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A VIDA POR TRÁS DO PROCESSO

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Academic year: 2021

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* Juiz do Trabalho • tular da VT de Itu, do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região.

A VIDA POR TRÁS DO PROCESSO

Levi Rosa Tomé*

Depois de formado e depois de algumas escolhas profi ssionais inadequadas, tive a sorte de conhecer um verdadeiro sábio. Era um velho advogado, já em fi m de carreira, que além de me ensinar os meandros da advocacia, ensinou-me coisas ainda mais importantes a respeito da própria vida, de como ela era importante e de como um operador do direito poderia torná-la melhor para as pessoas.

Aliás, ensinar era a coisa que melhor ele fazia. Fora professor primário na mocidade, num tempo em que essa era uma das profi ssões mais valorizadas pelo Estado e pela sociedade.

Quando fui aprovado no concurso para ingresso na magistratura trabalhista, ainda inseguro pela novidade e pela com- plexidade das questões a serem enfrentadas, fui tranquilizado pelo velho professor ao me dizer que não deveria temer os novos desafi os, pois o direito era coisa simples - “apenas o bom senso tentando se afl orar pela letra da lei”.

Nunca mais esqueci essas palavras, e até hoje tento colocá-las em prática.

Num determinado momento, designado para substituir um colega em férias numa Junta de Conciliação e Julgamento na região de Sorocaba, tive a oportunidade de constatar que aquelas palavras, ditas há muito tempo, eram de fato verdadeiras e ainda atuais.

Instalada a audiência e apregoadas as partes, compareceram a empregadora reclamada - uma mulher de seus 60 e tantos anos, distinta, alemã radicada no Brasil, que possuía uma chácara de veraneio na região.

Do outro lado o seu ex-caseiro, rapaz ainda jovem, de seus 30 anos, cujo objetivo era receber verbas rescisórias não quitadas.

Como sempre faço, procurei demonstrar às partes as vantagens da conciliação, que elimina o confl ito, otimiza o processo e satisfaz a ambas as partes da melhor maneira possível. E como costumeiramente faço, apresentei uma proposta que achava razoável para a solução da demanda.

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Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, n. 49, 2016 42

Num determinado momento desse meu “discurso”, a recla- mada cochicha com seu advogado, gesticulando com certo nervosismo, até que o causídico resolve solicitar-me a concessão da palavra àquela mulher, que tinha algo a dizer a respeito do acordo proposto.

Concedida a palavra à reclamada, esta dirigiu-se a mim e aos então juízes classistas com as seguintes palavras:

- Senhores, eu concordo com a proposta feita pelo juiz, e se o reclamante aceitar faço o pagamento do valor proposto neste momento, desde que atendida uma única condição. Eu sou uma mulher de certa idade, solteira e sem fi lho. O reclamante tem três fi lhos pequenos, aos quais me afeiçoei como se fossem meus fi lhos ou meus netos. Não suporto a ideia de vê-los longe de mim, pois os vi nascer. A única coisa que peço é a possibilidade de visitá-los com frequência, ou que eles possam me visitar quando quiserem.

Eu fi quei perplexo por alguns instantes. Não estava preparado para aquilo. Nunca pensei em regular visita a menores numa audiência trabalhista. Mas, na mesma medida, também entendi que o confl ito era muito mais complexo do que uma simples rescisão contratual, e que era preciso resolvê-lo.

Pedi às partes que me dessem alguns minutos para “tomar um café”, oportunidade que também elas teriam para tentar “aprimorar”

o acordo.

Confesso que não sabia o que fazer, e voltei à sala de audiências ainda perplexo. Mas nesse momento me lembrei daquelas palavras ditas pelo velho professor: direito é bom senso.

Perguntei ao reclamante se ele concordava com a condição imposta pela reclamada, ao que ele respondeu que não haveria qualquer objeção. Segundo ele, as crianças também sentiam falta da reclamada e também perguntavam por ela. Sabia “separa uma coisa da outra”.

A partir disso, estruturei o acordo trabalhista com os valores avençados, a discriminação das parcelas, as liberações de praxe.

Depois de homologado o acordo trabalhista, fi z constar ao fi nal da ata que a reclamada tinha a intenção de visitar os fi lhos do reclamante, pelos quais nutria grande afeto, e que o reclamante não tinha nenhuma oposição a tais visitas, que poderiam ocorrer todos os fi nais de semana, bastando que a reclamada o avisasse dos dias e dos horários em que queria fazê-lo, com certa antecedência.

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43 Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, n. 49, 2016

Ao fi nal, quando tudo estava “avençado”, a reclamada me perguntou se poderia ir até o seu carro buscar algo para o reclamante, o que prontamente autorizei. Instantes depois a reclamada aparece com uma bicicletinha para entregar ao menino mais novo, que fi zera aniversário por aqueles dias...

Não sei até quando aquele “acordo” perdurou. Espero que para sempre. Mas saí dali com a sensação de que o confl ito da vida, muito maior e mais intenso do que poderia prever o legislador, foi aplacado pelo bom senso.

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