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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO DEPARTAMENTO DE DIREITO PÚBLICO CURSO DE DIREITO KALIL JORGE DE ARAÚJO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO

DEPARTAMENTO DE DIREITO PÚBLICO CURSO DE DIREITO

KALIL JORGE DE ARAÚJO

TETO DOS GASTOS PÚBLICOS NO BRASIL: A EC 95/16 E O ATAQUE AO PROJETO CONSTITUINTE DE 1988

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KALIL JORGE DE ARAÚJO

TETO DOS GASTOS PÚBLICOS NO BRASIL: A EC 95/16 E O ATAQUE AO PROJETO CONSTITUINTE DE 1988

Trabalho de conclusão de curso apresentado junto à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará como pré-requisito para obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Orientadora: Profa. Dra. Cynara Monteiro Mariano.

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KALIL JORGE DE ARAÚJO

TETO DOS GASTOS PÚBLICOS NO BRASIL: A EC 95/16 E O ATAQUE AO PROJETO CONSTITUINTE DE 1988

Monografia submetida à Coordenação do Curso de Direito, da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Aprovada em: 21/06/2017.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Profa. Dra. Cynara Monteiro Mariano (Orientadora)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________ Prof. Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________ Prof. Dr. Newton de Menezes Albuquerque

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AGRADECIMENTOS

Muitas pessoas a agradecer, não sei se somente esta seção dá conta responsáveis pelas inúmeras lições que carreguei durante o curso de direito. Lições estas que não foram

somente “técnicas” ou de “conhecimento”, mas principalmente de vida, das quais se extraem para se tornar uma pessoa melhor, com humildade, otimismo e paciência.

Assim, agradeço:

Ao meu núcleo familiar, mãe (Samira), pai (Marcelo) e irmã (Ranna), os pilares de sustentação para um cotidiano frequentemente atribulado e estressante. Se hoje me tornei uma pessoa que busca sempre melhorar, tanto profissionalmente, quanto humanamente, isso certamente passa pelo cuidado e carinho que recebo dos três.

Aos demais membros da família, como tios/as, primos/as, entre eles/as, vó Lúcia (in memoriam), vô Tufic, madrinha Lucimar, padrinho Tany, que cuidaram de mim e/ou me incentivaram com palavras de apoio.

À profª. Dra. Cynara Monteiro Mariano, que prontamente atendeu a tarefa de me auxiliar na tarefa de estudar a EC 95/16 e as interfaces do direito com a economia. Sou-lhe muito grato pela orientação.

Aos professores participantes da banca examinadora, prof. Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa e prof. Dr. Newton Menezes de Albuquerque pelo tempo e disposição emprestados a este trabalho.

Ao CAJU, núcleo fundamental da Faculdade de Direito da UFC, pelo qual tive o grande aprendizado nesses anos de graduação, e onde pude aflorar o sentimento de injustiça atravessado quando decidi cursar direito. Por lá pude ter o primeiro contato com demandas sociais complexas e encontrar grandes amizades (Ana Taís, André, Bruna, Caio, Cecília, Dami, Davi, Filipe, Guilherme, Higor, Hugo, Iana, Jéssica, Julianne, Kol, Larissa, Marina, Miguel, Rebeca, Samuel, Thamira, Thaynara, Pryscila, Ycaro, dentre tantos/as outros/as).

Ao movimento estudantil, em especial ao da Faculdade de Direito da UFC, que por meio da formação do Canto Geral e de chapas para a disputa do Centro Acadêmico Clóvis Beviláqua, dentre outros processos, me provou a necessidade de construir uma Universidade pública, justa e solidária. Aqui um agradecimento especial às companhias que mais (e melhor) me acompanharam na graduação: Guilherme, Higor, Hugo, Mairla e Pryscila.

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Às experiências prático-profissionais, especialmente os estágios, com destaque para o pessoal do Contencioso Administrativo-Tributário (CAT) de Fortaleza que proporcionou um ótimo ambiente para dar os primeiros passos; para a equipe da 12ª Vara Federal da Justiça Federal do Ceará; para o Sindicato dos Servidores Municipais de Fortaleza (SINDIFORT); e especialmente para a Defensoria Pública da União no Ceará (DPU/CE), instituição primordial nos tempos em que vivemos, e na qual se destacam os membros do Ofício Regional de Direitos Humanos (ORDH), espaço privilegiado em que pude encerrar as atividades de estágio e conhecer pessoas admiráveis (Lídia, Carlos, Joyce, Lorena, Raquel, Roberta, entre outros/as).

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“Estranhem o que não for estranho. Tomem

por inexplicável o habitual. Sintam-se perplexos ante o cotidiano. Tratem de achar um remédio para o abuso. Mas não se esqueçam de que o abuso é sempre a regra”.

Bertold Brecht, A exceção e a regra.

“A justiça pode caminhar sozinha; a injustiça

precisa sempre de muletas, de argumentos”.

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RESUMO

Este trabalho trata de análise da Emenda Constitucional (EC) nº 95 de 2016, que implementa

o “Novo Regime Fiscal”, regra que impõe um teto para os gastos públicos federais por 20

(vinte) exercícios financeiros. Inicialmente, se investiga sobre o projeto constituinte de 1988 e a noção de Estado de Bem-Estar Social implantada na CF/88, bem como a tensão havida entre os direitos fundamentais sociais e a escalada do neoliberalismo, fenômeno político-econômico que na prática tem privilegiado os interesses de mercado em prol das necessidades sociais, de modo a caracterizar o estado de exceção econômico, paradigma governamental contemporâneo. Posteriormente, descreve-se o objeto de estudo. Entre os aspectos centrais do texto da EC 95/16, se destacam, além da regra principal, as sanções em caso de descumprimento, a possibilidade de revisão em 10 anos e a regra diferenciada para a saúde e a educação. Nesse bojo, importa narrar o contexto de aprovação da EC 95/16 a partir de proposta do governo federal, no qual está inserida a crise política e econômica vivenciada no Brasil, com destaque para o impeachment de Dilma Rousseff (PT), a chegada de Michel Temer (PMDB) ao governo federal, assim como as controvérsias da adoção da regra fiscal da EC 95/16. Em seguida, disserta-se a respeito dos impactos decorrentes do “Novo Regime

Fiscal”, com ressalva para as áreas sociais. Na sequência, se expõe sobre a inconstitucionalidade da EC 95/16, destacando-se a violação a cláusulas pétreas, bem como o desrespeito a princípios constitucionais e o desmonte do Estado Bem-Estar Social insculpido pela CF/88. Por fim, se disserta a respeito da relação da EC 95/16 com o estado de exceção

econômico, tendo em vista o “Novo Regime Fiscal” ser uma medida provisória que na prática

suspende direitos fundamentais sociais por duas décadas. A pesquisa faz uso dos métodos bibliográfico e documental, por meio da investigação de livros, artigos, notas técnicas, dentre outros materiais.

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ABSTRACT

This paper deals with the analysis of Constitutional Amendment (CA) nº 95 of 2016, which

implements the "New Fiscal Regime", a rule that imposes a ceiling on federal public spending for 20 (twenty) financial years. Initially, one investigates the 1988 constituent project and the notion of the welfare state implanted in FC/88, as well as the tension between fundamental social rights and the escalation of neoliberalism, a political-economic phenomenon that in practice has privileged market interests in favor of social needs, in order to characterize the state of economic exception, a contemporary governmental paradigm. Subsequently, the object of study is described. Among the central aspects of the text of CA 95/16, in addition to the main rule, are sanctions for noncompliance, the possibility of revision in 10 years and the differentiated rule for health and education. In this context, it is important to narrate the context of CA 95/16 approval based on a proposal from the federal government, which includes the political and economic crisis experienced in Brazil, especially the impeachment of Dilma Rousseff (PT), the arrival of Michel Temer (PMDB) to the federal government, as well as controversies over the adoption of AC 95/16 fiscal rule. Next, it is discussed about the impacts of the "New Tax Regime", with exception for the social areas. In the sequence, it is exposed on the unconstitutionality of AC 95/16, standing out the violation to stone clauses, as well as the disrespect to constitutional principles and the dismantling of the Social Welfare State inscribed by FC/88. Finally, if you talk about the relationship of CA 95/16 with the state of economic exception, in view of the "New Tax Regime" is a provisional measure that in practice suspends fundamental social rights for two decades. The research uses bibliographic and documentary methods, through the investigation of books, articles, technical notes, among other materials.

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RESUMEN

Este trabajo trata de análisis de la Enmienda Constitucional (EC) nº 95 de 2016, que implementa el "Nuevo Régimen Fiscal", regla que impone un techo para los gastos públicos federales por 20 (veinte) ejercicios financieros. Inicialmente, se investiga sobre el proyecto constituyente de 1988 y la noción de Estado de Bienestar Social implantada en la CF / 88, así como la tensión entre los derechos fundamentales sociales y la escalada del neoliberalismo, fenómeno político-económico que en la práctica tiene Privilegiado los intereses de mercado en favor de las necesidades sociales, para caracterizar el estado de excepción económica, paradigma gubernamental contemporáneo. Posteriormente, se describe el objeto de estudio. Entre los aspectos centrales del texto de la EC 95/16, se destacan, además de la regla principal, las sanciones en caso de incumplimiento, la posibilidad de revisión en 10 años y la norma diferenciada para la salud y la educación. En este bojo, es importante narrar el contexto de aprobación de la EC 95/16 a partir de la propuesta del gobierno federal, en el que se inserta la crisis política y económica vivida en Brasil, con destaque para el impeachment de Rousseff (PT) Michel Temer (PMDB) al gobierno federal, así como las controversias de la adopción de la norma fiscal de la EC 95/16. A continuación, se disipa sobre los impactos derivados del "Nuevo Régimen Fiscal", con salvedad para las áreas sociales. En consecuencia, se expone sobre la inconstitucionalidad de la EC 95/16, destacándose la violación a cláusulas pétreas, así como el incumplimiento de principios constitucionales y el desmonte del Estado Bienestar Social insculpido por la CF / 88. Por último, se disidía acerca de la relación de la EC 95/16 con el estado de excepción económica, teniendo en vista el "Nuevo Régimen Fiscal" ser una medida provisional que en la práctica suspende derechos fundamentales sociales por dos décadas. La investigación hace uso de los métodos bibliográfico y documental, por medio de la investigación de libros, artículos, notas técnicas, entre otros materiales.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1  Quadro fiscal brasileiro (1999-2014) ... 45

Figura 2  Quadro comparativo entre países de medidas de ajuste fiscal recentes ... 49

Figura 3  Evolução comparativa de gastos com a saúde de acordo com a regra atual e

com a regra da 95/16, utilizando como medida a RCL ... 51

Figura 4  Projeção comparativa do gasto per capita em saúde entre os cenários com

diferentes crescimentos econômicos e de acordo com a regra da EC 95/16 ... 52

Figura 5  Evolução comparativa de gastos com a educação de acordo com a regra

atual e com a regra da EC 95/16, utilizando como medida a RLI ... 54

Figura 6  Gráfico comparativo entre países de gastos em educação primária e

secundária ... 55

Figura 7  Gráfico comparativo entre países da soma de gastos em educação primária, secundária e superior ... 55

Figura 8  Tabela comparativa entre situação atual e o estipulado pelas metas do PNE, assim como a estimativa de vagas a serem abertas para cumprimento de tais metas ... 57

Figura 9  Quadro de principais ações do Ministério de Desenvolvimento Social em

2015 ... 58

Figura 10  Tabela de perdas estimadas na área da Assistência com a regra da EC 95/16 59

Figura 11  Gráfico que simula as despesas públicas de acordo com o percentual do PIB

brasileiro e mediante a regra imposta originalmente pela EC 95/16,

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade

AJUFE Associação dos Juízes Federais do Brasil AMB Associação dos Magistrados Brasileiros

ANAMATRA Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho

CA Constitutional Amendment

CF Constituição Federal

CRFB Constituição da República Federativa do Brasil

EC Emenda à Constituição

FC Federal Constitution

FMI Fundo Monetário Internacional

LC Lei Complementar

LRF Lei de Responsabilidade Fiscal

IPCA Índice de Preço ao Consumidor Amplo

OMC Organização Mundial do Comércio

PEC Proposta de Emenda à Constituição

PIB Produto Interno Bruto

PIDESC Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

PDT Partido Democrático Trabalhista

PNE Plano Nacional de Educação

PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro

PSOL Partido Socialismo e Liberdade

PT Partido dos Trabalhadores

RCL Receita Corrente Líquida

RLI Receita Líquida de Impostos

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 15

1 O PROJETO CONSTITUINTE BRASILEIRO DE 1988 E O ESTADO DE EXCEÇÃO ECONÔMICO ... 18

1.1 A CF/88 como promotora de Bem-Estar Social ... 19

1.2 A tensão entre o neoliberalismo e os direitos fundamentais sociais: sobre o estado de exceção econômico ... 28

2 PANORAMA GERAL DA EC 95/2016 ... 38

2.1 O texto da EC 95/16 e seus aspectos centrais ... 38

2.2 Contexto de aprovação e controvérsias da EC 95/16 ... 42

2.3 A EC 95/16 e seus impactos ... 50

3 A INCONSTITUCIONALIDADE DA EC 95/16 E O APROFUNDAMENTO DO ESTADO DE EXCEÇÃO ECONÔMICONO BRASIL ... 61

3.1 Análise sobre a inconstitucionalidade da EC 95/16 e o desmonte do projeto brasileiro de Bem-Estar Social ... 61

3.2 Acerca do estado de exceção econômico aprofundado pela EC 95/16 ... 71

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 74

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INTRODUÇÃO

Partindo-se do pressuposto de que o direito não é neutro, trata-se de um dever do jurista minimamente crítico questionar a legislação, não apenas no quesito formal, mas também nas questões relacionadas ao seu conteúdo e aos impactos causados na realidade dos legislados. Assim, cumpre o estudo paralelo do direito com áreas correlatas, tais quais a sociologia, a antropologia e a economia, sendo esta última a mais íntima ao presente trabalho.

Esta monografia, portanto, é fruto de reflexões pessoais advindas da conturbada conjuntura nacional. Os anos de 2016 e 2017 têm se caracterizado pelo enorme volume de fatos relacionadas à política e à economia, seja com as movimentações do impeachment de Rousseff, a chegada ao poder de Temer e os escândalos de corrupção; ou com a queda do PIB nacional e o aumento dos índices de inflação e desemprego.

Nesse bojo, o governo federal da atualidade vem anunciando uma série de contrarreformas estruturais1, como a trabalhista e a previdenciária. Até o fechamento deste trabalho, no entanto, a única contrarreforma confirmada integralmente foi a do teto dos gastos públicos federais. Aprovada no fim do ano passado, por meio da Emenda Constitucional nº 95/2016 (EC 95/16), tal contrarreforma prevê um teto de despesas primárias federais por 20 (vinte) anos. No calor do debate público, apesar de sufocado pela votação do Congresso Nacional em regime de urgência, surgiu a ideia de escrever a respeito da EC 95/16, diante de sua relevância evidente.

A pretensão de estudar direito com uma medida que se destaca pelo teor econômico como a EC 95/16 só faz sentido a partir da compreensão de que o debate em torno da economia não pode se resumir ao meramente técnico, devendo abranger a questão política. Nesse viés, importa asseverar que este trabalho estuda “economia política” e não apenas

“economia”, tendo em vista que as medidas econômicas então imbricadas com uma concepção de sociedade. Sendo assim, os resultados verificados no âmbito econômico são também decorrentes de escolhas dos gestores, e não somente de cálculos realizados por

“especialistas” da área. Optamos, portanto, por teses estruturalistas em detrimento dos argumentos monetaristas.

Como leciona Singer (1988, p. 7), em obra paradigmática para os “leigos em

economia” intitulada “Aprender economia”: “as pessoas já entendem que ‘milagres’

1 Utiliza-se neste trabalho o termo “contrarreformas” ao invés de somente “reformas” para se referir a grandes

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econômicos e crises econômicas não caem do céu, mas são resultado de decisões tomadas por ministros, banqueiros, diretores de multinacionais etc. Só que a lógica destas decisões não está ao alcance do leigo”. Dessa forma, este trabalho reconhece a difícil tarefa do jurista em se debruçar nos materiais de economia, mas ainda assim reserva a audácia de estudá-los a fim de enriquecer o debate no campo jurídico, o qual indubitavelmente se relaciona com várias searas do conhecimento.

Diante do desafio traçado, coube a este trabalho seguir a metodologia que mescla estudos bibliográficos e documentais, tendo em vista o uso de livros, artigos científicos, monografias, dissertações e teses, assim como se utilizam notas técnicas, dossiês, notícias da mídia, gráficos e tabelas produzidos por especialistas, legislação correlata, jurisprudência, entre outros materiais.

O intuito da pesquisa é analisar a EC 95/16 em vários aspectos, englobando questões técnicas, como a previsão de impactos, mas também a discussão teórica sobre a conjuntura que fez aprovar a medida, a escalada do neoliberalismo em contraposição aos direitos fundamentais sociais, entre outros debates importantes, como a inconstitucionalidade da emenda e sua relação com a categoria do estado de exceção econômico. Enfim, a intenção é dissecar a norma em uma abordagem sociojurídica.

O capítulo inaugural, de caráter teórico, se inicia com uma abordagem sobre o projeto constituinte de 1988, narrando os bastidores da Assembleia Nacional que formularam o texto da CF/88, assim como as influências da época, com destaque para a noção de Welfare State ou Estado de Bem-Estar Social que se tornou modelo estatal da “Constituição Cidadã”. Em seguida, disserta-se a respeito da tensão havida entre os direitos fundamentais sociais e o neoliberalismo, fenômeno que tem posto em cheque a concretização dos direitos de prestação do Estado. Ainda se relacionará a escalada neoliberal com os estudos de Agamben e Bercovici a respeito do estado de exceção, em principal o econômico, paradigma governamental contemporâneo que tem desafiado as constituições sociais em prol da vontade do mercado.

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principais características. Ao fim, analisar-se-ão os impactos decorrentes da regra imposta pela emenda em referência.

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1 O PROJETO CONSTITUINTE BRASILEIRO DE 1988 E O ESTADO DE EXCEÇÃO ECONÔMICO.

A priori, convém assinalar que a noção de Estado de Bem-Estar Social – aquele responsável por prover uma série de serviços públicos em áreas fundamentais para suprir as necessidades humanas, como saúde, educação, previdência social, entre outras - não está presente em toda a história do direito. No caso brasileiro, apenas na Constituição de 1934 previram-se pela primeira vez dispositivos nesse sentido, pois as Cartas de 1824 e 1891 eram marcadamente liberais, ou seja, concebiam o Estado como mero guardião dos direitos de liberdade individual, como os direitos à vida e à propriedade.

Assim, a Constituição de 1934 – influenciada pela ascensão de legislações sociais pelo mundo como a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919 e pelas movimentações de trabalhadores no Brasil – inaugurou no país dispositivos relacionados aos direitos sociais (educação, trabalho, saúde, assistência social e cultura), à proteção ao trabalhador etc., de modo a instaurar um novo papel para o estado brasileiro, cabendo a este uma função provedora de direitos básicos (SIMÕES, 2013, p.110).

Nessa toada, mantiveram-se as Constituições de 1937 (em que pese esta possuir um caráter autoritário – de restrição a liberdades individual e de imprensa – por conta da instauração de um regime ditatorial), de 1946 (restabelecimento democrático), de 1967 e a EC de 1969 (apesar do período militar ter reduzido consideravelmente os direitos políticos da época).

Conforme será descrito no primeiro tópico deste capítulo, foi a Constituição Federal de 1988, pós-ditadura militar e de reconfiguração das bases democráticas, conhecida

como “Constituição Cidadã”, que restou marcada como um documento que promove um

verdadeiro “Bem-Estar Social”, fruto do contexto de reivindicações da época, havendo nela garantias de cuidado do estado brasileiro em várias áreas estratégicas. Nesse sentido, destacam-se os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proibição de retrocesso social como alguns dos protagonistas do nosso sistema jurídico-constitucional e importantes para a concretização dos direitos fundamentais.

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caracteriza pela suspensão da constituição social em prol dos interesses de mercado, conforme se exporá ao fim do capítulo.

1.1 A CRFB/88 como promotora de Bem-Estar Social.

A Constituição Federal brasileira vigente na atualidade foi promulgada em 05 de outubro de 1988 pela Mesa da Assembleia Nacional Constituinte, possuindo quase 30 anos de existência. Fruto do cenário de redemocratização que adveio após o período militar que vigorou no Brasil durante 21 anos, a CF/88 se tornou conhecida como a “Constituição Cidadã”, em razão do largo arcabouço jurídico que busca proteger direitos essenciais para alcançar a plena dignidade dos brasileiros.

Nesse sentido, cumpre informar que à época da formulação do texto constitucional o país vivia grande efervescência das lutas sociais, tanto para destituir o governo militar como também para reivindicar uma série de direitos, caracterizados nos anseios de liberdade e justiça social. Assim, é possível destacar as manifestações de trabalhadores, de estudantes, de movimentos populares da Igreja Católica, dos cidadãos em

geral para a aprovação das “Diretas Já”, entre outras movimentações, como responsáveis por mexer o ambiente político da época, tendo contribuído para moldar os dispositivos da CF/88 (GONÇALVES, 2005, p. 112).

Diante desse cenário, convocou-se uma Assembleia Nacional Constituinte por meio da Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985. Diferentemente de outras constituições da história brasileira, inclusive as promulgadas, houve intensa participação popular para a formação dessa constituinte, principalmente por duas formas, quais sejam, as audiências públicas e as emendas populares, que subsidiaram a formulação do texto constitucional (RESENDE, 2009, p. 61-62).

Assim, em que pese haver essa soma de fatores, a Constituição Federal de 1988 se espelhou fortemente nas experiências europeias, principalmente na ideia de Estado de Bem-Estar Social (ou Welfare State). Tal concepção de estado se consolidou no velho continente durante o Pós-Segunda Guerra Mundial, havendo se traduzido num sinônimo de prosperidade e cidadania, e tendo se estabelecido na prática num período de cerca de 30 anos (entre 1945 e

a década de 1970) conhecido como “Era de Ouro”, assim caracterizada por Hobsbawn (2012, p. 262-263):

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depressão, tão fatal entre as guerras, tornou-se uma sucessão de brandas flutuações, graças a – era o que pensavam os economistas keynesianos que agora assessoravam os governos – sua inteligente administração macroeconômica. Desemprego em massa? Onde se poderia encontrá-lo no mundo desenvolvido da década de 1960, quando a Europa tinha uma média de 1,5% de sua força de trabalho sem emprego e o Japão 1,3% (Van der Wee, 1987, p. 77)? Só na América do Norte ele ainda não fora eliminado. Pobreza? Naturalmente a maior parte da humanidade continuava pobre, mas nos velhos centros industrializados, que significado poderia ter o “De pé, ó vítimas da fome!” da “Internacionale” para trabalhadores que agora esperavam possuir seu carro e passar férias anuais remuneradas nas praias da Espanha? E se os tempos se tornassem difíceis para eles, não haveria um Estado previdenciário universal e generoso pronto a oferecer-lhes proteção, antes nem sonhada, contra os azares da doença, da desgraça, e mesmo da terrível velhice dos pobres? Suas rendas cresciam ano a ano, quase automaticamente. Não continuariam crescendo para sempre? A gama de bens e serviços oferecidos pelo sistema produtivo, e ao alcance deles, tornava antigos luxos itens do consumo diário. E isso aumentava a cada ano. Que mais, em termos materiais, podia a humanidade querer, a não ser estender os benefícios já desfrutados pelos povos favorecidos de alguns países aos infelizes habitantes de outras partes do mundo, reconhecidamente ainda a maioria da humanidade, que não haviam entrado no “desenvolvimento” e a “modernização”?

Como se depreende, os anos de experiência em torno do Estado de Bem-Estar Social na Europa produziram grandes efeitos sociais, tendo fincado tal modelo no continente. Vale destacar que no centro de tal concepção encontra-se a intervenção do Estado, com a prestação de bons serviços públicos, um sistema previdenciário adequado, entre outras políticas estatais de melhoria da qualidade de vida. Toda essa qualificação do Welfare State só faz sentido se considerarmos que para a classe dominante, na fase capitalista do Pós-Segunda Guerra Mundial, foi estratégico adotar um modelo que pudesse conter o avanço do socialismo e as insatisfações dos trabalhadores, como expõe Esping-Andersen (1994, p. 73):

O Welfare state, uma das marcas da “era dourada” de prosperidade do pós-guerra, significou mais do que um simples incremento das políticas sociais no mundo industrial desenvolvido. Em termos gerais representou um esforço de reconstrução econômica, moral e política. Economicamente, significou um abandono da ortodoxia da pura lógica do mercado, em favor da exigência de extensão da segurança do emprego e dos ganhos como direitos da cidadania; moralmente, a defesa das idéias de justiça social, solidariedade e universalismo. Politicamente, o Welfare state foi parte de um projeto de construção nacional, a democracia liberal, contra o duplo perigo do fascismo e do bolchevismo.

O Welfare State, por assim afirmar, foi implantado com o intuito de alcançar uma

“harmonia” entre as forças próprias do mercado e uma estabilidade social, de modo a subsidiar os cidadãos com benefícios sociais que assegurassem um padrão de vida digno, com base material mínima, para que enfim pudessem suportar os efeitos do modo de produção capitalista excludente (GOMES, 2006, p. 203).

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superação desta crise, o governo americano lançou mão de um pacote de medidas de sustentação teórica de Keynes, que assentavam, basicamente, para a intervenção estatal na economia a fim de fomentar a geração de empregos e assegurar rendimentos mínimos que permitissem o acesso universal ao consumo (FARIAS, 2006, p. 23). Isto é, trataram-se de ações que não romperam com o capitalismo, mas injetaram preocupação social nele, assim como encontraram guarida em resultados econômicos satisfatórios.

Assim, o histórico de sucesso entre a população europeia e a americana do Estado de Bem-Estar Social influenciou fortemente a população brasileira (organizada politicamente ou não) a exigir que os direitos sociais fossem concretizados, de modo a elevar a qualidade de vida de um país historicamente pobre e desigual. O Welfare State buscado pela CF/88, frise-se, segue um preceito universalista, na medida em que procura estender, equalizar e elevar os benefícios sociais - vide a previsão do Sistema Único de Saúde (SUS) - de modo a se distanciar ainda mais da concepção liberal havida nas primeiras constituições nacionais (BENEVIDES, 2011, p. 86).

Nesse sentido, é válido ressaltar que a Constituição Federal de 1988, de fato, adotou o sistema capitalista como parâmetro para o estado brasileiro, até pela inclusão do princípio da livre iniciativa e do disposto no Capítulo de “Ordem Econômica”, entre outros dispositivos que deixam clara a opção pelo modelo dominante da era contemporânea mundial. Entretanto, em que pese tal escolha, a CF/88 não deixa de lado a também opção pelo Estado de Bem-Estar Social, como assevera Graus (2006, p. 313-314):

À busca da realização do bem-estar a Constituição apresta a sociedade e o Estado, busca que se há de empreender não em nome ou função de uma ideologia, mas como imposição de determinações históricas que são mais do que ideológicas. O alcance do bem-estar é, historicamente, o mínimo que tem a almejar a sociedade brasileira. (...)

A ordem econômica na Constituição de 1988 – digo-o – postula um modelo de bem-estar.

Como já referendado, o Welfare State não se trata de uma ruptura com o sistema capitalista, mas sim uma concepção de estado que o sustenta, fazendo valer um modo de vida

menos “predatório” e mais “humanizado”. Assim, a compatibilidade entre capitalismo e bem-estar social é uma das características da CF/88, em que pese ela garantir a livre iniciativa (art. 170, caput), ao mesmo tempo em que prevê estratégias e mecanismos para auferir mais arrecadação ao Estado a ponto de este conseguir custear serviços públicos de qualidade.

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seculares do país. O Welfare State guarda relação intrínseca com os direitos de igualdade. Estes, apesar de não estarem concentrados no art. 5º da CF/88, são considerados direitos fundamentais por larga parte da doutrina constitucional2. Isto porque se tratam de direitos básicos para a consecução de dignidade da pessoa humana, como também por força do disposto no art. 5º, §2º, da Carta Magna, o qual aduz para a inclusão de outros direitos e garantias existentes no sistema jurídico, sejam decorrentes de princípios, tratados internacionais etc.

O preâmbulo da CF/88 (grifos nossos) – apesar da sua falta de poder normativo –

traduz a vontade constituinte de concretização dos direitos fundamentais sociais:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Como se vê, a Assembleia que formulou a CRFB/88 tinha como uma de suas ideias centrais promulgar uma Carta Magna que assegurasse direitos (especialmente os

“sociais”) que consubstanciassem num “bem-estar” (aqui uma clara relação com a concepção de Welfare State), com igualdade (inclusive material) e sem preconceitos. Os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil reforçam e normatizam tais acepções:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Por conseguinte, além do famoso art. 5ª que elenca dispositivos referentes aos direitos e liberdades individuais, é o art. 6º da CF/88 que consagra os direitos sociais, sendo estes “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos

2 Para Leivas (2006, p. 89), os direitos fundamentais sociais diferem dos demais direitos sociais por conta de sua

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desamparados, na forma desta Constituição”, conforme texto atualizado pela Emenda Constitucional 90/15.

Os excertos constitucionais destacados acima (art. 3º e 6º) tratam de normas

programáticas da “Constituição Cidadã”. Entretanto, a Carta não se limita a tais dispositivos, estabelecendo um considerável arcabouço de proteção jurídica às necessidades básicas do ser humano, como argumenta Gonçalves (2005, p. 179-181):

[A] Constituição Federal de 1988 estabeleceu direitos fundamentais sociais a partir da concepção das necessidades humanas básicas e não propriamente através do conceito dos mínimos sociais, isto porque trouxe à tona toda uma normatividade tendente não apenas a manter patamares mínimos de prestações sociais, mas sobretudo a universalizar, a médio e longo prazos, as prestações sociais no interior de um determinado grupo que possui seu direito reconhecido constitucionalmente. (...)

Conclua-se, pois: existe um conteúdo que objetivamente deve compor os direitos fundamentais sociais, a saber: saúde preventiva e curativa (artigo 6º e 196); ensino fundamental (artigo 208, I), garantida sua oferta inclusive aos que não tiveram acesso a ele em idade própria; educação infantil e ensino fundamental especializado às pessoas portadoras de deficiência, preferencialmente no sistema regular de ensino (artigo 208, III); creches e préescolas destinadas às crianças de zero a seis anos de idade (artigo 208, IV); “atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático – escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde” (artigo 208, VII – BRASIL, 2002, p.130); trabalho com remuneração condizente com a dignidade humana (artigo 7º, IV), desenvolvido em ambiente seguro, privilegiando a redução e a eliminação dos riscos dos acidentes e doenças do trabalho (artigo VII, XXII); direito ao descanso do trabalhador (artigo 7º, XIII, XIV, XV, XVI, XVII); moradia que assegure proteção nas adversidades climáticas, dotada de infra-estrutura que promova igualmente as condições básicas de higiene e saúde (artigo 6º combinado com o artigo 1º, III que estabelece entre os fundamentos da República Federativa do Brasil a dignidade humana); previdência social (artigo 6º) que representa uma das mediações da segurança (artigo 6º e 7º, XXIV); assistência social, inclusive e especialmente às mulheres (na gestação e no parto), às crianças, aos adolescentes, aos idosos e às pessoas portadoras de deficiências (artigos 6º e 203); alimentação adequada; acesso aos direitos através da assistência jurídica pública (artigo 5º, LXXIV).

Veja-se, contudo. A lista apresentada ultrapassa o mínimo social, mas não sobreexcede as necessidades humanas básicas; nela, nada é supérfluo ou ligado ao consumismo do mercado capitalista. Cuida-se, por conseguinte, de necessidades que englobam objetivamente a dignidade humana. Por essa forma, as necessidades humanas básicas agregam por igual as liberdades e os direitos fundamentais sociais. Ou seja, os últimos deixam de ser percebidos exclusivamente como condições para o exercício das liberdades, adquirindo importância própria, rompendo, assim, a prevalência histórica atribuída aos direitos individuais.

Assentado isto, não é válido considerar que os direitos fundamentais sociais

configuram meras “normas programáticas”, ou seja, serviriam apenas como um horizonte ao

Poder Público ou um mero programa de resultados a longo alcance. Contra isto, cabe argumentar que os valores sociais são bases num Estado Democrático de Direito, tal qual afirma ser o nosso estado (BUHRING, 2015), e o qual possui dever de buscar a todo instante

(24)

Diante de tamanha constatação, é válido asseverar que a CRFB/88 inaugurou formalmente o regime de “Estado Democrático de Direito” no Brasil, conforme aduz seu próprio art. 1º. Isto implica vincular a Carta Magna a noções de prioridade aos direitos fundamentais, primazia da dignidade da pessoa humana, estrutura política que permita a harmonia entre as instituições e a sociedade civil, busca da igualdade material, entre outros princípios e ações que conformam um Estado plural e protetor dos direitos fundamentais (GONÇALVES, 2005, p. 183-184). Outrossim, o §1º do art. 5º da CF/88 prevê a autoaplicabilidade dos direitos fundamentais, como se extrai do texto: “As normas definidoras

dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

Ademais, a doutrina costuma assinalar que a CF/88 é notavelmente uma constituição dirigente, ou seja, sua normatividade deve orientar de sobremaneira a política nacional, de modo a concretizar as normas gerais e específicas da Carta Magna. Evidentemente, não se trata de “engessar” a atividade parlamentar e de chefes do executivo, mas orientar, servir de parâmetro e fundamento para a atuação política, como explicara Canotilho (1994, p. 463-464):

Em síntese: o bloco constitucional dirigente não substitui a política; o que se torna é premissa material da política. As normas constitucionais programáticas põem a claro que a vinculação jurídico-constitucional dos actos de direcção política não é apenas uma <<vinculação através dos limites>>, mas uma verdadeira vinculação material que exige um <<fundamento constitucional>> para esses mesmos actos. Só este entendimento se afigura compatível com o sentido actual do Estado de Direito Democrático: o poder estadual não é uma entidade substancial preexistente à constituição, devendo os seus actos considera-se também e em qualquer caso, constitucionalmente <<determinados>>. Daqui se pode deduzir, igualmente, a função de defesa, das normas programáticas: elas contribuem para diminuir as pretensões do <<poder>> ou <<domínio>> prae ou extra-constitucionais.

Mas o <<bloco constitucional dirigente>> não visa só (como se deduz logo da sua adjetificação) constituir um limite à direcção política. A sua função primordial é bem outra: fornecer um impulso directivo material permanente e consagrar uma <<exigência>> de actuação.

Diante de tais considerações a respeito do significado da Constituição Federal de 1988 insta concluir que a mesma de fato espelha um Estado de Bem-Estar Social, na medida em que possui tanto normas programáticas quanto diretivas e de cumprimento vinculado ao Poder Público sobre a atuação estatal em prol das áreas de necessidade humana elementares, figuradas principalmente no rol do art. 6º da CF/88. A busca por justiça social, tomando-se como exemplo as experiências europeias, se traduziu numa luta por direitos básicos que foi bastante influente na formulação do atual texto constitucional brasileiro, definindo o modelo

(25)

Apesar da previsão normativa relativamente extensa a respeito dos direitos sociais

– tanto em termos programáticos (art. 1º a 11º, p. ex.) quanto mais específicos (“Ordem

Social”, p. ex.) – fato é que a concretização de direitos fundamentais no Brasil, em especial os direitos sociais, esbarram-se em um grande desafio, qual seja, o seu próprio financiamento.

Tamanho desafio de “financiar direitos” pode ser abordado de diversas formas. Aqui não se avançará na enorme possibilidade de discussão sobre financiamento de direitos, apenas ressaltando que se trata de entraves muitas vezes relativos à pauta da política econômica, como se discorrerá no tópico seguinte.

A par do narrado acima, convém ressaltar ainda dois princípios constitucionais que em muito se articulam com o projeto de Bem-Estar Social descrito acima e possuem relação com o discutido neste trabalho. Um destes princípios está explícito na CF/88, qual seja, o conhecido princípio da dignidade da pessoa humana, tido por muitos como corolário de nossa Carta Magna. Enquanto o outro é frequentemente caracterizado como implícito ao sistema constitucional, sendo ele o da proibição de retrocesso social.

Inicialmente, importa afirmar que os princípios, em um ordenamento jurídico, cumprem tanto um papel diretivo (de direção) ao legislador, como também um papel protetivo

(de proteção) ao cidadão, na medida em que serve de “limite” ao intérprete e ao próprio legislador “impedindo-o de implementar mudanças interpretativas ou legislativas que determinem um retrocesso na área juridicamente protegida pelo direito fundamental em voga” (GOLDSCHMIDT, 2013).

O princípio da dignidade da pessoa humana, amplamente reconhecido no direito brasileiro, está insculpido no art. 1º, III, da CRFB/88, como fundamento da República Federativa do Brasil. Tal princípio tem se revelado como um dos grandes consensos do Ocidente e sua importância nos sistemas jurídicos é inconteste na atualidade. O contexto que elevou o patamar do princípio em referência remete-se ao período pós-2ª Guerra Mundial, em que o mundo estava perplexo com as atrocidades do Holocausto e, portanto, desejoso de um ambiente de paz, que cultivasse a vivência digna dos humanos (BARROSO, 2013, p. 272-273). Nesse cenário, surgiram documentos internacionais paradigmáticos, como a Carta da ONU, de 1945, e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948.

Conforme extraído, tem-se no princípio em comento um corolário do sistema jurídico, isto é, ele se caracteriza como fundamento de direitos fundamentais, provocando

(26)

a 11º, especialmente).

Nesse sentido, percebe-se uma imbricação entre o princípio em referência e os

direitos fundamentais, pois nessa ideia de “irradiador de direitos”, a dignidade da pessoa

humana se traduz numa exigência e num pressuposto para o reconhecimento e a proteção “dos direitos fundamentais de todas as dimensões. Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á negando-lhe a própria

dignidade” (SARLET, 2004, p. 84).

Intrínseco à dignidade da pessoa humana, o princípio da proibição de retrocesso social se consubstancia num elemento para conter a edição de normas que retroajam em termos de direitos. Com ele, objetiva-se não regredir nos compromissos com a democracia e com os direitos fundamentais assumidos na Carta Magna. Portanto, tal princípio está correlato com o da dignidade da pessoa humana e decorre do próprio sistema jurídico-constitucional, conferindo certa segurança jurídica às conquistas sociais na seara do direito.

Em que pese tratar-se de um princípio implícito, e por isso traz divergência na doutrina constitucional sobre a sua existência, cabe afirmar que um dos maiores indicadores de sua validade está na cláusula pétrea insculpida no art. 60, §4º, IV, da CRFB/88, a qual trata do impedimento ao legislador de revogar ou reduzir os direitos e garantias individuais. Ao

mencionar “direitos e garantias individuais” sabe-se que a proteção vai além do rol previsto no art. 5º, englobando outros direitos fundamentais, tais quais os sociais os do art. 6º (BUHRING, 2015), consoante interpretação já mencionada do art. 5º, §2º, da Lei Maior.

O conteúdo material do princípio da proibição de retrocesso social consiste, portanto, na vedação ao legislador à “possibilidade de, injustificadamente, aniquilar ou reduzir o nível de concretização legislativa já alcançado por um determinado direito

fundamental social” (DERBLI, 2007, p. 243), ou, em outras palavras, uma vez que as normas

definidoras de direitos fundamentais sociais estejam concretizadas em sede legislativa, “tais direitos passam a exibir não somente o status positivus próprio dos direitos prestacionais,

como também o status negativus característico dos direitos de defesa” (DERBLI, 2007, p. 243). Esse status negativo é o que impede a arbitrariedade do legislador reduzir o nível de concretização dos direitos fundamentais sociais.

Nessa esteira, compreende-se que a expressão jurídica “retrocesso social”

significa uma conduta comissiva do legislador, que, na atividade legiferante que lhe é própria,

revoga ou retorna de maneira arbitrária “ao estado originário de ausência de concretização

legislativa da norma constitucional definidora de direito social ou reduz o nível dessa

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Quando se inclui a impossibilidade de reduzir o “nível de concretização” resta claro que não

se trata apenas da hipótese de aniquilar frontalmente um direito, mas sim de legislações que diminuem a materialização de direitos fundamentais.

Outrossim, o Brasil assinou compromissos que dispõem a respeito da importância de não retroceder sobre direitos fundamentais. Maior exemplo disso trata-se do Pacto de San José da Costa Rica, o qual foi incorporado no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto Federal nº 6783, de 06 de novembro de 1992, e que aborda em seu art. 26 a necessidade de progressão dos direitos sociais, como se vê:

Artigo 26

Desenvolvimento Progressivo

Os Estados-Partes comprometem-se a adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.

Dessa forma, tem-se continuamente a determinação de não retroagir na seara dos direitos fundamentais sociais. Com a mesma concepção desenvolveu-se uma tese amplamente conhecida pela jurisdição nacional cunhada de “mínimo existencial”, a qual se relaciona de

sobremaneira com a proibição de retrocesso, já que significa a garantia de um núcleo básico de direitos que propicie vida digna ao humano. Nessa perspectiva, decidiu paradigmaticamente o Supremo Tribunal Federal (2011):

(...) A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTRAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. – O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. – A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Em conseqüência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados (...).

3 Em que pese o julgamento do STF no RE 466.343 ter considerado que os tratados internacionais em matéria de

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Como se depreende do entendimento acima, a proibição de retrocesso social impede a abstenção do poder público diante das demandas que firmou compromisso em prestar serviços públicos, caracterizadas como direitos prestacionais, que exigem a atuação do Estado. Não deve haver, por conseguinte, obstáculo à concretização dos direitos fundamentais sociais, tendo o Estado papel de preservá-los e efetivá-los.

Em resumo, o estudo acerca dos princípios da dignidade da pessoa humana e da proibição de retrocesso social indica que ambos estão presentes na arquitetura constitucional de 1988, no sistema jurídico brasileiro, sejam de forma explícita ou implícita. Assim, projetam uma série de influências e determinantes no campo do direito, cabendo destacar: i) do princípio da dignidade da pessoa humana, o papel de fundamentação dos direitos fundamentais, sendo decisivo para irradiá-los no ordenamento, e direcionar a atividade política à realização de vidas dignas; e ii) do princípio da proibição de retrocesso social, a função de conter reduções no campo dos direitos sociais a níveis anteriores dos já conquistados na atualidade.

Além disso, os princípios em referência, constantes no arcabouço jurídico-constitucional brasileiro, acabam por proteger o projeto constituinte de 1988 que consubstancia como modelo de estado nacional o Estado de Bem-Estar Social.

1.2 A tensão entre o neoliberalismo e os direitos fundamentais sociais: sobre o estado de exceção econômico

Todavia, a realidade muitas vezes impede a concretização do previsto em Carta Magna. A depender da economia política adotada por um país, os direitos fundamentais sociais e os princípios constitucionais retratados acima podem ser tencionados ao descarte.

Isto se refere particularmente à adoção do neoliberalismo (junção das palavras “novo” e “liberalismo”) pelos estados, fenômeno que dominou o ambiente político-econômico nas décadas de 1980 e 1990, mas que ainda encontra guarida nos dias de hoje.

Primordialmente, convém relatar que o modelo de Estado de Bem-Estar Social, em que pese ter sido influente na formulação da CF/88, entrou em crise na Europa e nos EUA

já na década de 1970, quando após quase três décadas gloriosas do capitalismo (a “Era de Ouro” conforme descrito anteriormente) estourou-se uma nova crise mundial, advinda com a queda do consumo, ocasionando a desaceleração de várias economias mundiais e a escalada do desemprego.

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romperam unilateralmente em 1971 com o Acordo de Bretton Woods (1944), o qual significava a garantia de concessão do dólar em ouro à paridade de 35 dólares por onça troy de ouro. Diante disso, os americanos adotaram o sistema de câmbios flutuantes, futuramente aplicado em vários outros países, e que simboliza o ponto de viragem da política macroeconômica de bases keynesianas para a política neoliberal (NUNES, 2003, p. 426).

Durante a década de 1980, tem-se a consolidação do modelo neoliberal com os governos de Margaret Thatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos EUA entre os países ricos e com o governo militar de Pinochet no Chile entre os países pobres. Em comum, ambos os governantes promoveram políticas de privatizações, redução do papel estatal na saúde e na previdência social, bem como o arrocho salarial e o fim de programas sociais em habitação e assistência social.

O fenômeno neoliberal surgiu, portanto, diante do cenário de crise, quando o mainstream econômico rifou as ideias keynesianas, consolidadas no Ocidente desde a crise de 1929 nos EUA até a década 1970. Em desconsideração a isso e somando-se a crise das nações socialistas que já não mostravam o mesmo vigor econômico de antes, ganharam força as perspectivas liberais, que defendiam a desintrusão do Estado na economia, bem como o desmonte do Welfare State ou Estado-providência, entre outras assertivas comentadas a seguir.

O contexto de crise na década de 1970 serviu para consolidar a “decadência” do modelo econômico keynesiano e fazer surgir as ideais do “novo liberalismo”, contando com

o apoio de setores dominantes na sociedade (FARIAS, 2006, p. 28). Dessa forma, ganhou espaço nos debates institucionais as ideias do novo liberalismo, inicialmente vista como uma corrente político-econômica que “renovou” as bases do antigo liberalismo (de Adam Smith e outros). Entre os intelectuais mais influentes dessa matriz ideológica na economia destacaram-se os austríacos Ludwig von Mises, Friedrich August von Hayek e o americano Milton Friedman, os quais contribuíram, especialmente na segunda metade do século XX, para o descenso das ideias keynesianas, e consequentemente para a ascensão e consolidação dos aportes teóricos do neoliberalismo.

Mises, o pensador mais jovem da tríade mencionada, e principal mentor de Hayek, foi um severo crítico da teoria científica do socialismo (marxismo), tendo se contraposto também a regulações do estado na economia ainda que no capitalismo. Como principal tese, sustentou que o mercado seria a alma da sociedade (MERQUIOR, 2014, p. 189).

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carreira, que o planejamento e o Estado previdenciário levariam à tirania. Posteriormente, sustentou que o mercado e o progresso caminham evolutivamente, assim como a intervenção estatal é prejudicial por emitir sinais enganadores e reduzir o escopo da experimentação econômica (MERQUIOR, 2014, p. 190).

Ainda, Hayek defendeu que um governo legítimo deve se preocupar em prover estrutura para o mercado, bem como prover serviços os quais o mercado não consegue fornecer. Assim, asseverou também que as liberdades civil e política se desvanecem a menos

que se tenha a liberdade econômica, a “capitã” das liberdades (MERQUIOR, 2014, p. 191). A nível mais concreto, Hayek proclamou, mediante a alta inflacionária da década de 1970, que a

“inflação é o caminho para o desemprego” (NUNES, 2003, p. 426), disparando contra as

políticas econômicas keynesianas, acusando-as de causar inflação e desemprego (NUNES, 2003, p. 426).

Por fim, tem-se em Friedman, pensador vinculado à escola de Chicago, a ideia de

que “dispersando-se o poder, o jogo do mercado equilibra concentrações de poder político” (MERQUIOR, 2014, p. 191). Durante a alta do desemprego na década de 1970, Friedman sustentou que a competição natural promovida pelo mercado dá mais empregabilidade que as condições estabelecidas num modelo keynesiano (NUNES, 2003, p. 428).

Além da sustentação intelectual, o neoliberalismo precisou angariar adesão popular para ser posto em prática pelos governos ao redor do mundo. A construção para isso envolveu uma série de ações, as quais incluíram diversos canais de manifestação ideológica. Seja por meio da organização de bancos de ideias – apoiados e financiados por corporações – ; pela influência em setores da comunicação; pela conversão de intelectuais a maneira de pensar neoliberal; ou mesmo pela coerção a certos países de organismos internacionais como o FMI para a adoção de práticas neoliberais, construiu-se o consentimento em torno da necessidade de implantar o neoliberalismo (HARVEY, 2011, p. 49-51).

Para um melhor panorama acerca do fenômeno em estudo, convém dissertar o que sustenta Harvey (2011, p. 75-77), quando teoriza que é possível falar em ao menos “dois neoliberalismos”. Isto é: o neoliberalismo “na teoria” e o neoliberalismo “na prática”.

“Na teoria”, no novo liberalismo, o Estado detém um papel de incentivador do

mercado, fazendo valer as instituições do direito, incluindo o fortalecimento de direitos individuais (como a propriedade privada) e o sistema de justiça (concretizando o mantra “lei e ordem”). Além disso, a privatização seria um elemento central para eliminar a “burocracia” e

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empresas. Afora tais pontos, a competitividade entre os estados seria um fator saudável para manter o mercado global longe da inflação e funcionando harmonicamente (HARVEY, 2011, p. 75-77).

Os aportes teóricos do neoliberalismo também acabaram sendo unidos num

documento mundialmente conhecido, cunhado de “Consenso de Washington”, consistente

numa síntese de 10 regras formuladas por equipe econômica que mesclou profissionais do FMI, Banco Mundial e Departamento do Tesouro Americano, e que, mesmo a contragosto, deveriam ser seguidas em todo o planeta. Em palavras-chave, as dez regras foram: disciplina fiscal; redução dos gastos públicos; reforma tributária; juros do mercado; câmbio de mercado; abertura comercial; investimento estrangeiro direto (sem restrições); privatização das estatais; desregulamentação de leis econômicas e trabalhistas; e fortalecimento do direito à propriedade intelectual.

Nesse bojo, a concepção neoliberal é de que as economias capitalistas espontaneamente têm o condão, por exemplo, de equilibrar o pleno emprego, sem a necessidade de intervenção estatal, a qual pode ser inconsequente a ponto de gerar inflação. O ideário neoliberal também nega a responsabilidade do Estado em torno das questões atinentes à justiça social, sustentando que os encargos sociais se configuram como um atentado à liberdade individual (NUNES, 2003, p. 439-442).

Em que pese o neoliberalismo “na teoria” praticamente apregoar o desmonte do Estado como provedor social, mas vender uma ideia de prosperidade a partir da livre

iniciativa, é “na prática”, de descrição mais difícil e engenhosa por depender da localidade e

do manejo da política, que se vê os seus efeitos e suas contradições (HARVEY, 2011, p. 80).

“Na prática”, o que se vê continuamente é a necessidade neoliberal de criar um “clima de negócios ou de investimentos favorável” no ambiente capitalista. Assim,

frequentemente, na hipótese de conflito, o Estado neoliberal fica ao lado da criação do tal

“clima favorável” em detrimento dos direitos coletivos do trabalho, da seguridade social etc. Também em caso de conflito, o Estado neoliberal demarca posição ao lado da “saúde” do

sistema financeiro e não ao lado do bem-estar populacional (HARVEY, 2011, p. 81).

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e da OMC (HARVEY, 2011, p. 82).

Possivelmente uma das práticas mais contraditórias do neoliberalismo têm sido às relativas ao capital financeiro e às instituições financeiras, pois se caracterizam tanto pela desregulação, que aumenta a influência das instituições financeiras, como pela garantia – a todo custo – da integridade e da solvência dessas instituições. Isso pode significar tanto que a política monetária é pilar na receita neoliberal, como também que a ajuda do Estado – o mesmo que deve reduzir seu papel de provedor de políticas sociais – é fundamental para socorrer empresas ou evitar fracassos financeiros (HARVEY, 2011, p. 83). Tal iniciativa demonstra o que de fato o sistema financeiro deseja: a ajuda estatal para crescer e também arcar com as consequências de seus atos desastrosos, como se viu na crise americana de 2008, quando vários bancos americanos sobreviveram graças a pacotes de socorro generosos advindos do governo dos EUA.

Outra questão que se relaciona com o descrito acima se trata da solução para pagamento das dívidas públicas. Durante as décadas de 1980 e 1990, vários países emergentes contraíram vultuosas dívidas externas com o FMI. Em troca de perdoar uma parcela dessas dívidas, o Fundo exigiu como contrapartida uma grande reforma institucional neoliberal (HARVEY, 2011, p. 85), que provocou a mudança de política econômica nesses países, de modo a tornar a meta fiscal como prioridade governamental em detrimento de uma série de políticas públicas de desenvolvimento social.

Ainda sobre o novo liberalismo “na prática”, outra marca que tem se sobressaído, a despeito do apregoado “ajuste natural do mercado” em prol do bem-estar, é que a propagada

“flexibilização” no mercado de trabalho tem sido uma inconsequente perda de direitos trabalhistas, traduzida na precarização dos postos laborais, que oferecem baixos salários, crescente insegurança, além de perdas de benefícios e de proteções ao trabalhador (HARVEY, 2011, p. 86). Paralelo a isso, soma-se o fortalecimento dos acordos e convenções entre trabalhadores e patrões e o enfraquecimento dos poderes sindicais, o que colabora com a situação de piora na qualidade de vida dos trabalhadores ao redor do mundo.

Por fim, cabe mencionar a prática estatal de benefício às grandes corporações. Sendo frequente, o Estado neoliberal produz legislações e estruturas regulatórias voltadas a interesses específicos de setores como o da energia, da farmacêutica e do agronegócio (HARVEY, 2011, p. 87). Também nas situações de parceria público-privada, seja em obras ou serviço, tal como ocorre no Brasil, o Poder Público assume muitos mais riscos que a iniciativa privada, restando a esta a certeza do lucro e a garantia de que não arcará com más ingerências.

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1990, no governo central de Fernando Henrique Cardoso, quando ocorreram várias privatizações de estatais brasileiras (Vale do Rio Doce, p. ex.), a adoção do tripé macroeconômico (meta fiscal, meta inflacionária e câmbio flutuante), dentre outras medidas no sentido da redução do papel estatal na promoção de políticas sociais e do crescimento da autonomia de mercado.

Durante os governos Lula e Dilma, até 2014, observou-se uma certa mitigação da política neoliberal. Contudo, em que pese ter havido grande investimento público em políticas sociais, algumas marcas neoliberais permaneceram fortes, como a salvaguarda ao sistema financeiro e o privilégio de setores como o agronegócio e a construção civil no modus operandi governamental.

Ante o exposto, conclui-se que há uma tensão entre os direitos fundamentais sociais e a política econômica neoliberal, marcadamente com as características do

neoliberalismo “na prática”. Isto por conta de uma incongruência entre as duas, um verdadeiro “choque” de premissas e concepções acerca do Estado e da sociedade. Enquanto os mencionados direitos demandam a atuação estatal para serem materializados, o neoliberalismo projeta a redução da participação do Estado em áreas sociais e na economia. Sobre essa incompatibilidade/tensão, no contexto das contrarreformas neoliberais brasileiras, havidas no país desde a década de 1990, assenta Martinelli (2009, p. 182-183, grifos nossos):

Ante as injunções do sistema monetário internacional, o programa de desenvolvimento nacional, as políticas estatais de expansão da efetividade dos direitos fundamentais de igualdade material, a redução das desigualdades sociais, a erradicação da pobreza e a busca do pleno emprego soçobraram. O programa neoliberal – a estabilidade da moeda, a manutenção de inflação baixa, o rigoroso equilíbrio orçamentário, a alta arrecadação tributária, a formação de superávit primário, a liberdade de circulação de capitais, as privatizações e o drástico corte de gasto público – corroeu, portanto, o conteúdo social da Constituição de 1988, esterilizando-a. O monetarismo onipotente debilitou o humanismo.

Revelando o inequívoco descompromisso do Estado brasileiro neoliberal com o desenvolvimento nacional e com o conteúdo social da Constituição de 1988, aprovaram-se emendas constitucionais de cunho neoliberais que reservaram significativo montante de receita pública da União para a garantia da estabilidade monetária, contribuindo-se ainda mais para a esterilização da Constituição de 1988. Por meio das emendas constitucionais monetaristas e dos superávits primários, esterilizou-se a atual Constituição brasileira. Sob a aparência de norma constitucional, aprovaram-se emendas neoliberais que diminuíram consideravelmente a capacidade de investimento do Estado em políticas de expansão da efetividade dos direitos de igualdade material.

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como exposto -, é a prevalência da receita neoliberal, que poda a concretização da igualdade material. Numa situação de crise econômica, por exemplo, como já referenciado, um Estado neoliberal opta por “criar um clima de negócios”, justificando para isso um possível crescimento de investimentos no país, ao invés de cuidar das necessidades humanas e do bem-estar da população (HARVEY, 2011, p. 58).

A respeito dessa tensão da arquitetura constitucional com o neoliberalismo, cabe ressalvar que parte da doutrina constitucionalista propugna teses de exceção aos cumprimentos da CF/88, falando-se sobre a “reserva do possível” (em contraposição ao “mínimo existencial”) ou mesmo “relatividade dos direitos sociais”. Isto porque, a depender

do momento econômico do Estado, este seria apto ou não a satisfazer as necessidades básicas humanas.

Em que pese poder haver exagerado idealismo na exigência, por exemplo, da concretização imediata de todos os direitos fundamentais sociais insculpidos no art. 6º da Constituição Federal, também não se pode olvidar que a Lei Maior se curve não somente a um mau momento econômico, mas a uma política econômica deliberada e de longo prazo, a qual compromete um pacto civilizatório mínimo que visa alcançar um patamar social próximo da dignidade humana.

Nesse viés, a tensão verificada entre neoliberalismo e direitos fundamentais sociais possui intrínseca relação com a categoria de estado de exceção, consistente num paradigma governamental cada vez mais estudado. A seguir, a exposição acerca de tal categoria se centrará nos aportes teóricos de Giorgio Agamben e Gilberto Bercovici.

Agamben, a partir dos estudos de Carl Schmitt e Walter Benjamin, intensificou suas contribuições sobre estado de exceção a partir da medida USA Patriot Act, promulgada pelo Senado americano em 2001, durante o então governo americano de George W. Bush, e

consistente na autorização ao “Attorney general ‘manter preso’ o estrangeiro (alien) suspeito de atividades que ponham em perigo ‘a segurança nacional dos Estados Unidos’; mas, no

prazo de sete dias, o estrangeiro deve ser expulso ou acusado de violação de lei sobre a

imigração ou de algum outro delito” (AGAMBEN, 2004, p. 14).

Com o exemplo acima, Agamben (2004, p. 14) inferiu que a nova ordem

governamental, “justificada” pela tragédia da queda das Torres Gêmeas naquele ano, anularia “radicalmente todo estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, dessa forma, um ser

juridicamente inominável e inclassificável”. Dessa forma, restaria suspenso um conjunto de

direitos e garantias fundamentais em prol da “segurança nacional dos Estados Unidos”.

Imagem

Figura 1. Quadro fiscal brasileiro (1999-2014). Adaptado de CARVALHO (2016).
Figura  2.  Quadro  comparativo  entre  países  de  medidas  de  ajuste  fiscal  recentes
Figura 3. Evolução comparativa de gastos com a saúde de acordo com a regra atual e com a regra da EC 95/16,  utilizando como medida a RCL
Figura  4.  Projeção  comparativa  do  gasto  per  capita  em  saúde  entre  cenários  com  diferentes  crescimentos  econômicos e de acordo com a regra da EC 95/16
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