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Uma poesia de mosaicos nas Odes de Horácio: comentário e tradução poética

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS CLÁSSICAS

U

MA POESIA DE MOSAICOS NAS ODES DE

H

ORÁCIO

:

COMENTÁRIO E TRADUÇÃO POÉTICA

Guilherme Gontijo Flores

Orientador: João Angelo Oliva Neto

Tese apresentada ao Programa de Letras Clássicas do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em Letras.

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R

ESUMO

Este trabalho propõe uma leitura em mosaico das Odes, em três níveis: (a) a ordem das palavras, (b) organização do poema e (c) disposição do(s) livro(s). Em seguida, diante dos efeitos produzidos por esses níveis, a tese pretende justifica e apresentar uma tradução poética que tenha a função crítica que elucidar pela prática poética os problemas críticos apontados na parte teórica.

PALAVRAS-CHAVE: Horácio; Odes; Mosaico; Poesia Romana; Tradução Poética; Obra Aberta

A

BSTRACT

This work proposes a reading in mosaics of the Odes, in three levels: (a) word-order, (b) organization of the poem and (c) disposition of the book(s). After that, in face of the effects produced by those levels, this thesis aims at justifying and presenting a poetic translation that also bears a critical function through clarifying by the poetical praxis the critical problems pointed in the theoretical section.

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para nanda, íris e dante. no começo desta história éramos 2

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A

GRADECIMENTOS

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Il est donc essentiel à la chose et au monde de se présenter comme “ouverts”, de nous renvoyer au delà de leurs manifestations déterminées, de nous promettre toujours “autre chose à voir”. C’est ce que l’on exprime quelquefois en disant que la chose et le monde sont mystérieux.

(Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception)

Se você mete um prego na madeira, a madeira resiste diferentemente conforme o lugar em que é atacada: diz-se que a madeira não é isotrópica. O texto tampouco é isotrópico: as margens, a fenda, são imprevisíveis. Do mesmo modo que a física (atual) precisa ajustar-se ao caráter não-isotrópico de certos meios, de certos universos, assim é necessário que a análise estrutural (a semiologia) reconheça as menores resistências do texto, o desenho irregular de seus veios.

(Roland Barthes, O prazer do texto)

Viver na intimidade de um ser estranho, não para nos aproximarmos dele, para o dar a conhecer, mas para o manter estranho, distante, e mesmo inaparente – tão inaparente que o seu nome o possa conter inteiro. E depois, mesmo no meio do mal-estar, dia após dia, não ser mais que o lugar sempre aberto, a luz inesgotável na qual esse ser único, essa coisa, permanece para sempre exposta e murada.

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Í

NDICE

ABREVIAÇÕES 6

PREFÁCIO – REVENDO AS PEÇAS 7

INTRODUÇÃO 31

1.UMA POÉTICA DE MOSAICOS? 37

1.1. Opus musiuum 37

1.2. Callida iunctura e series, a ordem da frase (a) 59

1.3. Lucidus ordo, a ordem do pensamento (b) 89

1.4. Dispositio dos livros (c) 97

1.4.1. Metro 104

1.4.2. Posição 111

1.4.3. Temas 113

1.4.4. Subgênero poético 116

1.4.5. Fraseologia e léxico 118

1.4.6. Atmosfera 121

1.5 Abre-se a obra? 124

2.DA TRADUÇÃO EM SUA CRÍTICA 131

2.1.Adeus melancolia: transluciferação e política 131

2.2. Horácio – Horácios 158

2.3. Para uma polimetria brasileira nas Odes de Horácio 182

3.O LIVRO I DAS ODES: TRADUÇÃO POÉTICA 205

4.COMENTÁRIOS E NOTAS 289

5.CONCLUSÃO 369

6.REFERÊNCIAS 373

APÊNDICES

1. Haroldo de Campos leitor de Henri Meschonnic 397

2. Tradutores das Odes 403

3. Lista de metros das Odes 409

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A

BREVIAÇÕES

BRINK BRINK,1963;

BRINK,1971(Arte poética); BRINK,1982(Epístolas 2).

BEKES BEKES,2005.

COLLINGE COLLINGE,1961.

FRAENKEL FRAENKEL,1957.

MAYER MAYER,2012(livro 1).

K-H KIESSLING &HEINZE,1968 (Odes e Epodos) KIESSLING &HEINZE,1970(Epístolas)

N-H NISBET &HUBBARD,1970 (livro 1);

NISBET &HUBBARD,1978(livro 2).

N-R NISBET &RUDD,2004(livro 3).

ROMANO ROMANO,1991.

SHACKLETON BAILEY HORATIUS OPERA,2001.

SYNDIKUS SYNDIKUS,1972(livros 1 e 2);

SYNDIKUS,1973(livros 3 e 4).

THOMAS THOMAS,2011(livro 4 e Carmen saeculare).

VILLENEUVE VILLENEUVE,1946.

WEST WEST,1995(livro 1);

WEST,1998(livro 2); WEST,2000(livro 3).

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P

REFÁCIO

REVENDO AS PEÇAS

Il n’y a pas de vrai sens d’un texte. Pas d’autorité de l’auteur. Quoi qu’il ait voulu dire, il a écrit ce qu’il a écrit; une fois publié, un texte est comme un appareil dont chacun peut se servir à sa guise et selon ses moyens: il n’est pas sûr que le constructeur en use mieux qu’un autre.

(Paul Valéry, “Au sujet du Cimetière Marin”, Variété)

Alguns estudiosos e críticos de literatura podem se preocupar com a possibilidade de um texto literário não ter um único significado “correto”, mas provavelmente não serão muitos a ter essa preocupação. É mais certo que se deixem seduzir pela ideia de que os significados de um texto não estão encerrados nele como o dente de ciso [sic] está na gengiva, esperando pacientemente pela sua extração, mas sim que o leitor tem algum papel ativo nesse processo. Nem se preocupariam com a ideia de que o leitor não chega ao texto culturalmente virgem, por assim dizer, imaculadamente livre de envolvimentos sociais e literários anteriores, como um espírito totalmente desinteressado ou como uma folha em branco, para a qual o texto transferirá as suas próprias inscrições. De um modo geral, admite-se hoje que nenhuma leitura é inocente, ou feita sem pressupostos. Poucas pessoas, porém, levarão às últimas consequências as implicações dessa culpa do leitor.

(Terry Eagleton, Teoria da literatura)

Antes de começar, creio que possa ser de algum interesse apresentar uma discussão teórica geral: parece-me impossível estudar um texto complexo e extensamente comentado como as Odes, sem antes explicitar – um pouco que seja – de onde vem o olhar que apresenta um tal estudo. Nesse sentido, deixo claro de antemão que vou completamente contra a formulação de David West: “Writings on literary theory are so complex, obscure, and abstract that they are of no help in the understanding of Horace”1. Não quero com isso dizer que pretendo aqui apresentar uma metodologia específica (ela aparecerá no primeiro capítulo pelo contraste entre as Odes e comentários do próprio Horácio, sobretudo na Arte poética); mas apenas sugerir ao leitor aquilo que ventila meu olhar de filólogo, ou em outras palavras, o que está subjacente ao modo de pensar de um leitor específico. Não obstante essa importância teórica que pretendo apresentar, assumo desde logo que ecoa em mim a constatação um tanto triste de Antoine Compagnon (2010: 13) de que “o impulso teórico estancou-se desde que forneceu uma certa ciência de apoio à sacrossanta explicação do texto”. Essa frase, creio, permite-se a pelo menos duas leituras já inventivas e

      

1 “Escritos sobre teoria literária são tão complexos, obscuros e abstratos, que não prestam qualquer

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interpretativas: Compagnon lastima o engessamento teórico dos últimos anos, com um jargão excessivamente técnico que, muitas vezes, se crê suficiente para o domínio de determinadas obras, como se a partir dele tivéssemos receitas prontas de análise e interpretação dos textos; o que leva ao risco maior de acreditarmos na tal “sacrossanta explicação do texto”, ou numa verdade contida no texto e que deve ser descoberta e revelada por meio da aplicação teórica, como se nos textos pudéssemos encontrar um

fundo único, um sentido determinado e unívoco que guia toda a obra, quando melhor seria fazer do pensamento teórico um constante devir, um espanto produtivo diante das questões levantadas por cada obra, para a partir desse desencontro produzir uma leitura específica, um diálogo entre leitor e obra, um movimento que se dê a partir da obra, mas que nunca resulte em leitura final, e sim num retorno constante de produção sobre a obra, que se produz sempre teoricamente, haja ou não consciência disso. “Assim como o escritor, o crítico nunca tem a última palavra” (Barthes, 2007: 16, grifos do autor). Também o texto do crítico se presta a interpretações, no que poderíamos considerar um jogo potencialmente infinito de leituras das leituras das leituras etc.

Assim, podemos entender mais claramente a afirmação sumária de Simon Goldhill de que a “teoria não é algo que se prega à leitura. Ela é o que torna a leitura possível. Já está lá. Sempre2”. Nessa perspectiva, ler é sempre um ato criativo e teórico; e não apenas em determinados casos, como o da tradução poética (como se poderia entender pelo título do artigo seminal de Haroldo de Campos “Da tradução como criação e como crítica”, publicado originalmente em 1961). Teorizar, do verbo θεωρεῖν, tem o

sentido de “olhar”, “ver”, “contemplar”; para depois agrupar também os sentidos de “especular”, “considerar” racionalmente e produzir saberes a respeito de um determinado objeto. A teoria, portanto, não está distanciada do mundo, nem independente da prática observatória; ao contrário, ela precisa ser intensa e constantemente permeada pela experiência, que por sua vez nunca se esgota; nas palavras de Henri Meschonnic, “a teoria é [...] a busca pela teoria”, e não deve ser entendida como uma teoria única (1982: 33). No caso da interpretação poética, essa experiência teórica é atravessada por diversos níveis que extrapolam o especificamente poético para incorporar a própria vida de cada leitor. Nesse sentido,

      

2 “isn’t something one tacks on to reading. It’s what makes reading possible. It’s there already.

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não conseguimos facilmente teorizar sobre a leitura, já que ela é, por natureza, múltipla, como múltiplos são os leitores: mesmo que encontremos dois leitores com a mesma afinidade teórica – com o mesmo olhar sobre o mesmo objeto – suas leituras nunca são idênticas, porque a teoria não se dá de modo estanque, como mera ferramenta de aplicação mecânica. Está implicada na escrita crítica a experiência de cada crítico, que por sua vez se esforça para tornar pública e convincente a sua leitura.

Daí que eu possa dizer que há uma falsa ambiguidade nesta apresentação teórica: neste caso, não pretendo – e que isso fique bem claro – realizar uma incorporação de determinada teoria com seus dogmas, para em seguida aplicá-la à leitura das Odes de Horácio. O que pretendo aqui é examinar um pouco de apenas algumas teorias que se entrelaçam, para, uma vez apoiado nelas, produzir minha leitura idiossincrática, sem filiação dogmática – mantendo a metáfora do apoio, aqui se imagina um salto – e, devo assumir, com certa reserva ao uso de jargões excessivamente técnicos da teoria literária do último século. Na prática, tenho ciência de que não há como evitar completamente os jargões – mesmo a linguagem cotidiana e o senso comum têm os seus – e é claro que nos Estudos Clássicos eles se tornam em grande parte necessários, para podermos ressaltar as diferenças entre culturas. Ainda nos termos de Roland Barthes (2007: 201), “‘jargão’ é a linguagem do outro”.

Porém, voltando ao livro de Compagnon, podemos dizer que é bastante notável o modo como ele apresenta as diversas dicotomias teóricas a partir de cada um dos sete eixos principais tratados em sua obra, a saber: literatura, autor, mundo, leitor, estilo, história e valor. Em cada um dos casos, ele tenta determinar como, por contraponto à comodidade do senso comum, os radicalismos da teoria, embora bastante sedutores, acabam resultado em aporias, ou no mínimo em considerações inviáveis para a prática da leitura. Gostaria aqui de debater, à guisa de paradigma para a discussão como um todo, um dos pontos mais importantes e retomados criticamente dos últimos 40 anos, por crer que toca muito sensivelmente no processo interpretativo em geral e nos seus problemas específicos.

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um conceito de intenção do Autor (assim maiúsculo para, talvez, explicitar ainda mais a posição central que essa figura assumiu por muito tempo na interpretação poética, sobretudo no senso comum) como eixo central das leituras, e levá-lo mais diretamente ao texto em leitura3. Para tanto, Barthes responde com a radicalidade do seu pensamento, derivado do New Criticism4, que “a escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge nosso sujeito, o branco-e-preto, onde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve” (ibid.: 65); aqui, a obra deixa de ser mera confidência biográfica e romântica do autor para se tornar texto (termo caro a Barthes, que retoma sua etimologia de “tessitura” e “entrelaçamento”), que por sua vez convida a intervenção ativa do leitor – pouco importa quem o tenha escrito e quais eram as suas intenções originais5. Nesse sentido, poderíamos imaginar uma argumentação simples: o que o autor pretende não necessariamente se realiza (não podemos confundir intenção e realização de uma obra), e toda produção de sentido acontece somente durante o ato de leitura, na mente de um leitor (e também não do Leitor ideal). Segundo esse entendimento, as palavras de Paul Valéry apresentadas na epígrafe desta introdução parecem resumir toda a questão: uma vez que a obra foi publicada, o autor passa a ser apenas mais um de seus leitores, e sua opinião não é necessariamente mais interessante ou verdadeira do que a de qualquer outro intérprete da obra; é precisamente o que descreve Mikhail Bakhtin quando afirma que, ao comentar sua própria obra, o autor “se tornou independente de si

      

3

Um exemplo claro pode ser achado num comentário de Wilkinson sobre Horácio (1968: 132): “His objective was to give the most lively expression he could to his thoughts and feelings, and everything was subordinated to this” (grifo meu). Por conclusão, poderíamos dizer que o principal objetivo do crítico seria descobrir esses pensamentos e sentimentos originários do texto.

4

Cf. “A falácia intencional” de Wimsatt & Beardsley (1983), publicado originalmente em 1954, onde lemos que “não é tanto uma afirmativa histórica quanto uma definição dizer que a falácia intencional é romântica” (p. 89), ou que “a alusividade na poesia é um dos grandes problemas críticos que usei para ilustrar o tema mais abstrato da intencionalidade[...] como prática poética, a alusividade chega a me parecer, em certos poemas recentes, um corolário extremo da pressuposição intencionalista romântica e, como problema crítico, ela desafia e faz ressurgir de modo especial a premissa básica da intencionalidade” (p. 99).

5 Obviamente não posso me deter na complexidade do artigo de Barthes, que, a meu ver, trata de muito

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mesmo — é a pessoa, o crítico, o psicólogo, ou o moralista” (2003: 6). É também o convite do poeta Waly Salomão na orelha de sua antologia, O mel do melhor (2001):

...o autor na verdade, é falível, é vulneráveil, e sobretudo ele não detém a última palavra, a chave final sobre a propulsão que um poema pode despertar

num eventual leitor...

... como se sabe o leitor é querido e livre pode ler assim ou assado...

Um exemplo óbvio poderia ser o do uso feito das obras de Friedrich Nietzsche pelos nazistas, graças a certas intervenções políticas e editoriais de sua irmã, Elizabeth Vöster-Nietzsche, após a morte do filósofo; ao passo que hoje parece haver concordância de que o autor do Zaratustra estava longe de pensar em raça ariana quando, por exemplo, formulava sua teoria do Übermensch, e que suas teses defendidas em Além do bem e do mal não se aplicariam à política do nazismo. Claro está, portanto, que a obra não existe na metafísica das intenções do autor, mas no uso derivado de suas leituras, seja por fins políticos, ideológicos, ou meramente poéticos. Se a intenção do autor fosse o centro do texto, nem sequer haveria necessidade de crítica literária, pois que sua univocidade logo se revelaria ao leitor mais atento – não teríamos inúmeras leituras, debates e controvérsias a respeito de cada obra escrita; nem a necessidade aparentemente infinita de entender também o que significariam determinadas leituras feitas pelos comentadores. Aqui parece ficar esclarecida a frase de Umberto Eco de que “a relação entre intérprete e obra sempre foi uma relação de alteridade” (2010: 33); já que é nessa diferença entre os dois que se produz o sentido.

No entanto, em contraponto à radicalização pela morte do autor e pelo império da linguagem impessoal e anônima propostos por Barthes (nisso que foi talvez um dos marcos inaugurais do pós-estruturalismo francês), pergunta-se Compagnon:

Mas ao afirmar que o autor é indiferente no que se refere à significação do texto, a teoria não teria levado longe demais a lógica, e sacrificado a razão pelo prazer de uma bela antítese? E, sobretudo, não teria ela se enganado de alvo? Na realidade, interpretar um texto não é sempre fazer conjeturas sobre uma intenção humana em ato? (op. cit.: 49)

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um homem que viveu no século I a.C., entre décadas de guerras civis, que passou pela guinada política da Pax Augusta e escreveu o Carmen saeculare sob encomenda do próprio Augusto, que mencionou em sua poesia madura a renovação religiosa do princeps, que recebeu uma uilla de seu patrono Mecenas, que leu (como todo romano

de sua classe) a poesia grega arcaica e helenística, além da romana, ainda nos seus anos de formação, que viveu num tempo em que retórica e poesia não estavam de todo separados? Diante dessas perguntas, não hesito em afirmar que a morte do autor tem os seus limites, e que dados biográficos do autor podem constituir uma espécie de metatexto; se não para encontrar uma verdade em sua obra, ao menos para indicar possíveis balizas mais convincentes de leitura. Doutro modo, teríamos de fingir que as obras surgem do mero acaso, sem ponto de ancoragem, sem ideologias, subjetividades ou poéticas que as permeiem; sem um indivíduo real que as escreva.

Mas eu poderia questionar o que significa “a morte do Autor” e retomar o problema: seria essa morte declarada por Barthes tão radical quanto foi interpretada por parte dos críticos? Vejamos mais uma passagem:

Uma vez afastado o Autor, a pretensão de “decifrar” um texto se torna totalmente inútil. Dar ao texto um Autor é impor-lhe um travão, é provê-lo de um significado último, é fechar a escritura. Essa concepção convém muito à crítica que quer dar-se então como tarefa importante descobrir o Autor (ou suas hipóteses: a sociedade, a história, a psique, a liberdade) sob a obra: encontrado o Autor, o texto está “explicado”, o crítico venceu; não é de se admirar, portanto, que o reinado do Autor tenha sido também o do Crítico (op. cit.: 69)

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que posso dizer que o foi – como uma espécie de “vale tudo” em nome da nova supremacia do leitor6, contra o antigo império do Autor e do Crítico. Nesse caso, seria possível entender que “a leitura (ou análise) deve parar em algum momento, e esse ponto de parada é uma escolha arbitrária e, por isso, ideológica”, segundo comenta Robson Cesila (2013: 18) acerca das ideia de Don Fowler sobre intertextualidade, em Roman Constructions, de 2000; assim, “as cadeias intertextuais são infinitas e o

leitor/analista é quem decide em que ponto vai parar. Isso nos leva à ideia de que a intertextualidade pode não ser um objeto fixo, pronto, um produto final, mas um processo, um fenômeno em movimento, uma ação inacabada” (ibid.: 19). Cada leitor impõe as próprias delimitações de sua leitura, quer ele tenha ou não consciência desse ato.

Ora, parece-me óbvio que uma total supremacia do leitor é passível de questionamento, porque está em algum ponto limitada como discurso social: o texto/leitura também é passível de outra leitura, que o submete ao seu crivo; portanto, entra na ordem do discurso, se pretende ganhar existência. Desse modo, podemos chegar à seguinte situação: se, por um lado, a obra só pode acontecer nas diversas leituras e só pode ganhar sentido diante de leitores que lidam com sua própria bagagem de leituras prévias (da literatura e do mundo); por outro, para além do âmbito específico da intertextualidade, um leitor não pode fazer absolutamente qualquer leitura sob o argumento de “ação inacabada” ou “arbitrária”, ou de “escolha ideológica”; sobretudo num ato interpretativo público como é uma tese. Aqui, portanto, separa-se o leitor geral (qualquer um, que pode, de fato, produzir qualquer leitura, uma fruição do texto) do crítico (de quem se espera uma leitura fundamentada, capaz de produzir κρίσις e novos sentidos), com um cuidado importantíssimo: “resta

ainda uma última ilusão à qual se deve renunciar: o crítico não pode, de modo algum, substituir o leitor” (Barthes, 2007: 228); noutras palavras, a leitura crítica não é mais verdadeira que a geral, ela apenas obedece uma determinada “ordem do discurso” – se insistirmos com o conceito de Foucault (1970). De qualquer modo, não ficamos sem

      

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objeto interpretativo, apenas saímos da metafísica intencional para cairmos na concretude do texto e das duas relações, agora talvez mais interessados numa análise de seus possíveis efeitos, independentemente do que possa ter sido ou não premeditado pelo autor: na alteridade entre texto e leitor é que se funda um sentido. E, no caso específico dos estudos sobre a poesia antiga, é preciso levar em conta a poética vigente que, longe de valorizar o gênio individual, estabelecia diversas maneiras de construir um poema. Nesse sentido, todo texto antigo partilha de uma poética coletiva; porém, ainda assim, os exemplares individuais (a obra concreta) sempre escapa de alguma maneira à categorização pura e simples, do mesmo modo que os discursos extrapolam a língua como abstração. É diante dessa duplicidade do texto (por um lado, sua fôrma coletiva, por outro, sua forma única) que o estudo da poesia precisa acontecer.

O fato, portanto, é que Barthes não estava propondo um “vale tudo” generalizado, e sim um enfoque sobre o texto; o desligamento da tradicional máquina de verdade do texto, para pensarmos nas possibilidades de leitura diante de um determinado texto material. E precisamos assumir que suas possibilidades, por mais que limitadas e discutíveis pela própria materialidade do texto, uma vez que sem metafísica, não são mais pré-estabelecidas: é necessário sempre testar e retestar esses limites, por vezes com radicalidade; porque um texto não permanece interessante ao longo dos séculos graças a um sentido imutável que continua instigando seres humanos de épocas bastante diversas: ele permanece porque é capaz de receber interpretações diferentes a partir de pontos de partida completamente variados. Mas convém estar sempre diante do texto, da sua materialidade, para produzir uma interpretação. Sem o recurso à intenção do autor, Compagnon, por exemplo, lembra o recurso ao método das passagens paralelas (Parallelstellenmethode):

quando uma passagem de um texto apresenta problema por sua dificuldade, sua obscuridade ou sua ambiguidade, procuramos uma passagem paralela, no mesmo texto ou num outro texto, a fim de esclarecer o sentido da passagem” (op. cit.: 67).

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comentários. Isso se dá porque um texto só existe em sua relação consigo mesmo e com outros textos, e não num vácuo atemporal. De algum modo, nessa técnica, mesmo que se descarte a intenção, ainda ficamos com algum substrato importante para justificar interpretações da obra pelo seu diálogo (ou intertextualidade) com outras passagens da mesma obra ou de outras obras próximas, seja por gênero, língua, léxico etc. Mas até nesses casos, é preciso lembrar – ainda mais no caso da filologia antiga – que, pelo contraste de passagens, temos apenas maiores probabilidades interpretativas, “jamais, é claro, uma prova” (ibid.: 69); pois nada garante que, por

serem passagens estruturalmente paralelas, as duas comportem o mesmo sentido em uma palavra idêntica. Nem mesmo em uma passagem paralela de um mesmo autor — e eu acrescentaria, de uma mesma obra –– nós teremos tal garantia (a coerência interna do autor é também uma ficção confortável para os críticos), mas ela torna nossa discussão mais afiada; menos errante. Segundo Foucault (2004: 305-7), a busca por coerência interna e manutenção estável de valor são dois dos critérios da crítica para enquadrar o nome do autor, a partir de São JerônimoPor exemplo, como realizarmos uma coerência perfeita autoral diante das variedades dos gêneros literários de um mesmo autor? Giuliano Bonfante (1994: 159) comenta Horácio:

Le Odi e le Satire, opere della stessa epoca e dello stesso autore, occupano, quindi, quelli che si possono definire i due pole opposti della lingua latina: le Odi sono scritte nella lingua più nobile, più raffinata, più pura che si possa immaginare; le Satire in quella più popolare che lo stile letterario dell’epoca poteva permettere7.

Em Horácio mesmo, temos um autor que escreveu ao longo de décadas, em gêneros diversos. No caso de um contraste de passagens paralelas, é preciso levar em conta que os textos são de períodos distintos, que o gênero diferente resulta em elocução e vocabulário diferentes etc. Além disso, é importante lembrar que uma obra poética não se submete ao mesmo critério de coerência que uma obra filosófica; por exemplo, o uso assistemático de filosofia(s) em Horácio, no mesmo gênero das Odes, poderia causar espanto no crítico que procura por unidade, mas logo vemos que o poeta usa de filosofias diferentes para temas diferentes, segundo o efeito poético que possa alcançar. Nesse caso, as inconsistências do texto fazem parte do seu funcionamento; não são falhas ou equívocos a corrigir.

      

7

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Outro exemplo claro de momentos em que a intenção parece se anular como categoria interpretativa, e onde o método das passagens paralelas pode fracassar completamente, é a ironia: uma vez iniciado o mote irônico em determinado autor, é bastante difícil estabelecer onde ele começa e onde acaba, ou como interpretar a direção do sentido8. Afinal, mesmo na filosofia, onde é que o Sócrates platônico é completamente sério em seus argumentos, e onde ele simplesmente usa do que tem à mão para desmontar o pensamento alheio9? Na poesia, onde é que a elegia erótica romana deixa de ser tipicamente augustana para apresentar uma crítica à moral tradicional romana10? As perguntas poderiam se multiplicar indefinidamente. Sem o Autor como centro da interpretação, leituras contraditórias podem/devem coexistir, porque toda obra é, de algum modo, aberta; abertas também estarão as interpretações, desde que de algum modo centradas sobre o texto.

Nisso chego de fato à filologia antiga; chego também a uma prévia deste trabalho. É claro que os Estudos Clássicos não são uma pedra uniforme de concordância, e inúmeros modos de trabalho coexistem ao mesmo tempo, inclusive num só determinado departamento de uma universidade específica. Porém arrisco-me a dizer que, na maior parte dos nossos estudos, há uma tendência para a leitura de fundo hermenêutico, que se aproxima do que diz Gadamer (apud Compagnon, op. cit.: 60):

O saber histórico abre a possibilidade de restituir o que está perdido e de restaurar a tradição, na medida em que ele dá vida ao ocasional e ao original. Todo esforço hermenêutico consiste, pois, em reencontrar o “ponto de ancoragem” no espírito do artista, único meio de tornar plenamente compreensível a significação de uma obra de arte.

No caso dos Estudos Clássicos, isso se daria por uma tentativa de reconstrução fiel do passado, dos modos de pensamento, de produções da escrita, dos critérios dessa escrita – em geral retóricos – dos gêneros determinados, do gosto de época, dos costumes sociais e discursivos, do estudo dos tópicos etc. É, por exemplo, boa parte do que se pode depreender de um clássico contemporâneo como Generic composition in Greek and Roman poetry, de Francis Cairns. Para simplificar bastante, vejamos

      

8 Cf. Flores, 2010, artigo onde trato dos problemas derivados da ironia, numa passagem do livro 3 das

Argonáuticas de Apolônio de Rodes. 9

Cf. Blondell, 2000, Tarant, 2000, Levett, 2005, e Scott & Welton, 2000. 10

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apenas sua exata primeira oração: “The aim of this work is to suggest an approach whereby the subject-matter of ancient literature may be better understood” (1972: v, grifo meu)11. Apesar do termo “sugerir” (suggest), vemos no fim da oração a ideia clara de que um texto antigo poderá ser “mais bem compreendido” – portanto, mais próximo de sua verdade – mediante sua “abordagem” (approach). Essa abordagem – e não pretendo em nada desmerecê-la como abordagem fundamentada, mas apenas testar seus limites – é sobretudo embasada na análise de obras de retórica e oratória, para definir os gêneros e lugares-comuns da poesia antiga como o melhor modo (that may be better understood) de ler essa poesia. Seu principal recurso é a obra de

Menandro, o Rétor, um autor do século III d.C., de modo que o argumento geral é simples: seu método seria mais certeiro porque tenta entender os antigos pelos critérios dos próprios antigos – suas categorizações e prescrições de escrita. Nas palavras de Paulo Martins, “antes, procura-se reproduzir uma forma mentis romana dos primeiros séculos antes e depois de Cristo” (2011: 31), para depois propor que se deve, “pelo menos teoricamente, recuperar uma forma mentis romana para que as análises feitas não atribuam aos objetos analisados algo alheio a eles, em seu período de invenção e circulação”. Convém lembrar que não se trata de purismo ingênuo, nem corte absoluto do anacrônico, já que o próprio Martins faz uso de Michel Foucault em seu trabalho teórico. Mas como averiguar, de fato, essa forma mentis? Para Umberto Eco, devemos levar em consideração que

a obra [...] poderá ter fraquíssimas conexões com seu próprio momento histórico, poderá expressar uma fase subseqüente do desenvolvimento geral do contexto, ou poderá expressar, da fase em que ele [o autor] vive, níveis profundos, que ainda não aparecem muito claros a seus contemporâneos (2010: 34).

Em resumo, mesmo o conhecimento da forma mentis não garante o domínio do texto, porque este potencialmente a extrapola: a obra nunca é um espelho fiel do tempo histórico em que ela se inscreve, por mais que partilhe de seus valores e de sua episteme. Simon Goldhill apresenta um risco específico para os classicistas:

Particularly for classicists, who have such a developed sense of intellectual tradition, it is ludicrous myth-making to pretend what we do now is what we’ve always done. That there is – simply and self-evidently – a natural way to read. An unchanging classical tradition12.

      

11

“O intuito deste trabalho é sugerir uma abordagem pela qual a matéria da literatura antiga seja mais bem compreendida.

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Não quero desmerecer tais linhas de trabalho, nem sequer sugerir que Cairns ou Martins caiam numa tal ingenuidade pura e simplesmente: na verdade, os dois trabalhos são de grande importância para esta tese e constituem pilares interpretativos. Desejo aqui apenas apresentar como uma determinada visão sobre “melhores métodos” de “melhor compreensão”, ou de confiança na recriação ou recuperação fiel do passado, que correm o risco de incorrer num ponto de leitura tido como “mais natural” ou “metodologicamente correto”, podem ser, em parte, tomados por contraposição ao que pretendo fazer (que não é, ao fim e ao cabo, tão diverso do trabalho deles). Eu arriscaria, no entanto, dizer que tanto a proposta de Cairns como a de Martins – um sobre o discurso poético, outro sobre a relação entre o poético e as imagens – de certo modo tentam buscar, como dizia Barthes, “descobrir o Autor (ou suas hipóteses: a sociedade, a história, a psique, a liberdade) sob a obra”; mas sobretudo pelas “hipóteses”. No Estudos Clássicos, Duncan F. Kennedy critica esse tipo de procedimento como “efeito de realidade”, nos seguintes termos:

The increasing concentration on means rather than object raises a crucial question that can be framed in terms of the ‘reality effect’: where does it stop. Any assertation that a particular statement in a text represents reality is open to the counter-assertion that it is an instance of the reality effect, that what is represented as reality is precisely that, another representation13.

Ao lermos estudos sobre a organização das Odes horacianas em cada livro, encontramos esse tipo de determinação da realidade do autor a partir do texto. No seu importantíssimo trabalho, Alessandra Minarini, por exemplo, afirma:

È ovvio che il quesito della dispositio delle odi ha senso solo se ha trovato risposta positiva una precedente, fondamentale domanda: è stato veramente il poeta di Venosa a pubblicare i suoi libri con i carmi disposti nell’ordine che leggiamo oggi?14

Para Minarini, como para a boa parte dos estudiosos do assunto, a interpretação de uma determinada organização poética pressupõe “una volontà ordinatrice ab initio”

        autoevidente – um modo natural de leitura. Uma tradição clássica imutável” (op. cit.: 278, grifo do autor).

13 “A crescente concentração nos meios, e vez de nos objetos, gera uma questão crucial que pode ser

enquadrada em termos de “efeito de realidade”: onde ele para? Qualquer determinação de que uma afirmação qualquer num texto representaria a realidade está aberta para a contradeterminação de que seria um caso do efeito de realidade, que o que é representado como realidade é precisamente isso, outra representação” (1993: 6, grifo do autor).

14

(20)

(ibid.: 19), portanto da descoberta do autor ou de suas hipóteses. Essa ideia se repete, poucas páginas depois, quando ela afirma que “é difícil pensar que Horácio tivesse em mente desde o início um projeto global”15, como se o projeto do homem Horácio fosse determinante para o processo interpretativo; ou seja, para Minarini, a interpretação passa pela tentativa de desvelamento do que foi o projeto horaciano, e não do que é seu resultado material. Como Barthes, eu desconfio bastante da possiblidade de acessar com confiança quaisquer dessas instâncias; porque sempre há um espaço, uma alteridade que intervém e necessita da tomada de partido, do interesse crítico ativo. No recurso de Cairns a Menandro, o Rétor, por exemplo, seria criticável que se trata de um autor posterior – bastante posterior, por sinal (cerca de meio milênio), se formos tratar, por exemplo, de poesia helenística – à maior parte das obras que ele se propõe a comentar. Assim, usando os critérios apresentados por Martins (à primeira vista similares aos de Cairns), poderíamos nos perguntar se tomar por base os textos retóricos de Menandro também não seria um padrão anacrônico de leitura da forma mentis: a apresentação de gêneros retóricos não seria ela mesma uma representação e, portanto, uma interpretação das possibilidades dos textos? Não estaríamos diante, afinal, de uma leitura crítica, por sua vez passível de outra leitura interpretativa e crítica16? É claro que há um certo simplismo nessas perguntas, já que a distância de Menandro em relação aos poemas originais é muito menor do que a nossa, que ainda por cima nem sequer fomos criados na mesma língua (grego, no caso de Menandro, latim no caso de diversos poemas). Não obstante, é preciso ressaltar que o que Menandro afirma não é a forma mentis de Propércio (autor analisado já no primeiro capítulo de Cairns); nem Suetônio (embasamento para Martins) – séculos I-II d.C. – compreende de fato a forma mentis dos pintores e escultores sob o principado de Augusto. Eles podem ter, no máximo, uma posição privilegiada para angariar maior autoridade em suas opiniões; mas é preciso ter em mente que nem mesmo um contemporâneo sabe sobre sua própria época; doutra forma, não

      

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precisaríamos hoje de estudos sobre a pós-modernidade, ou sobre a literatura e a arte contemporâneas, porque, como indivíduos do nosso próprio tempo, teríamos de saber o que elas são. Se há algo fundamental decorrente da teoria psicanalítica do início do século passado e que alterou nossa episteme, é a visão do homem como alteridade fraturada de si mesmo (o inconsciente), incapaz de tomar conhecimento total de si: ele também não tem conhecimento total do que o cerca, mas lança perguntas, que inevitavelmente retornam a si, numa dobra da linguagem que de certo modo molda o mundo, dá-lhe sentido. Se, por um lado, não pretendo afirmar que as pretensões da teoria analítica se apliquem ao homem antigo, que certamente pensava de modo muito diverso; por outro, creio que um dos nossos deveres contemporâneos é rever a Antiguidade sob o prisma dessas teorias modernas e contemporâneas. Exemplo: o homem antigo realmente não se via como uma construção subjetivamente fraturada, porém, se não conseguimos mais confiar na unidade simples da personalidade humanam, como nós o veremos?Assim, se pensarmos que o homem não é idêntico a si mesmo, mas uma construção complexa e desigual cuja consciência é apenas uma superfície, também nenhuma leitura será igual a si mesma, nem pela reprodução idêntica de seus termos: é exatamente isso que aprendemos com o Don Quijote escrito pelo Pierre Ménard de Jorge Luis Borges (1992), que a obra não é igual a si mesma. Maurice Blanchot já comentou com minúcia a imagem da tradução que aparece incrustrada nesse conto:

Quando Borges nos propõe imaginar um escritor francêsescrevendo, a partir de pensamentos que lhe são próprios, algumas páginas que reproduzam textualmente dois capítulos de Dom Quixote, essa absurdez memorável nada mais é do que aquela realizada por toda tradução. Numa tradução, temos a mesma obra numa linguagem duplicada; na ficção de Borges, temos duas obras na intimidade da mesma linguagem e, dessa identidade que não é uma identidade, a miragem fascinante da duplicidade dos possíveis. Ora, ali onde há um duplo perfeito, o original é apagado, e até mesmo a origem (2005: 139).

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apresentou o texto em alemão, inglês, francês e português. Só em português temos quatro versões diferentes em tamanho, ordem, argumentos, etc.:

Para traduzir, Flusser descobre que não é suficiente recorrer ao texto inicial em alemão, mas que é também necessário retornar àquilo que inicialmente inspirou a redação do texto. Nesse processo, o texto é reformulado, mas de um modo que incorpora os passos anteriores. Como um palimpsesto, o texto em português conterá, de alguma forma, o texto alemão e as associações alemãs eliminadas de dentro dele pela necessidade de adequação à outra língua (Martins, 2011: 157).

Em outras palavras: mesmo o próprio autor, ao se traduzir, altera o texto por contingências da nova língua e do novo contexto. E mais, o autor também comenta sua própria obra de modo bastante diferente ao longo do tempo, como podemos perceber quando nos é possível conferir entrevistas tais como as de Roberto Piva (apud Cohn, 2010) e Carlos Drummond de Andrade (apud Ribeiro, 2011), publicadas na série Encontros: a cada entrevista, o poeta revê sua própria obra, o que demonstra que não existe uma intenção unívoca por trás da obra, e que uma leitura não é mais verdadeira quando emitida pelo próprio autor. Por isso a necessidade de um olhar inevitavelmente contemporâneo, porque é na contemporaneidade que esse tipo de acontecimento poético ganha enfoque por parte da teoria e da crítica; assim as relações entre autor, obra e leitor não precisam pender drasticamente para um dos lados, mas se estabelece como uma relação sempre renovada: o sentido de um texto é resultado dessa relação entre a materialidade desse mesmo texto (portanto limitada) e as variantes inumeráveis de leitura.

Com isso, não quero dizer que não devemos ou não precisamos fazer uso das fontes antigas como base nos estudos; mas apenas determinar que, se desconfiarmos minimamente do Autor, como Barthes (ainda que tenhamos reservas ao seu radicalismo e sobretudo aos leitores que o radicalizaram ainda mais), nada nos impede de fazer um esforço a princípio anacrônico de leitura, com bases teóricas

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despercebidos pelos leitores contemporâneos e subsequentes ao autor e que, portanto, não se enquadram em nenhuma perspectiva de sua época – um detalhe imprescindível é que a categorização prescritiva é quase sempre posterior e nem sempre completa; basta notar como a leitura que Aristóteles faz da tragédia ateniense não se aplica a todo o corpus de tragédias que chegou até nós, portanto sua obra hoje fundamental é apenas uma leitura — novamente, fundamental — da tragédia, historicamente mais próxima (cf. Dupont 2007). Não se trata, é claro, de equívoco do estagirita (logo digno de descarte), mas de atentarmos para o fato de que ele, estudando e comentando a tragédia, fazia sua própria filosofia, isto é, produzia um novo discurso que obedece a outras regras de composição. Não podemos esquecer que, na prática da criação artística, como argumenta Conte, o poeta

pode realizar uma nova distribuição dos traços constitutivos do modelo, pode na prática modificar o modelo entendido como código, utilizando certas possibilidades do modelo entendido como sucessão de textos: mas, fazendo isso, propõe ele mesmo um novo modelo, funda ele mesmo, por assim dizer, uma tradição (apud Fedeli, 2010: 395, grifos do autor).

Na realização dos nossos estudos, não podemos partir do pressuposto de que uma obra seja estanque e se exaura no conhecimento de seu tempo, que ela apenas se utilize de parâmetros pré-estabelecidos sem burlá-los, ou que se dê inteiramente ao leitor de sua época: os princípios de ποικιλία e cruzamento de gêneros (Kreuzung der

Gattungen) presentes na sua poética nascem exatamente do apagamento programático

das categorizações rígidas, uma prática poética mais ou menos regular pelo menos desde os séc. IV-III a.C. Se confiássemos na ideia de um leitor antigo capaz de decodificar completamente as obras por meio de sua categorização pré-estabelecida, estaríamos dando a supremacia ao Leitor unívoco ideal, outro conceito muito perigoso, já que na prática só existem leitores carnais, como venho argumentando. É claro que podemos analisar a poética em sua comunidade como uma escrita inter pares que partilham de um sistema de valores éticos e poéticos, para contrastarmos a

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também um resultado de interpretação do leitor? Por outro lado, seria praticamente impossível teorizar sobre a leitura empírica, já que suas variáveis são muitíssimo vastas. No máximo, o comentador apresenta uma possibilidade de leitura, mais ou menos convincente, que por sua vez será dada a outro leitor, que pode julgá-la bem ou mal resolvida a partir do contraste com suas próprias leituras.

Assim, retornamos aos critérios de leitura; e penso que as palavras de Hans Robert Jauss podem ser bastante elucidativas, se quisermos pensar o que torna possível a coexistência de leituras diversas de um mesmo texto:

Se uma interpretação anterior pode ser reconhecida como errada, isso não se deve, em geral, a enganos históricos ou “erros” objetivos, mas à formulação incorreta das perguntas por parte do intérprete ou a perguntas que não podem ser legitimadas. Na análise das obras literárias, perguntas são legítimas quando se revelam como eficazes diante do texto, como antecipação da interpretação ou, em outras palavras: quando se pode provar que o texto pode ser compreendido como uma nova resposta e não apenas como uma resposta casual à pergunta feita. Com isso, exige-se que o texto possa ser interpretado consistentemente como significado dessa resposta. Se, na história da interpretação das obras de arte, respostas divergentes não se falsificam mutuamente, mas atestam a historicamente progressiva concretização de sentido que se realiza ainda por meio do conflito das interpretações, a que mais isso seria devido, senão à possiblidade de conciliação de perguntas legitimáveis – manifestada ao menos na vivência da arte (1983: 350)?

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escada de Wittgenstein, que convém derrubar assim que subirmos por ela17. Como argumenta Costa Lima, o movimento não é bem esse:

A análise da ficção verbal (em prosa ou poesia) não supõe o emprego de métodos porque romances e poemas, telas e partituras não são corpos convergentes entre si. (Assim, o fato de a écfrase ser um recurso retórico e, como tal, já empregado milhares de vezes não torna entre si comparáveis as obras que a tenham preferido.) […] Tanto nas ciências propriamente ditas, como nas humanidades, tanto na filosofia como na abordagem reflexiva da arte, tem-se sempre a possibilidade de descobrir um novo acesso a seu objeto. […] Da mesma maneira que o cosmo está sempre aberto a novas investigações, a indecidibilidade interpretativa de um poema ou de uma ficção verbal ou de uma tela só subsiste enquanto não houver aparecido uma alavanca analítica mais eficiente. Dito de modo mais impessoal, sua interpretação acatada ou aceitável deixa de sê-lo quando uma mudança na ordenação sociocultural de certa sociedade provoque uma angulação diversa e então motive outro entendimento (2012: 187, grifos meus).

Eu acrescentaria que, apesar das mudanças socioculturais em acontecimento, as interpretações passadas sempre podem ser retomadas, relidas, alteradas: as antigas coexistem com as novas, são reinterpretadas, por vezes até se confundem, e seria muito difícil definir estratos claros entre elas. Um exemplo talvez básico desse processo de “angulação diversa” parece-me ser o espaço acadêmico que a tradução poética ganhou nos últimos anos: apesar de ser um recurso literário recorrente do ocidente nos últimos milênios, foi só no século XX que ela passou a receber com mais frequência um estatuto de trabalho crítico (creio que inicialmente pela prática tradutória do make it new de Ezra Pound e pelo famoso texto sobre “A tarefa do tradutor” de Walter Benjamin, já embasado na teoria romântica e nas propostas de Schleiermacher), que no Brasil se estabeleceu, nos anos 1960, com o importantíssimo ensaio de Haroldo de Campos, já mencionado, e mais especificamente nos Estudos Clássicos a partir dos trabalhos de João Angelo Oliva Neto (O livro de Catulo, 1996) e de Raimundo Carvalho (Bucólicas de Virgílio, 2005), ambos produzidos da década de 1990, resultados de pesquisas acadêmicas que inseriam o fazer tradutório em seu projeto interpretativo. A tradução poética, como argumentarei mais adiante, é precisamente o processo do anacrônico como movimento interpretativo, do deslocamento, diferenciamento, da diversão como ferramenta para se produzir um saber sobre o passado.

      

17

Meine Sätze erläuten dadurch, daß sie der, welcher mich versteht, am Ende als unsinnig erkennt, wenn er durch sie – auf ihnen – über sie hinausgestiegen ist. (Er muß sozusagen die Leiter wegwerfen, nachdem er auf ihr hinaufgestiegen ist.)

(26)

§

Como tentarei demonstrar nos próximos capítulos, uma leitura das Odes pode se formular exatamente pela tendência de conectar níveis heterogêneos (tema, metro, fraseologia, léxico, figuras, contextos, etc.), e, por isso, cada ode convida o leitor a entrecruzar informações para produzir leitura, por tópica, métrica, sintagma, ou o que mais se sugira; a delimitação dessas correlações acaba sendo a função do leitor. No caso das Odes, ainda mais, porque o excesso imediatamente impõe a delimitação, por oposição às suas multiplicidades. Nesse sentido, graças a tal entrecruzamento de feixes heterogêneos, sinto-me até tentado a sugerir que uma leitura em obra aberta das Odes horacianas poderia também dialogar com o conceito de rizoma apresentado por

Deleuze e Guattari. Para estes, seu principal efeito é aplicável ao nosso entendimento do real e, por conseguinte, ao nosso pensamento sobre as subjetividades; para eles “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem” (1995: 15), e essa ideia pode ser aplicada ao modo de um conceito para efeitos diversos. Ainda segundo Deleuze & Guattari, “toda vez que uma multiplicidade se encontra presa numa estrutura, seu crescimento é compensado por uma redução das leis de combinação” (ibid.: 14). Do ponto de vista dos filósofos, esse seria o grande mal do pensamento dicotômico (radicular, portanto) ocidental, porque encerra a multiplicidade na racionalidade categórica do pensamento, dando assim um formato simplificado ao caos (ou caosmo, como eles preferem) inapreensível da realidade e reduz as leis de combinação à simplicidade da explicação lógica, sem assumir que algo escapa ao pensamento. Na mira deles, é claro, não está a poesia romana, mas o estruturalismo francês, com sua tendência a delimitar uma pequena série de regras que possam explicar a complexidade do acontecimentos empíricos, como no caso exemplar do livro russo de 1928 (mas de grande influência na França dos anos 60) de Vladimir Propp, que resumia os contos maravilhosos a apenas 31 funções diferentes (1984). De modo um pouco diverso, eu diria que toda multiplicidade pede uma redução, que faz dela um processo estruturante por onde se inicia o processo humano

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(daí possivelmente rizomática) que pode se fechar estruturantemente diante de cada leitor. Jacques Derrida (1971: 30) já criticava o risco da leitura estruturalista:

Por um lado, a estrutura torna-se o próprio objeto, a própria coisa literária. Já não é o que era quase sempre noutros lugares: ou um instrumento heurístico, um método de leitura, uma virtude reveladora do conteúdo e dos termos; a maior parte das vezes as duas coisas ao mesmo tempo, pois a sua fecundidade não excluía, pelo contrário implicava que a configuração relacional existisse do lado do objeto literário; era sempre praticado, mais ou menos explicitamente, um realismo da estrutura. Mas nunca a estrutura era, no duplo sentido desta palavra, o termo exclusivo da descrição crítica. Era sempre meio ou relação para ler ou para escrever, para reunir significações, reconhecer temas, ordenar constâncias e correspondências” (itálicos do autor).

Deixo claro, portanto, que, neste trabalho, qualquer estrutura fica no meio de tentar observar, e não no termo desta tese. Nesse sentido, apesar de parecer similar, minha leitura se diferencia muito da leitura estrutural de Collinge, como demonstro no primeiro capítulo.

No entanto, a proposta deste trabalho, como apresentarei mais adiante, não é a aplicação de teoria contemporânea diretamente ao texto de Horácio, o que resultaria num simplismo de leitura; mas sim mostrar um caminho possível, ainda que bastante aberto, de leitura e recriação poética das Odes mediante uma leitura de passagens da Arte poética que possa lançar luz sobre os problemas suscitados e mediante tradução

poética e crítica que pretenda recriar alguns dos fatores de abertura e heterogeneidade; a partir disso, pretendo recriar para o leitor brasileiro, ou de língua portuguesa em geral, uma possibilidade de experimentar na leitura do texto traduzido um efeito análogo ao que tento demonstrar na parte argumentativa da tese. Para tanto, não posso me fiar numa tentativa de recriação da forma mentis, porque simplesmente não existe uma teoria antiga específica sobre o que pretendo tratar: não há um conceito bem definido de “abertura textual” entre os antigos; não nos chegou uma clara teorização antiga sobre o que fazer com um livro composto, por exemplo de vários metros diferentes (Horácio é um caso peculiar na poesia romana, com pouquíssimos sucessores18); e praticamente nada acerca de como os termos iunctura e series se

      

18

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inter-relacionam num poema para criar um efeito poético, que não é necessariamente o mesmo da oratória; a não ser, é claro, nas palavras do próprio Horácio, que pretendo interpretar à luz do projeto proposto. Isso não implica, como já se pode depreender, que deixarei de lado a pesquisa filológica, os comentadores, o aparato crítico editorial, ou as informações sociais, religiosas, políticas, históricas etc. que hoje temos à nossa disposição.

Na medida que uma obra literária é intertextual, ela se torna como que distorcida, até mesmo opaca: como um mito, por exemplo. Torna-se quase uma rede rodoviária, com placas de direção que sinalizam países, ruas, lugares, que retrocedem por assim dizer ao infinito. De tal modo está escondida no texto uma pluralidade de outros textos, de códigos infinitos (ou mais exatamente perdidos à evidência). Aqui estão para nós, filólogos clássicos, a incomparável utilidade e o fascínio dos comentários (se bem feitos): instrumentos que não somente explicam o texto e o aproximam do leitor, mas permitem também que ele seja percebido como produto intertextual de uma miríade de desenvolvimentos precedentes, gerados por imperceptíveis transformações graduais, enquanto inumeráveis precursores se auto-replicam (Conte & Barchiesi, op. cit.: 95).

Não desejo reafirmar nenhuma espécie de polarização entre, de um lado, os “teóricos” e, de outro, os “tradicionalistas”, como aponta Susanna Morton Braund (2002: 55-6); já que ela mesma afirma que hoje temos uma variedade muito maior de modos de leitura dos textos antigos do que há cem anos atrás19. Ao contrário, pretendo, tanto quanto possível, tirar proveito das duas linhas20.

Assim, este trabalho tem seu lugar no entrecruzamento premeditado das duas frentes; ao tentar rastrear uma tradição desse gênero de fusão nos Estudos Clássicos brasileiros, creio que o importantíssimo livro de Francisco Achcar (1994) seja um precursor, por seu trabalho de análise com entrelaçamento entre teoria bakhtiniana e erudição filológica, entre o estudo das tópicas antigas e os comentários a diversas traduções poéticas em língua portuguesa. Entre os trabalhos estrangeiros, eu poderia

        Jambos de Calímaco”, mas mesmo nesse caso, ainda é pouco o que sabemos sobre a organização métrica, e nada resta de teorização a respeito.

19The result is that we now have a much wider range of ways of reading ancient texts than a hundred

years ago” (p. 59). E mais adiante: “I believe that both approaches are valuable. [...] There will be moments when the assimilating perspective, that sees a continuity between antiquity and the modern world, will be more useful as a tool of literary criticism – and moments when the dissimilating perspective, which emphasizes the differences, will be superior. But what is needed is a greater level of mutual tolerance between practitioners of both kinds of scholarship” (p. 60).

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citar vários que fazem – cada um a seu modo – um entrelaçamento possível, além de Conte, Barchiesi e Fedeli, já mencionados: Hinds, 1998 (sobre intertextualidade); Kennedy, 1993 (sobre elegia romana); O’Hara, 2007 (sobre o problema da potencialidade interpretativa das inconsistências da épicaromana); Wray, 2001 (sobre masculinidade na poesia de Catulo, com a inserção, por exemplo, das controversas traduções sonoras de Louis Zukofsky); Janan, 2001 (que utiliza o complexo aparato teórico de Lacan para analisar o livro 4 de Propércio); etc. Creio que cada um desses trabalhos “híbridos” têm, no fundo, oo intuito de provocar aquilo que Costa Lima chamou “angulação diversa”, ou uma nova “alavanca analítica”, sem uma pretensão de totalidade para a leitura das Odes; ou aquilo que Slavoj Zizek chama dialeticamente lacuna paraláctica: “o confronto de dois pontos de vista intimamente ligados entre os quais não é possível haver nenhum fundamento neutro comum” (2008: 15); como Zizek, eu aposto que “longe de constituir um obstáculo irredutível para a dialética, a noção de lacuna paraláctica é a chave que nos permite discernir seu núcleo subversivo” (ibid.: 15). Ou, talvez com mais clareza a partir das palavras de Pierre Vidal-Naquet:

Não há dúvida de que toda história é cruzamento, diálogo entre presente e passado. Os que se interessaram pela Grécia, só pela Grécia […], não foram obrigatoriamente os que nos trouxeram mais novidades sobre o mundo grego. […] O estudo da tragédia grega oferece perigos de atualização selvagem e até de procura da “essência do trágico” mas, para compreendê-la, não é inútil, como os pesquisadores britânicos já perceberam há tempo, ter lido Shakespeare (2002: 32).

Desse modo, minha aposta, como já disse, é a de certo anacronismo premeditado21 (de teoria contemporânea e de leitura constante da poesia moderna e pós-moderna em geral), que é inevitável, já que derivado do meu lugar no mundo, como leitor do século XXI; porém esse anacronismo está profundamente permeado por um embasamento no estudo do contexto romano (resultado de pesquisa das fontes (Quellensforschung), comentários filológicos, históricos, sociais, religiosos etc.22),

      

21 Não custa lembrar que diversos anacronismos permeiam mesmo o discurso mais bem aceito na academia. Um bom exemplo são as palavras “arte” e “literatura” para designar os textos romanos. Cf. Sander M. Goldberg: “‘Literature’ itself may nevertheless remain a problematic term, if not so much because the word and the concept are anachronistic – Romans, as I have argued, could use litterae much as we use its cognates – than because its specific application here excludes a good deal of what traditional literary histories claim as their domain” (2005: 208). Eu diria que, no caso de “arte”, o problema é bem maior.

22

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para, evitando o risco da “atualização selvagem” temida por Vidal-Naquet, tentar criar uma alavanca analítica razoavelmente nova para a interpretação geral das Odes como um todo; mas tudo isso com a clara consciência de que a priori “a variedade dos fenômenos ultrapassa qualquer classificação e teoria” (Conte & Barchiesi, 2010: 107), não somente no plano da intertextualidade, mas em todo processo poético, seja ele antigo ou moderno.

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I

NTRODUÇÃO

Uma breve consideração sobre os livros de Odes, feita por Gordon Williams, pode nos servir de ponto de partida:

The range of Horace’s Odes is astonishingly wide: some are humorous, [...] others are deeply serious. This is a range of tone. But there is an equally wide range of subject-matter: the Odes are a wonderfully varied collection of poetry23.

O que impressionava o crítico nos anos 60, e ainda nos impressiona, é a incrível variedade (uariatio, ou ποικιλία) que atravessa os livros de Odes, uma variedade que,

para além de incluir 13 tipos de metros diferentes, abriga ainda uma gama imensa de elocuções e temas, personas, contextos, etc. O que almejo, neste trabalho, é apresentar uma possibilidade de leitura que tende a ver nas Odes de Horácio uma espécie de mosaico poético, onde cada peça pode contribuir para uma visão de todo cada vez mais complexa, já que o leitor pode realizar, em seu processo individual de leitura, inúmeras conexões a partir desses eixos heterogêneos (registro, tema, metro, persona, contexto, subgênero, fraseologia, etc.); de modo que busco apresentar uma espécie de maquinário aberto de leitura que, mais do que apresentar uma determinada interpretação das Odes, tenta estabelecer um fundamento para múltiplas leituras a partir das variedades de sua construção, por ver nessa variedade constitutiva das Odes um grau de abertura maior que a de outras obras poéticas de seu tempo, sobretudo por abrigar uma variedade métrica maior do que qualquer outro exemplar de poesia antiga que nos chegou. O que pretendo, portanto, é observar um grau de abertura inerente à interpretação das Odes que é derivado do excesso de possibilidades de leitura em níveis heterogêneos que se cruzam e acabam por tornar mais complexa sua configuração como gênero24, para assim dar ao leitor uma maior consciência de sua liberdade interpretativa. Por isso o método será, em primeiro lugar, apresentar algumas similaridades composicionais entre o mosaico romano e a poesia de Horácio, para depois analisar algumas passagens importantes da Arte poética que esclarecem a composição horaciana sob o ponto de vista dos seus efeitos.

      

23

“A amplitude das Odes de Horácio é impressionante em sua imensidão: algumas são bem-humoradas, [...] outras são profundamente sérias. Essa é uma amplitude de tom. Mas há também uma amplitude imensa de tema: as Odes são uma coleção de poesia incrivelmente variada” (1969: 10). 24

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No caso das Odes, pretendo analisar – a partir da ideia de opus musiuum (mosaico) e dos conceitos de callida iunctura (junção hábil), series (série), lucidus ordo (ordem lúcida) e dispositio (disposição) – as relações de três níveis sintáticos diferentes que estão presentes na obra como um todo. De modo crescente, eles formam as sintaxes: (a) da frase, (b) do poema e (c) do livro, que funcionam de modo similar a um fractal, onde as partes menores têm o mesmo formato das partes maiores. Nos três casos, além de analisar a sequência de apresentação (series), pretendo também demonstrar como relações de proximidade e distância na series podem ser retomadas como uma produção de iunctura (por vezes bastante callida), seja na construção frasal (series e iunctura), na organização interna de um poema (ordo) ou na disposição dos poemas

no interior do livro (dispositio). Somadas a esses arranjos, ainda podemos passar a leituras transversais de uma (cada) ode, quando começamos a relacioná-la com outras odes de um mesmo livro, por similaridade temática, métrica, contextual, frasal, ou por retomada de figuras, personas, tópica, etc., formando aquilo que chamarei callida iunctura do(s) livro(s). Além disso, como no caso de toda poética romana, os poemas

amiúde apontam para diversas obras de autores, aumentando ainda mais as intertextualidades25 possíveis. Em resumo, minha hipótese é que, se considerarmos a primeira parte deste trabalho como passível de aplicação nas leituras e tentarmos analisar todos os diálogos temáticos, métricos e intertextuais de uma determinada ode nos três níveis propostos, além de suas próprias complexidades sintáticas internas, das categorizações retóricas ali implicadas, das interferências religiosas, políticas, históricas, antropológicas inevitavelmente importantes, nós praticamente nos deparamos como uma espécie de monstro interminável26 da leitura, decorrente em grande parte desse grau de abertura ou multiplicação interpretativa específico das Odes. Certamente, a obra de Horácio não é um caso único de abertura interpretativa

nos textos da Antiguidade: se considerarmos, por exemplo, o comentário de Fedeli (op. cit.: 412-16), em que ele analisa a citação que Encólpio faz da Eneida no cap. 132 do Satyricon, retomando a figura cabisbaixa de Dido no Orco (Eneida 6.469), que

      

25

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por sua vez evoca a cena de Ajax Telamônio fugindo de Odisseu no Hades (Odisseia 11.563-4); logo perceberemos como um pequeno trecho é capaz de estabelecer uma gama de intertextualidades que nos remetem a mais de um texto, tornando sua análise extremamente complexa. Casos em que um texto aponta para vários outros são inúmeros na poesia romana, mas um caso de multiplicidade interna, envolvendo ainda uma trama complexa de metros, é mais variado nas Odes. Chegamos, desse modo, à questão de que é necessária uma delimitação arbitrária e ideológica (e, portanto, política) de toda leitura. A especificidade desta tese é ver como essa multiplicidade inerente a toda poesia está radicalizada no processo de composição das Odes, de modo tal, que essas obras de Horácio marcam um ponto singular na arquitetura poética romana. Mas insisto que esse processo, radicalizado nas Odes, não seria estranho a qualquer estudo humano, porque a realidade sempre explode a capacidade de análise. Nas palavras de Duncan Kennedy:

Textualism allowed to run loose, we are assured, turns all distinctions into undifferentiated textuality, even the reification by which textuality is congealed into texts. Historicism allowed to run loose renders unintelligible even the historical moment it seeks to represent. If the impossible were to happen, if either were to be brought to its ‘logical’ conclusion (and this can be represented as a possibility only insofar as the terms are projected as extratextual realities), meaning would indeed cease: a text could never reach either the horizon without there being total noise or total silence […] There can, then, be no representation without accommodation, no interpretation without appropriation; but equally, there can be no appropriation without interpretation, no accomodation without representation27.

O primeiro passo de qualquer leitura é a delimitação da própria leitura; ou, no nosso caso, de quanto um leitor pode produzir diante dessa imensa série de feixes heterogêneos, porque a leitura total das Odes seria puro ruído de excessos, ou o silêncio. No centro desse pensamento, está a tradução, como união da teoria crítica e da recriação contemporânea para a leitura do texto poético. Assim, chegamos ao eixo central deste trabalho: por um lado, a apresentação de uma máquina aberta de leitura, decorrente das complexidades da iunctura e da series, sobretudo quando amplificadas

      

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