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O Teatro experimental de Brecht

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Academic year: 2018

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PUC-SP

Rita Alves Miranda

O Teatro experimental de Brecht

MESTRADO EM FILOSOFIA

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PONTIFICA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Rita Alves Miranda

O Teatro experimental de Brecht

MESTRADO EM FILOSOFIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Profa. Dra. Sônia Campaner Miguel Ferrari

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Quero agradecer em primeiro lugar à minha família, meus pais Raul e Fátima e ao meu irmão Ricardo, pelo apoio, dedicação e todo amor que sempre me deram.

Ao CNPq, por permitir que eu me dedicasse de corpo e alma a este trabalho. À professora Sônia Campaner o meu profundo agradecimento pela ajuda, parceria e mais que isso, por ter acreditado no potencial de minhas escolhas e me encorajado a ir em frente, sobretudo quando eu tive medo.

Aos meus queridos e leais amigos que estão sempre aí comigo, dividindo as alegrias e as angústias.

Agradeço especialmente ao Diogo Dias e à Júlia Yoshino pelas revisões e pela amizade.

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Este trabalho tem por objetivo abordar a passagem de Bertolt Brecht pela história do teatro e a influência de sua proposta na fase contemporânea da arte. Inicialmente, analisamos a crítica de Brecht dirigida a algumas concepções tradicionais de teatro e o caminho percorrido pelo autor para pensar a crise do drama que se instalara tempos antes. Nesse percurso foram consideradas algumas referências e possíveis objeções de Brecht a Aristóteles e ao modelo aristotélico de teatro. Nesse debate polêmico, analisamos as referências ao filósofo grego, a fim de esclarecer se o que Brecht pretendia era rejeitar mesmo Aristóteles, ou mais uma apropriação daquele modelo formal. Sabe-se que o modelo aristotélico de teatro foi retirado da obra Poética de Aristóteles e que sofreu apropriações segundo as épocas, sendo uma delas a leitura burguesa. Essa leitura é rebatida por Brecht que revê a realidade do drama burguês e percebe que era preciso que ele fosse revisto imediatamente, pois o teatro já não atingia mais as pessoas, mas sua disposição dependia de uma relação de passividade por parte dos espectadores.

Frente a dessa crise do drama, alguns artistas, tentaram reformulá-lo sem, no entanto, obter sucesso. Brecht, quando deu início a seu trabalho, já tinha conhecimento dessas tentativas e diante desses fracassos, o objetivo era fazer o teatro inaugurar um novo lugar dentro da sociedade. Em busca do melhor lugar, ele tem em mente um lugar de produção de consciências, opondo-se radicalmente à logica burguesa-capitalista que buscava a alienação dos indivíduos. Assim, localizado já fora do debate de acerto de contas com o passado, Brecht concentra-se em concentra-seu preconcentra-sente e enfrenta György Lukács que concentra-se opõe a Brecht ao pensar a arte de uma forma diferente, atribuindo a este a imagem de Formalista. Nos ocupámos de defender Brecht também dessas acusações.

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escreve peças como A Alma Boa de Setsuan (1939-1942) e Vida de Galileu (1938-1939). Neste momento do trabalho nosso foco foi essa dada concepção madura da obra do autor e as características de seu pensamento nessa época, pensamento que tomamos como próprio brechtiano. Concentramos nossa atenção neste momento da obra, a fim de mostrar a compatibilidade desse pensamento e uma concepção de teatro contemporânea.

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This master’s thesis aims to approach the passage of Bertolt Brecht through the theater history and the influence of his proposal for the contemporary art. Initially, we analyzed Brecht’s criticism towards some traditional conceptions of theater and the path taken by the author to think the crisis of drama that had settled times before. Along the way were considered some references and possible objections from Brecht to Aristotle and the Aristotelian model of theater. In this controversial debate, we analyzed the references to the Greek philosopher, to clarify weather Brecht really wanted to reject Aristotle, or he proposed an appropriation of that formal model. It is known that the Aristotelian model of theater was removed from the Poetics of Aristotle and suffered different appropriations in different epochs, one of them being the bourgeois reading. This view is refuted by Brecht, when he analyzes the reality of bourgeois drama and realizes that it was necessary that it be revised immediately, because the theater is no longer affecting the people, in the sense that their willingness depended on a relationship of passivity on the part of viewers.

Facing this crisis of drama, some artists tried to reformulate it without however succeeding. Brecht, when began his work, had knowledge of these attempts and facing their failures, the goal was to make theater inaugurate a new place in society. In search of the best place he has in mind a place of production of consciousness, radically opposed to the bourgeois-capitalist logic that sought the alienation of individuals. So, now located outside the debate of reckoning with the past, Brecht focuses on your present and faces the ideas of György Lukács which oppose Brecht by thinking art in a different manner and attributing to him the image of Formalist. We also deal whit defending Brecht from these charges.

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mature conception of the author’s work and the characteristics of his thinking at that time, thinking that we take as very Brechtian itself. We focus at this moment of his work, to show the compatibility of his thought and a contemporary conception of theater.

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Agradecimentos...5

Resumo...6

Abstract... 8

Introdução... 11

Capítulo 1- Brecht e o modelo tradicional de Teatro... 24

1.1 Brecht e a descoberta da nova função da Arte... 24

1.2 A crítica de Brecht à tradição... 38

1.3 Brecht e Aristóteles... 65

1.3.1 O jogo emocional e perigoso da empatia ... 70

Capítulo 2 - Brecht e o Realismo Socialista... 78

2.1 O confronto entre Lukács e Brecht... 95

Capítulo 3 – O Brecht Maduro... 104

3.1 Brecht e Galileu... 118

Conclusão ...128

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Introdução

É verdade, eu vivo em tempos negros.

Palavra inocente é tolice. Uma testa sem rugas Indica insensibilidade. Aquele que ri

apenas não recebeu ainda A terrível notícia.

Que tempos são esses, em que Falar das árvores é quase um crime

Pois implica silenciar sobre tantas barbaridades? Aquele que atravessa a rua tranquilo

Não está mais ao alcance de seus amigos Necessitados?

Sim, ainda ganho meu sustento

Mas acreditem: é puro acaso. Nada do que faço Me dá direito a comer a fartar.

Por acaso fui poupado. (Se minha sorte acaba, estou perdido.)

As pessoas me dizem: Coma e beba! Alegre-se porque tem! Mas como posso comer e beber, se

Tiro o que como ao que tem fome

E meu copo d’água falta ao que tem sede? E no entanto eu como e bebo.

Eu bem gostaria de ser sábio.

Nos velhos livros se encontra o que é sabedoria: Manter-se afastado da luta do mundo e a vida breve Levar sem medo

E passar sem violência Pagar o mal com o bem

Não satisfazer os desejos, mas esquecê-los Isto é sábio.

Nada disso sei fazer:

É verdade, eu vivo em tempos negros. [BRECHT, 2000, p.212]

Depois de certo tempo maturando alguns temas, discutindo assuntos que diziam respeito à formação dos indivíduos, passei a acreditar mais e mais que, se atentos às nossas vidas, há determinados momentos em que somos capazes de perceber a valia de certas afecções, sejam elas por pessoas, autores, ideias, escolas. E, foi assim, que há oito anos1 durante uma aula de teatro, me vi afetada pela presença de Bertolt Brecht, uma das figuras mais importantes da história do teatro moderno, que, a partir dali, passou também a ter um papel decisivo em minha vida.

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Na época, cursava ao mesmo tempo a graduação em Filosofia e o curso profissionalizante de teatro e posso dizer que, desde o primeiro contato com Brecht, meu interesse extrapolou os limites do palco, fazendo-me descobrir uma afinidade que eu entendi mais tarde que tinha a ver com o legado deixado por aquele autor. O empenho de Brecht e a sua causa (Grund) geraram em mim uma aproximação que dura até hoje. Se pudesse, citaria seus textos aonde fosse, pelas ruas, para que assim como eu as pessoas também se sentissem afetadas por eles. Por experiência, descobri que embora bastante conhecido, Brecht, ao menos no Brasil, não é um pressuposto para quem estuda teatro, e a surpresa e o entusiasmo daqueles que o leem e compreendem a intenção do autor são quase certos. Penso que, apesar da acessibilidade a seus textos hoje, ainda há um isolamento parcial de sua obra. Alguns aspectos desta foram bastante difundidos e até apresentam uma saturação. Porém, ainda há o que dizer.

Passada a fase da descoberta, atenta ao que aquela afinidade despertara em mim, era impossível voltar ao que eu era antes, de maneira que percebi que um retrocesso seria negar a mim mesma. Passei então a refletir sobre aquilo que nasceu dessa afecção, vendo o que ela poderia acarretar de determinante em minha formação enquanto indivíduo. Ainda em início de um despertar formal, eu aspirava produzir algo mais do que percepções, e isso me fez querer dar continuidade à relação com Brecht e o seu projeto, dedicando esta dissertação de mestrado a esse encontro: à sua causa e a seu empenho, que me inspiraram e me inspiram.

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Infelizmente, logo que comecei a pesquisar Brecht, observei que por diversos fatores o dramaturgo e sua obra tinham caído em descrédito, a ponto de uma corrente de críticos e artistas chegar a considerá-lo ultrapassado. Quando pensei que por um lado não seria fácil enfrentar essa corrente, ao mesmo tempo não conseguia me convencer de que a obra de Brecht merecia ser abandonada, pois olhando para o mundo de sua época e para o mundo de hoje (de meu presente), o seu valor não parecia supérfluo. Para mim, diante da realidade constatada, acredito que o seu teatro encontra-se ainda numa fase inicial de recepção, podendo ser considerado “um elemento permanente e ativo, cujo efeito discriminante é hoje ainda menos dispensável do que há vinte

ou trinta anos” [PASTA, 2010, p.16].

Logo, espero ter conseguido ser fiel à verdadeira causa de Brecht (que acabei por adotar como minha também) e clara aos leitores, fazendo jus à tarefa que eu mesma impus à minha formação individual, que é a de visar, sempre em alguma medida, o coletivo. Pois, ao se falar de Brecht, tudo tem que ser entendido e pensado na dimensão do todo, para além do sujeito, já que a constituição de uma pessoa por mais isolada que seja é dependente desse todo, tornando impossível aceitá-la como uma figura aleatória entre as demais. Para Brecht, a vida de cada pessoa é determinada pelo mundo, o que torna o papel de cada um também determinante dentro do todo.

Tendo em mente o ideário de coletivo, precisei saber antes de querer me aventurar por essa afinidade os perigos que eu poderia enfrentar no caminho escolhido, já que se tratava de pensar num trabalho acadêmico e ainda em consideração à larga literatura existente sobre o autor. Diante da complicada tarefa de enfrentar certa “intimidação” vinda da tradição crítica, foi a proposta destinada à formação de um novo espectador (de um novo público de teatro) que me fez seguir em defesa desse fim e querer mostrar a sua extensão à contemporaneidade.

Para cumprir com a tarefa, mergulhei na história do autor e nas fases que compuseram seu amplo trajeto no teatro, até que finalmente se chegasse ao entendimento de como deveria se portar o novo teatro, que a meu ver –

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Brecht a outro patamar de compreensão, não podendo mais ser confundida com aquele estágio inicial de sua carreira.

A grandiosidade dessa fase de Brecht – e a sua dificuldade também –

reside no fato dele ter levado a sua concepção de teatro a um nível pouco limitado e doutrinário, ao contrário de como muitos o descrevem. Brecht seguiu uma direção avessa à de muitos autores, que com o tempo se tornaram mais rígidos. Partindo desse ponto, tratei essa possibilidade, que atravessa outra apreensão da proposta brechtiana e a transforma também numa proposta de influência para a formação dos indivíduos. Principalmente se aplicada a uma sociedade que ainda hoje – como observou Theodor Adorno já há mais de meio século e apesar do posicionamento em muitos sentidos divergente do de Brecht – preserva a racionalização instrumental como valor maior. Uma lógica que reclama uma transformação urgente:

A educação não é necessariamente um fator de emancipação. Numa época em que a educação, ciência e tecnologia se apresentam – agora ‘globalmente’, conforme a moda em voga – como passaportes

para um mundo ‘moderno’ conforme os ideais de humanização, estas

considerações de Theodor W. Adorno podem soar como um melancólico desânimo.

Na verdade significam exatamente o contrário: a necessidade da crítica permanente. Após Auschwitz, é preciso elaborar o passado e criticar o presente prejudicado, evitando que este perdure e, assim, que aquele se repita. O filósofo alerta os educadores em relação ao deslumbramento geral, e em particular o relativo à educação, que ameaça o conteúdo ético do processo formativo em função de sua determinação social. Isto é, adverte contra os efeitos negativos de um processo educacional pautado meramente numa estratégia de

‘esclarecimento’ da consciência, sem levar na devida conta a forma social em que a educação se concretiza como apropriação dos conhecimentos técnicos. Parafraseando Adorno no último parágrafo da Minima Moralia, quanto mais a educação procura se fechar ao seu condicionamento social, tanto mais ela se converte em mera presa da

situação social existente. É a situação do ‘sonho de uma humanidade

que torna o mundo humano, sonho que o próprio mundo sufoca com

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que diz respeito a características do objeto, da formação social em seu movimento, que são travadas pelo seu encantamento, pelo seu feitiço. Por isto a educação necessária para produzir a situação vigente parece imponente para transformá-la. [MAAR, apud ADORNO, p.12, 1995]

Brecht também apostou na importância de uma crítica permanente e a citação anterior convoca o pensamento a avaliar: Quantos dos erros que ficaram num passado histórico não muito distante, nós repetimos hoje? Com que frequência olhamos para esse passado e revemos nossas formas de agir? Quantos dos absurdos ali presenciados foram repetidos pouco tempo depois? Que homens pensam hoje em suas vidas e voltam também esse pensamento para a humanidade? A técnica, a tecnologia e o consumo desenfreado, que implicações têm na vida dos indivíduos? O que é transformador hoje e que dispositivos podem nos auxiliar a encarar a constante depreciação em que foi colocada a nossa existência?

Se o teatro de Brecht (com sua extensão) não deu as respostas necessárias, acredito que ainda é tempo do teatro contemporâneo formular questionamentos como esses, que resultem numa outra forma de ver as coisas, inclusive que se apoiem na concepção do autor de instalar de vez a presença da ação do pensar também nos momentos de diversão das pessoas. A transformação proposta pelo dramaturgo alemão não parece ter sido ultrapassada, mas, ao invés, adiada. A conclusão a que pretendi chegar foi que, diante dos problemas de hoje, não só os de ordem social, mas os que assolam o campo da arte, deve-se ainda insistir na releitura de Brecht pela descoberta daquilo que ainda está em aberto.

De um modo geral, são comuns as leituras de Brecht e sua obra que aterrissam numa concepção de teatro restrita – distinta daquela que este texto defendeu, e que vê na proposta deixada pelo autor uma possibilidade de aproximar a arte da vida, vinculada também a um “conhecer-se a si mesmo” e

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tarefa de buscar situações que permitissem pensar sobre o mundo e, assim, pudesse ser descoberto um novo e possível contato entre filosofia, arte e vida.

Entretanto, ao iniciar o trabalho com o teatro, ainda não estava muito claro para Brecht que caminho seguir durante muito tempo de sua vida ele esteve um pouco distante dos movimentos artísticos, já que primeiro frequentou a escola de medicina e serviu como enfermeiro durante a Primeira Grande Guerra Mundial. Assim, quando começou a escrever peças – Baal foi a primeira, em 1918 –, além de todo o peso de uma tradição teatral, Brecht também precisou se ambientar aos questionamentos que eram levantados pelos intelectuais e artistas da época, sobre qual deveria ser o papel ocupado pela arte dentro daquela sociedade, e os caminhos do teatro. Na Alemanha, por exemplo, já havia experimentos que se utilizavam de dramaturgias não-aristotélicas e que depois Brecht desenvolveu a seu modo.

Já ao se aproximar desse meio, Brecht percebeu que, em virtude daquele presente incerto, era indispensável ao teatro arranjar um modo de enfrentar a realidade, dialogar com ela. O mundo e a arte estavam em crise e a revolta diante daquela situação fazia o teatro, também nessa situação, clamar por intervenções radicais. Essa urgência foi o que impulsionou o jovem Brecht, movendo-o pela esperança de estabelecer um novo teatro que pudesse ajudar a ver que aquela era uma situação que podia e devia ser superada. Isso fez com que ele lutasse por um teatro mais humano.

E assim decorreram 38 anos de experiência teatral – período entre os anos de 1918 e 1956 –, sendo que até o último ano de sua vida (1956), Brecht participou ativamente como homem de teatro. Quatro dias antes de morrer ele ainda esteve presente num ensaio, o que demonstra a importância da vida do teatro para ele, bem como a seriedade de seu compromisso. Contudo, é importante destacar que dentro desse longo período de trabalho intenso, entre formulação de teoria e montagens, os últimos 15 anos de vida de Brecht foram marcados por uma espécie de reviravolta em seu pensamento, o que consequentemente acabou influenciando todo o restante de sua obra e experiências posteriores.

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satisfez. Só depois de uma longa investigação, é que se pode dizer que Brecht encontrou uma visão que fazia jus ao seu objetivo inicial. Visão esta que ele considerou como verdadeira possibilidade para ser aplicada dali em diante, sempre com a finalidade de modificar a estrutura do teatro vigente o teatro burguês – e, encontrar um novo teatro que fosse duplamente inovador: que divertia os espectadores (porque essa sempre foi a sua finalidade), ao mesmo tempo que os fazia pensar. Um teatro útil para a sociedade, mas não do modo

como esta estava acostumada a pensar a “utilidade”.

Para caracterizar melhor essas “duas grandes fases” de Brecht – que dividem a obra em dois momentos – Raymond Williams analisa e indica, os acontecimentos daquela época que tiveram impacto sobre a cisão que ocorreu na visão de Brecht, separando-a em duas vivências que, mesmo conectadas por um objetivo, resultaram na divisão da obra em dois sentimentos distintos, que por sua vez levaram Brecht a uma atitude também distinta. De pronto, “a identificação de um sistema político como uma causa principal de sofrimento” e depois, “a descoberta da esperança naluta contra ele”.

Com isso, a fim de facilitar o percurso do presente texto, foi escolhida para ser defendida aquela fase que Williams define como a segunda fase de Brecht, e com a qual José A. Pasta concorda. Sobre os momentos que passou até chegar ao momento maduro da obra, alguns autores chegam a avaliá-los também como fases, porém, aqui, optou-se por identificar tais momentos como passagens que fazem a transição entre uma fase e outra.

Na primeira fase estava presente um Brecht endurecido, revoltado com a ordem do capitalismo, que de pronto sentiu uma forte identificação com as vanguardas artísticas (o Expressionismo), e que adiante passou por influências como as do Teatro Político (de palanque) e Teatro Didático (ou de

aprendizagem), como o de Piscator, que o fez se juntar, de alguma forma, a todos os debates dos quais participou na década de 20, porque tinha interesse em primeiro lugar pela experiência que esses contatos poderiam trazer para a sua prática com o teatro.

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construção do pensamento que trouxe resultados até então ainda não presenciados na história do teatro, como é o caso da concepção de teatro da segunda fase. Para o teórico Peter Szondi, a obra de Brecht configura uma das tentativas de salvamento do teatro, que perto das que já existiam talvez seja aquela que se tornou mais consequente para o teatro posterior.

Esta dissertação, portanto, tratou de alguns momentos do percurso de Brecht que foram chaves para compreender o seu “produto” final. Consequentemente, a partir de uma distinção mais clara dessas duas fases do trabalho do autor, foi possível perceber também o porquê dele se comportar de determinada forma, em se tratando de questões específicas – a exemplo do confronto com a tradição. Na análise de Pasta, uma das relações estabelecidas por Brecht que certamente muda na fase madura foi a relação com a tradição clássica. Essa mudança foi decisiva tanto no desenvolvimento da teoria brechtiana, como também na escritura das peças, em que a tradição, portanto, contornou todo o trabalho de Brecht que investiu num movimento que contrariava os efeitos do Esclarecimento alemão (Auflklärung). O exemplo de Williams para o “primeiro Brecht” é dado através da peça A ópera dos três vinténs. Esta traduz um pensamento que na época ainda estava bastante confuso, rodeado pelo desacordo entre teoria e prática e que só foi contornado na fase madura de Brecht 2.

Durante seu trajeto, Brecht concentrou-se em retomar características próprias do gênero épico original de teatro – denominando-o mais tarde, inclusive, de Teatro Épico – ao mesmo tempo em que inovou na combinação dessas características e construiu uma nova visão de teatro, distinta da original. Longe de desenvolver um complexo estético, como parecia se encaminhar no começo o seu projeto, o amadurecimento constituiu uma fase bastante radical em seu pensamento. Brecht ultrapassou a concepção da dialética marxista e deu a ela a sua própria marca. Essa posição, confundida ainda por muitos com a posição do começo, parecia disposta a pensar o teatro

2 Hoje “A ópera dos três vinténs” é ainda muito encenada pelos atores do herdado Berliner Ensemble - teatro fundado por Brecht e sua mulher Helene Weigel em 1949. Na conclusão pretende-se falar sobre a espécie dessas encenações e como elas não correspondem a uma

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como uma espécie de instituição moral3, como procurou discutir este trabalho. Por outro lado, entretanto, o texto também não se apoiou numa visão construída ao acaso, tendo o estudo, que se iniciou pela leitura de textos do próprio Brecht, coincidido com a visão desses autores, adeptos do “legado” 4

brechtiano.

Porém, há alguns erros cometidos na interpretação da obra de Brecht que acabaram conduzindo a proposta dele a um empobrecimento. Normalmente confunde-se bastante o papel social de seu teatro, e as críticas estão justamente apoiadas nas criações de Brecht da primeira fase, como exemplificado acima. Com o intuito de compreender essa obra como um todo, ou buscando para ela algo que a definisse, Brecht é normalmente compreendido: ou unicamente pelo ponto de vista do marxismo, ou como um autor que escreveu só para seu tempo, que defendeu uma posição autoritária para o teatro e para a função deste sobre o público (Publikum), como se ele tivesse algum controle dos efeitos de seu teatro sobre cada indivíduo. Mas em verdade, de decisivo Brecht só deixou o legado e este só deve ser compreendido5 como aquele que pretende manter viva a ideia de que o exercício do pensar deve estar presente em todas as instâncias da vida, e é na elucidação dessa confusão que se concentrou a dissertação.

A visão escolhida para ser tratada e defendida aqui coincidiu e aliou-se, em diferentes aspectos, a Peter Szondi, Gerd Bornheim, Raymond Williams, Walter Benjamin, Roland Barthes e José A. Pasta. Pois, para esses autores, o projeto de Brecht teve outra dimensão, que difere das críticas tradicionais e que também se mostrou mais pertinente a uma reflexão filosófica que visa um processo de questionamento atualizado. Do lado oposto, quando Brecht é

3 Brecht escreveu um texto,

“Será por ventura o Teatroépico uma ‘instituição moral’?”, em que

se defendeu dessa acusação. O texto se encontra no livro Estudos sobre teatro. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2005.

4 Esse termo aparece com frequência em Trabalho de Brecht de José Antonio Pasta, e é importante mencioná-lo aqui porque é dele que a tese também quer tratar, salvo algumas distinções que serão mencionadas mais adiante.

5 “A maior parte destas afirmações, senão a sua totalidade, foi escrita sob a forma de anotações às minhas peças, no intuito de que estas viessem a ser representadas corretamente. Tal circunstância empresta-lhes um tom técnico, algo seco, como se um escultor indicasse como e onde se deveria dispor a sua escultura, e em que espécie de pedestal; tal indicação seria, também, uma indicação a frio. As pessoas a que ele se dirigisse esperariam, talvez, alguma coisa sobre o espírito dentro do qual fora concebida a escultura; mas é à custa do seu esforço pessoal que terão de extrair da indicação qualquer dado a respeito.” [BRECHT,

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reduzido à união de algumas técnicas e às peças que deixou, Brecht torna-se simplista e até de fácil superação. Em resposta às interpretações que o colocaram nesse patamar, trazidas aqui as de HansThies Lehmann e Jacques Rancière, esse percurso se ocupou da tentativa de desfazer alguns equívocos na compreensão de sua obra e, assim, mostrar a amplitude real desse trabalho. Ou seja, pensar Brecht, se possível, além do ambiente partidário e de uma doutrina.

Brecht quis desenvolver um estilo de teatro que tivesse como resultado a formação de uma nova atitude por parte dos espectadores. Em suma, queria formar outro tipo de público de teatro. A presente tese propôs-se a defender a ideia de que, dentro das preocupações de Brecht, aquela que se refere ao público é a mais importante e à qual ele pareceu dedicar todo o seu trabalho6. Desde as críticas ao teatro burguês, a busca por novas técnicas, o desenvolvimento de outra visão para a diversão, até ao desapego à visão fechada do marxismo ortodoxo, para Brecht colocou-se a questão:

será totalmente impossível fazer da reprodução de acontecimentos da vida real o propósito da arte, e portanto fazer da atitude crítica dos espectadores para com eles alguma coisa útil para a arte? Tão logo se começa a refletir sobre isso torna-se claro que uma transformação tão grande só podia ser executada mudando-se a natureza do trânsito entre plateia e palco. [BRECHT, 2002, p.98]

Assim, o trabalho é atravessado pelo seguinte roteiro de perguntas (sendo cada uma delas respectiva a cada capítulo):

Por que Brecht foi de encontro à tradição e quis criticá-la? Por que Brecht desconstruiu a ideia de realismo tradicional?

Por que Brecht se aproximou dos elementos do gênero épico de teatro e os desenvolveu? Por que a peça A Vida de Galileu pode ser considerada como o maior exemplo do legado de Brecht?

Por que Brecht ainda pode ser considerado atual?

6 “O que trouxe Brecht de volta à realidade, e por pouco não matou sua poesia, foi a compaixão. Quando reinava a fome, revoltou-se ao lado de todos os famintos: ‘Dizem-me: Come e bebe!/ Alegra-te, já o tens!/Mas como posso eu comer e beber, quando/ Tiro ao

faminto o que como, e/ O meu copo de água falta ao que morre de sede?’ A compaixão foi sem

dúvida a mais tenaz e a mais fundamental das paixões de Brecht, e por isso mesmo a que ele mais procurou, e menos conseguiu esconder; adivinhamo-la em quase todas as peças que

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O primeiro capítulo (o mais amplo) tratou do debate de Brecht com a tradição teatral anterior à sua época. O seu ponto de partida foi a rejeição que fez à presença permanente do modelo clássico de representação – originário de Aristóteles , que por sofrer sempre novas apropriações e renovações foi levado a um esgotamento total da forma dramática, culminando também numa crise profunda do teatro.

Para realizar uma análise histórica do teatro, Brecht leu e estudou autores de períodos que vão dos gregos até o século XIX, sempre atento às mudanças relevantes de uma época para a outra. Nesse sentido, a fim de descobrir a causa de suas referências, é possível também fazer uma aproximação desses autores e dos acontecimentos mais relevantes dos respectivos períodos, para se descobrir finalmente que Brecht realizou uma espécie de classificação entre aqueles que tentaram seguir outra direção no teatro, que não era moldada a partir dos clássicos, e os que em contrapartida optaram sempre por reformar as ideias de Aristóteles, presentes na Póetica7.

O movimento do teatro ao longo da história, que foi acompanhado de longe por Brecht em sua época, não pode ser compreendido se não se levar em conta uma série de aspectos que foram determinantes a esse movimento. Isso justifica o início desta abordagem pela análise da crítica brechtiana em torno de uma tradição que considerou ultrapassada e que, segundo ele, tinha sido responsável por levar a arte à crise – que, embora sendo resultado de uma construção, só foi detectada no final do século XIX. Só nessa época é que se iniciou um movimento não apenas de nível teórico, mas também experimental, dentro do qual alguns artistas e intelectuais começaram a se perguntar pelos motivos que originaram a tal crise. Concluíram daí que precisavam repensar os modelos tradicionais que haviam sido assimilados pela cultura burguesa.

No que observa das dificuldades circunscritas em sua época, Brecht acreditava que a única saída para o teatro era começar com o rompimento, mesmo que tardio, com o modo de representação pela primeira vez proposto na Grécia antiga, reconhecido como modelo único. Era preciso destituir a forma

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dramática – desenvolvida a partir desse modelo – do posto de gênero soberano, porque as suas bases não mais se adequavam aos eventos da realidade. Aristóteles e sua teoria tinham sido transformados em modelo de veneração para o Ocidente desde o Renascimento, e como o filósofo grego foi o primeiro pensador a fundamentar uma teoria sobre a poesia, ninguém havia até então confrontado essas bases.

Era preciso romper com elas também porque, ao mesmo tempo em que não dialogavam com a realidade, também já não faziam sentido enquanto réplicas dos predicados gregos. Não satisfizeram Brecht as tentativas constantes na história do teatro que tentaram acomodar esses predicados às novas temáticas. A seu ver, o teatro pedia uma mudança de base, muito mais profunda, que se expandiria para além do âmbito formal, intelectual e moral.

Antecipando aqui pontos da explanação vislumbrada para o primeiro capítulo, será importante retirar a ênfase da crítica de Brecht de uma ligação direta com Aristóteles. É verdade que o primeiro modelo referente à forma dramática foi proposto pelo Estagirita, porém, Brecht não se preocupou em romper diretamente com ele, pelo menos em parte. Porque uma vez tomando-se o pressuposto de que estomando-se modo (como tinha sido proposto originalmente na Grécia) já não existia, a crítica que se refere ao modo aristotélico só poderia arriscar-se a criticar aquilo que estava mais próximo de sua realidade histórica, ou seja, as atualizações que se diziam herdeiras do padrão grego. Como coloca Pasta, Brecht não deve ser encarado “numa espécie de anti-Aristóteles exacerbado e raivoso, que tivesse eleito um tanto gratuitamente o estagirita como cavalo de batalha ou trampolim ocasional para suas próprias

‘elucubrações teóricas’”. [PASTA, 2010, p.219]

Passado o trabalhoso capítulo, escolhido para ilustrar os motivos que fizeram nascer o projeto empreendido por Brecht, o foco foram as discussões mais recentes, das quais ele próprio participou. O segundo capítulo se concentrou em analisar como Brecht situou o seu trabalho e a que atitude isso o levou. Além disso, discutiu o modo como seu projeto foi recebido pela crítica de seu tempo e que influência determinante isso teve para seu trabalho. No centro está a recepção de Lukács e o confronto com Brecht.

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experimentado por Brecht, o terceiro capítulo teve o intuito de defender a segunda fase de Brecht, considerada aqui como a que justifica o seu legado que foi projetado para ser levado adiante. O que interessou nesse capítulo foi mostrar como esse modo de pensar a participação do teatro na sociedade se tornou inédito e como a articulação resultante da combinação entre teoria e prática que Brecht fez conseguiu romper com a forma tradicional de um modo muito específico. Para orientar melhor a proposta deste capítulo, a partir de Williams, a peça A vida de Galileu foi usada a exemplo do Brecht defendido da segunda fase.

Num quarto momento a análise foi direcionada para as interpretações mais recentes de Brecht e as apropriações de sua obra. No teatro atual é possível perceber a grande influência de uma visão do Teatro Épico, porém, normalmente a discussão recai num resumo das técnicas, perdendo o seu caráter mais fundamental, que tem a ver com a causa (Grund). Com atenção à realidade, a preocupação de Brecht continua latente hoje. Ela é – ou deveria ser – a mesma, porque não se dissipou, mas, ao contrário, apenas se perdeu em algum lugar, junto à reflexão sobre a arte e sobre o teatro. Assim como foi feito com as leituras dos autores anteriores, muitos intérpretes compactuaram para que também ele fosse aprisionado junto à corrente do que é institucional. Hoje, infelizmente, embora ele seja reconhecido como clássico da literatura alemã e seus textos sejam ditos com grande eloquência nos grandes teatros, muitos poucos são usados para o mesmo fim para o qual foram escritos. Por enquanto, restam as suas palavras e a evidência de que a proposta que ele fez muitas vezes continua presa ao papel até hoje:

“E é precisamente porque a natureza da sociedade humana – em contraposição com a Natureza em geral – que tem permanecido, até hoje, obscura, que nos encontramos, como nos asseguram os cientistas, perplexos perante a possibilidade de um aniquilamento total de nosso planeta, que ainda mal conseguimos tornar habitável. (...) Nada mais será preciso acrescentar a estas breves notas (uma contribuição amigável para sua controvérsia), senão o meu parecer sobre o problema em causa: creio que o mundo de hoje pode ser reproduzido, mesmo no teatro, mas somente se for concebido como

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Capítulo 1. Brecht e o modelo tradicional de Teatro

1.1 Brecht e a descoberta da nova função da Arte

Que acontecimentos da História foram determinantes para construir a perspectiva de Bertolt Brecht acerca da profunda crise do drama, e, assim, que o estimularam para propor a formulação de um novo modelo de representação para o teatro? A aproximação de alguns processos históricos é chave necessária para compreender mais profundamente como, para cada período na história, sempre houve um lugar determinado para a arte dentro da sociedade; ou seja, como ela de alguma forma sempre desempenhou uma função social. Foi nessa ideia, pelo menos, que Brecht se apoiou para construir seu pensamento, o qual o levou a discutir a nova função para a arte proposta pelo seu tempo. Desde o início, parecia haver somente uma saída, diante das expectativas frustradas geradas pela construção do mundo moderno: o teatro precisava voltar urgentemente ao lugar que unia diversão e reflexão sobre os fatos da vida.

Entretanto, naquele tempo o clima era de desacordo. Nos palcos eram mostradas exibições falsas sobre a vida, que coincidiram quando ambas as tradições, aristocrática e burguesa, resolveram ignorar de forma abrupta os questionamentos da sociedade, conferindo-lhes um olhar superficial através de representações pomposas. O culto a esse tipo de exibição serviu para evidenciar a origem da crise da arte e também para a análise de Brecht:

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que fosse, ‘sem estilo’. Teatro estilizado significava o mesmo que teatro elevado. No primeiro período (o mais vigoroso) do naturalismo, copiava-se a Natureza tão fielmente que qualquer elemento estilístico seria considerado artificial. Quando o naturalismo enfraqueceu, travou compromisso múltiplos; hoje em dia, vemos também nas peças realistas uma mistura característica de desleixo e declamação. Desta mistura não se pode esperar nada. A forma elevada de representação apenas sobrevive, ainda neste coquetel, com a falta de naturalidade, a artificialidade, o esquematismo e a afetação em que tombou antes de ceder lugar ao naturalismo. E do naturalismo do período áureo apenas sobrevive o caráter aleatório e informe, a falta de imaginação, que o caracterizam mesmo no seu melhor período. É, assim, necessário procurar novos caminhos. [BRECHT, 2005, p. 115]

Porém, o clima de desilusão era anterior aos questionamentos que surgiram na época de Brecht, que também discutiam a relação entre a mudança da função da arte e os frutos gerados pelo modo de organização capitalista. As coisas tinham seguido um rumo distante daquele esperado como resultado da Revolução Francesa e do Iluminismo na França, e do Esclarecimento (Aufklärung) na Alemanha. Com isso, quando Brecht e seus contemporâneos começaram a buscar soluções para a crise da arte e a pensar nos problemas da sociedade de uma forma geral é porque percebiam a importância em não repetir escolhas como aquelas. Naquele momento, estava em pauta o destino das novas gerações e, apesar do otimismo de Karl Marx ao defender a hipótese do capitalismo evoluir para uma grande sociedade igualitária, no começo do século XX todos eram intimidados pelo sistema explorador, em seu auge, de forma ainda bem pouco consciente. Assim, era preciso tomar cuidado com o que viria a seguir.

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origem com os gregos, a burguesia certamente submeteu o teatro a uma nova função social, caracterizada por um estilo chamado Naturalismo1.

Mas, antes de Marx, Hegel já havia anunciado a morte da poesia romântica. Mesmo assim, e desrespeitando a ruptura exigida pelas mudanças, principalmente no novo modo de pensar – o científico –, o teatro continuou a existir sob a mesma forma ultrapassada, ainda derivada de apropriações da obra de Aristóteles2. Ao mesmo tempo em que ainda se insistia numa estética

com aquelas normas duradouras, pois para os tradicionalistas História e arte eram dois movimentos separados, a realidade constatada era outro, que demandava que alguma atitude fosse tomada.

Como uma tentativa burguesa de salvar o drama, surge o naturalismo, que acabou por agir no sentido contrário, servindo para evidenciar a decadência de um teatro que exaltava o subjetivismo. A política, a ética e a arte sofriam também as consequências. A arte mudou a sua função social, mas não mudou a abordagem. Embora o teatro já não falasse para reis e aristocratas, e o foco fosse a classe burguesa, a forma dramática que tentaram a todo o custo manter em pé sofreu uma reformulação: ao invés de ser definitivamente superada, ela foi adaptada aos temas dos novos “senhores”.

Posteriormente, concluiu-se que, em se tratando de inovações artísticas, não se fez com o drama mais do que pôr em cena os novos assuntos na mesma configuração dos velhos, ou seja, sob as formas antigas de representação. Com o naturalismo ocorre uma troca de personagens e uma

1 “Doutrina que proscreve qualquer idealização do real, e que até se esforça, por reação, por valorizar sobretudo os aspectos da vida geralmente afastados por serem baixos ou grosseiros e que, no homem, provêm da natureza ... e que ele possui em comum com os animais. (...) O ideal não é aqui senão um real já existente, e mais completo do que o pretenso real que lhe opõem: passar do real ao ideal é passar de uma representação mutilada a uma representação completa daquilo que já existe atualmente e objetivamente; é simplesmente corrigir um erro, no sentido que esta palavra tem na ciência objetiva. Se esta concepção é a de Durkheim, não vejo nenhuma razão para não chama-lo naturalista. Eu chamaria naturalismo a toda doutrina para a qual a realidade, composta, aliás, de não importa que elementos, está completamente feita, e que, por conseguinte, não pode reconhecer um valor próprio irredutível ao conceito de ideal: para o naturalismo tudo é, à nascença, tudo aquilo que pode ser; só que, para concordar com a experiência, é preciso admitir que o conhecimento não se identifica com o ser de seus objetos, por outras palavras à conhecimentos falsos precedendo o conhecimento verdadeiro e que todas as diferenças se reduzem àquela que existe entre o conhecimento idêntico ao ser e o conhecimento não idêntico ao ser. Isto equivale a dizer que o naturalismo sempre levou a admitir pelo menos uma exceção ao seu princípio: o conhecer não é à nascença tudo o que pode ser, é um devir, mas um devir que tem o seu acabamento, a sua perfeição, na identificação com a realidade existente. (M. Bernès)” [LALANDE, 1999, P.719,720]

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banalização dos temas. Ao inaugurar essa nova fase, o teatro passou a ter também, uma nova função social, que colocou o homem comum, trabalhador, pai de família no centro das tramas. Mas a mudança não atingiu os níveis que poderia ter atingido e limitou-se antes aos assuntos do cotidiano burguês, assim, conformando o teatro a um estilo monótono e supérfluo como aquele praticado para entreter os aristocratas. A nova abordagem não originou outra espécie de diálogo no campo da arte, que oferecesse questionamentos à sociedade, mas solidificou a aceitação, por parte dos indivíduos, das coisas como consequências de um curso natural, que ainda parecia o único caminho possível.

Como nunca, o teatro assumia posto de aliado aos novos interesses sociais. Por estes se basearem numa ordem que se fortalecia através do crescimento econômico, cujo princípio era justamente a desigualdade entre classes, era interessante que o teatro não falasse de desordem, ou de forças contrárias que questionassem os efeitos desse crescimento. Ao invés, que ele emocionasse as pessoas, as quais, diante de representações, eram levadas a acreditar na existência de uma realidade sem conflitos – o que, por sua vez, era promessa de uma conduta bem regida; ou seja, transmitir a ideia de que o caminho que a sociedade seguia era o certo. Dessa forma, num primeiro momento, a isenção de uma participação da arte que refletisse os verdadeiros problemas existentes na vida daqueles homens não pareceu problemática; pelo contrário, ela garantia adesão dos indivíduos a uma espécie de conformismo.

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sob uma nova ótica. Depois dela, os indivíduos não se tornaram mais livres, nem a sociedade passou a ser igualitária, não havia alimento para todos, e a ideia de uma mudança estrutural caía em descrédito.

Ora bem, é bastante geral a análise anterior e talvez seja até insuficiente para explicar em quais valores a burguesia e o sistema capitalista se apoiaram para se tornarem os centros da sociedade moderna e passarem a influenciar também a arte. Ainda assim, serve para compreender como, dentro desse sistema, a única saída para o teatro foi desenvolver uma visão que estivesse de acordo com essa estrutura ou que pelo menos não oferecesse nenhuma espécie de confronto. Ou seja, uma visão derivada de uma consequência histórico-social e que ao mesmo tempo tornava possível a seguinte verificação: quando Brecht observa que, em todo o período histórico, o teatro desempenhava a sua função, seu empreendimento só poderia ser, também, o de mudar a concepção naturalista que nele surge após a constatação no século XIX de que existia uma crise do drama e de que a arte em sua nova era estava ligada à ideia de entretenimento – um modo de diversão alienador, e que para os indivíduos passou a servir como refúgio do mundo, quando queriam esquecer um dia duro de trabalho.

Passado o período de excitação da busca por uma hegemonia da razão, a era científica despertou nos homens algumas preocupações que até então não existiam. Enquanto o indivíduo se afastava da resolução dos problemas que diziam respeito ao coletivo, os conflitos do mundo particular tornaram-se primordiais, e aqueles assuntos restritos, menos gerais e mais limitados, tomaram a frente no teatro. O resultado é percebido mais tarde, quando o tédio atinge a cena. O naturalismo caracterizou-se desta forma: os temas teatrais passaram para o núcleo das relações pessoais, abordando-as de maneira pouco sólida. Porém, qualquer novidade vinda desse estilo também não poderia durar muito, uma vez que falar desses assuntos, da forma como se pretendia, dificultava a sua realização imagética, a encenação de ações próprias daqueles temas, pois estavam demasiadamente voltados para um

mundo “interior” das personagens. Falar do sujeito tornou-se cada vez mais

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encontrava em crise e que era preciso superá-la e recuperar a importância do teatro dentro da cultura.

A partir da segunda metade do século XIX, arriscaram-se algumas tentativas para livrar o estilo dramático da problemática situação em que se encontrava. A primeira delas foi precisamente o novo estilo por essência burguês naturalista, que mostrou-se importante para evidenciar os problemas que a arte enfrentava e a função social que desde então ela passara a desempenhar (como explicitado até agora). Além disso, tornou também mais evidente a crise do drama, acabando de vez com a possibilidade de permanência do teatro moderno, baseado somente no modelo tradicional. E por esse motivo, Peter Szondi descreve o naturalismo como fadado ao fracasso desde seu nascimento. Ele explica que esse estilo, por ter sido uma tentativa de fuga de um processo histórico que amedrontava a burguesia, providenciar a decadência cultural do sistema capitalista, só poderia constituir-se enquanto um drama artificial, já que carecia de motivações externas que, para existir, não se resumissem tão e somente a ações dramáticas. Anatol Rosenfeld também apontou para o mesmo problema:

No fundo, o drama rigoroso não se ajusta à tendência básica do naturalismo de pôr no palco a realidade tal qual ela se nos dá empiricamente. Esse empenho não permite a estilização e a seleção severas da tragédia clássica. A vida como tal não tem unidade, os eventos normais não se deixam captar numa ação que tem começo, meio e fim. Na medida em que desejam apresentar no palco apenas um recorte da vida, os autores naturalistas são quase forçados a ‘desdramatizar’ as suas peças para tornar visível o fluir cinzento da existência cotidiana. [ROSENFELD, p.90, 2011]

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ideia de reforma do drama tradicional que Brecht tentará superar. Nas palavras de José Antonio Pasta Jr., presentes na apresentação do livro de Szondi:

o ‘naturalismo’ se revelará uma escolha finalmente conservadora, mesmo regressiva, por abrigar-se, na representação compassiva do proletariado, como última instância de ‘naturalidade’, contra a fratura que cindia igualmente todos os indivíduos e o conjunto da sociedade. [PASTA, in SZONDI, 2001, p.16]

Se a escolha de heróis pobres a partir da perspectiva do burguês trouxe ao naturalismo um olhar distanciado, isso aconteceu sem que tivesse sido previsto; não foi algo pensado para fazer as classes refletirem, ou para elas não se identificarem com os acontecimentos do palco. A decorrência disso é que aquele movimento não fez ninguém mais consciente da realidade do sistema e da condição indigna dos homens, ao invés, surgiu quase sem querer, resultando na criação de um estereótipo para a classe baixa. E, mesmo não encontrando uma aproximação real com o povo, esse drama também já não pertencia à burguesia como antes, e, como bem identificou Brecht, tampouco o teatro poderia pertencer mais uma vez apenas ao gênero dramático. Mesmo que de forma superficial, um narrador distante já tinha sido chamado3. Nessa aparição parcial do gênero épico, algo se rompeu dentro da cena naturalista e ali inaugurou uma nova função social:

A história do teatro moderno começa com o naturalismo. Foi aí que se deram os primeiros movimentos definidos em direção a uma nova função social. A tentativa de dominar a realidade começa com dramaturgos passivos e heróis passivos. O estabelecimento da causalidade social tem início com descrições de situações. Em todas, as ações humanas são puras reações. Causalidade é premeditação. Típica é a peça de explosão. Nuvens se concentram em cima da cabeça de certas pessoas, de famílias, de grupos, aí rebenta a tempestade. O meio social tem o caráter de um fetiche, é destino. A gente representa o último ato de qualquer coisa. O novo drama começa com o não-dramático. [BRECHT, 2002, p.150]

A alienação dos indivíduos permitia um desinteresse pelos problemas da realidade, onde o homem, ao invés de se aproximar, afastou-se cada vez mais

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de si e dos outros. Permanecia em aberto a sensação de que era necessário fazer algo que aproximasse os homens de sua situação real. Para tanto, eles precisavam se interessar antes por compreendê-la:

As falsas reproduções da vida real que eram efetuadas nos palcos, incluindo as do chamado naturalismo, levaram-no a solicitar reproduções cientificamente exatas, e o insípido espírito de ‘iguaria’, de deleite sensaborão através dos olhos e da alma, levaram-no a exigir a excelente lógica da tabuada. Este teatro rejeitou, com desdém, o culto do belo, culto então alimentado ao lado de uma aversão ao saber e de um desprezo pelo útil; e o que induziu a essa renúncia foi, sobretudo, a circunstância de não estar produzindo nada de belo naquela época. Aspirava-se a um teatro próprio de uma época cientifica e, como era muito difícil para os planejadores desse teatro requisitar ou furtar do arsenal dos conceitos estéticos vigentes sequer apenas o bastante para manter os estetas da imprensa à distância, preferiram simplesmente ameaçar afirmando o seguinte propósito: ‘extrair do instrumento de prazer um objeto didático e reformar determinadas instituições transformando-as de locais de diversão em órgãos de divulgação, ou seja, emigrar do reino do aprazível. A estética, legado de uma classe depravada que se tornara parasitária, encontrava-se num estado tão deplorável que um teatro que preferisse apodar-se de theater logo adquiria, por si, tanto prestígio como liberdade de ação. [BRECHT, 2005, p.126]

Nessa época, no auge do descompasso entre teatro e vida, alguns grupos de artistas ao verem a situação se escancarar e temendo maiores efeitos, passam a se expressar dentro do caos. Em busca de um desnudamento da realidade e ao mesmo tempo da negação de uma condição estabelecida, surge mais uma das tentativas de salvamento da arte, as Vanguardas artísticas no começo do século XX. A distância que crescia entre os homens, a vida e a arte resulta em questionamentos como: Qual é a função da arte na sociedade? Qual deve ser o papel dos artistas quando a realidade se apresenta como caótica? A respeito da atitude desses artistas, Walter Benjamin em Experiência e Pobreza compreende-a como um ato de barbárie que foi positiva na medida em que denunciava o fim da experiência:

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começa a extinguir-se, era manipulada com grande virtuosismo – era antes de mais nada a reação de um homem cujos ‘vestígios sobre a terra’ estavam sendo abolidos. Tudo isso foi eliminado por Scheerbart com seu vidro e pelo Bauhaus com seu aço: eles criaram espaços em que é difícil deixar rastros. ‘Pelo que foi dito’, explicou Scheerbart há vinte anos, ‘podemos falar de uma cultura de vidro’. O novo ambiente de vidro mudará completamente os homens. Deve-se apenas esperar que a nova cultura de vidro não encontre muitos adversários” [BENJAMIN, 1994, 118]

Aqueles artistas, diante de um quadro de muita instabilidade, incerteza e medo, antes e durante a Primeira Grande Guerra, quiseram anunciar o que lhes atormentava enquanto seres que viam a humanidade caminhar no sentido da desumanização. Num mundo que só crescia, era urgente entender por que tudo estava acontecendo daquela forma e por que os artistas tinham ainda de se submeter às formas tradicionais, quando estas não mais serviam para expressar o que viam. Como dariam vida artística à percepção de que o mundo caminhava numa direção com a qual eles não concordavam? Será que aquilo era o que restava à humanidade e ao homem? O aniquilamento da vida? Cansados de aderirem a uma relação doente com a arte, cansados de se submeterem àquelas condições para corresponder às expectativas do capital, rebelaram-se pelas vias da expressão artística:

Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, as vanguardas não se contentam mais em afirmar a vinda da arte moderna. Elas manifestam sua angústia do futuro, mistura de fascinação e revolta numa época em que os lustres da Belle Époque se apagam um por um sob o sopro das revoluções sociais e políticas. Até mesmo a adesão aos novos mitos da industrialização e da técnica adquire um tom de rebelião. ‘Manifesto’ é doravante a palavra da moda, perfeitamente apropriada para expressar a virulência das reivindicações. [JIMENEZ, 1999, p.287]

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instâncias profundas do sujeito, em que as formas de expressão existentes não eram suficientes para falar das verdadeiras aflições daquele tempo.

Em suma, esse movimento foi caracterizado: “o vazio formal do eu precipita e converte-se no princípio expressionista, na ‘deformação subjetiva’

do objetivo” [Szondi, 2001, p.125]. Iniciado de dentro do eu, essa vanguarda

tentou expressar o que ali havia que não se calava. Szondi insiste ainda que o que possibilitou ao Expressionismo toda a arrebatada explosão de criatividade, em primeiro lugar, foi a posição isolada que aqueles artistas tomaram frente ao mundo.

Assim, pensando que essa observação antecipa a relação pretendida por esta dissertação, de aproximar Brecht do Expressionismo, é indispensável destacar que na ação desse movimento Brecht descobriu algo que adiante seria muito útil na construção do Teatro Épico: a técnica de estranhamento. Ao causar estranhamento no indivíduo por meio de criações artísticas fundamentalmente abstratas, ao invés de este permanecer em seu ambiente de conforto − alienado dentro de uma ideia pronta, como era o caso da arte tradicional − conseguiu-se que ele saísse de uma forma ainda incerta de que direção seguir. Tendo retirado o espectador do estado de inércia, Brecht percebeu a grandeza que a provocação de um susto, ou aparecimento de algo estranho em meio à normalidade, poderia ter para a função da arte, que a partir dali tinha a intenção de fazer com que os espectadores saíssem do teatro diferentes de quando tivessem entrado, mesmo que o resultado disso fosse incerto4.

Elementos da vida que tinham sido esquecidos voltaram a ser abordados por esses artistas que denunciaram o esquecimento, quando resolveram “esvaziar” seus corpos e mentes de todas as emoções e sentimentos que dentro do sistema apenas assimilavam5. O resultado, ainda

4Adiante será tratado mais profundamente o distanciamento no sentido de Brecht, porém é visível a influência dos expressionistas dentro do olhar do autor em questão.

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que não tenha gerado plena consciência do que acontecia, gerou um olhar

mais “acordado”, que, por sua vez, possibilitou ver de forma mais distanciada

alguns fatos que antes eram simplesmente assimilados sem qualquer julgamento. Um olhar atento, que poderia se destinar a recomeçar e a tentar salvar a arte não mais através do olhar viciado da burguesia:

O homem é visto pelo expressionismo, conscientemente, como abstractum. E, com a renúncia altiva às relações intersubjetivas, que devem velar a ‘imagem do humano’, sucede a recusa da forma dramática, que para o dramaturgo moderno se nega a si mesma porque aquelas relações se tornaram frágeis. [SZONDI, 2001, p.126-127]

Sim, as relações tornaram-se frágeis, mas revertendo-se a situação, elas poderiam tornar-se fortes, e o homem poderia encontrar a transformação, fazendo nascer algo novo com relação à vida e à arte. Foi nisso que acreditou Brecht, e com esse intento que começou um trabalho responsável por pensar em que nível se daria uma mudança de função da arte efetiva. Como visto, a cultura ocidental seguia ligada a uma estrutura empenhada em produzir no palco fantasias em relação à vida, ditando preceitos morais sobre certo e errado, para o bem de uma “ordem” social. Se não se empenhasse em mudar drasticamente essa configuração que limitava os alcances do pensar, seria muito difícil que alguma mudança se concretizasse e consequentemente tornasse possível o acesso da arte às vias do pensamento e às capacidades que julgava propiciadoras de uma transformação da sociedade.

Antes de chegar a Brecht, depois de falar do expressionismo como uma das tentativas de salvamento do drama, Szondi passa a sua análise por Erwin Piscator, considerado pressuposto de referência para Brecht e o teatro político. Isso porque Piscator, afinal, desenvolveu o teatro político ainda que para Brecht ele adquira um novo sentido. Ambos foram herdeiros do naturalismo, aponta Szondi, quando o teatro passou a abordar as temáticas sociais e delas, então, se originou. Dessa forma, assim como o expressionismo, o movimento de Piscator também abriu portas para o teatro pensado por Brecht. Seu principal mérito reside na seguinte observação:

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(...) Piscator corrige a falsificação que o ‘drama social’ comete necessariamente com a oposição entre o estado alienado e reificado no plano temático e a imediatez intersubjetiva no campo do postulado formal. Ao processo histórico de reificação e de ‘socialização’, que a transposição dramática para o intersubjetivo inverte e suprime, Piscator assegura a forma adequada invertendo novamente a encenação. [SZONDI, 2001, p.129]

Um processo de abertura às experiências que pensavam a mudança de função da arte6 já tinha sido iniciado quando Brecht começou a trabalhar com o teatro. Sua concepção atribui ao teatro a função de emancipar o sujeito, o que o motivou a ir além da explosão do expressionismo e do modo político em Piscator e seguir potencializado por todos os movimentos que aconteciam no campo da arte e que confirmavam a possibilidade de uma grande mudança. Como essa ideia será desenvolvida mais adiante, o que vale comentar neste momento é que Brecht afastou-se de Piscator pois acabou compreendendo que o teatro ia além da política, e a dimensão social adquiria novas proporções. Pouco preocupado com o desenvolvimento propriamente artístico do teatro político, Piscator acabou transformando o palco em lugar de propaganda política, e isso faz Brecht admirá-lo, mas pretender outra coisa. Contra a apatia e a passividade dos indivíduos frente aos acontecimentos de nível social, Brecht parte da seguinte elaboração:

A problematização das relações intersubjetivas coloca em questão o próprio drama, visto que sua forma as afirma justamente como não problemáticas. Daí a tentativa de Brecht de opor ao drama ‘aristotélico’ – teórica e praticamente – um drama épico e ‘não -aristotélico’. [SZONDI, 2001, p.134]

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Esse novo drama que será chamado de não-aristotélico, antes de qualquer coisa, exigia uma grande participação do espectador, e isso, aliado a toda a estrutura épica, resulta numa mudança completa da relação entre o teatro e a diversão:

O processo sobre o palco já não esgota completamente a encenação, ao contrário do que se dava no drama, em cujo seio a encenação ocupava papel secundário (o que é historicamente apreensível com o desaparecimento do prólogo no Renascimento). O processo é objeto de narrativa do teatro, que se relaciona com ele como o narrador épico faz com o seu objeto: só da contraposição de ambos resulta a totalidade do espetáculo. Da mesma maneira, o espectador não é deixado de fora do espetáculo, tampouco é sugestivamente envolvido (‘iludido’) nele de modo que deixe de ser espectador, mas é contraposto ao processo como espectador, e o processo lhe é apresentado como objeto de sua consideração. Visto que a ação da obra não se constitui em domínio exclusivo, ela já não pode mais metamorfosear o tempo da representação em uma sequência absoluta de presentes. O presente da representação é como que mais largo que o da ação; por isso, o olhar fica atento não apenas ao desfecho, mas também no andamento e ao que passou. No lugar da direção dramática com objetivos definidos entra a liberdade épica de demorar-se e repensar. Visto que o homem agente não é mais que objeto do teatro, é possível ir além dele e perguntar por motivos de sua ação. De acordo com Hegel, o drama mostra somente o que no ato do herói se objetiva a partir de sua subjetividade e o que subjetiva a partir da objetividade. Ao contrário, no teatro épico, em correspondência com sua intenção sociológica e cientifica, há uma reflexão sobre a ‘infra-estrutura’ social dos atos em sua alienação objetiva. [SZONDI, 2001, p.136]

Assim, já não há na proposta de teatro de Brecht a diversão ao modo burguês, como entretenimento. O palco emociona, mas não ilude. A diversão adquire um novo sentido, que cobra atividade do público. Brecht acreditava que, ao se cobrar essa atividade, as pessoas solicitadas perceberiam a importância da presença delas para a constituição da sociedade, ou seja, como produtoras e colaboradoras de um meio comum.

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superficial que nada acrescenta aos indivíduos. Desse novo modo, eles podem por eles mesmos adquirir conhecimento e a isso atribuírem um prazer imenso:

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1.2 A crítica de Brecht à tradição

O que permanece obscura é a fonte do fracasso. Será que as formas de arte têm seu ciclo de vida prescrito? Talvez não exista principio de conservação na energia poética. É evidente que o empreendimento grego e elizabetano parecem repousar sobre as costas de todo o drama posterior com um peso fatigante do precedente. Ou será que o coração da crise se encontra no interior da sociedade? Será que os poetas dramáticos do século XIX fracassaram em produzir boas peças porque não tinham teatros necessários nem o requisito do público à disposição? GEORGE STEINER

O drama que se desenvolveu antes da Revolução Francesa, apesar de permeado por uma série de aspectos burgueses, como analisou Szondi, ainda não se tratava daquele que será o drama burguês em crise, visto na parte anterior, que atinge seu auge com o Naturalismo. A obra de Szondi, Teoria do drama burguês, assim como a crítica de Brecht, percorre todo o conjunto de autores que deram início ao processo de descoberta da nova posição do teatro e que foram responsáveis também pelo modo como o drama burguês se desenvolveu.

O teatro do século XVIII e começo do XIX, como se verá, era ainda bastante distinto em sua prática do teatro burguês do final do século XIX. É isso o que Brecht percebe, e esta segunda parte do capítulo destina-se justamente a essa análise que ele dirigiu a alguns autores tradicionais do teatro, na tentativa de tornar mais claro o que era preciso combater nessa tradição. Para guiar este texto, buscou-se alguns de seus trechos reunidos em Estudos sobre teatro e

Diário de Trabalho – vol. 1. A intenção é compreender como começou e se desenvolveu a crítica do dramaturgo alemão, uma crítica que se estabelece principalmente no período pós- Revolução Francesa (1789-1789).

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Nas interpretações mais recentes, observou-se que já antes havia dúvidas quanto ao alcance das mudanças sociais que a revolução poderia promover. Hoje, já com o olhar do presente, há uma vasta reflexão sobre os limites que atingiu. Avalia-se até que ponto ela teria evoluído em relação ao que realmente defendeu, uma vez que acabou priorizando os interesses de uma determinada classe. De qualquer forma, foi às vésperas da Revolução Francesa que se deu o primeiro grande confronto entre o velho e o novo. Este mudou para sempre as relações entre os homens, inclusive no campo da arte, fazendo surgir no teatro uma reflexão que começa a questionar o aprisionamento às formas tradicionais de representação, fazendo com que as novas frentes teóricas se ocupassem dos possíveis futuros do drama.

Um retorno a esse passado, anterior e posterior à revolução, desempenhou um papel importante no trabalho de Brecht. Ele quis diferenciar os movimentos que desejaram superar a condição tradicional de representação daqueles que simplesmente se adaptaram, recorrendo a antigos modelos – sendo que o segundo caso mostrou-se a Brecht como fonte de problemas para o drama. Sua investida talvez fique mais clara se se retomar a ideia do alcance de revoluções como a francesa. Brecht se empenhou em arquitetar, próximo aos de seu tempo, uma mudança no teatro, mais transformadora do que a anterior havia sido. É, portanto, natural que quisesse voltar a certos eventos e autores dessa época, a fim de que, ao verificar os desvios, pudesse pensar algo para além de uma adaptação econômico-social. Nesse retorno, o que Brecht percebeu é que muitos daqueles considerados tradicionais haviam se afastado do que poderia ter se tornado uma verdadeira transformação, ao decidir priorizar o apego à antiga forma de representação:

a tragédia deixou de ser realidade formal da representação, substituída pelo drama, mas persistiu como especulação estética e como consciência crítica do real. Na outra ponta, décadas depois, o drama se torna impossível como forma de totalização subjetiva. Sua superação produtiva só será alcançada por aqueles dramaturgos capazes de inventar modos narrativos de encenar ações individuais como parte de processos mais amplos, capazes de mostrar novamente relações supra-individuais, o que exigiu uma superação entre sujeito da representação e objeto representado.1 [CARVALHO, apud SZONDI, 2004 p.11]

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