATURE IN WILDE AND KIERKEGAARD

Jacqueline Oliveira Leão1 jacleao@hotmail.com Jasson da Silva Martins2

jassonfilos@gmail.com

Resumo: A proposta investigativa deste texto centra-se na leitura da obra de Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray, por meio da concepção estética defendida pelo filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard. Contudo, a preocupação maior da análise em foco é não estagnar o aspecto literário do personagem da obra de Wilde, Dorian Gray, sob o alicerce de teorias fechadas e conclusivas e, muito menos, aproximá-lo da história da estética tradicional. Dessa forma, procura-se dar ênfase à articulação de novos parâmetros de leitura e crítica ao cruzar discurso filosófico e literário, aproximando-se o conceito de estética em Kierkegaard do universo literário de Wilde, autores relevantes no contexto filosófico-literário do século XIX e da contemporaneidade.

Palavras-chave: Literatura; Filosofia; Arte; Estética; Erotismo.

Abstract: The research proposal this text focuses on reading of Oscar Wilde - The picture

of Dorian Gray - and it bases on the conception of aesthetic defended by Danish philosopher Søren Kierkegaard. However, the biggest concern of this analysis is not stagnate literally the aspect of the character Dorian Gray through of conclusive theories or approach him of notion traditional of aesthetics. Therefore, this article attempts to emphasize the articulation of new parameters of critical reading, approaching to the Kierkegaard's concept of aesthetic to Oscar Wilde´s literary universe, both authors relevant figures in the philosophical and literary context of the nineteenth century and contemporanity.

Key words: Dorian Gray; Kierkegaard; Literature; Philosophy;

Eroticism

1 Graduação/Licenciatura Plena em Letras pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Belo Horizonte -

FAFI-BH (1995). Mestrado em Estudos Literários, Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (2002). Doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (2008). Atua, como pesquisadora, nos seguintes grupos/projetos de pesquisa: (a) Espaços na Literatura Contemporânea, vinculado ao CNPq e coordenado pela Profª Drª Maria Zilda Cury; (b) Estudos sobre a obra de Kierkegaard, vinculado ao CNPq e coordenado pelo Prof. Dr. Alvaro L. M. Valls. E-mail: jacleao@hotmail.com.

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Professor Assistente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário La Salle (UNILASALLE). Mestre em filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Atualmente, como bolsista PROSUP/CAPES, desenvolve pesquisa em nível de Doutorado nessa mesma Universidade. Coordena a Coleção Pólemoi, da Editora Nova Harmonia. E-mail: jassonfilos@gmail.com.

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1 Introdução

Mais que um símbolo icônico associado às formas perfeitas, às proporções harmônicas agradáveis aos sentidos, como define o dicionário Aurélio, o signo belo e a própria abstração da beleza são temas recorrentes tanto na literatura, na música, no cinema como na filosofia. Curiosamente, vale dizer que até mesmo o imaginário infantil compartilha com o significado e a expressão do belo na constituição de suas narrativas e de seus personagens. Por exemplo, no conto de fadas originário da tradição alemã e, posteriormente, apropriado pelos irmãos Grimm, Branca de Neve, o belo, a beleza e as derivações do erotismo apresentam diferentes leituras em suas variadas inscrições no tempo e no espaço. O retrato de Dorian Gray é, sem dúvida, obra de arte própria da literatura e, muito embora o texto literário seja apenas representativo, significando a si mesmo como se fosse parte de um jogo entre ficção e realidade, pretendemos considerar esta narrativa ofertada por Oscar Wilde como obra literária que extrapola a criação artística, a imaginação e a própria realidade.

É pensando assim que procuraremos tratar a obra de Oscar Wilde, O retrato de Dorian

Gray, de forma dialógica e comparativa. É claro que Dorian Gray pode ser (e já foi muitas

vezes) lido e interpretado como sujeito fragmentado em constante conflito com o seu outro, ou seja, o retrato representando a expressão maior do belo, o duplo de Gray, duplo que carrega em si impressões sensuais, sarcásticas, irônicas, reveladoras da corrupção dos valores morais do protagonista. Contudo nosso estudo não se restringe à abordagem da literatura fantástica tampouco à exploração temática do gótico e do tenebroso na ficção romântica da primeira metade do século XIX.

2 Erotismo, fantasia e corporeidade

O erotismo se constitui como mundo autônomo, mundo no qual se inserem todas as formas possíveis de fantasia, tanto as mais primitivas quanto as mais complexas, aquelas que transfiguram e ressignificam o corpo, o objeto erótico. O corpo erotizado provoca emoções indescritíveis, e a própria emoção erótica modifica por inteiro o amante em nível de consciência, preenchendo a sua alma por completo como nenhuma outra emoção é capaz de fazê-lo. As ilusões e as idealizações espirituais, ao mesmo tempo que forçam o outro a se submeter ao próprio jogo erótico, legitimam o transbordamento da paixão até o excesso de fascínio, de fantasia.

Por outro lado, a paixão amorosa vincada à paixão erótica leva à percepção do outro de forma subjetiva, porque são esses sentimentos e impulsos conjugados que permitem,

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204 sobretudo, a entrada bem mais profunda de si a si próprio. O objeto amado, desejado, participa, pois, apenas como aquele que desencadeia o movimento do jogo no interior do próprio erotismo, como aquele que desperta a chama e o calor do outro e pelo outro, como aquele que desperta os constantes impulsos de imagens-vida.

Contudo “[...] o amor entre dois seres durará exatamente enquanto eles tiverem a oportunidade de oferecer um ao outro tal possibilidade”. (ANDREAS-SALOMÉ, 2005, p. 27). Nesse sentido, o erotismo e a arte conjugam os mesmos processos de criação, pois o artista retira do objeto, que mais profundamente lhe desperta interesse, o desejo maior por retratá-lo devido a certos aspectos, a certas fantasias, interpondo-se nas relações de si mesmo com a sua arte, a sua criação. Esta, de outro modo, é objeto de sua própria sedução, sedução rodeada por uma gama de outros elementos, de outros caracteres coextensivos à fantasia, mas fatores extremamente indissociáveis e ambíguos no imaginário do artista, sedutor/seduzido da/pela arte. Dessa forma, se

[...[alguma coisa numa paisagem vai se tornar de certo modo tudo para ele, apenas por causa desse incitamento e à medida que dela extraia uma criação pessoal: tudo o que nunca, até então, o emocionou, parece momentaneamente, concentrar-se aí em seu proveito, num impulso de reconhecimento que o leva a exagerar-lhe a importância.(ANDREAS-SALOMÉ, 2005, p. 28, grifos da autora).

Para o artista, tudo o que antes parecia não lhe incitar o desejo parece que, repentinamente, prende o seu querer, ganha maior dimensão. Curiosamente, esse enlace chega a tal ponto que a singularidade do todo do objeto parece também fundir-se no próprio artista. Mediante esse olhar, o erotismo e a arte podem ser considerados atos intermitentes que surgem e irrompem dentro de certa duração, porque o amor erótico é o que se exprime de modo físico, em sentido amplo, é o que se reveste de símbolos corporais, ligando um ao outro. O amor erótico prende-se ao corpo, mas integra, ao símbolo, o próprio corpo. A imagem erótica do corpo abre as portas do sentido; insinua seus segredos ao espírito, a fim de despertá-lo, ou por meio da linguagem, ou por meio de signos e metáforas, imprescindíveis a qualquer relação erótica. Os símbolos, por mais livremente imaginados que sejam, estão prontos a concretizar o critério de sua própria idealização do real.

A compreensão do erotismo, por intermédio do fenômeno erótico, pode ser comparada à embriaguez estética no sentido de sintonia entre o estado normal e o estado de excitação. Além disso, podemos comparar os estímulos eróticos com os outros processos de sedução, por exemplo, com a imaginação, com a criação artística no dado momento em que o próprio

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205 artista cria. O êxtase erótico e o êxtase estético assemelham-se, conforme a descrição de Andreas-Salomé, porque o “êxtase estético desliza insensivelmente em êxtase erótico, e este tenta involuntariamente se dotar de um adorno estético – ou talvez tenha revestido diretamente a animalidade, tendo o corpo como matéria de criação”. (ANDREAS-SALOMÉ, 2005, p. 74-75). O erotismo exprime muito mais a criação estética, sua embriaguez, porque integra à imaginação dados da realidade transfigurada.

3 Wilde e Kierkegaard: erotismo e construção do Eu ficcional

Em se tratando de fantasia e corporeidade, situação semelhante encontramos na obra de Oscar Wilde, à medida que o personagem Dorian Gray experiencia a estética por meio do erotismo, da ironia, do desejo, do aplauso, do requinte, sentindo-se o próprio dandy inscrito na arte. Como o seu prazer é narcísico, Gray exalta o próprio Ego, não se importando em se situar dentro de um ambiente revestido pela hipocrisia social. A vida do erótico Gray é a própria vivência artística, estética, ou seja, ele vive tudo o que lhe é permitido viver, intensamente e sem limites. Assim descrita, a vida de Dorian Gray se aproxima da concepção estética de Kierkegaard.

Para Kierkegaard, a estética não é caracterizada como ciência do belo (Baumgarten), ou a ciência dos princípios a priori da sensibilidade (Kant), nem como discurso sobre a arte. A estética kierkegaardiana é apresentada, desenvolvida e definida como forma de existência. Não é, portanto, um saber ou uma ciência, mas um modo de ser no mundo, imediatamente, determinado como desejo e imaginação, que não fornece unidade ao eu, mas antes a sua dispersão. Contudo, se a estética kierkegaardiana é um meio, uma propedêutica, cujo principal objetivo é despertar a reflexão exigida pela consciência da escolha (ética), não pretendemos analisar o personagem Dorian Gray enquanto indivíduo propenso a atingir a tal esfera no molde kierkegaardiano, mas refletir sobre ele à luz da estética kierkegaardiana.

Partindo da definição de estética enquanto modo de vida, maneira de ser/existir no mundo, notamos uma proximidade entre Dorian Gray e muitos personagens de Kierkegaard, de modo exemplar, Johannes, o sedutor, descrito em o Diário de um sedutor. Dessa forma, ambos os personagens estão situados na imediatidade sem o recurso à mediação conceitual, ou seja, o que os realiza e os satisfaz é a realidade vivida ou pensada e não um conceito, uma definição estética do belo. Nessa definição de estética, revela-se o influxo do romantismo não somente sobre o pensamento de Kierkegaard (Johannes), mas também sobre a ficção de Oscar Wilde, mais precisamente, sobre o seu personagem, Dorian Gray.

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206 Por outro lado, afirma-se, geralmente, que a obra de Kierkegaard é difícil de ser circunscrita. Nela, encontramos um pouco de tudo: discursos teológicos (edificantes), ensaios filosóficos com aparência clássica e textos que podemos chamar de textos literários, entre os quais se encontra o Diário do sedutor. Apesar de suas diferenças discursivas, todos esses discursos articulam uma reflexão sobre a existência, que se quer subjetiva e sem nenhuma contradição interna, podendo ser lidos de um ponto de vista espiritual. Embora possamos reconhecer a diversidade interpretativa da obra de Kierkegaard, o caráter metafísico ou transcendente é a marca maior de sua produção.

Na multifacetada obra kierkegaardiana, o termo relação pode ser definido pela circunstância que procura recolher. Nesse sentido, os exemplos de relação que encontramos são variados e podem ser acompanhados aqui em referência a três momentos distintos: a relação de Johannes com Cordélia, em Diário de um sedutor (1843); a relação do próprio Kierkegaard com Regine Olsen encontrada nas notas dos Papirer (escritos de cunho biográfico) e alhures (possivelmente marcas da escrita autoficcional), ou daquela relação descrita em Repetição, narradas por Constantin Constantius, entre um rapaz e uma moça3. Essas três relações apresentam três figuras de sedutores – figuras masculinas como ápice da relação – que colocam em cena o erotismo e a sedução, por meio da busca do absoluto, tal como Georges Bataille vai propor na sua obra clássica de 1957, O erotismo.

O leitor de Diário de um sedutor depara com um sedutor muito calculista, que procura degustar a sua relação, mostrando que o rompimento é muito mais uma espécie de abandono do que de sacrifício. Do ponto de vista literário, encontramos, nesse personagem, muito mais do que um simples desejo pelo jogo, pelo embuste. Johannes é um erótico que desloca a questão central da sedução (sexo) para a dimensão do próprio erotismo, deixando em aberto a fantasia enquanto expressão da linguagem. Além disso, o sedutor de Diário não é descrito como personagem frívolo, mas como sedutor intelectualizado: todo o seu zelo na planificação e nos registros das paixões e das emoções prova, às expensas, o encantamento de Cordélia. Em boa medida, podemos qualificar Johannes como sedutor espiritual.

Para além do jogo, se nos atemos à forma e ao método dos sedutores românticos, a sedução implica uma boa dose de seriedade (VALLS, 1988). A seriedade requerida aqui reside no fato de que o sedutor se realiza na esfera estética ao concluir a sua tarefa estética por

3 Claro que o sentido semântico dessa palavra não se esgota nesses três momentos que aqui circunscrevemos. Podemos pensar em tantas outras relações: do autor (Kierkegaard) com o seu leitor; sua relação com Hegel; sua relação com a Igreja dinamarquesa etc. O que de fato nos interessa, aqui, é mostrar que a palavra relação possui esse elemento aglutinador, capaz de transformar-se em estrutura toponímica com poder de explicação de fenômenos intrínsecos à interioridade de cada indivíduo e/ou à sua relação.

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207 excelência, que é viver poeticamente. No quadro referente à relação de sedução isso significa, de maneira essencial, o recurso ao erotismo. Para ser senhor da relação, o sedutor torna-se um erótico, sob pena de não conseguir elevar a sua conquista ao nível do religioso. O erotismo é, pois, o dado pelo qual a sedução afirma a sua busca do absoluto, ou melhor, aquilo pelo qual a própria sedução constrói na sua relação com o absoluto. Utilizamos a palavra erotismo, qualificado por Kierkegaard de espiritual, enquanto elemento de ligação entre o estético e o religioso. Esse laço criado pelo erotismo, ligando-se o estético e ao religioso aparece, várias vezes, na obra de Bataille, à medida que o erotismo se apresenta como aspecto da vida interior: “A consciência do erotismo, ou da religião, exige uma experiência pessoal, igual e contraditória, da proibição (interdit) e da transgressão”. (BATAILLE, 1972, p. 40).

Nesse contexto, a experiência erótica aparece como forma de experiência interior, tanto de um personagem-ideia quanto de um indivíduo singular, vivida através de uma relação de sedução. Para Johannes, a sedução é uma forma de superar a história, ou seja, “fazer do amor aquele absoluto ao lado do qual qualquer outra história desaparece”. (KIERKEGAARD, 1970, p. 355). Como podemos notar, trata-se de “construir” ou de “criar” esse absoluto através da sedução e, isso fazendo, desenvolver igualmente o erotismo espiritual com Cordélia. Essa força erótica ativada representa um acúmulo na relação entre o sedutor e a moça seduzida. Essa força erótica, atravessada por emoções intensas – êxtases, angústias, inquietudes – elevam à segunda potência a subjetividade do pensador-tema, a ponto de levar à ruína os limites normativos do geral, para completar o ultrapassamento absoluto para além da esfera ética. Tudo isso se resume, apesar da nossa opção pela interpretação ficcional e menos biográfica de o Diário de um sedutor, no rompimento do noivado e na firme decisão do próprio Kierkegaard de não se casar para não se tornar um cidadão, no sentido hegeliano4.

O transcendente é o elemento que põe em marcha a relação erótica. Como podemos inferir da citação anterior, esse inexplicável se aproxima do “segredo” (dos amantes) e do silêncio (dos místicos). Notemos, nesse passo, que as relações finitas são sustentadas por seduções infinitas. Tal relação, à medida que ultrapassa a simples afetação mútua, excede a construção de valores e de normas que tenta enquadrá-la e exige, consequentemente, um ultrapassamento ou uma recusa da ética. Podemos dizer que tal relação é uma aproximação estética do sagrado definida aqui por meio dos elementos inapreensíveis que fazem parte do

4 Quando da escrita de o Diário de um sedutor, Kierkegaard já havia concluído sua tese em teologia e, em seguida, partido para Berlim. Nesse período, ele também lera a obra Princípios da filosofia do direito (Hegel), da qual a estrutura do sumário se assemelha ao sumário da tese defendida em 1841, de modo invertido (vide O conceito de ironia).

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208 interior da própria relação erótica. Do mesmo modo, a aproximação religiosa do sagrado não pode ser pensada e vivida a não ser enquanto um sentimento, um misto de terror e de fascinação.

Esse devir – responsável, quer dizer esse devir – histórico do homem, parece se ligar de maneira essencial ao acontecimento propriamente cristão de outro segredo, ou mais precisamente de um mistério, o mysterium tremendum: o mistério terrificante, o pavor [l’effroi], o temor [le crainte] e o tremor [le tremblement] do homem cristão na experiência do dom sacrificial. (DERRIDA, 1999, p. 21).

Essa ambivalência pode ser em parte ligada ao fato de que o elemento de risco ou de perigo associado à sedução pode ser estendido tanto à vida, na perspectiva do estádio estético, quanto ao fato de existir religiosamente, ou seja, de viver como testemunho da boa nova, consciente da exigência salvífica. Ao pressupormos que o estético e o religioso se encontram no nível do sagrado – essa esfera ambígua, quase que indefinível –, onde se tende em direção ao próprio sagrado, podemos conceber o risco que lhe é imanente como correspondendo à vertigem e à perda de si. Todavia, de um ponto de vista espiritual, essa de-posição, essa perda da posição de eu, representa, paradoxalmente, um ganho. Em outras palavras, a de-posição é um elemento integrante e necessário de toda busca espiritual, na medida em que nenhuma forma de absoluto, nenhuma dimensão sagrada, pode ser atingida sem uma anulação temporária do eu. Essa anulação temporária do eu, no itinerarium mentis Deum é, fundamentalmente, a dissipação daquilo que o particular contém de geral.

4 A de-posição de Dorian Gray sob o olhar estético de Basil

O mundo da visão artística acerca-se não somente dos elementos temporais e espaciais, mas também dos sentidos, porque, para o observador, espaço, tempo e forma são fatores esteticamente significativos. Em O retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde reafirma o artista como criador de coisas belas e recoloca, sobretudo, o pensamento e a linguagem no patamar de instrumentos representativos da arte. Isso nos leva a entender que aparência e símbolo constituem-se obra de arte, obra que, paradoxalmente, encobre o artista para revelar-se na própria razão de revelar-ser arte. O “retrato” pintado é, pois, obra de arte, arte, por sua vez, que imita a vida, sendo, contudo, incapaz de recriá-la. Compreendemos imitação aqui não em sentido platônico, enquanto mimese, mas criação pictórica, própria da realidade e de suas várias nuanças interpretativas.

O ato de criação artística somente se opera mediante as significações do objeto para o qual se volta a atividade do artista e, se o artista tende a aplicar o seu eu individual no ato da

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209 criação, essa individualidade não lhe é dada como ato determinante da criação, mas é antedada na interdependência entre arte-artista-obra, como definiu Heidegger: “A origem da obra de arte e do artista é a arte”. (HEIDEGGER, 2002, p. 58). Por isso, a semelhança produzida pelo artista é algo ilusório, enganador, simuladora de uma realidade que, de fato, não existe. Nesse sentido, enquanto artífice, o artista joga gratuitamente com os dados da matéria e com a sensibilidade do observador, enredando-a na trama fabricada por sentimentos e emoções, ou apenas, de coisas possíveis. Daí decorre que, diante da representação do mundo artístico, não interessa de fato ao observador saber se o objeto representado existe ou não; o que mais importa é se o artista, respeitando as leis da natureza, tornou a representação possível, através do texto, da pintura, da imagem, do quadro.

A criação, em termos de apreciação estética, depende da sensibilidade do observador e da maneira distinta de como ele exprime a sua impressão sobre a coisa bela, enquanto vivência estética. Vale dizer que os juízos estéticos estão inteiramente conectados com a capacidade de provocar o julgamento, o diálogo expansivo do observador com o mundo dado pelo artista/autor, que reverbera na própria existência do observador. O jogo estético relaciona-se com a livre satisfação dos sentidos provocados no observador ao apreciar, através da leitura ou da observação, determinado aspecto de uma obra. A experiência estética, podemos assim conceber, é representação autônoma, é jogo funcional da imaginação que independe de qualquer fator externo. Ela é o prazer da consciência intimamente ligado ao juízo do gosto, como se a beleza fosse a condição de ser dos próprios objetos.

Para Schiller, o artista deve superar em si os limites do caráter específico de sua arte, ressignificando a própria matéria que elabora. Na obra de arte verdadeiramente bela, o conteúdo – expressão palpável do espírito – deve-se subordinar à forma, à verdadeira liberdade estética. Então, seguindo a linha de raciocínio schilleriana, Dorian Gray, para o olhar de Basil, é a personificação do belo, da arte, é a forma imponente, a imagem que se impõe às expectativas do pintor, sendo, inclusive, muitas vezes, observado de longe, às escondidas. Logo, Dorian Gray se reafirma sobre o domínio artístico de Basil, mas deixa-o livre para imaginar. Basil, com a imaginação livre, joga com a imagem de Gray, aparência estética que é jogo, jogo de aparências, jogo que se distingue da realidade e da verdade. Nesse sentido, o fruir do olhar de Basil ganha autonomia e liberdade. Autonomia e liberdade concebidas e realizadas por intermédio do próprio despertar do impulso lúdico na interioridade do artista, como nos esclarece Schiller.

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210 É claro que aqui só se trata da aparência estética que se distingue da realidade e da verdade – não da aparência lógica que se confunde com essas –, que consequentemente é amada por ser aparência e não porque se possa tomá-la por algo melhor que ela mesma. Somente a primeira é jogo, ao passo que a segunda é mero engano [...] o impulso lúdico se apraz na aparência. (SCHILLER, 2002, p. 130).

Por outro lado, conforme Schopenhauer (2005, p. 286), o conhecimento do belo situa-se simultânea e insitua-separavelmente no sujeito (consciência cognitiva) e na ideia concebida do próprio objeto. Ao definirmos algo por belo, implicitamente, confirmamos que esse algo belo é alvo de nossa observação estética, ou seja, o conteúdo e a forma são, em si mesmos, a expressão da beleza. O belo é atraente ao olhar por despertar admiração, atenção do seu observador. No entanto não é a coisa que é bela. Para Schopenhauer, a beleza é da ordem da ideia, da representação, do juízo que o observador faz dessa coisa em si.

A noção de intuição em Basil, realizada no quadro, através da sua sensibilidade, está em franca oposição à mediação conceitual, realizada pela razão, está muito próximo do conceito de representação schopenhaueriano. Para ele, a observação estética não se submete ao princípio da razão, vincula-se à vontade, recaindo sobre o próprio objeto, ou seja, é a ideia formulada que se prende à apreciação do objeto. Em outras palavras, não é o desenho, não é a forma em si que chama atenção do olhar de Basil; é a expressão, ou poderíamos dizer, a impressão, o significado que o desenho ou a forma adquirem através do olhar. Logo, se Basil tem Dorian Gray como objeto de contemplação estética, não é, exatamente, Gray que o seduz, mas a coisa sedutora é a ideia abstraída, tal como ao sedutor Johannes, o interesse recai sobre o jogo da sedução e não sobre a seduzida, Cordélia. Logo, no quadro pintado e na sedução de Cordélia, encontramos a contemplação do belo através tanto do olhar do pintor quanto do próprio sedutor.

Quanto mais penso nisso mais me apercebo da completa harmonia que existe entre aminha prática e a minha teoria. Pois na minha prática sempre tive a convicção de que, essencialmente, a mulher é apenas aparência. É por isso que, a este respeito, o instante tem sempre uma importância capital, pois o que lhe diz respeito é sempre aparência. (KIERKEGAARD, 1979, p. 96).

Isso posto, O retrato de Dorian Gray carrega em si o toque refinado de ironia, o humor gótico inglês e, distanciado das realidades sociais, reveste-se no jogo subjetivo do espírito, da fantasia intelectual de Oscar Wilde. Se o retrato juntamente com o cinismo do sorriso nele inscrito aflora da imaginação de Wilde, que parte do mundo sombrio da natureza humana, talvez, assim, o próprio autor adquira desenvoltura para, infalivelmente, julgar a vida

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211 que muitos leitores poderiam apenas imaginar na realidade. A interioridade de Dorian Gray, aparentemente contraditória, é a sua forma de ser/habitar o mundo. Semelhante a Johannes, Dorian Gray se deixa levar por seus impulsos estéticos, misturando ingenuidade e cobiça, beleza e erotismo, ao ponto de subverter o real, transformando-o em fantástico que invade a realidade, a sua própria natureza, o seu modo de existir.

Mas a estranha expressão que havia notado no rosto do retrato permanecia nele, mais nítida ainda. A luz ardente e vibrante mostrava traços de crueldade nos cantos da boca, tão claramente como se fosse ele próprio que se olhasse num espelho, depois de haver praticado algum ato repugnante [...] Não era imaginação sua. A coisa era horrivelmente visível. (WILDE, 1972, p. 113).

Realidade ou fantasia? Sonho, verdade ou ilusão? Os acontecimentos vivenciados por Dorian Gray são impossíveis de explicar mediante conceitos, embora algumas teorias científicas sejam sugeridas por Basil, o pintor, para justificarem tais ocorrências: “Não! Isso é impossível. Este aposento é úmido. O mofo se formou sobre a tela. As cores que empreguei continham algum veneno mineral. Digo-lhe que é impossível” (WILDE, 1972, p. 189). Por outro lado, se a intensidade emocional, provocada pela improbabilidade da ocorrência do fantástico ou do ilusório na vida de Gray leva Basil a questionar se o que vira era engano ou enganou-se a sua própria visão, também essa incredulidade reflete na interpretação do leitor, que passa a rechaçar o mundo ficcional criado por Wilde. Contudo a vacilação entre o mundo aparentemente real dos personagens e o mundo empírico do leitor, embora solicite explicações naturais para os fatos, satisfaz-se com a marca do sobrenatural, com as inscrições alegóricas e poéticas oferecidas pela trama por meio da própria evidência do fantástico e do ilusório, já que o pacto de leitura firmado deixa o leitor crédulo das visões evocadas por Dorian Gray frente a seu retrato.

Por outro lado, como afirma Rosset (1989), a duplicação do real, que constitui a estrutura oracular do acontecimento, é considerado o fundamento do discurso filosófico metafísico, de Platão aos nossos dias. Logo, o real, em sua imediatidade, só pode ser admitido e compreendido ao considerar a aparência de outro real, o modelo, a imagem que lhe confere sentido e realidade. Assim sendo, se o duplo parece fisgar a pessoa real em proveito da representação, o interior de Dorian Gray é captado pela réplica. A imagem retratada e emoldurada na tela é o que o apreende na ilusão e adoração de sua beleza, como acontece num processo de autofascinação. O conceito de estética, defendido por Kierkegaard, permite que essa aparente ilusão se torne realidade interior onde o autor/leitor se encontra, processo mútuo de sedução.

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212 Nesse sentido, tanto Dorian Gray quanto Johannes não têm consciência de si mesmos, mas compreendem o jogo/representação/sedução como realidade por excelência. Por isso, ambos se mostram perdidos em si mesmos, angustiados, necessitando do testemunho e dos elogios exteriores, de algo tangível e visível para reconciliar consigo mesmos. Sozinhos, eles não representam nada. Se o retrato ou a sedução não conseguem mais dar vida à sua beleza ou astúcia, o duplo não garante mais a existência do outro, do modelo; deixa, simplesmente, de existir. O que Dorian Gray e Johannes buscam não se encontra duplicado em um espelho, mas na própria interioridade de cada um.

5 Dorian Gray e Johannes: a existência estética como sedução efetiva

A verdadeira existência, verdadeira forma de ser/estar no mundo, para Dorian Gray, é a existência estética. Ele é atraente, tem um poder magnético próprio, um fascínio sedutor que atrai para si as outras pessoas. Nesse sentido, a existência estética descrita por Kierkegaard e vivida por Dorian Gray reside na exterioridade, pois não passa de uma realização da satisfação imediata, porque a estética fixa o indivíduo na imediatidade e na procura do prazer sensual/sensorial, sem que essa imediatidade transborde em costume/hábito (Base da ética kantiana, por exemplo).

Além de ser uma forma de ser/existir no aqui e agora da existência, a estética é compreendida por Kierkegaard como esfera do possível, não do possível concreto, mas do possível enquanto sonho e imaginação. Nessa descrição de estética, a distância entre a arte e a vida é suprimida. O esteta é incapaz de sair do universo dos possíveis que ele propriamente constrói. A estética caracteriza e torna-se personalidade estética, onde, submissa à imaginação, carece e clama por uma existência, para manter-se como paixão de existir. Por isso, em Kierkegaard, a recusa da decisão (escolha) e a recusa ao salto para a esfera ética, enquanto recusa do dever que comanda o tornar-se a si mesmo histórico, é a busca do instantâneo e do transitório, do finito. Nesse sentido, podemos aplicar à estética de Kierkegaard e à literatura de Oscar Wilde, a ideia de arte como criação, organização da finitude.

Em Kierkegaard, que corrobora com tal interpretação, o papel que a estética desempenha a partir dos mitos narrados na primeira parte de A alternativa, em que é descrito o lugar das figuras lendárias, desempenhando um papel de uma existência imaginária, como os personagens de Don Juan e de Fausto, por exemplo. O plano da imaginação não é, portanto, o plano do “pathos da existência”, mas, sim, o lugar do pensamento, da “paixão da e pela possibilidade”, onde tudo muda, mas tudo permanece fictício. Fausto enquanto espírito

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213 persegue na estética kierkegaardiana a trajetória de Don Juan. Em Fausto, o espírito (a linguagem) entra na estética e fracassa: a visão de um saber absoluto não conduz à felicidade, mas à desgraça, ao desespero. Do ponto de vista da sedução, o progresso da estética torna-se claro. Se Don Juan é o sedutor dos sentidos, Fausto seduz pela palavra, portanto, de maneira reflexiva, de maneira imediata, sem o auxílio do concreto. Se Don Juan é uma ideia musical e dispersa na continuidade temporal, Fausto encarna uma ideia histórica: a ponto de cada época possuir seu Fausto.

Por outro lado, Oscar Wilde também dá uma dimensão faustiana à marcante figura de Dorian Gray mediante a presença do diabólico, do desejo de ultrapassar limites e, consequentemente, dos seus questionamentos acerca do destino da alma humana. Para Dorian Gray, a prática do mal, em diversos momentos, era simplesmente o “meio necessário à realização de sua concepção de beleza”. (WILDE, 1972, p. 177), pois é Lord Henry quem encarna o demoníaco, Mefistófelis. Dorian Gray se inscreve no liame do próprio Fausto, ou seja, permanece sempre jovem, à medida que o seu retrato envelhece. A sua beleza não se macula nunca, pois é o rosto pintado na tela que suporta o peso de suas paixões e de seus pecados. Contudo Gray vive sempre estigmatizado, cercado pela angústia de lidar com os seus próprios pensamentos, o que o leva a pagar a pena crucial com a própria vida: Gray mata Basil para, em seguida, destruir o retrato pintado por Basil. Matando o seu criador, Gray mata a si mesmo, destruindo a sua monstruosa alma visível e tudo o que ela, elemento de sedução, significa. Em outras palavras, ao que Dorian Grau deseja colocar fim é o desejo e a ambição pela beleza plena, do prazer erótico associado à ação reflexiva da consciência desdobrada na prática do mal, do experimentalismo através da busca e afirmação de si.

Se a estética repousa sobre as sensações, enquanto uma tonalidade afetiva5, aquele que se abandona a ela tenta desesperadamente preencher uma necessidade ideal. Aquilo que o poeta procura não reside em si mesmo, está fora, no exterior dele. Do mesmo modo, o esteta, na condição de especialista do imediato, se vê condenado à contradição consigo mesmo, visto que procura, na realidade, uma idealidade que não existe, ao procurar na idealidade uma

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Tonalidade afetiva é a tradução portuguesa da palavra alemã Stimmung. As traduções, em geral, concordam com essa tradução e, ao que parece, tem-se firmado como melhor solução. O tradutor espanhol, José Gaos, traduz Stimmung pela expressão “estado de ánimo”.(HEIDEGGER, 1984, p. 151). Márcia Schuback traduz esse termo pela palavra humor e acrescenta à nota 47 da sua tradução: “Não obstante presta-se melhor do que ‘estado de alma’, ‘estado de ânimo’. Para fazer aparecer à conotação musical de voz, a tradução valeu-se igualmente da expressão ‘afinação do humor’, de modo a indicar que o ‘humor’ significa uma estrutura de afinação e sintonização” (HEIDEGGER, 2007, p. 573).Outro tradutor brasileiro, Marco A. Casanova, opta por traduzir Stimmung por “tonalidade afetiva” e acrescenta um elemento a mais. Diz ele: “Heidegger aproveita as variações semânticas do termo alemão para mostrar como a “tonalidade afetiva” não pode ser simplesmente associada com um estado da alma, mas determina sim a totalidade do acontecimento”. (HEIDEGGER, 2003, p. 80, nota 2).

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214 realidade que o contradiz. Resultado: o poeta acaba recusando a realidade, negando sua própria existência finita e abraçando a idealidade, construída ficticiamente. O paradoxo do modo estético da existência é, assim, estabelecido sobre a utopia, que consiste em procurar a idealidade pura para admirar, esquecendo-se da existência, quer dizer, esquecendo-se do outro modo de existência, a vida ética, vivida no tempo como um contínuo e guiada pelo dever moral e pelo compromisso ético.

Em Kierkegaard, o sedutor, Johannes, encarna o limite de toda a sedução e, por fim, o limite do modo de vida estético existencialmente vivido. Por isso, ele é o caso-limite, personificação da estética kierkegaardiana, à medida que ele é o mais cruel inimigo da inocência, o mais temível inimigo dos sentidos e inimigo mortal da imediatidade. Johannes é paradigmático, porque é um sedutor reflexivo e está situado na fronteira da estética e da ética. Johannes decreta a insuficiência da estética, por seu excesso de reflexão, mas não consegue passar à ética, porque carece da realidade. Indo além de Fausto, o sedutor se separa da imediatidade, através da reflexão, sem sair da imediatidade, e acaba reduzido a um mundo fictício: Johannes torna-se vítima da idealidade por ele aspirada, tornando-se um ventríloquo, um pseudo Self, pois vazio e sem unidade. Isso ocorre, porque ele deseja viver outro modo de vida, viver numa esfera superior à esfera estética, mas não renuncia à realidade imediata.

Assim delimitada, a estética se caracteriza pela multiplicidade e pela descontinuidade. Ela é múltipla, dado que se expressa de modo diverso em Kierkegaard: através de vários pseudônimos, através de figuras lendárias e de diversos textos em diversas atmosferas. Ela é múltipla, visto que a sua exposição deve ser adequada à ideia que ela representa, sem a preocupação com a unidade conceitual. Para Kierkegaard, a estética não oferece qualquer influência sobre o real, bem como não aceita nenhum princípio diretor e encontra no elemento sensorial sua correta atmosfera, que é o seu único ponto de contato com o real, carregando em si todas as possibilidades do universo, com descreve Andreas-Salomé:

O amante sente-se invencível e capaz de desafiar o mundo inteiro, como se tivesse de fato conquistado o mundo, nesse profundo amplexo entre o seu próprio ser e qualquer coisa que o atraiu, como se contivesse em si todas as magníficas possibilidades e singularidades do universo. (ANDREAS-SALOMÉ, 2005, p. 18).

Por outro lado, o que se impõe como pano de fundo ao gosto pelo artifício e pelos jogos de sedução é o personagem esteta-sedutor de Kierkegaard, Johannes. Johannes parece, às vezes, se indignar com a natureza feminina ou com o amor de Cordélia que, alternadamente, o perturba, ou parece digno de desdém. Em se tratando das coisas do amor, o

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215 sedutor parece incompreensível, orgulhoso, exigindo de si próprio não acolher as súplicas de Cordélia, já que a exuberância feminina e delicada da moça o incomoda e o faz sentir-se perdido no tempo, talvez, ainda, perdido no próprio jogo do erotismo. A entrega de Cordélia diz respeito a uma totalidade indissociável de fatores, nos quais cada aspecto está em correlação com todos os outros, e cujos resultados mais adversos devem relacionar-se constantemente com o próprio erotismo de Johannes.

6 Conclusão

O retrato de Dorian Gray, enquanto obra de arte, tem o privilégio de ser uma criação única, esteticamente insubstituível. Por um lado, a destruição do quadro, enquanto destruição da obra de Basil, é a garantia da sua originalidade, à medida que a sua obra não pode ser substituída por outra. Por outro lado, o ato de destruir o retrato revela a conciliação de Dorian Gray consigo mesmo. Oscar Wilde e Kierkegaard, devolvem ao leitor a sua própria individualidade, à medida que realizam uma pseudocaptação do leitor ao longo da leitura, mas afirmam, no fundo, uma verdade muito séria: a identidade pessoal é algo intransferível.

Contudo a vida que desponta no retrato, o duplo de Gray, significa, de certa forma, a morte e a renúncia do modelo, que se despoja de si mesmo em benefício de um duplo, de um fantasma cruel, de um espectro chamado beleza. Por isso confrontar-se com o retrato é o mesmo que presenciar a si mesmo, fato que Dorian Gray definitivamente evita. O retrato, então, trancado no porão escuro da casa de Gray ganha dimensão mais que alegórica; representa, sobretudo, a necessidade de Gray em renunciar à própria imagem, porque esta exterioriza tudo o que o personagem de fato representa, o “horrivelmente visível”. Essa verdade que se expressa na obra de arte por meio do retrato de Dorian Gray não é uma verdade que não possa ser acolhida e interpretada pela estética clássica, já que esta é a fruição do ‘belo em si’.

O encontro de Gray consigo mesmo, ou seja, a consciência de si ao destruir o seu próprio duplo, o retrato, encontra eco na proposta estética de Kierkegaard. Para Kierkegaard, a estética está situada na imediatidade e aquém do conceito, pois é uma estética que tem como meta levar o seu fruidor ao encontro de si a si mesmo, com o seu eu real e não com o contentamento das descrições do belo. Ambos, Wilde e Kierkegaard, cada um a seu modo, permitem esse olhar cruzado sobre a construção da subjetividade ao recorrerem ao discurso literário e filosófico. Os dois autores, por intermédio do recurso ao duplo-eu expresso no retrato (Wilde) e por intermédio do pseudônimo (Kierkegaard), realizam a tradução

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216 intersemiótica do eu, no interior da arte, seja lançando mão do erotismo, seja da sedução, elementos presentes na criação artística que se realiza no criador, na criatura e no leitor.

Referências

ANDREAS-SALOMÉ, Lou. Reflexões sobre o problema do amor e o erotismo. Landy, 2005.

BATAILLE, Georges. L’érotisme. Paris: Éditions de Minuit, 1957. DERRIDA, Jacques. Donner la mort. Paris: Galilée, 1999.

HEIDEGGER, M. Caminhos de floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. ______. Ser e tempo. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007. (Tradução revisada)

______. El ser y el tiempo. México: Fondo de Cultura Económica, 1984.

______. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

KIERKEGAARD, Søren. Le journal du séducteur. In: KIERKEGAARD, Søren.

L’alternative. v. 3. Paris: Éditions de l’Orante, 1970.

______. Diário de um sedutor. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Os Pensadores).

ROSSET, Clément. A antinatureza: elementos para uma filosofia trágica. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

SCHOPENHAUER, Artur. O mundo como vontade e como representação. São Paulo: UNESP, 2005

VALLS, Alvaro L. M. Os sedutores românticos: a força e o método. In: RIBEIRO, Renato Janine (org.). A sedução e suas máscaras. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 115-128.

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