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Empirismo construtivo e a distinção entre entidades observáveis e inobserváveis

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Academic year: 2021

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CDD: 501

EMPIRISMO CONSTRUTIVO E A DISTINÇÃO ENTRE

ENTIDADES OBSERVÁVEIS E INOBSERVÁVEIS

1

FILIPE LAZZERI

Faculdade de Filosofia

Universidade Federal de Goiás, UFG Goiânia, GO, Brasil.

filipelazzeri@gmail.com

Resumo: A distinção entre entidades observáveis e inobserváveis cumpre um papel central no empirismo construtivo de van Fraassen, bem como no debate sobre o realismo científico como caracterizado por esse autor. Neste trabalho, apresentamos uma revisão parcial da literatura sobre o tratamento dado por van Fraassen a essa distinção, ou seja, sobre suas considerações acerca dos limites da observabilidade. Nossa revisão tem como foco as objeções a tal tratamento levantadas, em particular, por: Friedman (1982) e Kukla (1996); Foss (1984) e Creath (1985); Churchland (1985); Hacking (1983, 1985); Musgrave (1985); e Vollmer (2000). Várias contraobjeções também são revisadas. Procedemos por meio, sobretudo, de reconstituições semiformais. A revisão é algo opinada. Sugerimos que, dentre as objeções aqui consideradas, aquelas de Hacking e Musgrave colocam dificuldades maiores ao tratamento dado por van Fraassen; e que, no entanto, o empirismo construtivo não é decisivamente atingido por elas (embora não seja intuito deste trabalho defender tal abordagem).

Palavras-chave: van Fraassen, empirismo construtivo, observabilidade, observável versus inobservável, realismo científico versus antirrealismo.

CONSTRUCTIVE EMPIRICISM AND THE DISTINCTION BETWEEN OBSERVABLE AND INOBSERVABLE ENTITIES

1O autor agradece a Alessio Gava, Caetano E. Plastino, Jéssica Franco de Carvalho e Osvaldo Pessoa Jr., pelas úteis conversas sobre o tema aqui tratado, e a Mayra M. da Costa, pelos comentários a uma versão anterior do trabalho. O conteúdo, porém, é de responsabilidade apenas do autor.

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Abstract: The distinction between observable and unobservable entities plays a central role in van Fraassen’s constructive empiricism, as well as in the debate over scientific realism as understood by him. This work presents a partial review of the literature on van Fraassen’s treatment of such distinction, i.e., on his remarks upon the limits of observability. We focus particularly upon the objections raised by: Friedman (1982) and Kukla (1996); Foss (1984) and Creath (1985); Churchland (1985); Hacking (1983, 1985); Musgrave (1985); and Vollmer (2000). Several counter-objections are also reviewed. We proceed mainly by means of semi-formal reconstructions. The review is a little opinionated. We suggest that, among the objections here taken into account, Hacking’s and Musgrave’s pose more serious difficulties to van Fraassen’s treatment; and that, nonetheless, constructive empiricism is not decisively defeated by them (although it is not our aim here to support this approach).

Keywords: van Fraassen, constructive empiricism, observability, observable versus unobservable, scientific realism versus anti-realism.

1. Introdução

Neste trabalho, apresentamos uma revisão parcial da literatura sobre o tratamento dado por van Fraassen à distinção entre entidades observáveis e inobserváveis. Nosso foco, aqui, é em alguns dos principais argumentos que questionam o tratamento dado por van Fraassen, bem como naqueles formulados como tentativas de contraobjeções. No caso dos primeiros, não se trata de argumentos necessariamente contra a relevância da distinção entre entidades observáveis e inobserváveis, antes tendo em comum problematizarem considerações de van Fraassen sobre essa distinção.

A estrutura do trabalho é a seguinte. Nas primeiras três seções, revisamos aspectos preliminares do debate. Nomeadamente, na seção 2, expomos alguns dos aspectos principais do empirismo construtivo de van Fraassen aqui relevantes; na seção 3, os argumentos de MAXWELL (1962) sobre a distinção entre o observável e o inobservável, pelo fato de as considerações de van Fraassen sobre essa distinção tê-los como pano de fundo; e, na seção 4, essas considerações propriamente ditas. Em seguida, na seção 5, procuramos reconstituir várias das objeções levantadas a esse tratamento ‒ particularmente as objeções que encontramos em FRIEDMAN (1982) e KUKLA (1996); FOSS (1984) e CREATH (1985); CHURCHLAND (1985); HACKING (1983, 1985);

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MUSGRAVE (1985); e VOLLMER (2000) ‒, além de respectivas contraobjeções. Não pretendemos percorrer todo o debate (dada sua amplitude), mas apenas um leque representativo dele. A reconstituição que apresentamos é semiformal e algo opinada. Sugerimos que, dentre as objeções aqui revisadas, aquelas de Hacking e Musgrave colocam dificuldades maiores para a distinção como feita por van Fraassen; mas que o empirismo, até mesmo o empirismo construtivo, não é decisivamente atingido por elas (embora não seja intuito deste trabalho defender tal abordagem).

2. Alguns aspectos principais do empirismo construtivo de Van Fraassen

A filosofia da ciência de Bas van Fraassen é uma forma de empirismo. Por uma perspectiva empirista acerca da ciência, van Fraassen entende qualquer perspectiva que reúna as duas seguintes teses: a ciência procura fazer descrições verdadeiras de entidades (incluindo processos, eventos ou objetos) observáveis, não requerendo, para tanto, que faça descrições verdadeiras daquelas que sejam inobserváveis; e as modalidades (em especial, as aléticas, ou seja, possibilidade e necessidade) são apenas dispositivos facilitadores da descrição do que é real (actual), não devendo ser reificadas (cf. VAN FRAASSEN, 1980, p. 2-3, p. 202-3). A primeira tese não implica que o empirismo envolva necessariamente uma rejeição à postulação, pelas teorias científicas ‒ ‘teorias’, doravante ‒, de entidades inobserváveis para explicar as observáveis. Ela implica apenas uma oposição à ideia de que as teorias, ao postularem entidades inobserváveis para explicar as observáveis, suponham fazer descrições verdadeiras para além das observáveis. Em outras palavras, para o empirismo, assim entendido, recorrer a entidades inobserváveis é somente um meio para fazer descrições verdadeiras acerca das entidades observáveis, ou (na terminologia por vezes empregada por van Fraassen) “salvar os fenômenos”. Já a segunda tese implica uma oposição à ideia de que a ciência procura fazer descrições verdadeiras de estados de coisas meramente possíveis, isto é, que não são o caso, mas o seriam se o mundo fosse diferente. Ou seja, o empirismo restringe o conhecimento científico aos estados de coisas do mundo real em que vivemos.

O empirismo construtivo de van Fraassen ‒ doravante, abreviado por ‘EC’ ‒ coloca-se como uma alternativa ao empirismo dos positivistas lógicos. VAN FRAASSEN (1980, p. 3-4) concorda com o positivismo lógico que problemas

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sobre as modalidades são problemas de linguagem, mas discorda que os problemas filosóficos de modo geral sejam desse caráter. Por exemplo, como veremos mais adiante (seção 4), para van Fraassen, delimitar as fronteiras da observabilidade não corresponde a um problema linguístico ou lógico, mas a um problema empírico, isto é, cuja resolução cabe à ciência empírica. O autor discorda do positivismo lógico também, por exemplo, quanto à estrutura das teorias, contrapondo, à chamada visão sintática a respeito de teorias, uma visão dita semântica. Falando resumidamente, segundo a visão sintática, as teorias são conjuntos de axiomas, em uma dada linguagem, mais um conjunto de regras de correspondência, por meio das quais os axiomas, correspondentes a enunciados teóricos (ou sobre inobserváveis), ganham uma interpretação parcial sendo conectados a enunciados sobre consequências empíricas (estes formados apenas por termos observacionais). Já na visão semântica, as teorias são entendidas como conjuntos de modelos, que supõem manter uma relação de mapeamento com as entidades às quais dizem respeito. Na visão semântica, não se pensa, por exemplo, que as teorias sejam entidades linguísticas e que aquilo que falam sobre inobserváveis tenha significado simplesmente derivado a partir de suas partes observacionais (cf., e.g., GIERE, 2000;SUPPE, 2000; VAN FRAASSEN, 1980, p. 41ss).

Van Fraassen formula o EC como uma alternativa também ao realismo científico. O autor entende o realismo científico como a conjunção das seguintes duas teses: a ciência visa dar-nos um relato literalmente verdadeiro do mundo; e a aceitação de uma teoria envolve a crença de que ela é uma teoria verdadeira ‒ não só sobre as entidades observáveis às quais diz respeito, mas também sobre entidades inobserváveis subjacentes. Por sua vez, o antirrealismo ‒ do qual o EC é uma forma ‒, sendo a negação do realismo científico, nega a conjunção dessas duas teses. Ele nega que a ciência vise proporcionar um relato verdadeiro em geral de como o mundo é, sugerindo que ela visa proporcionar um relato verdadeiro apenas das entidades observáveis; ou nega que a aceitação de uma teoria envolva uma crença em sua verdade, exceto quanto às entidades observáveis (cf. VAN FRAASSEN, 1980, p. 8-10).

Na caracterização do realismo científico, por ‘literalmente verdadeiro’, van Fraassen quer dizer que, para essa perspectiva, a linguagem teórica deve ser interpretada literalmente e a teoria, assim interpretada, seria verdadeira. A interpretação literal de uma teoria contrasta com uma interpretação alegórica ou metafórica dela; a interpretação literal é análoga, segundo van Fraassen, à leitura

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de um livro religioso ao pé da letra. Assim, por exemplo, se uma teoria postula átomos, então, em uma interpretação literal, entende-se que, para essa teoria, há átomos tais e quais concebidos nela, de modo análogo a uma interpretação de um texto em que se fala em anjos sem entender esses trechos apenas alegoricamente. No entanto, o autor deixa para a filosofia da linguagem a tarefa de explicar de modo mais exato o que é uma interpretação literal (cf. VAN FRAASSEN, 1980, p. 10-1).

Porém, sustentar que as teorias devem ser interpretadas literalmente não é uma prerrogativa do realismo científico. Pois sustentar que as teorias devem ser interpretadas literalmente não implica pressupor que elas, ao serem assim interpretadas, sejam verdadeiras. O EC, em particular, é uma perspectiva que, ao mesmo tempo, insiste que as teorias sejam interpretadas literalmente e é antirrealista.

O EC é uma abordagem segundo a qual: “a ciência visa proporcionar-nos teorias empiricamente adequadas; e a aceitação de uma teoria envolve a crença apenas de que ela é empiricamente adequada” (VAN FRAASSEN, 1980, p. 12). Por teoria empiricamente adequada, van Fraassen entende, informalmente, uma teoria que, interpretada literalmente, é verdadeira acerca das entidades observáveis às quais diz respeito, ou seja, uma teoria que salva os fenômenos. Em termos mais formais, relacionados à visão semântica adotada pelo autor, uma teoria é empiricamente adequada se, e apenas se, possui pelo menos um modelo cujas subestruturas empíricas (isto é, cujas partes que representam as entidades observáveis) mantêm uma relação de isomorfismo com todas as entidades observáveis e reais do domínio ao qual concerne (cf. VAN FRAASSEN, 1980, p. 12, p. 64; MONTON & VAN FRAASSEN, 2003, p. 406).

Assim, van Fraassen articula sua abordagem a partir de uma distinção entre crença em geral em uma teoria e aceitação dela. Acreditar simplesmente sem mais em uma teoria é assumir que ela é verdadeira, inclusive sobre as entidades inobserváveis (como quer o realista científico). Aceitar uma teoria, por sua vez, não implica em crença nela simplesmente sem mais. Para o EC, em especial, a ciência não requer que a aceitação de uma teoria envolva crença nela, exceto na veracidade de suas descrições de entidades observáveis: “a ciência permite-nos não crer nas teorias que aceitamos, mas crer apenas que elas são empiricamente adequadas […] (embora, é claro, você pode acreditar em mais do que isso se desejar, por quaisquer razões de satisfação pessoal que você possa reunir)” (VAN FRAASSEN, 1992, p. 20). Temos a liberdade de crer na existência

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das entidades inobserváveis postuladas por uma teoria, mas, segundo o EC, isso não é requerido para a inteligibilidade da ciência, ao contrário do que o realismo científico sugere. A postura recomendada pelo empirista construtivo (isto é, sua diretriz epistêmica) é de neutralidade ou agnosticismo quanto às entidades inobserváveis postuladas por uma teoria aceita.

O ‘construtivo’, no empirismo construtivo, é justamente a ideia de que a ciência é uma atividade de construção, sem implicar em descoberta. Segundo o EC, a ciência é uma atividade de construção de modelos empiricamente adequados, e não uma atividade de descoberta de verdades sobre entidades que jazem para além da experiência empírica (cf. VAN FRAASSEN, 1980, p. 4-5)2. 3. Os argumentos de Maxwell (1962) sobre a distinção entre observável e

inobservável

Assim, a distinção entre entidades observáveis e inobserváveis mostra-se importante para o EC, como o é, em geral, para uma perspectiva empirista. Procuramos expor o tratamento que van Fraassen dá para essa distinção na seção 4. Previamente a isso, revisamos, aqui, os argumentos de Grover MAXWELL (1962) a respeito dela, com relação aos quais van Fraassen articula seu tratamento. O referido trabalho de Maxwell é considerado o locus classicus da problematização da dicotomia entre observável e inobservável (cf. KUKLA, 1996, p. 200; VAN FRAASSEN, 1980, p. 13-4). Maxwell, mais exatamente, contrapõe-se a uma distinção forte entre termos observacionais e termos teóricos, presente no empirismo lógico (cf., e.g., CARNAP, 1956), mas, mutatis mutandis, sua argumentação pode ser entendida também com relação à distinção entre entidades observáveis e inobserváveis (cf. KUKLA, 1996, p. 200). Além de problematizar isso, Maxwell procura questionar tentativas antirrealistas de negar de alguma forma a existência de entidades postuladas pelas teorias. Classificar essas entidades como inobserváveis é, segundo Maxwell, irrelevante para estabelecer se elas existem ou não, ainda que relevante para fins do discurso prático. Podemos chamar essa tese de tese da irrelevância ontológica da distinção entre observáveis e inobserváveis, ou IOD.

2 Para outras exposições desses aspectos básicos do EC, cf., e.g., DUTRA (2009, p. 129ss), CREATH (1985, p. 332-5) e GAVA (2010, p. 44-50).

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MAXWELL (1962) apresenta pelo menos três argumentos em favor da IOD. Eles baseiam-se, respectivamente, nas seguintes premissas: “[i] que o limite entre o observável e o inobservável é difuso, [ii] que ele muda de um problema científico para outro e [iii] que ele está constantemente sendo movido em direção à extremidade ‘inobservável’ do espectro à medida que desenvolvemos melhores meios de observação” (MAXWELL, 1962, p. 13; números adicionados por nós). A primeira linha argumentativa de Maxwell, então, articula-se a partir da premissa de que o limite entre o observável e o inobservável é difuso, ou seja, de que a distinção entre um e outro é apenas de grau, por contraste a uma distinção qualitativa. O autor oferece duas ilustrações em favor dessa premissa (cf. também CREATH, 1985, p. 321-2). A primeira é a seguinte:

[...] há, a princípio, uma série contínua começando com ver através de nada e contendo os seguintes membros: olhar através do vidro de uma janela, olhar através de óculos, olhar através de binóculos, olhar através de um microscópio de baixa potência, olhar através de um microscópio de alta potência, etc., na respectiva ordem. A consequência importante é que, até aqui, ficamos sem critérios que nos permitiriam traçar um limite não arbitrário entre ‘observação’ e ‘teoria’. (MAXWELL, 1962, p. 7)

Ou seja, segundo Maxwell, os atos de observação, desde a olho nu, passando por aqueles auxiliados por instrumentos corriqueiros, como os óculos e binóculos, indo até os auxiliados por instrumentos que envolvem relativamente um alto grau de inferências teóricas sobre entidades microscópicas, como os microscópios eletrônicos, formam uma série contínua. Segundo o autor, o limite entre a observação e o não haver mais observação mostra-se, assim, difuso, e uma distinção forte a respeito deste limite é meramente arbitrária.

A segunda ilustração de Maxwell em favor de sua premissa das fronteiras difusas da observabilidade difere da primeira ilustração em não se centrar em atos de percepção, mas, antes, nos objetos desses atos:

[...] a teoria contemporânea das valências conta-nos que há uma transição virtualmente contínua das moléculas diminutas (tais como as de hidrogênio) passando por aquelas de ‘tamanho médio’ (tais como as dos ácidos graxos, polipeptídeos, proteínas e vírus) até as extremamente grandes (tais como os cristais de sais, diamantes e pedaços de plástico polimérico). As moléculas do grupo por último mencionado são [...] objetos físicos ‘diretamente observáveis’, mas são, contudo, moléculas

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singulares [...]. (MAXWELL, 1962, p. 9)

Em outras palavras, há, segundo a química, uma série gradual das moléculas muito pequenas para serem observadas a olho nu até aquelas que podemos assim ver. Por conseguinte, dizer simplesmente sem mais que moléculas são observáveis ou que são inobserváveis não seria cabível. Não se trata de predicados dicotômicos, antes os critérios de sua aplicação são difusos.

A primeira linha argumentativa de Maxwell em favor da IOD, em resumo, admite ser representada do seguinte modo:

[A] (1) O limite entre o observável e o inobservável é difuso. [PREMISSA] (2) Se o limite entre o observável e o inobservável é difuso, então não há

uma distinção forte entre observável e inobservável. [PREMISSA] (3) Logo, não há uma distinção forte entre observável e inobservável.

[DE (1) E (2), MODUS PONENS]

(4) Ora, se não há uma distinção forte entre observável e inobservável, então a distinção entre observável e inobservável não é ontologicamente relevante. [PREMISSA]

(5) Logo, a distinção entre observável e inobservável não é ontologicamente relevante. [DE (3) E (4), MODUS PONENS]

Por ‘distinção forte’ entre observável e inobservável, queremos dizer, aqui, uma distinção tal que, se algo x conta como observável, então fica excluído que x conte como inobservável. A conclusão intermediária de [A] é de que essa distinção não existe. A partir disso, Maxwell sugere (IOD) ‒ que, como aqui interpretada, é a tese de que a distinção em pauta não serve para decidirmos sobre a existência ou não das entidades postuladas teoricamente. No contexto de [A], em particular, o autor questiona: “Devemos nós dizer que uma molécula grande de proteína [...] que pode ser ‘vista’ apenas com um microscópio eletrônico, é um pouco menos real [...] do que uma molécula de um polímero que pode ser vista com um microscópio óptico?” (MAXWELL,1962, p. 9).

A segunda linha argumentativa de Maxwell para a IOD tem como premissa principal a premissa de que o limite entre o observável e o inobservável muda conforme o problema científico:

[...] frequentemente acharemos conveniente traçar tal limite em certa medida arbitrário; mas sua posição variará largamente de contexto para

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contexto. (Por exemplo, se estivermos determinando as características de resolução de certo microscópio, certamente traçaríamos o limite para além dos óculos comuns, provavelmente para além das simples lupas e possivelmente para além de outro microscópio com um poder menor de resolução.) Mas que efeito ontológico uma mera dicotomia conveniente entre observável e teórico produz? Porventura uma entidade adquire o caráter de ser algo físico ou uma ‘existência real’ em um contexto, apenas para perdê-lo em outro? (MAXWELL, 1962, p. 7-8)

Ou seja, Maxwell sugere que a distinção em pauta varia conforme o problema científico sendo investigado. No caso de um instrumento de observação como, por exemplo, os óculos de grau, as fronteiras do observável serão traçadas com relação aos objetos medianos com os quais estamos habituados a interagir; mas no caso de um instrumento como um microscópio, as fronteiras do observável terão de ser ampliadas, em conformidade com o tamanho dos objetos microscópios. A distinção, portanto, segundo Maxwell, é flexível e meramente pragmática, variando de um tipo de contexto para outro e, por isso, não serviria, de modo nenhum, para se inferir a inexistência de alguma entidade.

[B] (1) O limite entre o observável e o inobservável muda de um problema científico para outro. [PREMISSA]

(2) Ora, se o limite entre o observável e o inobservável muda de um problema científico para outro, então a distinção entre observável e inobservável não é ontologicamente relevante. [PREMISSA]

(3) Logo, a distinção entre observável e inobservável não é ontologicamente relevante. [DE (1) E (2), MODUS PONENS]

Por fim, a terceira linha argumentativa de Maxwell articula-se a partir da premissa de que as fronteiras da observabilidade alteram-se à medida que desenvolvemos melhores meios de observação. Este argumento é dirigido, em particular, às versões de antirrealismo que procuram negar a existência de entidades que sejam inobserváveis a princípio (cf. MAXWELL, 1962, p. 9). Por isso, o autor assume como hipótese a premissa dessas versões de que cabe à própria ciência estabelecer os limites da observabilidade: “[...] assumirei o que parece ser geralmente tomado por certo pela maioria dos filósofos que falam das entidades inobserváveis a princípio – isto é, que a teoria mesma [...] implica que tais

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entidades são inobserváveis a princípio” (MAXWELL, 1962, p. 9). Trata-se de uma maneira de delimitar o sentido dos predicados ‘ser observável’ e ‘ser inobservável’ nessa linha argumentativa, de modo a evitar confusões conceituais. O argumento prossegue ilustrando como a premissa de que os limites da observabilidade mudam, conforme aprimoramos nossos meios de observação. Esse aprimoramento pode dar-se a partir de desenvolvimentos teóricos e tecnológicos; estes últimos, desenvolvimentos de instrumentos mais potentes de observação e até mesmo, eventualmente, de tecnologias que alteram a fisiologia humana aumentando nossa capacidade perceptual (cf. MAXWELL, 1962, p. 10). Maxwell sugere que disso:

[...] se segue que, pelo menos nesse sentido de ‘observável’, não há quaisquer critérios a priori ou filosóficos para separar o observável do inobservável. Tentando mostrar que podemos falar da possibilidade de observar elétrons sem cometer besteiras lógicas ou conceituais, venho tentando [sic] sustentar a tese de que qualquer termo (não lógico) é um possível candidato a termo observacional. (MAXWELL, 1962, p. 11)

Em outras palavras, Maxwell considera que o fato de que não possamos observar, no momento, determinadas entidades postuladas por uma teoria (como, e.g., elétrons), não implica que elas sejam inobserváveis, se estivermos considerando que o sentido relevante de observabilidade em questão seja o de observabilidade a princípio. Assim, caberia à ciência estabelecer o que é observável. Pois há sempre a possibilidade de que venhamos a aprimorar nossos meios de observação.

Assim, essa terceira linha argumentativa pode ser representada, de maneira aproximada, como se segue:

[C] (1) Cabe à ciência determinar o limite entre o observável e o inobservável. [HIPÓTESE]

(2) Se é o caso que cabe à ciência determinar o limite entre o observável e o inobservável, então, se o limite entre o observável e o inobservável altera-se à medida que desenvolvemos melhores meios de observação, então qualquer entidade não matemática é observável a princípio. [PREMISSA]

(3) Logo, se o limite entre o observável e o inobservável altera-se à medida que desenvolvemos melhores meios de observação, então

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qualquer entidade não matemática é observável a princípio. [DE (1) E

(2), MODUS PONENS]

(4) Ora, o limite entre o observável e o inobservável altera-se à medida que desenvolvemos melhores meios de observação. [PREMISSA] (5) Logo, qualquer entidade não matemática é observável a princípio. [DE

(3) E (4), MODUS PONENS]

(6) Ora, se qualquer entidade não matemática é observável a princípio, então a distinção entre observável e inobservável não é ontologicamente relevante. [PREMISSA]

(7) Logo, a distinção entre observável e inobservável não é ontologicamente relevante. [DE (3) E (4), MODUS PONENS]

(8) Logo, se cabe à ciência determinar o limite entre o observável e o inobservável, então a distinção entre observável e inobservável não é ontologicamente relevante. [DE (1) E (5), INTRODUÇÃO DO CONDICIONAL]

Van Fraassen, ao propor sua distinção entre entidades observáveis e inobserváveis, discute os argumentos de Maxwell aqui representados, isto é, [A]-[C], ainda que [B] apenas indiretamente. Uma revisão dos contra-argumentos de van Fraassen a [A]-[C] constitui parte do conteúdo da seção seguinte.

4. Van Fraassen sobre a distinção entre observável e inobservável

Van Fraassen não oferece uma definição do predicado ‘ser observável’, mas apenas um “guia grosseiro” (rough guide) sobre as fronteiras desse predicado (cf. VAN FRAASSEN, 1980, p. 16; MONTON & VAN FRAASSEN, 2003, p. 409) e alguns exemplos de aplicação dele que considera típicos. Seu guia grosseiro é o seguinte: “X é algo observável se há circunstâncias tais que, se X nos estiver presente nessas circunstâncias, então observamo-lo” (VAN FRAASSEN, 1980, p. 16).

Assim, o predicado ‘ser observável’, segundo van Fraassen, classifica reputadas entidades (sejam existentes ou não). Segundo seu guia, para uma entidade X contar como observável, não é importante se X existe ou não, mas apenas que, se houvesse circunstâncias S em que X estivesse presente, então observaríamos X. Se se reputar que X está presente em S, mas não observamos

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X, então X é inobservável. Van Fraassen considera como exemplos típicos de

entidades observáveis entidades que observamos sem auxílio de instrumentos; mas também entidades que, apesar de observarmos por meio de instrumentos, poderíamos observar sem esses instrumentos se elas estivessem em nossa frente, como, por exemplo, as luas de Júpiter. Além disso, van Fraassen menciona cavalos alados como caso típico de entidade observável. Trata-se de uma entidade fictícia, mas se ela estivesse em nossa frente, então observá-la-íamos. Exemplos típicos de entidades inobserváveis dados pelo autor incluem números e micropartículas em uma câmara de nuvem (cf. VAN FRAASSEN, 1980, p. 15-7).

Um aspecto importante da perspectiva de van Fraassen é sua consideração de que ‘ser observável’ e ‘ser inobservável’ são predicados “antropocêntricos” (cf. VAN FRAASSEN, 1980, p. 16, 59; 1992, p. 18-9). Com isso, o autor quer dizer que a aplicação verídica deles é relativa às nossas limitações enquanto organismos humanos, de modo similar à aplicação de predicados (disposicionais) tais como ‘ser frágil’ e ‘ser transportável’. Por exemplo, o vidro comum de uma janela é frágil no sentido de que ele é facilmente quebrado por um ser humano. Porém, ele não é frágil se adotarmos como parâmetro, por exemplo, as formigas ou outros insetos. Esse aspecto é importante aqui porque van Fraassen considera que, por tal razão, cabe à ciência, em particular à fisiologia e à psicologia, determinar os limites da observabilidade. Ou seja, a questão sobre o que conta ou não como observável é entendida pelo autor como sendo de caráter empírico (VAN FRAASSEN, 1980, p. 17, p. 56-8; 1992, p. 20).

No entanto, o autor sugere que os limites da observabilidade são

independentes de teoria. Na prática, precisamos recorrer a alguma teoria para

determinar se algo é observável ou inobservável, mas isso não implica que o status de uma entidade como observável ou inobservável dependa da teoria. A razão disso está relacionada à diferença entre observar e observar que: observar uma entidade X não implica em observar que é X (embora observar que é X implique em observar X). Por exemplo, alguém que vive em uma cultura em que se desconhece totalmente o jogo de xadrez pode observar uma peça do jogo se lha mostrarmos, mas não observará, neste caso, que se trata de uma peça de xadrez (cf. VAN FRAASSEN, 1980, p. 15-6). Para o autor, a demarcação entre entidades observáveis e inobserváveis não concerne ao observar que, mas sim apenas ao

observar. Peças do jogo de xadrez são observáveis na medida em que um ser

humano particular normalmente pode observá-los (isto é, vê-los, tocá-los, cheirá-los, etc.), bastando estar diante de objetos desse tipo ‒ independentemente de a

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pessoa possuir o conceito de peça do jogo de xadrez e, assim, observar que se trata de uma peça de xadrez. Micropartículas em uma câmara de nuvem, por outro lado, não são observáveis, na medida em que uma pessoa possui limitações enquanto organismo humano que não lhe permitem observá-las no caso de elas de fato existirem. A pessoa pode ter o conceito de micropartícula e dizer detectar que haja micropartículas bem em sua frente (ao invés de um simples rastro cinza análogo ao de um jato passando no céu), mas não lhe é possível literalmente observá-las; o que é enunciado pelo guia grosseiro não é satisfeito (cf. VAN FRAASSEN, 1980, p. 57-9; 1985, p. 304-5; 1992, p. 19-20; MONTON & VAN FRAASSEN, 2003, p. 414).

Antes de avançar suas ponderações a argumentos de MAXWELL (1962), van Fraassen qualifica que concorda com ele, contra o positivismo lógico, que a distinção entre uma parte teórica e uma parte não teórica da linguagem não se sustenta. Ou seja, van Fraassen concorda com a conhecida tese da impregnação teórica (theory-ladenness), de modo que considera que o discurso em geral, incluindo o cientifico, é permeado de pressuposições teóricas (cf. VAN FRAASSEN,1980, p. 14-5; 1992, p. 14-5). No entanto, van Fraassen faz uma divisão, que não é feita por Maxwell, entre a tese da impregnação teórica e a rejeição da distinção entre entidades observáveis e inobserváveis. Segundo van Fraassen, como vimos, os limites da observabilidade são objetivos. A compatibilidade dessas duas teses é sugerida por van Fraassen mediante sua visão de que aquilo que conta como entidade observável ou inobservável é independente de teoria, por mais que, na prática, precisamos recorrer a alguma teoria para dizer o que conta como uma ou outra coisa.

Com relação à primeira linha argumentativa de Maxwell, que representamos na seção 3 como [A], van Fraassen aceita a premissa (1) ‒ isto é, que o limite entre o observável e o inobservável é difuso. Van Fraassen expressa isso apontando que o predicado ‘ser observável’ é vago, como tantos outros da linguagem comum; ou seja, que as fronteiras de sua aplicabilidade são imprecisas, havendo casos em que é intuitivamente incerto se ele se aplica ou não (os chamados borderline cases). Porém, rejeita a premissa (2) – isto é, que, se o limite entre o observável e o inobservável é difuso, então não há uma distinção forte, dicotômica, entre observável e inobservável. Disso van Fraassen rejeita a conclusão intermediária do argumento, expressa como (3) – isto é, que não há uma distinção forte entre observável e inobservável. Como aponta o autor, o importante para que haja uma classificação objetiva entre observável e

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inobservável é que haja casos típicos de aplicação desses predicados: “predicados da linguagem comum são quase todos vagos, e não há nenhum problema em seu uso [...]. Um predicado vago é utilizável [sic] contanto que ele possua casos claros de aplicação e de não aplicação [clear cases and clear counter-cases]” (VAN FRAASSEN, 1980, p. 16). Não há uma linha clara que divida, por exemplo, pessoas que são carecas daquelas que não o são, na medida em que ‘ser careca’ é um predicado vago. Porém, há casos típicos de pessoas que recaem sob o predicado ‘ser careca’ e casos típicos de pessoas que, pelo contrário, não. De acordo com van Fraassen, algo similar ocorre com o predicado ‘ser observável’. Se supuséssemos a premissa (2) de [A], então seria admissível dizer que todas as coisas são observáveis, o que não o é, tal como não o é dizer que todas as pessoas são carecas (ou que não há uma distinção entre dia e noite na Terra, entre você mamar, quando criança, e cometer um incesto, etc.).

Com relação à segunda linha argumentativa de Maxwell, representada na seção 3 como [B], van Fraassen não tece uma ponderação explícita. Porém, podemos dizer que ele rejeita a premissa (1) de [B] ‒ ou seja, que o limite entre o observável e o inobservável mude de um problema científico para outro, ou, em outras palavras, que a distinção seja apenas pragmática, conforme a conveniência do problema abordado. Como vimos, van Fraassen considera que os limites da observabilidade são objetivos, inclusive independentes de teoria.

Por fim, a respeito da terceira linha argumentativa de Maxwell, representada na seção 3 como [C], van Fraassen concorda que cabe à ciência determinar o limite entre o observável e o inobservável. Entretanto, o autor rejeita a premissa (2) – isto é, que disso se siga que, se o limite entre o observável e o inobservável altera-se à medida que desenvolvemos melhores meios de observação, então qualquer entidade não matemática é observável a princípio. A esse respeito, o autor diz:

Tenho um almofariz feito de cobre e que pesa aproximadamente um quilo. Deveria eu dizer que ele é quebrável por um gigante poder quebrá-lo? Deveria eu dizer que o Empire State Building é portátil? [...] O organismo humano é, do ponto de vista da física, um certo tipo de aparato de mensuração. Como tal, ele possui certas limitações inerentes – que serão descritas em pormenor na física e na biologia finais. É a essas limitações que o ‘-ável’ de ‘observável’ se refere – nossas limitações qua seres humanos. (VAN FRAASSEN, 1980, p. 17)

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Portanto, a ponderação de van Fraassen, aqui, consiste em chamar atenção para o que ele qualifica como o caráter antropocêntrico da distinção. Dizer que algo é observável ou inobservável é, segundo essa perspectiva, fazer uma predicação que é objetivamente verdadeira ou falsa, ainda que relativa às limitações do organismo humano enquanto tal.

Ademais, van Fraassen concorda que a distinção entre observável e inobservável não é ontologicamente relevante, isto é, concorda com a IOD. A distinção teria alguma relevância ontológica apenas se ‘ser observável’ e ‘ser real’ implicassem-se mutuamente, o que, evidentemente, não é o caso. Contudo, isso não significa que a distinção não seja relevante para o debate sobre a plausibilidade do realismo científico. Para o EC, embora a distinção não seja ontologicamente relevante, ela o é epistemicamente: “[...] Mesmo se observabilidade não tem nada a ver com existência [...], ela pode ainda ter muito a ver com a atitude epistêmica apropriada com relação à ciência” (VAN FRAASSEN, 1980, p. 19). Em outras palavras, ela tem peso para a questão sobre qual atitude epistêmica devemos adotar com relação às teorias, a saber, se uma atitude de crença em sua verdade em geral, ou de crença apenas em sua adequação empírica. O EC, diferentemente de outras versões de antirrealismo científico, não sustenta que, com relação a entidades inobserváveis, a postura apropriada a ser adotada é de negar de alguma maneira que sejam reais; mas, antes, apenas uma postura de neutralidade sobre se são reais.

5. Objeções ao tratamento de van Fraassen à distinção

Passamos, agora, à nossa reconstituição de vários dos argumentos do debate sobre o tratamento dado por van Fraassen à distinção entre entidades observáveis e inobserváveis3. A seção está subdividida em várias subpartes,

dedicadas, respectivamente, às objeções que encontramos em: FRIEDMAN (1982) e KUKLA (1996); FOSS (1984) e CREATH (1985); CHURCHLAND (1985); HACKING (1983, 1985); MUSGRAVE (1985); e VOLLMER (2000). Temos três qualificações preliminares: em primeiro lugar, em alguns desses trabalhos, encontram-se objeções também a outros aspectos do EC, mas a revisão de literatura aqui feita diz respeito apenas às considerações de van Fraassen sobre

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os limites da observabilidade; em segundo lugar, como salientamos inicialmente, nem todas as objeções a van Fraassen aqui consideradas são contra a relevância da distinção entre entidades observáveis e inobserváveis; e, em terceiro lugar, algumas delas, embora questionando a proposta de van Fraassen sobre a distinção, não visam contraporem-se ao EC de maneira mais geral.

5.1. A Objeção de Friedman (1982) e Kukla (1996)

Michael Friedman, em sua resenha do livro The scientific image, formula a seguinte objeção ao EC:

Suponha-se que eu, falando a linguagem da teoria física contemporânea, assira a adequação empírica dessa teoria: nomeadamente, que os objetos observáveis são encaixáveis [sic] na imagem de mundo da física moderna [...]. Porém, ‘os objetos observáveis’ são eles próprios caracterizados a partir do interior da imagem de mundo da física moderna: como aqueles sistemas complicados de particulares elementares [...]. Logo, se assiro que os objetos observáveis existem, terei também asserido que certos sistemas complicados de partículas elementares existem. Porém, terei nisso asserido que partículas elementares (individuais) existem igualmente! Eu não terei permanecido [...] agnóstico sobre a parte inobservável do mundo. (FRIEDMAN, 1982, p. 278)

Esta objeção pode ser representada do seguinte modo:

[D] (1) Suponha-se que afirmamos que a física contemporânea é empiricamente adequada. [HIPÓTESE]

(2) Se afirmarmos que a física contemporânea é empiricamente adequada, então afirmamos que os objetos observáveis são sistemas de partículas elementares. [PREMISSA]

(3) Logo, afirmamos que os objetos observáveis são sistemas de partículas elementares. [DE (1) E (2), MODUS PONENS]

(4) Se é o caso que afirmamos que os objetos observáveis são sistemas de partículas elementares, então, se afirmamos que objetos observáveis existem, afirmamos que sistemas de partículas elementares existem. [PREMISSA]

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então afirmamos que partículas elementares individuais existem. [PREMISSA]

(6) Logo, afirmamos que partículas elementares individuais existem. [DE

(3)-(5), SORITES]

(7) Ora, se afirmamos que partículas elementares individuais existem, então não permanecemos neutros sobre as entidades inobserváveis postuladas pela teoria. [PREMISSA]

(8) Logo, não permanecemos neutros sobre as entidades inobserváveis postuladas pela teoria. [DE (6) E (7), MODUS PONENS]

(9) Logo, se afirmamos que a física contemporânea é empiricamente adequada, então não permanecemos neutros sobre as entidades inobserváveis postuladas pela teoria. [DE (1) E (8), INTRODUÇÃO DO CONDICIONAL]

(10)Ora, se é o caso que, se afirmamos que a física contemporânea é empiricamente adequada, então não permanecemos neutros sobre as entidades inobserváveis postuladas pela teoria, então o EC não está correto. [PREMISSA]

(11) Logo, o EC não está correto. [DE (9) E (10), MODUS PONENS] Como indica Fred MULLER (2004, p. 639-640), a premissa (2) de tal objeção não é plausível. Pois, segundo o EC, como o próprio Friedman salienta, a atitude que devemos adotar frente a proposições sobre entidades inobserváveis é de neutralidade (isto é, de nem afirmar que seja verdadeira, nem negar que o seja). Ora, a proposição ‘os objetos observáveis são sistemas de partículas elementares’ é sobre entidades inobserváveis (a saber, micropartículas elementares). Portanto, conforme o EC, ao aceitar a teoria física contemporânea, apenas aceitamos que os objetos observáveis são sistemas de partículas elementares, sem chegar a crer nisso. Disso se segue que o argumento de Friedman falha.

AndréKUKLA (1996, p. 214ss), no entanto, considera que a objeção de Friedman é boa. Porém, entende-a como sendo uma acusação de que o EC é incoerente porque:

Van Fraassen diz-nos (1) que podemos crer apenas nas consequências observacionais de nossas teorias e (2) que essas consequências podem apenas ser expressas em uma linguagem impregnada de teoria. O problema é que, se (2) é verdadeiro, então toda expressão de nossa crença

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implica que algumas entidades teóricas – nomeadamente, aquelas postuladas pela teoria que usamos para expressar nossa crença – existem. Porém, isso significa que o antirrealismo é falso – pois é incoerente manter que você não pode acreditar nas consequências lógicas das hipóteses que você pode acreditar. (KUKLA, 1996, p. 214)

O argumento de Friedman como tomado por Kukla pode ser assim representado (com adaptações):

[E] (1) Suponha-se que o EC está correto. [HIPÓTESE]

(2) Se o EC está correto, então, se aceitamos uma teoria, então cremos apenas na adequação empírica da teoria. [PREMISSA]

(3) Logo, se aceitamos uma teoria, então cremos apenas na adequação empírica da teoria. [DE (1) E (2), MODUS PONENS]

(4) Se o EC está correto, então as consequências empíricas de uma teoria são expressas em linguagem impregnada de teoria. [premissa] (5) Logo, as consequências empíricas de uma teoria são expressas em

linguagem impregnada de teoria. [DE (1) E (4), MODUS PONENS] (6) Se as consequências empíricas de uma teoria são expressas em

linguagem impregnada de teoria, então é o caso que, se expressamos nossa crença em uma consequência empírica da teoria, expressamos crença de que algumas entidades inobserváveis postuladas pela teoria existem. [PREMISSA]

(7) Logo, se expressamos nossa crença em uma consequência empírica da teoria, expressamos crença de que algumas entidades inobserváveis postuladas pela teoria existem. [DE (5) E (6), MODUS PONENS]

(8) Ora, se é o caso que, se expressamos nossa crença em uma consequência empírica da teoria, expressamos crença de que algumas entidades inobserváveis postuladas pela teoria existem, então não é o caso que, se aceitamos uma teoria, então cremos apenas na adequação empírica da teoria. [PREMISSA]

(9) Logo, não é o caso que, se aceitamos uma teoria, então cremos apenas na adequação empírica da teoria. [DE (7) E (8), MODUS PONENS] (10) Logo, é e não é o caso que, se aceitamos uma teoria, então cremos

apenas na adequação empírica da teoria. [de (3) e (9), introdução da conjunção]

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(11) Logo, o EC não está correto. [DE (1) E (10), REDUCTIO AD ABSURDUM]

Como ilustração de (6), KUKLA (1996, p. 216) diz que, ao aceitarmos nossas teorias recentes, aceitamos que certas estruturas observáveis possuem mais de 10²³ átomos de carbono. A proposição de que certas estruturas observáveis possuem mais de 10²³ átomos é, supõe Kukla, uma consequência empírica da teoria, por ser sobre certas entidades observáveis. Assim, poderíamos crer nessa proposição. Porém, sendo ela impregnada de teoria, ao expressarmos tal crença, expressaríamos crença inclusive na existência de átomos de carbono.

As premissas de (1) a (5) do argumento de Kukla condizem com o EC, mas, a premissa (6), não; e, disso, o argumento se revela implausível. Como aponta MULLER (2004, p. 640), o EC admitir a tese da impregnação teórica é admitir que a linguagem é governada por pressuposições das teorias que aceitamos. Isso não implica em crença na imagem de mundo sugerida por essas teorias, mas apenas em crença em sua adequação empírica e, assim, no que tange apenas a entidades observáveis. Portanto, ao vermos um diamante, acreditamos, naturalmente, que se trata de algo observável e real; mas, a partir de o EC, “não estamos prontos a crer que 10²³ átomos de carbono existem, posto que dizer que um diamante consiste de 10²³ átomos de carbono é uma interpretação daquilo que vemos em termos, em parte, de inobserváveis” (MULLER, 2004, p. 640).

5.2. A objeção de Foss (1984) e Creath (1985)

JeffFOSS (1984) e Richard CREATH (1985) formulam uma objeção que questiona a coerência do EC manter que o predicado ‘ser observável’ é vago e, ao mesmo tempo, manter a recomendação de que se acredite na existência apenas das entidades observáveis. Segundo Foss:

Van Fraassen diz-nos que observabilidade é um conceito vago, mas não elabora as consequências dessa vagueza para o resto de sua teoria. [...] Se aceitar uma teoria é achar que ela é empiricamente adequada, isto é, acreditar no que ela diz sobre os observáveis, o que a aceitação de uma teoria envolve de crença quanto àquelas coisas cuja observabilidade é tão vaga a ponto de gerar dúvida? (FOSS, 1984, p. 84)

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Isto é, como o predicado ‘ser observável’ é vago, há casos que geram dúvida sobre se ele se aplica ou não. Porém, o EC recomenda que apenas se creia na existência dos casos correspondentes a entidades observáveis. Nos casos de margem ou limítrofes, qual a atitude tomar? Nessa objeção, alega-se que o EC deixa a desejar nesse tocante. Nos termos de Creath:

[...] quando distinguimos, entre as entidades, aquelas que são observáveis e as restantes, essa distinção é difusa. Van Fraassen concordaria; ‘observável’ é um predicado vago. [...] A recomendação de van Fraassen [...] é crer nas consequências observáveis de uma teoria, mas apenas aceitar as inobserváveis. Dado que ‘observável’ é vago, essa recomendação é incoerente se a distinção entre crença e aceitação não for vaga. [...] O que poderia ocupar a área de margem entre a crença e a aceitação? Se nada pode preencher essa área de margem, então van Fraassen [...] está deixando algo que não pode ser uma questão de grau depender de algo que é concedido sê-lo. (CREATH, 1985, p. 335-6)

Em termos mais formais, essa objeção admite ser representada do seguinte modo:

[F] (1) ‘Observável’ é um predicado vago. [PREMISSA]

(2) Se ‘observável’ é um predicado vago, então há casos que geram dúvida sobre se ele se aplica ou não. [PREMISSA]

(3) Se é o caso que há casos que geram dúvida sobre se o predicado ‘observável’ se aplica ou não, então, se o EC recomenda a crença apenas na adequação empírica de uma teoria, o EC deixa a desejar quanto a esses casos. [PREMISSA]

(4) Logo, se o EC recomenda a crença apenas na adequação empírica de uma teoria, então o EC deixa a desejar quanto aos casos que geram dúvida sobre se o predicado ‘observável’ se aplica ou não. [DE (1)-(3), SORITES]

(5) Ora, o EC recomenda a crença apenas na adequação empírica de uma teoria. [PREMISSA]

(6) Logo, o EC deixa a desejar quanto aos casos que geram dúvida sobre se o predicado ‘observável’ se aplica ou não. [DE (4) E (5), MODUS PONENS]

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As premissas (1), (2) e (5) desse argumento são admitidas pelo EC. Porém, o empirista construtivo não admitiria (3), portanto contrapondo-se a tal objeção. Ele não vê problema em que se suspenda o juízo quanto à existência de entidades cuja observabilidade é dúbia, mantendo o imperativo: “quando em dúvida sobre a observabilidade, não faça o pulo mental para o nível da crença, mas sim permaneça no nível da aceitação” (MULLER, 2004, p. 642). Como coloca Muller, isso é análogo ao princípio moral segundo o qual é pior condenar uma pessoa inocente do que inocentar uma pessoa culpada, assegurando que apenas as culpadas sejam penalizadas. Evidentemente, essa recomendação do EC leva à suspensão do juízo sobre a existência de entidades que podem muito bem ser reais, mas, segundo o empirista construtivo, trata-se de uma atitude mais prudente do que a do realista científico.

5.3. A objeção de Churchland (1985)

Paul CHURCHLAND (1985) levanta uma objeção a van Fraassen4 que

parte de uma consideração de diferentes razões pelas quais uma entidade pode não ser observada. Ela pode não o ser por (i) ocupar uma posição espacial ou temporal desfavorável ao aparato sensório natural do organismo humano (e.g., existir em uma galáxia distante ou ter existido há milhões de anos); por (ii) possuir dimensões espaciais ou temporais desfavoráveis ao aparato sensório natural do organismo humano (e.g., ser de tamanho microscópico ou ocorrer em um intervalo de tempo no nível dos nanossegundos); por (iii) ter energia, comprimento de onda ou massa desapropriado para que ela seja discriminada pelo organismo humano; etc. (cf. CHURCHLAND, 1985, p. 39). Churchland chama atenção para o fato de que falhar devido a (i) ‒ isto é, em ocupar uma posição espacial ou temporal desapropriada ao aparato sensório natural do organismo humano ‒ é apenas uma das razões pelas quais uma entidade pode não ser observada. Para van Fraassen, uma entidade não é observada, mas é, ainda,

observável, se tiver essa característica. No entanto, van Fraassen sugere que uma

entidade não é observada e sequer conta como observável se satisfizer qualquer uma das

outras razões. Churchland problematiza essa pressuposição de van Fraassen,

4 Entendemos outras de suas objeções como não sendo dirigidas propriamente ao tratamento de van Fraassen à questão do âmbito da observabilidade.

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afirmando que é contingente que chamemos de observável algo que ocupa uma posição espacial ou temporal desfavorável ao referido aparato, mas de inobservável o que satisfaz qualquer uma das outras razões. Isso porque, sugere o autor, é um fato contingente que os organismos humanos “tenham mais controle sobre a perspectiva espaciotemporal de seus sistemas sensoriais do que o têm sobre seu tamanho ou tempo de reação ou massa ou sensibilidade ao cumprimento de luz ou à constituição química” (CHURCHLAND, 1985, p. 39). Poderia ser o caso, por exemplo, que a configuração do aparato sensório natural do organismo humano fosse modificada de tal modo que passássemos a ter maior controle sobre esses outros parâmetros. Nesse caso, alega Churchland, a distinção entre, de um lado, entidades não efetivamente observadas, mas observáveis, e, de outro, entidades inobserváveis, não é cabível (cf. CHURCHLAND, 1985, p. 39-40). Em termos semiformais:

[G] (1) A configuração do aparato sensório natural humano pode ser modificada, permitindo que (e.g.) entidades microscópicas sejam observadas. [PREMISSA]

(2) Se a configuração do aparato sensório natural humano pode ser modificada, permitindo que (e.g.) entidades microscópicas sejam observadas, então é contingente contar como algo não observado, mas observável, apenas o que falha em ocupar uma posição espaciotemporal apropriada ao aparato sensório natural humano. [PREMISSA]

(3) Se é contingente contar como algo não observado, mas observável, apenas o que falha em ocupar uma posição espaciotemporal apropriada ao aparato sensório natural humano, então é o caso que, se van Fraassen considera como algo não observado, mas observável, apenas isso, não é o caso sua distinção entre, de um lado, o que não é observado, mas é observável, e, de outro, o que é inobservável. [PREMISSA]

(4) Logo, se van Fraassen considera como algo não observado, mas observável, apenas o que falha em ocupar uma posição espaciotemporal apropriada ao aparato sensório natural humano, então não é o caso sua distinção entre, de um lado, o que não é observado, mas é observável, e, de outro, o que é inobservável. [DE

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(5) Ora, van Fraassen considera como algo não observado, mas observável, apenas o que falha em ocupar uma posição espaciotemporal apropriada ao aparato sensório natural humano. [PREMISSA]

(6) Logo, não é o caso a distinção de van Fraassen entre, de um lado, o que não é observado, mas é observável, e, de outro, o que é inobservável. [DE (4) E (5), MODUS PONENS]

Van Fraassen rejeita a premissa (3) desse argumento, o qual pode ser entendido como uma reelaboração da terceira linha argumentativa de Maxwell (1962), ou seja, de [C] (cf. VAN FRAASSEN, 1985, p. 256-8). Como vimos, para van Fraassen, a distinção entre entidades observáveis e inobserváveis é relativa às limitações do aparato sensório natural do organismo humano e, por isso, uma tarefa para a ciência empírica. Se esse aparato sofresse modificação (seja por efeito de uma mudação natural, ou por efeito de engenharia genética), de tal modo que a ciência então admitida como empiricamente adequada nos dissesse que, por exemplo, certas entidades microscópicas são observáveis, então essas entidades contariam como observáveis. Porém, segundo van Fraassen, o simples fato de que essa modificação pode acontecer não altera a distinção, julgando que é uma falácia modal dizer que essas entidades são observáveis porque poderiam ser observáveis (cf. VAN FRAASSEN, 1985, p. 257-8). O fato de que uma pessoa que não é careca poderia ser careca não faz com que ela o seja.

5.4. A objeção de Hacking (1983, 1985)

Ian HACKING (1983, 1985) levanta uma objeção a van Fraassen sugerindo que, tal como as luas de Júpiter são observáveis, mas admitem ser vistas a partir da Terra apenas com o auxílio de telescópios, entidades microscópicas são observáveis, mas admitem ser vistas apenas por meio de microscópios (cf. HACKING, 1983, p. 202-4; 1985, p. 146-7). Seu argumento é o seguinte:

Projetamos um instrumento sabendo, a princípio, exatamente como ele irá funcionar […]. Passamos uma série de anos depurando vários protótipos e, finalmente, temos um instrumento pronto para circulação, por meio do qual discernimos uma estrutura particular. Vários outros instrumentos em circulação, construídos com base em princípios inteiramente diferentes,

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revelam a mesma estrutura. Ninguém, exceto um cético cartesiano, pode supor que a estrutura é feita pelos instrumentos, ao invés de ser inerente à amostra. (HACKING,1985, p. 147)

Assim, esse argumento pode ser interpretado como a inferência de que, se sabemos como um microscópio funciona (com auxílio da ciência óptica) e vários microscópios construídos conforme princípios diferentes permitem-nos obter uma imagem similar ao inserirmos uma mesma amostra, então esses microscópios permitem-nos efetivamente ver uma mesma estrutura. Cogitar que não vemos algo real nesse caso seria como imaginar um “gênio maligno” dos microscópios. Hacking admite que há certo grau de indução nessa inferência, mas considera que isso ocorre igualmente com relação às entidades de tamanho médio que comumente observamos (cf. HACKING, 1985, p. 147-8). Pode-se cometer um engano de vez em quando na microscopia; porém, “a situação não é diferente do ver ordinário” (HACKING, 1985, p. 147). Por conseguinte, a objeção pode ser aproximadamente reconstituída como a seguir:

[H] (1) Sabemos como um microscópio funciona e vários microscópios construídos com base em princípios inteiramente diferentes geram (como output) uma imagem relevantemente semelhante ao receber como input uma mesma amostra. [PREMISSA]

(2) Se sabemos como um microscópio funciona e vários microscópios construídos com base em princípios inteiramente diferentes geram (como output) uma imagem relevantemente semelhante ao receber como input uma mesma amostra, então é o caso que, se a observação comum de entidades de tamanho médio envolve similar grau de indução, então é cabível dizer que a imagem relevantemente semelhante é de algo que observamos. [PREMISSA]

(3) Se é o caso que, se a observação comum de entidades de tamanho médio envolve similar grau de indução, é cabível dizer que a imagem relevantemente semelhante é de algo que observamos, então o tratamento de van Fraassen sobre os limites da observabilidade é equivocado. [PREMISSA]

(4) Logo, o tratamento de van Fraassen sobre os limites da observabilidade é equivocado. [DE (1)-(3), SORITES]

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princípio nessa objeção (isto é, que assume o que era suposto provar). Subjacente à objeção estaria a premissa de que os instrumentos foram construídos com sucesso (que, no caso, é permitirem a observação de entidades microscópicas). Van Fraassen concede que as similaridades dos outputs remetem a similaridades nos inputs, mas julga que a similaridade que observamos é apenas da amostra visível a olho nu (cf. VAN FRAASSEN,1985, p. 298).

Porém, a nosso ver, é dúbio que a resposta de van Fraassen seja cogente. Pois o argumento de Hacking não assume que os microscópios revelem entidades reais. Assume, antes, que eles geram outputs bastante semelhantes, para, a partir da constatação de que a observação por meio desses instrumentos compartilha características importantes com aquela a olho nu, inferir como conclusão que faz sentido dizer que as entidades microscópicas são observáveis.

Além disso, a nosso ver, van Fraassen parece não considerar a dimensão do argumento de Hacking em que é apontada a similaridade entre os atos perceptuais comuns e aqueles auxiliados por microscópios. Os ancestrais do aparato sensório humano, tal como os ancestrais dos microscópios em circulação, sobreviveram a testes duros (nomeadamente, um no nível da seleção natural, outro no nível da seleção cultural). Se vários microscópios constituídos segundo princípios diferentes produzem outputs bastante semelhantes sistematicamente e cometem-se enganos equiparavelmente na percepção macroscópica e na microscópica, então faz sentido dizer que observamos com auxílio desses microscópios. Pois se o que eles exibem fosse algo que meramente criam ‒ como acredita VAN FRAASSEN (2001) ‒, então teríamos que dizer que as entidades que observamos ordinariamente são meras criações de nossos aparatos sensórios.

Van Fraassen poderia alegar que há uma diferença fundamental entre a observação a olho nu e a auxiliada por instrumentos; a saber, no primeiro caso, revelar uma entidade que pode, a princípio, ser experienciada por pelo menos algum outro dos sentidos (como o tato, o olfato ou a audição). Pelo menos certos eventos e processos observáveis a olho nu não são observáveis por todos os sentidos; por exemplo, o de um rato pressionar uma alavanca não pode ser cheirado (ainda que o rato possa sê-lo); o de uma combustão não pode ser observado gustativamente (ainda que o efeito da combustão possa sê-lo); etc. No entanto, faz sentido dizer que esses eventos ou processos sejam observáveis por meio de pelo menos algum outro sentido além da visão (e.g., o de um rato pressionar uma alavanca e o de uma combustão podem ser ouvidos). Em todo caso, van Fraassen precisaria de um argumento mostrando que essa característica

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é uma condição necessária para que algo conte como observável. Prima facie, não há por que estabelecê-la como condição necessária, já que, no caso de entidades microscópicas, deve ser levado em conta que suas dimensões não permitem, a princípio, a observação por meio de outro sentido que a visão auxiliada.

Note-se que a ponderação que aqui fazemos em favor do argumento de Hacking é compatível com o empirismo em filosofia da ciência, inclusive com o EC. Isso porque o importante para o empirismo em filosofia da ciência é que haja uma linha divisória entre o observável e o inobservável e que essa linha seja considerada fundamental para se entender a ciência (cf. VAN FRAASSEN, 2001, p. 163). A ponderação apenas coloca em xeque o tratamento particular dado por van Fraassen à distinção entre entidades observáveis e inobserváveis. Em BUENO (2011), por exemplo, encontra-se uma proposta alternativa de tratamento dessa distinção que acomoda casos de observação por meio de certos microscópios (como os ópticos e eletrônicos) e que procura ainda manter os aspectos mais fundamentais do EC. Entretanto, apontamos isso sem endossar, no presente trabalho, quer uma posição empirista, quer uma posição realista científica, porquanto fazê-lo está para além do nosso propósito nele.

5.5. A objeção de Musgrave (1985)

Alan MUSGRAVE (1985) formula uma objeção a van Fraassen que acusa seu tratamento da distinção entre entidades observáveis e inobserváveis de ser incoerente. A objeção é enunciada por Musgrave nos seguintes termos:

Ora, suponha-se alguma teoria T que [...] diga, entre outras coisas, que A é observável pelos humanos, ao passo que B, não. É claro, se formos usar

T para delinear o observável, devemos aceitá-la. [...] Porém, van Fraassen

não pode fazer-nos aceitá-la como verdadeira, dado que ela diz respeito, em parte, ao inobservável B. O empirista construtivo pode aceitar T apenas como sendo empiricamente adequada [...]. Porém, ‘B não é observável pelos humanos’ não pode, sob pena de contradição, ser um enunciado sobre algo observável pelos humanos. E, em geral, o empirista construtivo coerente não pode crer que é verdade que alguma coisa é inobservável pelos humanos. E, se assim for, o empirista construtivo coerente não pode traçar de todo uma dicotomia aplicável. (MUSGRAVE,

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Ou seja, Musgrave raciocina que, seguindo a diretriz epistêmica do EC, acabamos tendo que suspender o juízo sobre se alguma coisa, qualquer que seja, é inobservável. Ficamos sem poder dizer sequer que aquilo que van Fraassen considera como exemplos típicos de entidades inobserváveis, como as micropartículas em uma câmara de nuvem, são inobserváveis. Essa objeção pode ser representada assim (cf. também MULLER, 2004, p. 642-5):

[I] (1) Se a teoria T é o caso, então entidades do tipo B são inobserváveis. [PREMISSA]

(2) Suponha-se que um empirista construtivo aceita T. [HIPÓTESE] (3) Se um empirista construtivo aceita T, então mantém-se neutro sobre

o que T diz sobre entidades inobserváveis. [PREMISSA]

(4) Logo, o empirista construtivo mantém-se neutro sobre o que T diz sobre entidades inobserváveis. [DE (2) E (3), MODUS PONENS] (5) O enunciado ‘entidades do tipo B são inobserváveis’ é sobre

entidades inobserváveis. [PREMISSA]

(6) Logo, (1), (4) e (5). [DE (1),(4) E (5), INTRODUÇÃO DA CONJUNÇÃO] (7) Se (1), (4) e (5), então o empirista construtivo mantém-se neutro

sobre se entidades do tipo B são inobserváveis. [PREMISSA]

(8) Logo, o empirista construtivo mantém-se neutro sobre se entidades do tipo B são inobserváveis. [DE (6) E (7), MODUS PONENS]

(9) Logo, se um empirista construtivo aceita T, então mantém-se neutro sobre se entidades do tipo B são inobserváveis. [DE (2) E (8), INTRODUÇÃO DO CONDICIONAL]

(10) Se é o caso que, se um empirista construtivo aceita T, então mantém-se neutro sobre mantém-se entidades do tipo B são inobmantém-serváveis, então mantém-se neutro sobre se alguma coisa (qualquer que seja) é inobservável. [PREMISSA]

(11) Ora, se o empirista construtivo mantém-se neutro sobre se alguma coisa (qualquer que seja) é inobservável, então o EC não pode traçar uma distinção aplicável entre observável e inobservável. [PREMISSA] (12) Logo, o EC não pode traçar uma distinção aplicável entre

observável e inobservável. [DE (9)-(11), SORITES]

Van Fraassen responde à objeção de Musgrave apontando que, ao reelaborarmos a situação colocada nela em termos da concepção oficial do autor

(28)

sobre a adequação empírica ‒ isto é, em termos de modelos ‒, para além da caracterização informal que oferece algumas vezes, a objeção não coloca nenhuma dificuldade. A aparente incoerência do tratamento dado pelo autor dissipar-se-ia.

O problema pode apenas residir na maneira que eu às vezes faço reformulações grosseiras e intuitivas do conceito de adequação empírica. Suponha-se que T implique naquele enunciado [isto é, que entidades do tipo B são inobserváveis]. Então T não tem nenhum modelo no qual B ocorre entre suas subestruturas empíricas. Logo, se B é real e observável, nem todos os fenômenos observáveis se encaixam em um modelo de T da maneira correta e, então, T não é empiricamente adequada. Portanto, se eu creio que T é empiricamente adequada, então eu também creio que

B é inobservável se é real. Penso que isso é o bastante. (VAN FRAASSEN,

1985, p. 256)

O contra-argumento de van Fraassen é intricado e contém várias premissas implícitas. Na reconstituição aproximativa a seguir, procuramos explicitá-las, além de sua estrutura mais geral:

[J] (1) Se a teoria T é o caso, então entidades do tipo B são inobserváveis. [PREMISSA]

(2) Se é o caso que, se T é o caso, entidades do tipo B são inobserváveis, então T não possui nenhum modelo no qual B ocorre entre suas subestruturas empíricas. [PREMISSA]

(3) Logo, T não possui nenhum modelo no qual B ocorre entre suas subestruturas empíricas. [DE (1) E (2), MODUS PONENS]

(4) Se entidades do tipo B são observáveis e são reais e T é empiricamente adequada, então T possui algum modelo no qual B ocorre entre suas subestruturas empíricas. [PREMISSA]

(5) Logo, não é o caso a conjunção: entidades do tipo B são observáveis e são reais e T é empiricamente adequada. [DE (3) E (4), MODUS TOLLENS]

(6) Logo, se T é empiricamente adequada, então não é o caso que entidades do tipo B são observáveis e são reais. [DE (5), POR

(29)

EQUIVALÊNCIA5]

(7) Logo, se é o caso que T é empiricamente adequada, então, se entidades do tipo B são reais, então são inobserváveis. [DE (6), POR EQUIVALÊNCIA6]

(8) Ora, se é o caso que (7), então, se um empirista construtivo crê que

T é empiricamente adequada, ele crê que, se entidades do tipo B são

reais, então são inobserváveis. [PREMISSA]

(9) Logo, se um empirista construtivo crê que T é empiricamente adequada, então ele crê que, se entidades do tipo B são reais, então são inobserváveis. [DE (7) E (8), MODUS PONENS]

(10) Se (9), então a objeção de Musgrave não se sustenta. [PREMISSA] (11) Logo, a objeção de Musgrave não se sustenta. [DE (9) E (10), MODUS

PONENS]

MULLER (2004, p. 648-649), entretanto, questiona a premissa (10) da contraobjeção de van Fraassen a Musgrave e, portanto, a conclusão expressa em (11) – embora Muller seja a favor do EC. Muller salienta que a abordagem de van Fraassen acaba admitindo a crença apenas de que uma entidade é inobservável se for

real. A abordagem não é capaz de admitir a crença de que, por exemplo, elétrons

são inobserváveis, mas apenas de admitir a crença de que elétrons são inobserváveis

se forem reais (repare-se o condicional). Assim, para que o empirista construtivo

pudesse dizer que elétrons são inobserváveis, precisaria saber, de antemão, que elétrons são reais. Porém, a afirmação de que elétrons são reais não pode admitir crença pelo empirista construtivo, já que ele não pode observar elétrons. Logo, uma dicotomia aplicável entre observável e inobservável acaba não podendo ser traçada no âmbito da abordagem de van Fraassen, de modo que o argumenta Musgrave, na verdade, se sustenta.

Contudo, como MULLER (2004, p. 651) aponta, essa ponderação merece uma qualificação. Musgrave assume tacitamente em seu argumento que, para van Fraassen, o julgamento a respeito de se uma entidade conta ou não como observável deve basear-se em alguma teoria aceita. Porém, do tratamento de van Fraassen sobre a distinção segue-se apenas que isso ocorre ‒ e inevitavelmente ‒

na prática. Pois, segundo van Fraassen, algo contar como observável ou

5 Isto é: ¬ [(p ˄ q) ˄ r] ≡ [r → ¬ (p ˄ q)]. 6 Isto é: [r → ¬ (p ˄ q)] ≡ [r → (¬ q → p)].

Referências

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