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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO-PUC-SP WASHINGTON LUIS SOUZA

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Academic year: 2019

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WASHINGTON LUIS SOUZA

DA CONDUÇÃO DAS ALMAS AO GOVERNO DA POPULAÇÃO:

ANALÍTICA DO PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DA NOÇÃO DE

GOVERNAMENTALIDADE NA OBRA DE MICHEL FOUCAULT

DOUTORADO EM FILOSOFIA

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DA CONDUÇÃO DAS ALMAS AO GOVERNO DA POPULAÇÃO:

ANALÍTICA DO PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DA NOÇÃO DE

GOVERNAMENTALIDADE NA OBRA DE MICHEL FOUCAULT

Tese apresentada à Banca da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia sob a orientação da Profª Drª Salma Tannus Muchail.

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DA CONDUÇÃO DAS ALMAS AO GOVERNO DA POPULAÇÃO:

ANALÍTICA DO PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DA NOÇÃO DE

GOVERNAMENTALIDADE NA OBRA DE MICHEL FOUCAULT

Aprovado em

Banca Examinadora

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À Salma Tannus Muchail, estimada orientadora, que há mais de uma década, pacientemente guia meu caminho ao encontro da filosofia.

Ao Professor Márcio Alves da Fonseca, profissional exemplar.

Ao Professor Peter Pál Pelbart pelas preciosas observações.

À CAPES pelo apoio financeiro.

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A escolha de um objeto de estudo no interior da trajetória filosófica de Michel Foucault requer alguns cuidados. Quando se trata de pensar seus trabalhos são necessárias explicações sobre opções tomadas, explicitações das demarcações relativas ao conjunto da obra, delimitações dos desdobramentos internos nos períodos recortados e nas obras escolhidas. Dessa forma, o foco de nossa atenção recai sobre um momento de seu percurso intelectual denominado genealógico. No interior desse período, as pesquisas desenvolvidas entre as décadas de 1976 e 1979, mais precisamente, os temas tratados nos cursos ministrados no Collège de France, Segurança, território, população e Nascimento da biopolítica. No conjunto dos diversos eixos temáticos possíveis que estes cursos possam suscitar, a presente tese tem como objetivo apresentar uma leitura em perspectiva que procura delinear, por um recorte político, as linhas de desenvolvimento da noção de governamentalidade, seu entrelaçamento com as diversas formações político-institucionais à constituição do que Foucault

denomina “Estado governamentalizado moderno”. Analisaremos, portanto, os diferentes modelos de governamentalidade estudados por Foucault: a forma arcaica de governamentalidade presente no antigo poder pastoral; a moderna racionalidade governamental posta em funcionamento entre os séculos XVI e XVIII pela razão de Estado; a configuração liberal de governamentalidade concebida em meados do século XVIII às suas inflexões neoliberais contemporâneas exemplificadas pelo modelo alemão e norte americano em meados do século XX.

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The choice of an object of study within the philosophical trajectory of Michel Foucault requires some caution. When it comes to thinking about his works, explanations about options taken, clarification of the demarcations relative to his entire writings, internal division delimitations in the outlined periods and in the chosen works are necessary. So, a moment of his intellectual path, named genealogical, comes into our focus. Within this period, we will focus on the research carried out between 1976 and 1979, specifically the themes dealt with in Michel Foucault's lectures ministered at Collège de France: “The Birth of Biopolitics” and "Security, territory, population". In the set of various possible

thematic axes that these lectures can give rise to, this paper aims to present a reading in perspective aiming to delineate, from a political framework, the development lines of governmentalization concept and its entanglement with the diverse political-institutional formation related to the constitution of what Foucault

calls “Modern governmentalized state”. Therefore, the different models of

governmentality studied by Foucault will be analyzed in this paper. These different models are: the ancient way of governmentality that can be found in the pastoral power; the modern governmental rationality put in work between the sixteenth and the eighteenth century by the reason of State and the liberal configuration of governmentality conceived in the middle of the eighteenth century to its contemporaneous neoliberal inflections which can be exemplified by the German and North American models in the middle of the twentieth century.

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Le choix d´un objet d´étude à l´intérieur de la trajectoire philosophique de Michel Foucault demande certains soins. Quand il s´agit de penser à ses travaux, les explications sur les options prises sont nécessaires, explicitations des démarcations relatives à l´ensemble de l´oeuvre, délimitations des redoublements internes dans les périodes recoupées et dans les oeuvres choisies. Ainsi,que que le centre de notre attention retombe sur un moment de ce parcours intellectuel dénommé généalogique. À l´intérieur de cette période des recherches développées entre les décades de 1976 et 1979, mais précisément, les thèmes traités dans les cours administrés au Collège de France, Sécurité, térritoire, population et Naissance de la biopolitique. Dans l´ensemble des divers axes thématiques possibles que ces cours peuvent susciter, la présente thèse a comme objectif de présenter une lecture en perspective qui recherche à dessiner, par un découpage politique, les lignes de développement de la notion de gouvernementale, son entrelacement avec les diverses formations politiques institutionnelles à la constitution de ce que Foucault dénomme "État gouvernemental moderne". Nous analysons donc les différents modèles du gouvernement étudiés par Foucault: la forme archaique du gouvernement présent dans l´article du pouvoir pastoral: la moderne rationalité gouvernementale mise en fonctionnement entre les siècles XVI et XVII par la raîson de l´État: la configuration liberale du gouvernement conçu à la moitié du siècle XVIII à ses inflexions neo-libérales contemporaines présentes dans les modèles allemand et américain du Nord à la moitié du siècle XX.

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INTRODUÇÃO... 09

1 DO “COMO” DO PODER À BIOPOLÍTICA DA POPULAÇÃO... 17

2 A PASTORAL CRISTÃ COMO TÉCNICA DE GOVERNO... 39

2.1 CARACTERÍSTICAS DO PODER PASTORAL... 43

2.2 O PODER PASTORAL NA ANTIGUIDADE: HEBREUS E GREGOS... 49

2.3 O GOVERNO DO CORPO E DA ALMA: A PASTORAL CRISTÃ COMO TÉCNICA DE GOVERNO... 62

2.4 O PROCESSO DE CRISE DO PASTORADO CRISTÃO... 77

3 GOVERNAMENTALIDADE: A ARTE DO GOVERNO RACIONALIZADO... 99

3.1 DA PASTORAL DAS ALMAS À ARTE DE GOVERNAR... 97

3.2 A ARTE DE GOVERNAR: DO SPECULUM PRINCIPI À PEDAGOGIA DO PRÍNCIPE... 112

3.3 A ECONOMIA COMO PRINCÍPIO DE GOVERNAMENTALIDADE... 123

4 RAZÃO DE ESTADO E LIBERALISMO... 132

4.1 A RAZÃO DE ESTADO... 134

4.1.1 Primeiro conjunto tecnológico: o sistema diplomático-militar. 143 4.1.2 Segundo conjunto tecnológico: a polícia... 146

4.2 O LIBERALISMO... 155

4.2.1 O liberalismo e a critica da razão governamental... 160

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 175

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INTRODUÇÃO

“No fundo, se eu quisesse ter dado ao curso que iniciei este ano um título mais exato, certamente não teria escolhido ‘“Segurança, Território, População”’. O que eu queria fazer agora, se quisesse mesmo, seria uma coisa que eu chamaria de história da ‘governamentalidade’.

(M.Foucault, “Segurança, Território, População”, p.143)”.

O estudo de um filósofo como Michel Foucault traz alguns desafios, sobretudo, porque a totalidade de suas pesquisas ainda não é totalmente conhecida e por tratar-se de um pensador que “nunca parou até o fim da vida de ‘reler’, de tornar a situar a de reinterpretar seus antigos trabalhos à luz dos últimos, numa espécie de reatualização incessante” (FONTANA e BERTANI, 2005, p. 331). Parece que no estilo de suas pesquisas acontecia um progressivo aperfeiçoamento de suas ferramentas teóricas com o estudo de determinados domínios empíricos que, paulatinamente, levavam o autor a acrescentar às suas pesquisas novos elementos e noções para dar conta do material analisado. Como consequência, uma série de desdobramentos teóricos avança de acordo com o material empírico trabalhado. Aquele que deseja analisar o seu pensamento deverá acompanhar, junto com o filósofo, a positividade imposta pelo dado empírico estudado para, apenas ulteriormente, buscar uma conceitualização possível que acompanhe os desenvolvimentos da pesquisa. Esse modo de trabalho justifica, por parte do estudioso de Foucault, um cuidado todo especial com toda a sua trajetória filosófica.

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poderíamos chamar de pensamento “transversal”, ou seja, ele perpassa, atravessa campos de conhecimento dos mais diversos: filosofia, história, direito, sociologia, psicologia. Além de trabalhar em um ambiente de confluências de várias áreas de pensamentos, sua trajetória filosófica é controversa por conta de seus movimentos internos. O filósofo muda algumas vezes a orientação de suas pesquisas durante a sua trajetória. Se a questão do sujeito parece constituir o pano de fundo de suas preocupações (o problema da ontologia do presente), ao longo de seu percurso, esse objeto sofre repartições, segundo estudiosos três, mais exatamente: em um primeiro instante é colocado o problema da relação entre o sujeito com o saber; em um segundo a relação sujeito e o poder; e por fim, o sujeito na sua relação consigo mesmo ( MUCHAIL, 2004, p. 9-10).

Falemos um pouco mais a respeito desses três momentos.

No conjunto da obra de Michel Foucault, os trabalhos realizados num primeiro momento denominado "arqueológico", denotam uma preocupação em analisar as condições que possibilitaram o aparecimento, na transição do século XVIII ao XIX, de saberes que têm por objeto o homem. Nestes trabalhos desenvolve pesquisas sobre aqueles saberes que se constituem historicamente como ciências humanas. Além do seu processo de emergência, pensa também como esses saberes são capazes de modelar a sociedade pela criação de tipos sociais. A psiquiatria e a medicina, por exemplo, estabeleceram respectivamente, os critérios que criam o doente mental e o mentalmente são, o doente e o sadio, assim como o conjunto de procedimentos de tratamento que conduziriam os indivíduos do estado patológico à normalidade1. Ao término desta trajetória de estudos a questão do governo e da política é introduzida como uma espécie de consequência da "notável lógica interna" apresentada por Foucault em suas análises (GAUTIER, 1996, p. 20). Nas pesquisas realizadas num segundo momento denominado "genealógico", Michel Foucault acentua a questão do poder em suas pesquisas e daquilo que descreve como tecnologias de poder político ou técnicas de normalização, apresentando e verticalizando as noções de poder disciplinar e de biopoder, tomadas como formas de exercício do poder

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político, conjuntamente responsáveis pela objetivação e subjetivação dos indivíduos e a administração da população. Em um terceiro e último instante,

denominado “ético”, ocupa-se do governo de si e dos outros durante a Antiguidade clássica, helenística e romana, até as primeiras formas de poder pastoral com o advento do cristianismo, particularmente, o monasticismo cenobítico.

Pelo dito, quando se trata de pensar o trabalho de Michel Foucault, alguns esclarecimentos se fazem necessários. São importantes explicações sobre opções tomadas, explicitações das demarcações relativas ao conjunto da obra, delimitações dos desdobramentos internos nos períodos recortados e nas obras escolhidas.

Portanto, o foco de nossa atenção neste trabalho está depositado no segundo momento elencado e, mais especificamente, sobre os estudos e reflexões desenvolvidos nos cursos ministrados por Foucault no Collège de France, durante os anos de 1976 a 1979, período em que a análise da noção de poder ganha um novo desdobramento e passa a ser pensada pela ótica da racionalidade política a partir da introdução do conceito de governo. Neste momento, suas reflexões sobre o poder transitam de um exame mais específico da disciplina para uma analítica criteriosa de uma tecnologia de poder, responsável pela administração, gerenciamento e governo da vida humana denominada de biopolítica. Sobre esse deslizamento teórico Fonseca coloca que:

Neste sentido, pode-se dizer que “Segurança, Território, População” e

“Nascimento da Biopolítica” encerram um deslocamento importante no interior da analítica do poder realizada por Foucault.

Em um primeiro momento desta analítica do poder, com a noção de poder disciplinador-normalizador, Foucault realiza um primeiro deslocamento, que se dá em relação a uma forma de poder prioritariamente referida quer às noções de ‘legalidade’ e de ‘ordem’(próprias ao modelo contratualista), quer às noções de

‘dominação’ e ‘ideologia’(próprias do pensamento marxista). Com esse primeiro deslocamento, no lugar de apoiar-se nas noções de “lei”,

“ordem” e “ideologia dominante” a fim de pensar as relações entre os domínios de formação de saber, dos mecanismos e das formas de subjetivação, Foucault se apoiará no eixo ‘saber-poder’.

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poder apareceriam como ‘matrizes’ das formações de saber e das formas de subjetivação (FONSECA, 2006, p. 156-157).

Desse modo, a partir do curso “Segurança, Território, População” (1977-1978) os estudos de Foucault sofrem uma inclinação que muda o teor das pesquisas, ao mesmo tempo em que mantêm uma estreita relação com os temas tratados nos anos anteriores. A partir desse ano Foucault volta sua atenção para as questões relativas à temática do governo em suas diferentes formas. Em seu sentido mais amplo, a noção de governo deve ser entendida tal como era aceita no século XVI, ou seja, quando não se referia apenas às estruturas políticas e à gestão dos Estados, "mas designava a maneira de dirigir a conduta dos indivíduos ou dos grupos: governo das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos doentes". O que significava que ele não agia apenas sob "formas instituídas e legítimas de sujeição política ou econômica"; pelo contrário, é preciso tomá-lo como o conjunto de "modos de ação mais ou menos refletidos e calculados, porém todos destinados a agir sobre as possibilidades de ação dos indivíduos. Governar, neste sentido é estruturar o eventual campo de ação dos outros" (FOUCAULT, 1995, p. 244). Por outro lado, discorre sobre a atuação do Estado ou do governo no sentido da ação política, por meio dos métodos, técnicas e mecanismos de que este dispõe para gerenciar um Estado ou uma região. Neste aspecto, a ação político-governamental liga-se à aplicação prática ou procedimentos administrativos efetuados pela racionalidade política tendo em vista um melhor ordenamento das relações de convivência e um maior controle sobre as pessoas e coisas que circulam dentro do território que está sob a alçada de um poder estatal.

Por meio da análise foucaultiana é possível identificar que o conceito de governo passou por uma série de mudanças. Até o final do Renascimento, este conceito se referia tanto à gestão política e do Estado como também à maneira de dirigir a conduta dos indivíduos ou dos grupos, ou seja, governar a família, as crianças, as almas, a comunidade. Na modernidade, a expressão “governar”

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foram progressivamente governamentalizadas, ou seja, elaboradas, racionalizadas e centralizadas na forma ou sob a caução das instituições do Estado" (FOUCAULT, 1995, p. 247). Dito de outro modo, a ação estatal na modernidade é, segundo Foucault, marcada pela "governamentalidade"2 , ou seja, faceta do exercício do poder político constituída pelo conjunto das instituições, conjunto de práticas gerenciadoras e conjunto de saberes que possuem como objeto privilegiado a população.

Segundo Fonseca, a introdução da noção de governamentalidade marca uma segunda inflexão no interior da analítica do poder:

Com a noção de governamentalidade tem lugar um segundo deslocamento, que vai agora do eixo ‘saber-poder’ para a ideia de

‘governo dos homens’. Com está noção, a relação entre os tres domínios

– saber, poder, subjetivação – poderá ser pensada de modo diferente.Não se trata mais de mostrar como as formações de saber e as formações de subjetivação sâo produzidas pelos mecanismos de poder, mas sim pensá-los como tres domínios que se articulam no interior de

determinada ‘arte de governar’.

Assim, “Segurança, Território, População” e “Nascimento da Biopolítica”

são os trabalhos mais importantes de Foucault para o estudo do

‘governo’. E é no contexto mais amplo das discussões sobre os mecanismos de poder que constituem a biopolítica que este tema será desenvolvido. (FONSECA, 2006, p. 157)

Nas análises de Foucault, concomitante ao processo de governamentalização das práticas políticas desenvolveram-se as condições que possibilitaram a constituição do Estado governamentalizado moderno. Um longo caminho percorreu-se entre o Estado de justiça feudal, passando pelo Estado administrativo, dos séculos XV e XVI, até o Estado governamental. Este último, representaria a inauguração de uma nova forma político-institucional de poder que se desenvolveria de modo singular e multifacetado. O poder do Estado caracterizar-se-ia pelo fato de ser tanto individualizante quanto totalizante,

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resultante da combinação de "técnicas de individualização e dos procedimentos de totalização" (FOUCAULT, 1995, p. 236).

A formação do Estado moderno no Ocidente e seu gradativo fortalecimento, segundo Foucault, se fundaria a partir de três matrizes: em uma ideia cristã de poder pastoral que se encarregaria dos indivíduos, conduzindo-os em direção à salvação; na ideia de razão de Estado que surgiria no século XVI, questão central quando se considera o fortalecimento estatal; e, por fim, em uma série de instrumentos estatais que formariam nos séculos XVII e XVIII o dispositivo de polícia. O entrelaçamento destas três matrizes levaria à constituição de uma noção de governo exercida por meio de práticas de condução e direção dos indivíduos e da população e a formação de um modelo político-institucional. Portanto, a ocorrência da governamentalização do Estado foi possível pelo concurso entre o poder pastoral, o dispositivo diplomático-militar e a tecnologia de polícia (FOUCAULT, 2004a, p. 112), fenômeno que permitiu a sobrevivência do Estado frente às complexas modificações políticas e econômicas ocorridas entre os séculos XVII e XIX.

A partir das reflexões sobre estes temas, Foucault abre um novo domínio de estudos pela introdução do tema do liberalismo. Analisa, a partir de dois exemplos contemporâneos, os “tipos de racionalidade que atuam nos procedimentos através dos quais se dirige a conduta dos homens por meio da

administração estatal”, a saber: o modelo liberal alemão das décadas de 1948 a 1962 e o modelo liberal estadunidense da escola de Chicago (FOUCAULT, 1994, p. 94-95).

Posto isso, para compreender esse processo, partiremos da leitura dos cursos apresentados por Foucault no Collège de France: “Segurança, Território, População” (1977-1978) e “Nascimento da Biopolítica” (1978-1979), trabalhos em que o filósofo analisa de modo mais sistematizado as práticas governamentais e a criação de uma racionalidade política que, para além do modelo jurídico, incide sobre a população e o território (muito mais sobre aquela do que sobre este), tendo em vista a instalação da segurança, do bem-estar, da promoção da vida, da higiene. É no âmbito do estudo destas questões que Foucault passa a trabalhar sobre a governamentalidade e a formação do Estado moderno.

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possam suscitar, a presente tese tem como objetivo apresentar uma leitura em perspectiva que procura delinear, por um recorte político, as linhas de desenvolvimento da noção de governamentalidade, assim como seu entrelaçamento com as formações político-institucionais até a constituição do que

Foucault denomina “Estado governamentalizado moderno”.

Para tanto, no primeiro capítulo, partimos de uma análise da noção de poder em Foucault para compreendermos como se operaram as transformações teóricas no interior da genealogia do poder em Foucault que introduziram os temas do governo, condução, a direção e o cuidado dos outros. Partimos da hipótese de que a emergência do problema político da população opera uma transformação nos estudos sobre a "microfísica do poder” e estende o campo de análise genealógico para as práticas de "governo dos homens".

No segundo capítulo, trabalhamos a compreensão de Foucault sobre o desenvolvimento do poder pastoral. Segundo ele, as práticas racionalizadas de governo no Ocidente têm como origem remota o poder pastoral concebido pelos hebreus, desenvolvido pelos antigos cristãos e utilizado largamente durante toda a Idade Média. Após passar por um período de crise, essa forma arcaica de governamentalidade culminou na moderna racionalidade governamental posta em funcionamento do século XVI ao século XVIII pela razão de Estado.

No terceiro capítulo passamos ao estudo da análise foucaultiana do processo de formação da governamentalidade como grade de inteligibilidade para se pensar a racionalidade política no século XVI. Para tanto, primeiramente buscamos entender o processo de passagem de uma prática religiosa de pastoral das almas para o exercício político da arte de governar. Dentro da análise sobre a arte de governar vemos como se efetua a formação de uma pedagogia do príncipe a partir do antigo modelo do "espelho dos príncipes", onde o bom governo era aquele realizado por um governante preparado segundo as virtudes necessárias. Com o surgimento do Estado Moderno e suas práticas racionais de governo entre as quais as técnicas policiais de controle da população, de estatística dos recursos, de fiscalização sobre a circulação de bens, alimentos e pessoas, etc. É dentro deste contexto que emerge a economia como domínio de conhecimento e como princípio de governamentalidade.

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governamentalidade. Seguindo o princípio de que "nunca se governa demais", ocorre do século XVI ao século XVIII uma intensificação das práticas estatais de governo que tinham como objetivo a maximização do poder do Estado. Veremos como essa majoração da potência do Estado ocorre devido à articulação entre o sistema econômico mercantilista, o mecanismo de polícia e o aparelho diplomático-militar. Por volta da metade do século XVIII, devido à atuação dos economistas liberais e à introdução da economia política, começa a ganhar corpo a crítica interna da razão governamental. O objetivo é a modulação dos limites da racionalidade política tendo em vista o princípio de implantação de um "governo

econômico e frugal”. É o início da governamentalidade liberal, analisada por Foucault a partir dos exemplos dos neoliberalismos contemporâneos dos alemães e norte-americanos no século XX.

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1 D

O “COMO” DO PODER

À BIOPOLÍTICA DA POPULAÇÃO

Entre todos os assuntos e problemáticas pertencentes ao conjunto de estudos de Michel Foucault, o poder, certamente, ocupa um lugar no mínimo curioso. Primeiro porque não existe nenhuma obra deste autor que sistematize de forma densa, metódica e acabada a questão do poder, e que tenha em vista a construção de bases suficientes para a formulação de uma teoria geral do poder.

Em segundo lugar devido ao fato de que, apesar de não receber tratamento exclusivo em algum de seus estudos, o poder foi um de seus objetos de estudo mais desenvolvidos em toda a sua trajetória filosófica. A temática já está presente na década de 1960 quando pensa as questões relativas ao aparecimento dos saberes que possuem como objeto o homem. Pode ser verificada nos estudos sobre das relações pode/saber realizados no início da década de 1970, na análise da governamentalidade e “d’As artes de governar”, assim como nas pesquisas sobre a constituição do sujeito ético desenvolvidas até 1984.

Segundo Revel:

Foucault nunca trata do poder como uma entidade coerente, unitária, e estável, mas de ‘relações de poder’ que supõem condições históricas de

emergência complexas e que implicam efeitos múltiplos, compreendidos fora do que a análise filosófica identifica tradicionalmente como o campo do poder [...] suas análises efetuam dois deslocamentos notáveis: se é verdade que não há poder que nao seja exercido uns sobre os outros – ‘os uns’ e ‘os outros’ nao estando nunca fixados num papel, mas

sucessiva, e até simutaneamente, inseridos em cada um dos pólos da relação -, então a genealogia do poder é indissociavel de uma história da subjetividade; se o poder não existe senão em ato, então é à questão do

‘como’ que retorna para analisar suas modalidades e exercício, isto é,

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No conjunto dos livros publicados e cursos ministrados no momento genealógico, o texto “Vigiar e punir” (1975) ocupa um lugar privilegiado no estudo do poder em ato ou do “como” do poder. Foucault constata em suas pesquisas que as práticas de poder político possuíam maneiras peculiares de aplicação durante o clacissismo como o uso da tortura, da masmorra, da punição corporal ostensiva e pública. Estas práticas tiveram vida longa, de modo que permaneceram mais ou menos inalteradas até o início da modernidade. Contudo, observa que em um curto espaço de tempo, mais precisamente entre os séculos XVIII e XIX, ocorreram modificações que alteraram para sempre a face do poder. A técnica de exercício do poder privilegiada a partir do século XIX é a disciplinar que atua individualizando e sujeitando os indivíduos. Podemos falar, no século XIX, em um modelo social disciplinar (MACHADO, 2005, p. 124). Sobre isso coloca Muchail:

Caracterizando-se, principalmente, como modo de organizar o espaço, de controlar o tempo, de vigiar e registrar continuamente o indivíduo e sua conduta, a sociedade disciplinar deu lugar ao nascimento de determinados saberes (os das chamadas ciências humanas), para os

quais o ‘exame’ é o modelo prioritário de estabelecimento da verdade;

pelo ‘exame’ instaura-se, igualmente, um modo de poder em que a sujeição não se faz apenas na forma negativa da repressão, mas, sobretudo, ao modo sutil do adestramento, da produção positiva de

comportamentos que definem o ‘indivíduo’ ou o que ‘deve’ ele ser segundo o padrão da ‘normalidade’ (MUCHAIL, 2004, p. 61-62).

Sobre a intenção geral da obra, Araújo afirma:

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poderes controladores cujo resultado é o homem cognoscível pela medicina, pela psicologia. Técnicas punitivas, mecanismos e dispositivos reguladores e controladores nas escolas, prisões, fábricas, quartéis e hospitais produziriam a sociedade disciplinar (ARAÚJO, 2008, p. 73).

Contudo, se os estudos relativos ao poder, nas décadas de 1974/75, tinham como foco uma análise do exercício das tecnologias de poder, na transição do clacissismo à modernidade, a partir de 1976, podemos falar em mudança. Se o objeto privilegiado da técnica disciplinar é o corpo molar do indivíduo, com o lançamento de Vontade de saber, Foucault articulará com a disciplina outra tecnologia, que será destacada nos anos subsequentes. Trata-se de uma prática que tem como objeto peculiar a ação sobre o corpo molar da população, falamos do biopoder. Foucault afirma ao final de “A Vontade de

Saber”, dintinguindo o poder disciplinar do biopoder:

O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta de metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos; a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma biopolítica da população(...) (FOUCAULT, vontade de saber, p. 131)

Foucault se depara, na segunda metade do século XVIII, com o surgimento de uma série de "novos controles reguladores" que incidem não mais somente sobre corpos individualizados, mas sobre o conjunto complexo e heterogêneo de indivíduos que formam a população (MACHADO, 2005, p. 124).3

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Evidencia-se, portanto, um deslizamento no interior da genealogia do poder, de uma análise do poder - expresso por meio do trabalho relativo às tecnologias que atuam sobre o corpo dos indivíduos -, para um estudo sobre as práticas de governo e mais particularmente sobre uma administração biopolítica da população.

Qual a razão desta mudança teórica?

Acreditamos que Michel Foucault considerou o conjunto das transformações políticas, econômicas, sociais, culturais na transição do classicismo à modernidade, entretanto, parece-nos que um acontecimento4 foi fundamental para tal inflexão teórica: a assunção de um “personagem político

absolutamente novo”, cujo “aparecimento notável” teria se dado no século XVIII: a

“população.” (FONSECA, 2006, p. 157).

Precisando as origens da tomada do corpo molar da população como objeto da biopolítica, Foucault coloca:

Qual é a base para está transformação? Genericamente, pode-se dizer

que ela se relacionou com a preservação e conservação da ‘força de trabalho’. Mas, indubitavelmente, o problema é mais amplo. Ele indiscutivelmente se refere aos efeitos políticos e econômicos da acumulação de homens. O grande crescimento demográfico do século XVIII na Europa Ocidental, a necessidade de coordenação e de integração ao aparato de produção e a urgência de controlá-lo, com mecanismos de poder mais sofisticados e adequados, possibilitaram a emergência da ‘população’, (com suas variedades numéricas de espaço

o desaparecimento de um modelo para que o outro se instale. Pelo contrário, é sobre bases já firmadas e fazendo uso das modificações exigidas sobre cada um desses modelos que foi possível a implantação de novas formas de poder.O poder punitivo desenvolveu-se para uma nova anatomia política em que o corpo tornou-se a personagem principal. O corpo individualizado é tomado pelos mecanismos disciplinares que visam em última instância à formação de corpos úteis e dóceis. Ao mesmo tempo em que era gestada uma nova conformação do poder que expande sua atenção sobre o conjunto da população, o biopoder.

4 Para Foucault, o acontecimento se caracteriza por deflagrar no momento do seu aparecimento uma singularidade única, aguda e não necessária. Essa peculiaridade do acontecimento faz com que, não só criem, no momento de sua irrupção, comportamentos, instituições, discursos e práticas, mas também que ultrapasse os limites históricos e se faça presente hoje. Presente, não porque explique de certo modo o hoje - o que daria margem para interpretação da atualidade do acontecimento como uma meta-história de significações ideais -, mas porque o modo como o presente se configura reativa o acontecimento passado, dando-lhe atualidade, ou seja, seu sentido, as questões que estavam presentes no passado são, ainda, aquelas que inquietam o pensamento hoje. Sobre a noção de acontecimento em Foucault ver:FOUCAULT, Michel.

“Sexualité et pouvoir”. In Dits et Écrits, Paris, Gallimard, Vol. 3. texte n.233. Tradução brasileira:

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e cronologia, longevidade e saúde), emergisse não só como problema, mas como um objeto de observação, análise, intervenção, modificação, etc. Um projeto de tecnologia da população começa a ser desenhado: estimativas demográficas, o calcúlo de pirâmides etárias, diferentes expectativas de vida e mortalidade, estudos das recíprocas relações entre crescimento da população e o crescimento da riqueza, medidas de incentivo ao casamento e procriação, desenvolvimentode formas de educação e treinamento profissional ( FOUCAULT, 1979, p. 198).

Sobre a importância da população a partir do século XVII, Foucault afirma:

As coisas começam a mudar com o século XVII, época que se caracterizou pelo cameralismo e pelo mercantilismo que não são tanto doutrinas econômicas quanto uma nova maneira de colocar os problemas do governo. Tornaremos, se for o caso, a esse ponto. Em todo caso, para os mercantilistas do século XVII, a população ja não aparece simplesmente como uma característica positica que pode figurar nos emblemas do poder soberano, mas aparece no interior de uma dinâmica, ou melhor, não no interior, mas no princípio mesmo de uma dinâmica – da dinâmica do poder do Estado e do soberano. A população é um elemento fundamental, isto é, um elemento que condiciona todos os outros. Condiciona por que? Porque a população fornece braços para agricultura, isto é, garante a abundância das colheitas (...) Ela também fornece braços para as manufaturas, isto é, permite por conseguinte dispensar, tanto quanto possível, as importações e tudo que seria necessário pagar em boa moeda, em ouro, ou em prata, aos países estrangeiros. [Enfim,] a população é um elemento fundamental na dinâmica do poder dos Estados, porque garante, no interior do próprio Estado, toda uma concorrência entre a mão-de –obra possível, o que, obviamente assegura salários baixos. Baixo salário quer dizer preço baixo das mercadorias produzidas e possibilidade de exportação, donde nova garantia do poder do Estado.

A população estar assim na base tanto da riqueza como do poder do Estado é algo que só pode ocorrer, claro, se ela é enquadrada por todo um aparato regulamentar (...) Em suma, todo um aparato que vai fazer dessa população, considerada portanto princípio, raiz, de certo modo do poder e da riqueza do Estado, que vai garantir que essa população trabalhará como convier, onde convier e em que convier. Em outras palavras, era a população como força produtiva, no sentido estrito do termo [...] (FOUCAULT, 2004a, p. 90-91).

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procedimentos para serem solucionadas. O conhecimento de sujeitos individualizados, tal como o poder disciplinar proporciona, não é suficiente para que as ações políticas possam resolver assuntos como: a escassez de alimentos devido à baixa produção de cereais ou ao aumento exponencial da população, a propagação de doenças por meio do deslocamento de pessoas infectadas ou devido à insalubridade das cidades, etc.5

Para que estes problemas tenham a devida atenção o poder se desloca do tratamento de corpos específicos tomados como máquinas e avança para a análise de uma "gestão global da vida, posta em funcionamento mediante uma biopolítica da população, na qual o corpo humano é considerado elemento de uma espécie (sofrendo a incidência, basicamente, das práticas de normalização)" (MAIA, 2003, p. 78). O “Nascimento da Biopolítica” como novo cálculo das práticas racionalizadas de governo no final do século XVIII não significou a imediata eliminação da soberania. Dito de outro modo, para Foucault é preciso ler nesse momento o ganho em perspicácia e intensidade que fez com que "o problema da soberania" se tornasse "mais agudo do que nunca" (FOUCAULT, 2008a, p. 142), assim como, não se trata da substituição das práticas disciplinares e de controle dos corpos individualizados, mas seu ajuste dentro de um quadro político e governamental mais amplo que tem como objetivo a administração da população.

Os mecanismos e procedimentos usados pelo poder soberano e pelo poder disciplinar continuam tendo sua importância, bem como o saber extraído dos indivíduos particulares. Mas somente estes não eram suficientes para se administrar o complexo conjunto de indivíduos tomados sob a forma de uma espécie, de uma população. Nesse momento começam a trabalhar em conjunto todos os dispositivos e procedimentos racionalizados de uma gestão política da vida, seja no âmbito micro ou macro, como: os dispositivos disciplinares, os dispositivos de segurança, os exames, a aplicação de normas, o cálculo

5 Foucault desenvolve estas questões principalmente nas três primeiras aulas do curso

“Segurança, Território, População” onde discorre sobre a implantação de alguns elementos absolutamente novos no cálculo da governamentalidade estatal. Nestas aulas apresenta alguns

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estatístico de todos os aspectos concernentes à população como natalidade, mortalidade, doenças, alimentação, etc.

O ponto de partida do empreendimento genealógico de Foucault foi a descoberta dos micro-poderes disciplinares surgidos no século XVII que visavam o controle e o conhecimento máximo dos corpos individualizados tendo em vista a utilização destes para algum fim. Concomitante ao surgimento das disciplinas, gradativamente foi tomando forma uma série de instituições sociais como a prisão, o exército, a escola, a fábrica, o hospital, etc. A elaboração dos conceitos de biopoder e biopolítica se concretizou quando Foucault verificou o aparecimento ao final do século XVIII e século XIX, de um poder que não se contentava com a aplicação de disciplinas e normas sobre corpos individualizados situados em instituições sociais. Trata-se, portanto, de uma nova tecnologia de poder que tem como objeto privilegiado a administração da vida e do corpo da população.

Pelo dito, com a assunção da população como problema político identificamos, por consequência, alterações no cenário teórico da genealogia do poder, ou seja, a emergência da população operou a passagem da analíse das práticas e instituições que tinham como objeto singular o corpo dos indivíduos às práticas de governo, a saber: o estudo da formação de um conjunto de instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer essa forma de poder que tem como objeto privilegiado população.

Para compreendermos melhor essas mudanças acompanhemos as reflexões desenvolvidas por Foucault no curso do Collège de France, Em “Defesa

da Sociedade” (1975-1976) e no volume I da “História da Sexualidade” - vontade de saber (1976). Mais precisamente, analisaremos a aula de 17/03/1976 do curso Em “Defesa da Sociedade” e o último capítulo do primeiro volume da “História da Sexualidade” - “A Vontade de Saber”, sob título "Direito de morte e poder sobre a vida". Nestes textos Foucault fez uso de reflexões específicas e passou por caminhos distintos para, enfim, chegar às noções de biopolítica e biopoder. Na leiturados textos elencados é possível verificar uma patente complementaridade quando são analisados dentro do conjunto analítico do pensamento de Foucault6.

6O uso destes conceitos não se restringe aos textos mencionados já que Foucault referiu-se a eles em outros momentos. A título de exemplo podemos dizer que o conceito de biopolítica já havia sido usado por Foucault no ano de 1974 em O Nascimento da Medicina Social, segunda palestra

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O curso ““Em defesa da sociedade””, proferido entre a publicação de “Vigiar e Punir” (fevereiro de 1975) e o primeiro volume da “História da Sexualidade”

(outubro de 1976), ocupa uma posição especial dentro do conjunto de pesquisas e estruturação do pensamento de Foucault. Nesse curso, realizado de 07 de janeiro a 17 de março de 1976, Foucault faz a revisão de seus estudos até então tendo em vista traçar novas linhas de pesquisas para os anos seguintes. É assim que logo na primeira aula o filósofo efetua uma explanação sobre a situação de suas pesquisas desde seu ingresso no Collège de France apresenta o que propõe trabalhar ao longo do curso.

Quando traça a situação de suas pesquisas desde o início dos anos 70 Foucault deixa transparecer a seus ouvintes certa insatisfação com o caráter fragmentário, repetitivo e descontínuo que elas tomaram até então. Apesar da proximidade dos assuntos e da existência de diversos pontos de contato, elas não chegavam a formar um conjunto coerente, muito menos ter uma continuidade. Os temas estudados nos cursos - que por sinal seriam retomados em livros publicados nesta época, como Vigiar e Punir e “A Vontade de Saber”- giram em torno da história do procedimento penal, da evolução e institucionalização da psiquiatria no século XIX, de considerações sobre a sofística ou sobre a moeda grega, da Inquisição durante a Idade Média, da história da sexualidade, quer seja através das práticas da confissão no século XVII e/ou por meio da análise dos controles da sexualidade infantil nos séculos XVIII e XIX. Para Foucault, estes assuntos, tratados nos cursos “Teoria e Instituições Penais” (1971-1972), “A Sociedade Punitiva” (1972-1973), “O Poder Psiquiátrico” (1973-1974) e “Os Anormais” (1974-1975), são temáticas inconclusas que compunham pesquisas marcadamente "fragmentárias" que não

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chegaram a alcançar seu objetivo, e nem mesmo tiveram sequência. Todos estes cursos formam um grupo de:

Pesquisas dispersas e, ao mesmo tempo, muito repetitivas, que caíam no mesmo ramerrão, nos mesmos temas, nos mesmos conceitos. [...] Tudo isso marca passo, não avança; tudo isso se repete e não está amarrado. No fundo, tudo isso não pára de dizer a mesma coisa e, contudo, talvez, não diga nada; tudo isso se entrecruza numa embrulhada pouco decifrável, que não se organiza muito; em suma, como se diz, não dá resultado (FOUCAULT, 1999, p. 06).

Com essa espécie de balanço de seu trabalho Foucault aponta de modo mais preciso que a temática de seu interesse será, a partir de então, a questão do poder. De posse deste tema é formulada a pergunta geral que deseja investigar desde as décadas de 1970-1971: como analisar o poder? Por que meios? Através de que mecanismos? Nesse momento os temas da guerra e da luta passam a ser colocados como possíveis meios de análise da questão sobre o "como do poder". A introdução destes mecanismos analíticos possibilita a análise do poder não mais como objeto de troca contratual, mas como elemento articulador das relações conflitantes existentes entre os homens. É nesse sentido que no curso Em “Defesa da Sociedade” Foucault adota o modelo da guerra para se pensar o poder, tomando como ponto de partida o exame de alguns teóricos da guerra como Maquiavel e Hobbes, especialmente este último de quem a ideia de "guerra de todos contra todos" como fundamento das relações políticas é colocada em questionamento. Na interpretação de Foucault, Hobbes não trata de batalhas reais, mas representações calculadas que manifestam a vontade de domínio e de intimidação sobre os outros. A "guerra de todos contra todos" seria mais uma guerra de igualdade desenrolada no campo das representações, e não na ordem do enfrentamento real de forças (FOUCAULT, 1999, p. 102-114). Partindo dessa interpretação da noção de guerra em Hobbes, Foucault chega à análise dos discursos sobre a guerra de raças e as narrativas de conquistas como quadro geral da genealogia do biopoder e do racismo de Estado.

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luta/guerra, ou melhor, da constituição das noções de raça e de guerra entre raças para analisar as relações de poder.

Contudo, para chegar ao exame da guerra de raças é preciso levar em conta a ocorrência de uma espécie de "dialetização interna", de "emburguesamento" do discurso histórico no século XVIII, que consiste no deslocamento do papel da guerra em seu interior. Ao invés de ser tomada como constitutiva da história, a guerra passa a ser vista como protetora e conservadora da sociedade; de "condição de existência da sociedade e das relações políticas" passou a ser a "condição de sua sobrevivência em suas relações políticas". Desse modo, vai aparecer nesse momento "a ideia de uma guerra interna como

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uma única batalha: aquela que o Estado, a nação realiza continuamente dentro do corpo social em nome da própria sociedade. Nesse momento a guerra entre as raças encontra seu desdobramento em um racismo. E por mais paradoxal que pareça um "racismo de Estado" que "uma sociedade vai exercer sobre ela mesma, sobre os seus próprios elementos, sobre os seus próprios produtos; um racismo interno, o da purificação permanente, que será uma das dimensões fundamentais da normalização social”(FOUCAULT, 1999, p. 73).

Após a realização de um extenso exame onde reflete sobre as transformações dos conceitos de raça e guerra de raças, que culminam no racismo de Estado, Foucault chega enfim à introdução do conceito de biopoder. Na aula de 17/03/1976 de “Em defesa da sociedade”, o filósofo apresenta o biopoder como uma espécie de complemento ao poder disciplinar que surgiu durante a segunda metade do século XVIII. O seu caráter complementar significa por um lado o ajuste de alguns pontos onde o poder disciplinar não poderia agir sozinho, e por outro lado que o biopoder opera uma adaptação das técnicas próprias da disciplina tendo em vista suas próprias finalidades. Sendo assim, não se opera uma efetiva substituição do poder disciplinar pelo biopoder, muito menos a exclusão daquele como ineficiente. Do contrário, o que ocorre é a coexistência no mesmo espaço e no mesmo tempo das duas espécies de poder. Cada uma dentro de seu nível de ação: o poder disciplinar agindo no nível micro do controle anatômico dos corpos e das vidas individualizadas, enquanto a biopolítica que age sobre o biológico e seu correspondente poder passa a atuar sobre o nível macro dos assuntos concernentes à vida das populações. O biopoder surge como uma tecnologia de poder, diz Foucault, que:

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Esta nova técnica de poder reivindica para si não mais somente o controle dos corpos como o poder disciplinar, mas o conjunto formado pelo somático, o psíquico e a consciência dos homens. Enfim, diz Foucault, o biopoder e sua política correlata não se dirige sobre o homem-corpo tomado apenas em sua anatomia mecânica. Interessa para ele o homem enquanto ser vivo, o homem-espécie em sua multiplicidade e:

Não na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela [a multiplicidade de homens] forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc. (FOUCAULT, 1999, p. 289).

Para compreender como se efetivou esta "estatização do biológico", esta tomada da vida pelo poder estatal, Foucault teve de dedicar boa parte do curso

““Em defesa da sociedade”” à análise do surgimento da ideia de raças, da guerra de raças, assim como ao estudo do surgimento da noção de soberania na França. Para ele a teoria clássica de soberania serviu de pano de fundo, de quadro analítico para se pensar a ideia de guerra de raças.

A soberania, como vimos, pautava-se na ideia de que competia ao soberano decidir sobre o direito de vida ou de morte de seus súditos, o que significa, em última instância, que compete a ele fazer morrer ou deixar viver quem ele quiser. O poder soberano não pode dar a vida, mas pode tirá-la quando bem entender, pois "é porque o soberano pode matar que ele exerce seu direito sobre a vida" (FOUCAULT, 1999, p. 287). A peculiaridade do biopoder está em que ele ultrapassa os limites nos quais a soberania e a disciplina estão encerrados. Por meio de técnicas e tecnologias próprias como a demografia, a estatística, a higiene e a saúde públicas, o controle de natalidade e mortalidade, entre outras, o biopoder se exerce sobre a vida e sobre a capacidade de proporcionar condições de vida ao conjunto de indivíduos.7

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Em linhas gerais, podemos destacar três domínios de intervenção da biopolítica, entre os muitos surgidos no final do século XVIII e início do século XIX. O primeiro está associado a um dos aspectos mais importantes para se levar em consideração nesta nova racionalidade política e de poder: a relação triangular existente entre natalidade, doenças e morbidade. Não se trata de dizer o quanto uma população é fecunda ou não, de aumento exponencial da taxa de nascimentos. Nesse cálculo é preciso refletir também, diz Foucault, acerca do problema da quantidade de mortes, porém:

Não mais simplesmente, como justamente fora o caso até então, no nível daquelas famosas epidemias cujo perigo havia atormentado tanto os poderes políticos desde as profundezas da Idade Média (aquelas famosas epidemias que eram dramas temporários da morte multiplicada, da morte tornada iminente para todos). Não é de epidemias que se trata naquele momento, mas de algo diferente, no final do século XVIII: grosso modoaquilo que se poderia chamar de endemias, ou seja, a forma, a natureza, a extensão, a duração, a intensidade das doenças reinantes numa população.Doenças mais ou menos difíceis de extirpar, e que não são encaradas como epidemias, a título de causas de morte mais frequente, mas como faiores permanentes - e é assim que as traiam - de subtração das forças, diminuição do tempo de trabalho, baixa de energias, custos econômicos, tanto por causa da produção não realizada quanto dos tratamentos que podem custar. Em suma, a doença como fenômeno de população: não mais como a morte que se abate brutalmente sobre a vida - é a epidemia - mas como a morte permanente, que se introduz sorrateiramente na vida, a corrói perpetuamente, a diminui e a enfraquece (FOUCAULT, 1999, p. 290-291, grifo nosso).

Nesse sentido, o nascimento de uma medicina social possui um papel fundamental no cômputo dos fenômenos políticos. Esta nova modalidade de medicina terá como foco o corpo social, e como função maior a higiene pública, "com organismos de coordenação dos tratamentos médicos, de centralização da informação, de normalização do saber, e que adquire também o aspecto de campanha de aprendizado da higiene e de medicalização da população" (FOUCAULT, 1999, p. 291).

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O segundo domínio de intervenção da biopolítica é aquele composto pelo conjunto de fenômenos importantes como a velhice, os acidentes, as enfermidades e outras anomalias. O peso destes fenômenos no cálculo biopolítico toma importância no início do século XIX quando do auge do processo de industrialização. Qualquer um destes fenômenos coloca o indivíduo para fora do mercado produtivo, tornando-se necessária a criação de mecanismos mais elaborados do que as já existentes instituições de assistência social. É assim, segundo Foucault, que “vamos ter mecanismos muito mais sutis, mais racionais, de seguros, de poupança individual e coletiva, de seguridade, etc." (FOUCAULT, 1999, p. 291).

Por fim, o terceiro domínio está associado à preocupação quanto às relações existentes entre os seres humanos e seu meio de existência, ou seja, o ambiente onde residem e vivem. Este espaço onde os indivíduos vivem deve ser objeto de estudo e cuidade, seja natural ou artificial: quer seja em áreas de pântanos ou nas cidade a possibilidade de epidemias existe. De fato, é no meio artificial formado pelas cidades que o problema das doenças requer atenção especial. A maneira como as vias públicas eram dispostas, associada ao aumento do número de habitantes, às questões de insalubridade, concentração de miasmas e falta de higiene favoreciam a circulação de doenças (FOUCAULT, 1999, p. 292).

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aplica ao mesmo tempo ao corpo e à população e permite o controle simultâneo da ordem disciplinar dos corpos e dos acontecimentos aleatórios de uma multiplicidade biológica.

Para Foucault:

[a] norma é o que pode tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer regular. A sociedade de normalização não é, pois, nessas condições, uma espécie de sociedade disciplinar generalizada cujas instituições disciplinares teriam se alastrado e finalmente recoberto todo o espaço - essa não é, acho eu, senão uma primeira interpretação, e insuficiente, da ideia de sociedade de normalização. A sociedade de normalização é uma sociedade em que se cruzam, conforme uma articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da regulação. Dizer que o poder, no século XIX, tomou posse da vida, dizer pelo menos que o poder, no século XIX, incumbiu-se da vida, é dizer que ele conseguiu cobrir toda a superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de regulação, de outra (FOUCAULT, 1999, p. 302).8

A tese desenvolvida no último capítulo de “A Vontade de Saber” era a de que, a partir da passagem do século XVIII para o XIX, deu-se um importante deslocamento na forma de exercício do poder soberano, que passou a se afirmar não mais como um poder de morte, mas sim como um "poder que gere a vida". Agora, interessava ao poder estatal estabelecer políticas públicas por meio das quais se poderia sanear o corpo da população, depurando-o de suas infecções internas. As intervenções do Estado no sentido de incentivar, proteger, estimular e administrar o regime e as condições vitais da população são denunciadas por Foucault como um obsessivo desejo estatal de purificação da vida.

Foucault compreendeu que, a partir do momento em que a vida se constituiu como elemento político por excelência, passível de ser administrado, calculado, gerido, regulado e normalizado por políticas estatais, o que se observa

8Sobre a noção de norma no curso

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não é uma diminuição da violência. O cuidado para com a vida de uns traz consigo, de forma necessária, a exigência contínua e crescente da morte em massa de outros - fenômeno que ocorre por meio de mecanismos intencionais de morte, sejam eles dissimulados como no caso das práticas implementadas por um racismo de Estado ou manifestos como no caso de sistemas de eliminação generalizada praticados por regimes como o nazismo e o stalinismo. A conquista de meios de sobrevivência de um corpo populacional depende da aplicação racionalizada de uma violência depuradora que elimina os indivíduos que se tornaram perigosos para o equilíbrio da vida social. Portanto, não existe nenhuma contradição entre o poder de administração e incremento da vida e o poder de matar tanto quantos forem necessários para garantir as melhores condições vitais possíveis. Dessa forma, é possível afirmar que paradoxalmente a biopolítica sob a forma do racismo político estatal e dos diversos regimes de segregação e extermínio é simultaneamente também uma "tanatopolítica", uma política da morte. Assim, a partir do momento em que a tarefa do soberano passou a ser a de "fazer viver", ou seja, garantir e estimular de modo racionalizado o crescimento da vida, as guerras se tornam cada vez mais sangrentas e os extermínios em massa se multiplicam (seja dentro ou fora dos limites territoriais do Estado). "As guerras jánão se travam em nome do soberano a ser defendido", diz Foucault, mas:

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Neste texto, Foucault também ressalta que o Estado pode, em um contexto biopolítico, se valer das mais variadas e amplas formas de racismo para justificar o exercício de seu direito de matar em nome da purificação e da preservação da vida. O racismo biológico do Estado justifica o uso dos mais diversos meios para garantir a depuração da espécie humana, e isso a partir do momento em que faz a partilha entre aqueles que devem viver e aqueles que devem morrer. Nesse sentido, os conflitos políticos objetivam a todo instante a manutenção da vida do vencedor, mas não no sentido de resultado da oposição antagônica entre amigos e inimigos tal como concebido por Carl Schmitt.9

Os inimigos deixam de ser adversários políticos para serem tomados como entidades biológicas. Não basta que sejam derrotados através de um conflito armado, de uma guerra, mas devem ser exterminados porque "constituem uma espécie de perigo biológico para os outros" (FOUCAULT, 2007a, p. 150). A preservação de uma raça, de uma comunidade, de uma população depende da morte de outras. A morte do outro, analisa Foucault, não significa simplesmente a manutenção de minha vida no sentido de garantir minha segurança pessoal. Fazer com que ocorra "a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura" (FOUCAULT, 1999, p. 305).

Diante desse quadro, já não importava apenas disciplinar as condutas individuais, mas, sobretudo, implantar um gerenciamento planificado da vida das populações. Assim, o que se produzia por meio da atuação específica do biopoder não era mais apenas o indivíduo dócil e útil, mas era a própria gestão da vida do corpo social. Daí a necessidade, segundo Foucault, de se compreender como o sexo se tornou um foco privilegiado para o controle disciplinar do corpo e

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para a regulação dos fenômenos da população, principalmente quando ocorre seu acoplamento em um novo dispositivo de poder sobre os indivíduos e populações, o "dispositivo da sexualidade". O sexo é um fenômeno que se encontra vinculado ao mesmo tempo à vida do corpo e à vida da espécie, possibilitando acesso tanto a um quanto a outro.

Durante muito tempo o sangue e todo o simbolismo que ele carrega serviram de elemento importante para o bom funcionamento dos mecanismos do poder. Em uma sociedade onde prevaleciam "os sistemas de aliança, a forma política do soberano, a diferenciação em ordens e castas, o valor das linhagens", onde "a fome, as epidemias e as violências tornam a morte iminente, o sangue constitui um dos valores essenciais" (FOUCAULT, 2007a, p. 160). Até a segunda metade do século XVIII predominou uma espécie de "sociedade de sangue"; dali em diante até nossos dias prevalece uma sociedade de sexo, ou melhor, uma sociedade de sexualidade. Nesta,

Os mecanismos do poder se dirigem ao corpo, à vida, ao que faz proliferar, ao que reforça a espécie, seu vigor, sua capacidade de dominar, ou sua aptidão para ser utilizada. Saúde, progenitura, raça, futuro da espécie, vitalidade do corpo social, o poder fala da sexualidade e para a sexualidade; quanto a esta, não é marca ou símbolo, é objeto e alvo. O que determina sua importância não é tanto sua raridade ou precariedade quanto sua insistência, sua presença insidiosa, o fato de ser, em toda parte, provocada e temida (FOUCAULT, 2007a, p. 161).

Aconteceu, portanto, no século XIX, a passagem de sociedade marcada por um simbolismo do sangue para aquela cujo alvo é a sexualidade. Porém, a tomada da sexualidade como objeto de análise e elemento em um cálculo de condução da vida dos homens não é tão recente assim.

Façamos uma brevíssima digressão a fim de identificar outros momentos em que sucedeu esse fenômeno.

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o século V d.C.10 Nesse período vemos ganhar importância as práticas de

condução espiritual, de direção e exame de consciência como técnicas aplicadas com o intuito de governar, também, as práticas sexuais dos indivíduos.

Alguns séculos mais tarde, entre o século XIII e o século XVI estas técnicas serão acopladas à prática da confissão. Em “A Vontade de Saber”, Foucault define a confissão como:

Um ritual de discurso onde o sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado; é, também um ritual que se desenrola numa relação de poder, pois não se confessa sem a presença ao menos virtual de um parceiro, que não é simplesmente o interlocutor, mas a instância que requer a confissão, impõe-na, avalia-a, intervém para julgar, punir, perdoar, consolar, reconciliar; um ritual onde a verdade é autenticada pelos obstáculos e as resistências que teve de suprimir para poder manifestar-se; enfim, um ritual onde a enunciação em si , independentemente de suas consequências externas, produz em quem a articula modificações intrínsecas: inocenta-o, resgata-o, purifica-o, livra-o de suas faltas, libera-o, promete-lhe a salvação (FOUCAULT, 2007a, p. 70-71).

Se no século XVI o governo dos homens era exercido por meio de técnicas religiosas que visavam a direção das almas, como a confissão, a partir do século XVII até o XIX ganham espaço outros dispositivos que têm no corpo o seu objeto principal. É o momento de aparecimento da medicina terapêutica, da psiquiatria e de todas as ciências que têm como objeto o somático mais do que sobre o espiritual. Não que a prática da confissão tenha sido abandonada mas, diz Foucault:

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O próprio corpo do penitente, são seus gestos, seus sentidos, seus prazeres, seus pensamentos, seus desejos, a intensidade e a natureza do que ele próprio sente (...). O novo exame vai ser um percurso meticuloso do corpo, uma espécie de anatomia da volúpia. (...) Portanto, a confissão não se desenrolará mais de acordo com essa ordem de importância, na infração das leis da relação, mas deverá seguir uma espécie de cartografia pecaminosa do corpo (FOUCAULT, 2003a, p. 236-237).

Nesse sentido, na modernidade, a confissão deve ser tomada como um imenso mecanismo de extração de discursos, de relatos sobre a existência individual, que de algum modo caracterizam a entrada do aspecto confessional no campo de saberes como a medicina e a psiquiatria, colocando nas mãos dos médicos instrumentos que contribuem na atuação sobre a vida dos homens. Em seu aspecto mais amplo, no final do século XVIII, saberes que têm como objeto o corpo do homem (ciências humanas) possuem uma dimensão política e são componentes essenciais da biopolítica11.

Os finais do curso de 1976, “Em Defesa da Sociedade” e do texto “A Vontade de Saber”, indicavam de que o problema da população, do biopoder e da biopolítica seriam aprofundados. No início de seu próximo curso, Segurança,

Território, População” (1977-1978), o próprio Foucault afirma que gostaria de

estudar aquilo que havia ficado “um pouco no ar" nos anos anteriores, o biopoder e o conjunto de fenômenos e mecanismos que lhe são inerentes (FOUCAULT, 2004a, p. 04). Apesar de, nas três primeiras aulas desse curso, trabalhar sobre questões ligadas aos dispositivos de segurança próprios de uma biopolítica e de um governo das populações, a partir da aula de 01/02/1978 passa ao estudo do problema do governo12, das manobras e métodos usados pela racionalidade

11Foucault trabalhou sobre estes temas em duas conferências realizadas no Instituto de Medicina Social da UERJ, no ano de 1974 - O nascimento da medicina social e O nascimento do hospital -;

bem como no texto A política de saúde no século XVIIIpublicado em Les Machines à guérir. aux

origines de l’hôpital moderne. Todos estes textos foram traduzidos e publicados no Brasil pela

Editora Graal no livro Microfísica do Poder.

12Segundo Daniel Defert já em dezembro de 1972 Foucault "empreende a análise das relações de poder a partir da 'mais indigna das guerras: nem Hobbes, nem Clausewitz, nem luta de classes, mas a guerra civil"' (DEFERT, 2001, p. 57). Nesse mesmo período proferiu, no Collège de France, ocurso La Société punitive, que a princípio deveria chamar-se La Société disciplinaire (DEFERT,

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política estatal para administrar um país e sua população. É por meio de uma análise da política governamental que Foucault estuda o biopoder e a biopolítica, o que tem ressonância e continuidade no curso “Nascimento da Biopolítica”

(1978-1979). Neste, Foucault teve como objetivo estudar a racionalidade política no interior da qual foram postos os problemas específicos da vida e da população, isso através de um estudo da governamentalidade liberal e das características próprias da arte liberal de governar tal como se esboçaram no século XVIII e foram se transformando até o século XX. Nesse sentido, para complementar o entendimento sobre a questão do biopoder e da biopolítica nos próximos capítulos, analisaremos os cursos, “Segurança, Território, População” e

“Nascimento da Biopolítica”.13Os temas desenvolvidos nesses cursos preparam o terreno para uma maior compreensão das noções de biopoder e a biopolítica. Desse modo, Foucault desenvolve elementos que incidem ou que estão diretamente ligados à população, objeto e alvo desta forma de poder e de política. Para tanto, conforme veremos no 2o, 3o e 4o capítulos, Foucault realizou um deslocamento fundamental em suas pesquisas passando da análise do poder para o estudo sobre as práticas de governo. Um maior entendimento sobre como se aplicam as práticas do biopoder e da biopolítica na modernidade requer, segundo Foucault, a compreensão do desenvolvimento das práticas de governo, de condução e de cuidado surgidas ao longo da história. De um modo geral é preciso entender a constituição das diferentes práticas do que intitula "governamentalidade", formadas na história da racionalidade política ocidental. Essas remontam ao antigo poder pastoral dos primeiros séculos do Cristianismo, passam pelo zelo e controle exercido sobre cada indivíduo realizado pelo

Para tanto, propunha definir a partir das diferentes táticas punitivas como o banimento, a clausura, o castigo, o açoite, etc, quais relações de poder eram efetivamente colocadas em funcionamento. Já no curso de 1976 Foucault visou, se não abandonar a concepção do poder em termos de guerra, pelo menos interrogar os pressupostos e as consequências históricas da recorrência ao modelo da guerra como analisador das relações de poder. Dessa sua posição analítica decorre uma importante consequência. Como notou Michel Senellart, ao romper "com o discurso da 'batalha' utilizado desde o início dos anos1970, o conceito de 'governo' assinalaria o primeiro deslocamento, acentuado a partir de 1980, da analítica do poder à ética do sujeito"(SENELLART, 2008, p. 497).

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