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Significações do luto em O lado fatal de Lya Luft

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Academic year: 2021

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SIGNIFICAÇÕES DO LUTO EM O LADO FATAL DE LYA LUFT 1

Leandro de Godoy2

Resumo: Este trabalho pretende analisar e problematizar imagens e significações do luto presentes na obra O lado fatal, de Lya Luft. Para tanto, buscou-se, na construção dos poemas, imagens de morte, ausência, memória e aceitação, que podem fazer parte do processo de luto. Dessa forma, encontrou-se apoio teórico na psicanálise, por meio das obras de Sigmund Freud e Elizabeth Kübler-Ross, que propiciaram a compreensão do luto e de como ele afeta as pessoas. A teoria da interpretação, de Paul Ricoeur e Umberto Eco, forneceu o aporte teórico para sustentar as possibilidades interpretativas, que são inúmeras, porém não infinitas. Sendo assim, por meio da análise dos poemas, buscou identificar e compreender as imagens ligadas ao luto de forma a perceber como o eu lírico lida com elas nesse seu processo próprio, indo da negação à aceitação, de uma dor que passa de insuportável a tolerável. A dor talvez nunca cesse, mas ao fim desse processo ritualístico, se tem a compreensão de que é necessário se reinventar e continuar.

Palavra-chave: Literatura; Poesia; Psicanálise; Luto; Interpretação.

Abstract: This work intends to analyze and problematize images and significations of mourning present in the book O lado fatal, of Lya Luft. For this purpose, it was sought, in the construction of the poems, images of death, absence, memory and acceptance, which might be part of the mourning process. Therefore, theoretical support was found in psychoanalysis, by means of Sigmund Freud’s and Elizabeth Kübler-Ross’ books, which provided the comprehension of mourning and how it affects people. Paul Ricoeur and Umberto Eco’s interpretation theory furnished with theoretical contribution to sustain the interpretative possibilities, which are numberless, however not endless. Therefore, through the analysis of the poems, it sought to identify and understand the images linked to mourning in order to perceive how the lyrical I deals with them in its own process, from denial to acceptance, of a pain which passes from intolerable to tolerable. The pain might never cease, but by the end of this ritualistic process, it will be understood that it is necessary to reinvent and carry on.

Keywords: Literature; Poetry; Psychoanalysis; Mourning; Interpretation.

1 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à banca avaliadora do Curso de Letras como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciado em Letras Português- Inglês e Respectivas Literaturas, sob a orientação da Professora Mestre em História da Literatura (2009), docente do Curso de Letras da Unijuí, Taíse Neves Possani. E-mail: taise.possani@unijui.edu.br

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INTRODUÇÃO

Lya Luft, autora gaúcha de romances memoráveis, começou sua carreira literária ainda quando professora de Linguística Aplicada nos anos 1960, e, desde então, se mantém constante no cenário literário brasileiro. Mais conhecida por seus romances reveladores dos sentimentos e angústias femininos, também é poetisa, um exemplo disso é o livro O lado fatal, escrito em 1988, em decorrência da morte de seu marido.

Esse é “[...] o único livro circunstancialmente autobiográfico de Lya Luft, já que se constitui de poemas que esboçam o sentimento de luto pela morte de seu segundo marido, o psicanalista Hélio Pellegrino” (BARROCA, 2014, p. 36), sendo nessa obra que a autora expõe todas as feridas deixadas pela perda sofrida. Vale ressaltar que, ao se classificar O lado fatal como uma obra autobiográfica, isso não deve diminuir ou turvar seu valor literário, uma vez que não se trata de um simples relato de uma etapa de sua vida, mas a autora fala de sua dor de uma forma poética e universal, capaz de romper com o pontual e alcançar os sentimentos que, se não todos, a maioria esmagadora dos que perdem alguém que ama, sentem.

Dessa forma, surge a necessidade de tematizar sobre o luto e como ele é retratado nessa obra visceral de Lya Luft, e também como a autora lida com esse momento de sua vida, pelo qual todos, invariavelmente, passam. Com certeza, essa é uma fase dolorosa da existência, a morte, e cada pessoa encontra uma forma de viver essa dor. Lya Luft encontrou a sua: escrever. Ela, no início do livro, faz uma revelação:

O lado fatal não foi elaborado como uma obra literária: foi um desabafo num

momento sombrio, em 1988. Foi publicado, fez sucesso, mas depois de vários anos, iniciando uma nova vida, pedi à Record que ele fosse sustado.

Porém o tempo e a felicidade pessoal reconstruída me fizeram entender que ele é simplesmente parte da minha literatura. E então não pertence a mim: pertence ao meu leitor (LUFT, 2011, p. 7).

Com essa declaração, percebe-se que a autora vê sua obra como um desabafo, uma forma de, mais que expor, lidar com sua dor e com a morte. Em O lado fatal, Lya Luft aborda o luto de forma profunda, sem meias palavras, sem enfeites. Sua dor é mostrada de forma avassaladora, assim como o é a morte sobre os entes que ficam.

Sendo assim, com este trabalho, pretende-se analisar poemas do referido livro que apresentem imagens ligadas ao luto. Para tanto, se fez necessário buscar uma base metodológica que sustentasse o processo de interpretação, que se ancorou em Paul Ricoeur e Umberto Eco, ambos autores reconhecidos por suas extensas obras sobre a interpretação e seus meandros. Como a obra, que é o objeto dessa análise, foi escrita a partir de um momento de perda e

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sofrimento na vida da autora, buscou-se também compreender a literatura como essa “dimensão” que se situa em uma espécie de limbo entre o real e o não-real, e que é capaz de nos aproximar de nós mesmo e dos outros, como defendem Todorov (2009) e Antonio Candido (1995), mesmo não sendo essa sua principal função, se é que pode-se delimitar alguma função para ela

Também se considerou apropriada a discussão do luto em uma perspectiva psicanalítica, e encontra-se em Sigmund Freud (2010) e Elisabeth Kübler-Ross (2008) a compreensão do que o luto significa para o ser humano e como ele o compreende. Por fim, lançou-se um olhar para alguns poemas do livro que trazem imagens que remetem ao luto que o eu lírico está enfrentando.

1. TEORIA DA INTERPRETAÇÃO E SEUS DESDOBRAMENTOS

METODOLÓGICOS.

Para este trabalho adotou-se o método hermenêutico interpretativo, fazendo um levantamento temático acerca das principais imagens e seus possíveis processos de significação a partir da análise dos poemas, na tentativa de perceber como a escrita ajudou Lya Luft a passar por um momento obscuro de sua vida. A autora, pelas palavras, apresenta ao leitor toda a dor e sofrimento que assola sua alma, mas o que os toca não é a experiência em si, pois

um acontecimento que pertence a uma corrente de consciência não pode transferir-se como tal para outra corrente de consciência. E, no entanto, algo se passa de mim para vocês, algo se transfere de uma esfera de vida para outra. Este algo não é a experiência enquanto experenciada, mas a sua significação. Eis o milagre. (RICOER, 1976, p. 27)

Sendo assim, o que chega ao leitor não é o que o autor vive, mas sim a significação, e ela pode ser amorfa e atender a diversas expectativas de quem lê, porém não todas. Faz-se necessário compreender, antes de tudo, que o texto não se presta a toda e qualquer interpretação, e que não é possível tirar dele o que não há, uma vez que “dizer que um texto potencialmente não tem fim, não significa que todo o ato de interpretação possa ter um final feliz” (ECO, 1993, p. 28).

Logo, interpretar não é meramente atentar-se ao “que eu acho” e tão pouco ao que “que o autor quis dizer”, mas ao que o texto é capaz de oferecer. Esta é uma interação de intenções que “entre a intenção inacessível do autor e a intenção discutível do leitor está a intenção transparente do texto, que invalida uma interpretação insustentável” (ECO, 1993, p. 93). Nessa

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perspectiva, ao interpretar não se busca o propósito do autor ao escrever, mas sim o propósito do texto em si, sendo uma interpretação válida a que se mantém ao ser confrontada com ele. Dessa forma, é possível afirmar que

a intenção do autor e o significado do texto deixam de coincidir. A dissociação da significação verbal do texto e da intenção mental do autor dá ao conceito de inscrição o seu significado decisivo, para além da mera fixação do discurso oral prévio. A inscrição torna-se sinônimo de autonomia semântica do texto, que resulta da desconexão da intenção mental do autor relativamente ao significado verbal do texto. Em relação ao que o autor quis dizer e ao que o texto significa. [...]. O que o texto significa interessa agora mais do que o autor quis dizer, quando o escreveu. (RICOER, 1976, p. 41)

Interpretar, então, pode ser compreendido como construção e reconstrução de significados, sendo o leitor uma das partes, juntamente com o autor e o próprio texto, em um jogo de possibilidades múltiplas. Porém, essas são apenas algumas conjecturas do que seja interpretar, uma vez que “[...] a interpretação é indefinida. A tentativa de procurar um significado final inatingível leva à aceitação de uma interminável oscilação ou deslocamento do significado” (ECO, 1993, p. 37).

Tento em vista essas hipóteses sobre o ato de interpretar, para este trabalho buscou-se na obra analisada imagens recorrentes no processo de luto, as quais são o fio condutor do processo interpretativo proposto. Para tanto, foram selecionados poemas que apresentam imagens ligadas ao luto, e como existe um movimento entre a morte, a ausência, a memória e a aceitação que marca um processo gradual de metamorfose do eu lírico através do terreno incerto e mutável da literatura.

2. O LIMIAR ENTRE O REAL E O FICCIONAL

A literatura é um campo movediço, no qual as certezas são líquidas e as possibilidades muitas. Mais do que uma arte, forma de expressão, aprendizagem ou comunicação, ela tem a capacidade de humanização. Isso porque “[...] corresponde a uma necessidade universal e deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos libera do caos e, portanto, nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade” (CANDIDO, 1995, p. 256).

O texto literário tem um poder transformador que extrapola seus limites e chega ao mundo real. É claro que, por si só, a literatura não garante bons seres humanos, porém ela pode agir como catalizadora da formação da humanidade, uma vez que

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[...] pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para com a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro para fora. (TODOROV, 2009, p. 76)

É essa potencialidade de salvação, fuga, organização de si mesma que a autora apresenta em O lado fatal. Na obra, é vivível a busca pela compreensão, pelo consolo, ou mesmo explicação, para a tragédia apresentada ao leitor sem pudores ou distanciamentos que, muitas vezes, os autores buscam manter de suas obras. Em seus versos, como em toda sua obra, é possível perceber algo “que nos aproxima, talvez, da nossa maior inquietação enquanto ser humano: a consciência da finitude humana, reconhecida na presença da morte.” (BARROCA, 2014, p. 17)

Por mais que seus poemas sejam inspirados em sua própria dor e que neles sua voz se confunda com a do eu lírico, ao escrever, a autora recria a realidade vivida, uma vez que no processo de escrita “nosso discurso se transforma insensivelmente em algo que não podemos dominar totalmente; e nosso eu dá lugar a um pronome inominado, que tampouco é inteiramente um tu ou um ele” (PAZ, 2012, p. 166); enquanto escreve, ela também busca “fugir” da sua dor ao mesmo tempo que lança-se a ela. E é esse movimento de fuga e aproximação, de negação e aceitação que possibilita a transformação de dentro para fora, que defende Todorov (2009).

Dessa forma, tratar o acesso às produções literárias como algo supérfluo ou como algo que pertença a uma elite é alijar a maioria de um direto, como afirma Candido (1995). Ao ler, pode-se alcançar um pouco do outro e o conhecimento já produzido pelos humanos que existiram, sendo tal conhecimento indispensável para a constituição do ser.

[...] a literatura é o sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive por que atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente. (CANDIDO, 1995, p. 243)

Não se pretende, de forma alguma, subordinar a literatura a esse ou aquele propósito, como todas as artes, ela é livre, e assim o deve ser. Porém, ao mesmo tempo, detém o poder de aproximar o ser humano daquilo que, sem o contato com outros da mesma espécie, seria apenas uma potencialidade.

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Sendo assim, ao se deparar com os poemas em O lado fatal, se vive as imagens compostas pelas palavras da autora: a dor, o luto, a revolta, a solidão. Sentimentos esses tão humanos que é impossível não se pôr no lugar do eu lírico, que, nessa obra, se funde com a própria autora. Isso porque suas vivências não são mais só suas, elas “[...] se transformam em palavras sociais, históricas. Ao mesmo tempo, e com as mesmas palavras, o poeta diz outra coisa: revela o homem” (PAZ, 2012, p. 55).

Essa revelação se dá no espaço crepuscular dos poemas, no qual a linha que separa a realidade da ficção é difusa, impalpável e tênue. Lugar em que a autora revela para si e para o leitor o lado mais áspero e dolorido do amor: a separação. E pode ser útil, para compreender esse sofrimento que tangencia o amor, também compreender como se dá essa separação. Para tanto, busca-se, na psicanálise, a explicação de como o ser humano vivencia o luto ao deparar-se com a finitude.

3. LUTO E MORTE: UMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA

A obra não tem como temática o luto, pois tal afirmação poderia tornar a compreensão do que ela representa extremamente rasa e superficial. A obra é aqui entendida como a manifestação do luto da autora diante da perda do esposo, se configurando, dessa forma, como a materialização desse sentimento. Através dela, a autora vive e sente o luto com uma força impressionante, e é essa força que motivou o interesse pela obra e pela perspectiva de como a autora expressa, através dos poemas, esse momento de sua vida.

A perda de entes ou pessoas queridas é um fato comum a todos, seja ele pretérito ou futuro, porém, a forma como se lida com esse momento sofreu transformações ao longo do tempo. Inicialmente, para o homem primitivo,

a morte significava apenas o fim, o término da vida. [...]. Logo, porém, ele experimentou a morte de um ente querido e então passou a sofrer, tanto porque um pedaço seu ia-se com o outro quanto porque se deu conta de que também poderia morrer. (OLIVEIRA, 2001, p. 23)

Então, a relação do homem com a morte foi se alterando diacronicamente, e seu sentimento com relação à morte do outro, em especial de entes próximos, foi se tornando mais complexo. Sigmund Freud, um dos mais importantes estudiosos sobre a complexidade da dinâmica do homem com a morte, trouxe um novo olhar de como as pessoas se relacionam com ela. Inicialmente, para ele, “a morte é o desfecho necessário de toda vida, que cada um de nós

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deve à natureza uma morte e tem de estar preparado para saldar a dívida, em suma, que a morte é natural, incontestável e inevitável” (FREUD, 2010, p. 171).

Porém, o próprio Freud percebe que as pessoas agem como se a morte fosse algo alheio à vida, como se fosse um aspecto distante, algo não falado e não tocado. Ela é algo não dito, o que acaba refletindo como é encarada inconscientemente, pois “é inconcebível para o inconsciente imaginar um fim real para nossa vida na terra e, se a vida tiver um fim, este será atribuído a uma intervenção maligna fora do nosso alcance” (KÜBLER-ROSS, 2008, p. 6). Assim sendo, ela é entendida como algo cruel e nunca como um processo natural da própria vida.

Apesar de, inconscientemente, não ser possível aceitar a própria morte, a consciência da mortalidade existe, e um dos aspectos mais dolorosos é encarar a mortalidade de um ente querido ou de um amigo próximo. É então, que entra em cena um outro aspecto que, para os humanos, vem junto com a morte: o luto. Esse é sempre um momento de dor e sofrimento, uma vez que

a perda de um ente querido provoca intensa perturbação entre os enlutados, e é certamente por isso que a cultura elaborou rituais cuja função é propiciar expressão do sofrimento, bem como fornecer a ocasião para as manifestações de solidariedade entre os membros de uma comunidade, reforçando o espírito grupal. (OLIVEIRA, 2001, p. 45)

Então, segundo Oliveira (2001), o luto pode ser compreendido como um processo ritualístico constituído culturalmente, para que as pessoas passem pela dor da perda, com a ajuda da comunidade na qual estão inseridas. Assim sendo, pode-se deduzir que a morte é um dado naturalmente posto, porém, o luto é um processo construído pela humanidade para ajudar seus indivíduos a passarem por esse momento de tristeza.

Além da definição sociocultural, também se tem uma visão psicanalítica desse momento nebuloso da vida, para a qual “luto é a reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar, como pátria, liberdade, um ideal etc. ” (FREUD, 2010, p. 128). Dessa forma, o luto é um processo que se passa diante da perda de um objeto de amor, seja ele real ou não. No entanto, o próprio Freud admitia a complexidade de tal acontecimento na vida das pessoas:

Para o leigo, o luto pela perda de algo que amamos ou admiramos parece tão natural, que ele o considera evidente por si mesmo. Para o psicólogo, porém, o luto é um grande enigma, um desses fenômenos que em si não são explicados, mas a que se relacionam outras coisas obscuras. Nós possuímos — assim imaginamos — uma certa

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medida de capacidade amorosa, chamada libido, que no começo do desenvolvimento se dirigia para o próprio Eu. Depois, mas ainda bastante cedo, ela se dirige para os objetos, os quais, por assim dizer, incorporamos em nosso Eu. Se os objetos são destruídos, ou se os perdemos, nossa capacidade amorosa (libido) é novamente liberada; pode então recorrer a outros objetos em substituição, ou regressar temporariamente ao Eu. Mas por que esse desprendimento da libido de seus objetos deve ser um processo tão doloroso, isso não compreendemos, e não conseguimos explicar por nenhuma hipótese até o momento. Só percebemos que a libido se apega a seus objetos e, mesmo quando dispõe de substitutos, não renuncia àqueles perdidos. Isso, portanto, é o luto. (FREUD, 2010, p. 188)

Com essa explicação mais complexa de como o processo de luto é constituído, o autor apresenta a incapacidade humana para lidar com a dor e a perda. Mesmo tendo consciência que o objeto de amor está morto, as pessoas apresentam resistência a abandoná-lo, e agarram-se a ele, por uma razão que nem o autor pode explicar. Porém, para Freud (2010), o estado de luto não deve ser entendido como um estado patológico. Por mais distante da realidade que leve o enlutado, com o tempo, será superado.

A literatura e a psicologia mantêm uma ligação sólida, sendo que a primeira busca na segunda, frequentemente, validação para processos interpretativos e a segunda encontra na primeira inspiração para nomear e explicar estados humanos específicos, tais como: Complexo de Édipo, de Electra, entre outro. Obviamente que a perspectiva psicanalítica é uma das diversas leituras possíveis, uma vez que a obra literária não se atém a um prisma, mas, pelo contrário, está aberta a diversas possibilidades interpretativas. Por outro lado, “é impossível comentar uma obra sem fazer menção de processos psicológicos” (LEITE, 1967, p. 17), pois sempre se está tentando decifrar, compreender e interpretar o texto literário pela compreensão da mente humana.

Com isso, é lícito afirmar que ao ler essa obra de Lya Luft pelo viés psicanalítico, é possível compreender que a dor e o desespero nela expressos, não são uma manifestação individual, mas que todos, ao se depararem com a morte de alguém amado, passam por esse processo que envolve, entre outros aspectos, sofrimento, negação e aceitação. Assim sendo, pode-se buscar imagens recorrentes no processo de luto presentes na obra, para compreender como a autora constrói o seu próprio luto através da escrita, materializando isso nos seus versos.

4. UM OLHAR SOBRE O LADO FATAL

Lya Luft é uma das escritoras mais importantes da atualidade, sua literatura adentra a porta aberta por Clarice Lispector, que buscou desvendar a alma das mulheres como ninguém antes, e “[...] é hoje um ponto de referência de questionamentos da condição feminina”

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(COSTA, 1996, p. 15). Suas obras, em sua maioria, questionam o lugar ocupado pelas mulheres, segundo Costa (1996), partindo de um ponto essencial: a família.

Na obra O lado fatal, a autora revela sua alma como em nenhuma antes, ela expõe aos seus leitores, ao longo dos quarenta poemas que compõem o livro, um lado seu devastado, e dá a noção de uma “terra arrasada” pela dor da perda. Os textos apresentam “[...] forma livre, numa linguagem coloquial próxima à da narrativa [...]” (QUELHAS, 2003, p. 58), o que pode ajudar quem lê a se sentir mais próximo, como se ouvindo de um conhecido ou amigo uma dolorosa confidência.

Já no título o leitor é convidado a pensar sobre a dualidade da existência humana: lado fatal sugere dois lados, talvez o da vida e o da morte, mas qual seria o fatal? Vida ou Morte? É possível afirmar que sua escrita revela a “consciência de existirmos num ‘limiar’, entre o visível e o invisível, entre o sonho e a realidade entre o desejo e a frustração, entre a vida e a morte” (COELHO, 2002, p. 384)

Para a análise a seguir, serão observadas as imagens da morte, da ausência, da memória, do consolo e da aceitação. Essas são recorrentes em diversos poemas ao longo do livro, estando presentes, muitas vezes, mais de uma imagem em um único poema ao mesmo tempo. Porém, é possível perceber que sempre uma delas se sobressai, sendo que em um poema ela trata mais incisivamente sobre a morte, em outro de como a ausência a machuca, ou como as lembranças do amado a ajudarão a superar a perda vivida. Sendo assim, essas imagens estão unidas e relacionadas ao luto vivido, que, por sua vez, é exposto através da escrita.

4.1. A morte

Ao se falar em luto, inerentemente, a morte é lembrada, pois ela é “o fim absoluto de qualquer coisa de positivo: um ser humano, um animal, uma planta, uma amizade, uma aliança, a paz, uma época” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2007, p. 621) e o luto é o processo que se dá após a perda de alguém ( ou algo) querido. É um momento de profunda dor e negação, momento esse em que a autora está passando pela perda do esposo, como é possível perceber no poema a seguir:

Quando ele morreu, não pude acreditar:

andei pelo quarto sozinha repetindo baixo: “Não acredito, não acredito.”

Beijei sua mão ainda morna,

tirei sua pesada aliança de prata com meu nome e botei no meu dedo.

Ficou larga demais, mas mesmo assim eu uso. Muita gente veio e se foi.

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Olharam, me abraçaram, choraram, todos com ar de incrédula orfandade Aquele de quem hoje falam e escrevem (ou aos poucos vão-se esquecendo)

É muito menos do que este, deitado em meu coração, como um menino que apenas dorme. (LUFT, 2011, p. 13)3

Na primeira estrofe do poema é retratado o momento derradeiro no qual a morte de seu esposo se lhe torna um fato, no primeiro e segundo versos, através do encadeamento, que é “uma construção sintática especial que liga um verso ao seguinte” (GOLDSTEIN, 1985, p. 63) para a completude do sentido, no qual o eu lírico expõe sua incredulidade. Aqui ocorre um claro estágio de negação, momento que “[...] funciona como um para-choque depois de notícias inesperadas e chocantes [...]” (KÜBLER-ROSS, 2008, p. 44). Negar a realidade é uma forma de anestesiar a dor de perda, o contato com o parceiro diminui a dor da separação eterna, nesse momento de profunda dor, apega-se ao que pode para lembrar o amado.

A aliança, que “possui sentido de compromisso ou de pacto” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2007, p. 31) , também ajuda a enfrentar o sentimento de vazio deixado pelo amado que partiu. Ao colocar a aliança do marido junto à sua no dedo, talvez ela esteja assumindo o compromisso de continuar sozinha o pacto que os unia. Nesse momento de perda ela está sozinha, muitas pessoas chegaram e partiram, sendo tais sentimentos de rapidez e transitoriedade marcados no segundo verso da segunda estrofe pelos três verbos de ação que estão em uma construção sintática similar, o que dá uma noção de progressão ascendente dos fatos expostos: olharam, abraçaram e choraram. Porém, mesmo que muitos tenham se feito presentes, os seus sentimentos são passageiros, é ela que ali permanece com sua dor e ambas as alianças.

Na terceira estrofe ela não reconhece mais “aquele” de quem as pessoas falam e escrevem, aqui é coordenada uma oração entre parênteses para a apresentação de uma possibilidade: a de ele ser esquecido pelos outros. As palavras não foram capazes de exprimir o que ele foi, e apenas ela, que carrega quem morreu em seu coração, é que se lembrará de quem foi o amado realmente.

A morte também é inspiração para o poema a seguir:

Deus

(ou foi a Morte?)

golpeou com pesada foice o coração daquele que eu amava.

3 Todos os poemas foram retirados da mesma edição da obra, logo, nos próximos será indicado somente o número da página entre parênteses no fim do poema.

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Bem ali onde ele dizia: “Este é o meu lado fatal.”

Não se vê, a ferida, mas rasgou o meu também. Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado, disse bem alto meu nome no quarto de hospital, e partiu.

Quando se foram também os médicos e suas máquinas inúteis,

ficamos sós: a Morte (ou foi Deus?), o meu amado morto e eu.

Enterrei o rosto na curva do seu ombro como sempre fazia,

disse as palavras de amor que costumávamos trocar. O silêncio dele era absoluto: seu coração emudecido e o meu, varados por essa dourada foice.

Por onde vou meu sangue deixa rastro: vai algum dia estancar? (p. 15)

Esse poema é iniciado com uma dúvida do eu lírico sobre quem é responsável pela partida do amado, Deus ou a Morte? Nota-se que a morte é grafada com letra maiúscula, retomando a imagem dela como ceifeira de vidas, e com a foice atravessou o coração dele. Sendo esse o “órgão central do indivíduo” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2007, p. 280), símbolo dos sentimentos e identidade, ao feri-lo também atingiu o seu lado fatal. Na segunda estrofe, para dar a noção de sofrimento, são usadas palavras como “ferida”, que remete à dor e ao sofrimento recentes, de forma que a sua é uma ferida aberta e sensível. Também a palavra “rasgou” expressa novamente toda a violência da perda, que a atingiu de forma contundente e impiedosa.

Já na terceira estrofe, após o derradeiro momento, eles ficam a sós, os três atores dessa cena mórbida: a Morte, o amado e o eu lírico, sendo que no quarto verso se percebe aliteração em “m” (meu amado morto e eu), o que pode conferir uma sonoridade nasal e triste à cena descrita. O eu lírico procura aproximar-se dele através de gestos e palavras que eram rotineiros, mas o silêncio e devastador. Nesse ponto, através de prosopopeia, o coração do amado está emudecido, e ambos varados pela foice da morte. Através da imagem do sangue, que “é universalmente considerado o veículo da vida” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2007, p. 800), é apresentado o sofrimento do eu lírico, como se sua vida se esvaísse com a perda, e isso a acompanha, é constante em sua existência, sendo uma incógnita se um dia tal sofrimento irá estancar.

Após a perda, o eu lírico se vê só, machucada e desamparada. A morte, ladra cruel, arrancou-lhe o ser amado, deixando em seu lugar o vazio da não-existência. Após o doloroso golpe da ceifeira, rápido e implacável, é necessário aprender a suportar a dor lenta e contínua da ausência, que se forma após a partida.

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4.2. A ausência

Ao longo do livro, diversos poemas trazem em si marcas do vazio deixado pela ausência que a morte do esposo provocou na vida da autora, e que se reflete no eu lírico. Tal sentimento se faz sempre presente colocando-a em um limite entre o viver e o não-viver. Como se pode observar neste poema:

Nessa minha peculiar viuvez sem atestados nem documentos

apenas com duas alianças de pesada prata e no peito um coração de chumbo

instalo ao meu redor objetos que foram dele: a escova de dentes junto da minha na pia, o creme de barbear entre os meus perfumes, e com minhas roupas nos cabides

a camisa dele que eu mais gostava. Na gaveta, vidros com remédios

que o preservaram para o nosso breve tempo

(Finjo a minha vida, como ele finge a sua morte.) (p. 17)

Aqui ela inicia falando de sua situação de viúva, sendo o símbolo dessa nova condição as duas alianças que ela carrega consigo. Novamente, ela usa o símbolo da aliança dupla, reafirmando o laço que os liga, como se nem a própria morte tivesse força para romper a ligação entre os dois.

Seu coração é de chumbo, para a química um metal pesado, e que pode simbolizar também o peso e a dureza que ela carrega nesse momento, a morte arrancou dela a suavidade da vida, e o que lhe resta é recordar o amado. Esse recordar é repleto de sutilezas: as escovas de dentes juntas, o perfume e a loção, as roupas nos mesmos cabides. Com essa presença dos objetos de ambos se busca algo que entre eles não é mais possível: a aproximação física, o contato e o toque, pois ele está ausente, e em sua ausência, o mais próximo possível que ela pode chegar é aproximando-se dos objetos que lhes pertenciam.

Ao terminar o poema, ambos os amados estão em planos diferentes, porém ambos fingindo suas existências, pois não podem existir separadamente. Ela não pode realmente viver sem ele, em contrapartida nem ele pode plenamente morrer sem ela. Mesmo separados pela existência (ou pela não-existência), continuam ligados. A aliança permanece, o que não diminui a dor da separação.

Em alguns poemas, as imagens de violência com a conotação de dor são mais explícitas, como se percebe a seguir:

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Porque ele morreu

abriu-se em meu peito esse buraco: através dele arrancaram-me o coração e colocaram um estranho mecanismo cheio de lâminas e pontas

que me recorta e preserva

- pois se de um lado a morte me abraça, do outro a vida me chama. (p. 53)

Aqui ela sente a ausência do marido como um acontecimento brutal e violento, ele lhe foi arrancado e nesse mesmo ato foi extirpado também seu coração. Novamente, o órgão central é retomado, e ao arrancá-lo também foram levados o seu equilíbrio e sua estabilidade. No lugar desse órgão de carne, pulsante e vivo foi posto uma máquina fria, metálica e navalhada que a retalha a cada inspiração de ar, como se cada respiração a ferisse mortalmente.

Porém, já é possível vislumbrar uma réstia de aceitação, pois mesmo que a morte a envolva ainda com seus longos e gelados braços, ela já ouve a voz, talvez frágil, da vida a chamando. Continua no limite que situa toda a obra, mas, nesse momento, percebe que ainda há vida e que ela ainda vive.

No trecho, a seguir é possível perceber como essa ausência a consome, mas a consciência da necessidade de superação já se faz presente:

Aquele que eu amei,

morto agora e para sempre vivo, há de ter ainda o intenso olhar que me entendia,

as curvas da boca que chamou meu nome, as belas mãos que ardiam nas minhas. Que ele me ajude,

silencioso que está, a suportar a sobrevida e aceitar esse vazio que me devora. (p. 51)

O eu lírico ressalta que a morte do amado é momentânea, mas seu legado será eterno. Ao recordar o olhar, a boca e as mãos, novamente busca uma aproximação do ente perdido, e pede sua ajuda para suportar o vazio da ausência que a corrói, sentimento esse reforçado pelas palavras “ardiam”, no sexto verso, e “devora”, no décimo primeiro verso. A aceitação, parece, só será possível pela evocação de memória do amado, que, apesar de não estar mais presente, é quem lhe dá forçar para seguir vivendo. Ou sobrevivendo.

Dessa forma, a ausência, ferida constantemente aberta deixada pela morte, e que sangra ao mais leve contato, só encontra alento nas lembranças dos momentos vividos juntos, nos segredos confidenciados e nos gestos de carinho trocados. A memória do amado é o bálsamo que traz alívio e conforto ao sofrimento constante provocado pela ausência.

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4.3. Memória

Nesta obra, a autora confere um caráter narrativo a seus poemas, e isso fica mais evidente quando o eu lírico relembra quem morreu, seus hábitos e manias. Veja a seguir:

Ele era também um homem paciente: quando estávamos juntos, chorei muito com saudade dos filhos, da casa, da cidade onde vivera quase toda a vida.

Ele me ouvia, consolava. Hoje,

perambulo entre uma cidade e outra em busca do que não terei.

Minha vida foi virada do avesso: tenho que procurar outra vez algum sentido.

Cada palavra dele, cada gesto, cada uma de suas brincadeiras

ou de nossos comuns deslumbramentos terá de ser uma peça desse enigma que começo a tentar resolver. (p.69)

Nos quatro primeiros versos da primeira estrofe, percebe-se uma narração que o eu lírico faz de momentos em comum com o marido, recordando características e gestos nobres (ser paciente, saber ouvir e consolar) que o elevam em sua memória. Porém, no quinto verso, a palavra “hoje” fica sozinha, estanque, seguida de uma vírgula, o que força o leitor a pronuncia-la e parar como que diante de um limite, uma divisória, o que vem depois pode ser incerto. E realmente o é, pois hoje o eu lírico “perambula” e busca o que sabe que não pode ter. Mas o que seria? O amado? Sua vida antes dele morrer? Ela mesma? Provavelmente a resposta traz essas três possibilidades fundidas um uma só: um novo sentido.

Na última estrofe, o eu lírico apresenta como a memória do amado (“cada palavra, cada gestos, cada uma de suas brincadeiras”) será essencial para ela retomar a vida. A repetição da palavra “cada”, aumenta a noção de importância das lembranças dele e a urgência de se apegar a elas, pois, sem ele, a vida se apresenta como um enigma e ser solucionado, e é a memória dele a chave para desvendá-lo.

No poema a seguir, novamente, busca-se na lembrança forças para a superação:

Ele tinha gestos inesperados: na mesa do jantar, comendo quieto, de repente dizia:

“Tenho uma pena enorme de você.” Ou então:

“Você é a pessoa mais doida que conheço.” E pegava minha mão sobre a toalha com aquela doçura tão dele.

(15)

Sem saber que logo morreria,

há de ter-me preparado para esta solidão. Por isso preciso aprendê-la,

e dentro dela

reinventar a vida. (p. 75)

Ao recordar os gestos dele há aproximação, como se se apegando à lembrança, ele estivesse mais presente. Sua memória é tão viva que reproduz nos poemas suas falas afetuosas, revivendo os momentos a dois pelas palavras carinhosas dirigidas a ela. Os gestos recordados, o toque das mãos sobre a toalha, devem ser uma preparação para sua partida que, mesmo sem ele saber, se aproximava. É pelas memórias que seu sofrimento é aplacado e encontra o consolo para a perda, bem como forças para se reinventar e viver.

4.4. O consolo

Dentro do processo de luto, após o impacto inicial causado pela dor da perda de quem morreu, faz-se necessário aceitar e procurar consolo para superar esse momento de sofrimento. Esse é um momento no qual o eu lírico compreende as mudanças causadas pela morte do amado, como pode-se perceber no poema a seguir:

Fazemos muita retórica sobre Deus, A morte e as eternidades.

Hoje me escondo sob as aparências:

A roupa está correta, o cabelo sem desalinho, Nunca fui de grandes luxos.

Todo mundo acha que estou indo muito bem, Tendo em vista a brutalidade de tudo. Mas eu sou antes como um desses bichos A quem arrancam as entranhas e meteram Estopa de ilusão corpo adentro

Para que pareçam vivos e até alertas.

(Mas sem acreditar em retórica nenhuma) (p. 73)

É possível perceber como a dor sentida começa a mudar, não é mais avassaladora, passou de dilacerante a quase aceitável. O eu lírico ainda percebe Deus com certa desconfiança, e ao afirmar que muita retórica é feita sobre Ele, percebe que ninguém realmente compreende Sua essência, a morte ou o que vem depois dela. Dessa forma, a vida segue, como a ser uma cópia pálida, apenas aparente, do que fora. Tudo está correto e organizado “tendo em vista a brutalidade de tudo”. E, com esse verso, é retomado o sentimento de violência com que a morte atingiu a ambos.

Na segunda estrofe, o eu lírico sente-se como um bicho empalhado, e novamente são apresentadas palavras que denotam agressividade, pois lhe “arrancaram as entranhas e meteram

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estopa de ilusão corpo a dentro”. Dessa forma, o ato de “arrancar” e de “meter” demonstra o sofrimento vivido, isso marcado pelo som pungente da aliteração em “T”, expondo novamente a dor pela qual passou, mas que da qual começa e se recuperar, mesmo sob a fachada de aparente normalidade, não acreditando mais em retóricas, em argumentos ou em discursos prontos.

Sendo assim, o eu lírico começa a se perceber novamente como alguém que ainda vive, alguém que, apesar de tudo, precisa recuperar sua vida. Não é mais quem era, e, talvez, não seja mais tão viva e alegre, porém, esse é o primeiro passo para aceitar e deixar quem partiu realmente partir. E com essa aceitação também vem o reconhecimento do que foi construído por ambos, como no poema a seguir:

Os deuses sim, nos ajudaram:

construímos, ainda que esfolando o coração e as mãos,

a sua utopia e a minha.

A mesma morte que amputou sua vida e minha alegria de existir,

deve estar lhe revelando os segredos que tanto nos fascinavam.

Foi breve o tempo, mas foi plenitude. Por isso, também a mim,

“Deus não me deve nada.” (p. 63)

Percebe-se, neste breve poema, que a dor da perda começa a arrefecer, e com isso o eu lírico reconhece que ambos, apesar das dificuldades que os machucaram tanto o coração, que pode ser entendido como os sentimentos, quanto machucaram às mãos, entendidas como sofrimento físico; construíram sua utopia. A morte também ganha novos contornos, já não é mais vista somente como destruidora e ladra, mas também como reveladora e fonte de conhecimentos e segredos. O tempo juntos, não mais lembrado com dor, mas com amorosa saudade, apesar de efêmero foi perfeito e, dessa forma, acontece a reconciliação com Deus e, principalmente, consigo mesma. E isso a deixa pronta para aceitar a partida do amado e recomeçar sua própria vida.

4.5. A aceitação

Em alguns poemas, mais ao fim do livro, tem-se a recorrência da imagem de aceitação da morte do outro, não como um esquecimento, mas como parte necessária para a continuação da vida, a lembrança permanece viva, no entanto a dor é atenuada. Esse sentimento de aceitação é percebido mais claramente no último poema do livro, transcrito a seguir:

Tu, que tanto ensinaste

de mim a mim mesma, e do mundo a quem o conhecia pouco:

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quero enxergar pelos teus olhos, e amar através do teu amor as coisas que me restaram. Tu, vivo em mim para sempre, apesar da ruga a mais

e o olhar mais triste, devo-te isto:

voltar para a minha vida como agora estás, inteiramente, Na tua morte. (p. 91)

Na primeira estrofe o eu lírico recorda o quando o amado ajudou no seu processo de autoconhecimento e de conhecer o mundo, conhecimentos essenciais para passar por esse momento de sua vida, tornando possível perceber os fatos através de uma perspectiva menos dolorosa. Aqui a memória dele não é carregada de sofrimento, mas de ternura e gratidão por ter lhe descortinado tais conhecimentos. Através de encadeamento, marcado por dois pontos, o sentido da primeira estrofe é completado na segunda, e o eu lírico afirma que “quando se desfizer a noite dessa perda” quer enxergar pelos olhos do amado e amar pelo seu amor. A perda do amado é como uma noite que se abateu sobre ela, adentrando no “indeterminado, onde se misturam pesadelos e monstros, as ideias negras” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2007, p. 640), e é dessa dimensão sombria que ela espera sair enxergando o mundo como o amado enxergava e amando como ele amava.

Na terceira e última estrofe, o eu lírico compreende, ou aceita, que a morte do corpo não é a aniquilação total, permanecerá seu legado e sua lembrança para sempre vivo nela. Aqui a aceitação se completa. Nos poemas anteriores a morte era tratada com dor, incompreensão e até revolta, nesse momento, porém, não. Ela é aceita com resignação, a dor deixa de ser aguda e lancinante para tornar-se crônica e suportável. Sim, dor e sofrimento a transformaram, porém se faz necessário voltar à vida de forma completa, assim como ele está na morte.

Com a aceitação se encerra um ciclo que teve início na morte, perpassou o sentimento de ausência, o apego à memória para suprir a falta de quem morreu e a busca pelo consolo. Essas imagens são momentos vividos no luto, que na obra não é linear, mas, pelo contrário, é um labirinto do qual, ao aceitar a morte de quem ama, o eu lírico encontra a saída. Obviamente que a ferida não está bem cicatrizada, e pode ao mais leve toque, sangrar. Mas há a percepção de que é necessário juntar o que for possível da antiga vida e reconstruir uma nova.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O núcleo familiar sempre foi o mote da autora e justamente a perda do marido que a impulsionou à escrita do livro no qual mais dela se apresenta, a sua dor e a do eu lírico se

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misturam e chegam ao leitor amalgamadas através de poemas que narram o sofrimento, a ausência do amado, suas lembranças, a superação e aceitação perante a morte. E é pela literatura, através dos signos linguístico e literário, que a autora também vive o luto dessa perda, de forma que sua escrita transcende o pessoal e individual e se torna sentimentos dos leitores que, através das páginas dos livros, também experimentam sua perda e que talvez já tiveram “a foice da morte” reluzindo em suas vidas.

Dessa forma, a experiência vivida por Lya Luft transcende os limites da experiência pessoal e da biografia, chegando ao leitor a significação de sua experiência, como define Ricoeur (1976). E é essa capacidade de ir além do simples testemunho que firma a obra como literária, uma vez que a experiência vivida pela autora é capaz, através dos versos, de provocar empatia e autoconhecimento, aproximando quem lê da força transformadora da literatura.

O leitor, como uma das arestas do triângulo interpretativo, pode chegar a essas possibilidades de significações através de processos de interpretação que, juntamente com as intenções do texto e do autor, é capaz proporcionar um oceano de possibilidades de significação. Porém, ao se propor a interpretar o texto literário, é adequado o leitor estar ciente de que, apesar de inúmeras, as expectativas interpretativas não são infinitas, e apenas sobreviverão aquelas que resistirem ao confronto com o próprio texto.

Assim sendo, tendo em vista os limites da interpretação, é possível perceber no livro O

lado fatal uma possibilidade de compreensão do luto, pela perspectiva psicanalítica, na qual ele

é um estágio com etapas que vão da negação à aceitação e, pelas imagens apresentadas nos poemas, houve a aceitação da perda do ser amado, sendo esse o primeiro passo para o longo caminho da superação. No fim, a morte não é mais algo maligno e destruidor, mas também pode ser fonte de conhecimento, reinvenção e transformação.

REFERÊNCIAS

BARROCA, Iara Christina Silva. Figuras e Ambiguidades do Trágico: experiências

constituintes do estilo na obra de Lya Luft. Jundiaí : Paco Editorial, 2014.

CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. 3ª ed. São Paulo : Duas Cidades, 1995.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figura, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.

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COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico de escritoras brasileiras: 1771-2001. São Paulo : Escrituras Editora, 2002.

COSTA, Maria Osana de Medeiros. A mulher, o lúdico e o grotesco em Lya Luft. São Paulo : Annablume, 1996.

ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo : Martins Fontes, 1993.

FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à metapsicologia. 7ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008

GOLDSTEIN. Norma. Versos, sons, ritmos. São Paulo : Editora Ática, 1985.

KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer: o que os doentes terminais têm a ensinar a médicos, enfermeiras, religiosos e aos seus próprios parentes. (Trad.) Paulo Menezes, 9ª ed. São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2008.

LEITE, Dante Moreira. Psicologia e Literatura. São Paulo : Companhia Editora Nacional, 1967. LUFT, Lya. O Lado Fatal. Rio de Janeiro : Recrod, 2001.

OLIVEIRA, Tereza Marques de. O psicanalista diante da morte: intervenção psicoterapêutica na preparação para a morte e elaboração do luto. São Paulo : Editora Mackenzie, 2001.

PAZ, Octavio. Signos em Rotação. São Paulo : Perspectiva, 2012. ___________. O arco e a lira. São Paulo : Cosac Naify, 2012.

QUELHAS, Iza. O que fala a concha? Corpo, Casa, Escrita – O Lado Fatal, de Lya Luft. Letras

& Letras, Uberlândia, v. 19, n. 2, p. 57-65, jul-dez 2003. Disponível em:

<http://www.seer.ufu.br/index.php/letraseletras/article/view/25154> Acesso em: 26/09/2019 RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação. Rio de Janeiro : Edições 70, 1976 .

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