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Apresente conjuntura, marcada como tem sido por

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Academic year: 2021

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presente conjuntura, marcada como tem sido por um suceder de crises políticas emaranhadas em outras de natureza econômica e social, tem levado

oposto, de tonalidades vivas, do que tem sido conquistado em nossa experiência democrática. Trata-se, sim, de dar a devida ênfase aos aspectos tanto negativos como positivos à luz dos constrangimentos antepostos ao processo de libera-lização política. Ou seja, procura-se valer do tão aludido conceito de path dependence para salientar a noção de que as opções políticas postas em uma determinada conjuntura resultaram de decisões precedentes –, escolhas feitas pelos atores relevantes –, as quais influenciaram o curso do pro-cesso político, a ponto de limitar o leque de opções numa conjuntura futura, e portanto os cursos de ação possíveis. Sob tal enfoque, a discussão sobre o cenário democrático atual requer, primeiramente, uma referência ao ponto de partida da democratização – isto é, o regime militar-autoritário que vigorou de 1964 a 1985 – bem como à dinâmica política que orientou a liberalização deste regime e sua transição para a democracia. Fazer uma retrospectiva deste processo será o objetivo deste artigo, que não tem qualquer pretensão de ofe-recer uma interpretação original sobre esta temática. A in-tenção é apenas de trazer ao presente um pouco de nosso passado recente, que tem sido negligenciado na maioria das análises que dão suporte ao debate político atual.

GOVERNO MILITAR-AUTORITÁRIO

Como já foi amplamente discutido na literatura, o caso brasileiro, comparado a outras experiências autoritárias

A DEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRA

um balanço do processo político desde a transição

MARIA D’ALVA G. KINZO

Professora do Departamento de Ciência Política da USP

Resumo: O objetivo do artigo é discutir a presente experiência democrática através de uma análise do caminho percorrido pelo processo de democratização brasileiro. A visão bastante crítica sobre tal experiência, presente no debate político atual, tem negligenciado o impacto que constrangimentos de várias naturezas tiveram sobre o processo de democratização. Uma análise retrospectiva que recupere as marchas e contramarchas da longa transição democrática ajuda a compreender alguns dos dilemas da atual conjuntura.

Palavras-chave: transição democrática; democratização brasileira; partidos políticos.

muitos à percepção de que, se não chegamos a andar para trás, avançamos muito pouco na direção do aprimoramento democrático do sistema político brasileiro. A ineficácia dos governos em tratar de solucionar os problemas econômicos e sociais que afetam a porção majoritária da população bra-sileira, a onda de denúncias de práticas de corrupção em ór-gãos públicos, envolvendo lideranças políticas importantes, e a sensação de insegurança resultante não apenas da violên-cia urbana, mas também de instabilidade econômica de vá-rias naturezas, são elementos que se combinam para formar o pessimismo geral que se tem alastrado, em relação aos fru-tos desses anos de democracia no país. Para uma população que, em sua maioria, tem mostrado pouco apego aos valores democráticos – como várias pesquisas de opinião têm cons-tatado –, esses fatores aludidos acabam ocultando os avan-ços democráticos conquistados nos últimos 16 anos. Por excesso de foco no presente, esquece-se do passado recente, ou trata-se de vê-lo desprovido de seus espinhos, e julga-se o presente sob a perspectiva de um modelo idealizado do sistema político. É em função desse desencanto frente ao quadro político atual que parece oportuno rememorar o ca-minho percorrido pela democratização brasileira para, a partir daí, avaliar o presente regime democrático. Não se trata aqui de contrastar o clima geral de pessimismo com um cenário

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vivenciadas na mesma época em outros países da Améri-ca Latina, assentou-se sob alicerces singulares que mere-cem referência quando tratamos de analisar a influência de fatores de longo prazo no processo de democratiza-ção.1 Estas bases são de duas naturezas: uma tem a ver com as instituições políticas sob as quais o governo mili-tar operava; e a outra, no domínio econômico, refere-se ao modelo de desenvolvimento seguido e suas conseqüên-cias. No âmbito da política, há que se lembrar a emergên-cia de uma situação bastante paradoxal. Por um lado, tra-tava-se de um regime tipicamente militar no sentido de que as Forças Armadas, enquanto instituição, passavam (após o golpe civil-militar que depôs João Goulart em 1964) a dirigir o país. Tal situação necessariamente leva-ria a que a instituição militar passasse a ser também uma arena de disputa pelo poder político, o que teria conse-qüências não apenas na coesão interna da organização, mas também em toda a dinâmica política. Conflitos entre ofi-ciais moderados e radicais permearam os 21 anos de go-verno militar gerando freqüente instabilidade política. Por outro lado, tratava-se de uma situação que manteve em funcionamento os mecanismos e os procedimentos de uma democracia representativa: o Congresso e o Judiciário continuaram em funcionamento, a despeito de terem seus poderes drasticamente reduzidos e de vários de seus mem-bros serem expurgados; manteve-se a alternância na pre-sidência da República; permaneceram as eleições perió-dicas, embora mantidas sob controles de várias naturezas; e os partidos políticos continuaram em funcionamento, apesar de a atividade partidária ser drasticamente limita-da. Em síntese, era um arranjo que combinava traços ca-racterísticos de um regime militar autoritário com outros típicos de um regime democrático. Este arranjo peculiar foi o responsável, em grande medida, por sucessivas cri-ses políticas que acompanharam o regime, fazendo-o se caracterizar por fases alternadas de repressão e liberali-zação permeadas por crises políticas resultantes de con-flitos dentro do exército e entre estes grupos e a oposição democrática (Kinzo, 1988). A instabilidade que acompa-nhou o governo dos militares no Brasil, indicativo da difi-culdade de institucionalização do regime, levou Linz (1973) a caracterizar o autoritarismo brasileiro como uma situação em vez de um regime propriamente dito. Regime ou situa-ção, o fato é que o estabelecimento desse arranjo político híbrido teve grande impacto na maneira como se deu a sição brasileira. Porém, antes de analisar o processo de tran-sição, outra característica no modelo brasileiro, desta vez no âmbito econômico, deve ser apontada.

Em contraste com o que aconteceu, por exemplo, no Chile, onde o governo militar provocou uma mudança sig-nificativa no modelo econômico, no Brasil os militares não inovaram em matéria de política econômica. Com exce-ção dos três primeiros anos de governo militar, quando todos os esforços concentraram-se no programa de esta-bilização para conter as altas taxas de inflação, a política econômica, durante o período militar, seguiu basicamen-te o mesmo modelo vigenbasicamen-te desde o governo Vargas. O chamado “milagre brasileiro” do período 1967-73 teve como sustentáculo, por um lado, os resultados obtidos pela política de estabilização de 1964-67 e, por outro, uma política de desenvolvimento que consolidou e intensifi-cou o modelo de substituição de importações que reser-vava ao Estado um papel empreendedor ainda mais im-portante. Por volta de 1974, a despeito dos sinais de que o milagre havia se desfeito – manifestos pelo impacto que a crise mundial do petróleo exerceu no Brasil –, o mesmo caminho continuou a ser trilhado. Uma ambiciosa políti-ca de substituição de importações de bens de políti-capital e matérias-primas, sustentada por investimentos do setor pú-blico e por empréstimos estrangeiros, foi a estratégia se-guida (Cardoso, 1983). Certamente, esta estratégia teve êxito ao garantir altas taxas de investimento e ao fazer da experiência brasileira de regime militar-autoritário um caso de desempenho econômico bem-sucedido. Porém, foi tam-bém responsável por sérios desequilíbrios, e os proble-mas econômicos que haviam provocado a intervenção militar em 1964 – inflação alta e estagnação econômica – ressurgiram com ainda mais intensidade, permanecendo como pano de fundo do processo de transição política.2 A LONGA TRANSIÇÃO

Não foi apenas o regime militar que, no Brasil, teve traços peculiares. Também singular foi seu processo de democratização.3 Tratou-se do caso mais longo de transi-ção democrática: um processo lento e gradual de liberali-zação, em que se transcorreram 11 anos para que os civis retomassem o poder e outros cinco anos para que o presi-dente da República fosse eleito por voto popular. Para propósito analítico, pode-se dividir este processo em três fases. A primeira, de 1974 a 1982, é o período em que a dinâmica política da transição estava sob total controle dos militares, mais parecendo uma tentativa de reforma do regime do que os primeiros passos de uma transição democrática de fato. A segunda fase, de 1982 a 1985, é também caracterizada pelo domínio militar, mas outros

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atores – civis – passam a ter um papel importante no pro-cesso político. Na terceira fase, de 1985 a 1989, os mili-tares deixam de deter o papel principal (apesar de mante-rem algum poder de veto), sendo substituídos pelos políticos civis, havendo também a participação dos seto-res organizados da sociedade civil. Como estas fases pos-suem diferentes componentes e dinâmicas resultantes do jogo dos principais atores políticos, uma análise com al-gum detalhe faz-se necessária.

Primeira Fase: 1974 a 1982

A ascensão do general Geisel na presidência da Repú-blica, em 1974, e o anúncio de seu projeto de distensão “gradual e segura” marcaram o início de um novo perío-do perío-do governo militar-autoritário, uma fase que passaria a ser o ponto de partida do processo de democratização no Brasil. A revogação parcial da censura à imprensa e os sinais, por parte do governo, de valorização das eleições legislativas daquele ano (1974) indicavam que as decla-rações do novo presidente eram algo mais do que promes-sas de retorno à democracia tão freqüentemente aludidas por seus antecessores na presidência.4 O modo como este projeto de liberalização foi conduzido e a dinâmica do processo político que acabou por levar à democracia fo-ram, no entanto, algo extremamente complicado. Esta fase da transição foi totalmente conduzida pelo governo militar, que definiu tanto seu ritmo como seu escopo. Entretanto, vários fatores influenciaram o curso deste processo.

O primeiro fator foram as eleições. Os sinais de libera-lização que permitiram a realibera-lização das eleições de 1974 em condições mais livres resultaram num surpreendente desempenho eleitoral do partido de oposição (MDB). Com isso, ficava evidente que, a despeito dos excelentes resul-tados econômicos conseguidos sob regime militar, este carecia de apoio popular. Também ficava claro que o ino-fensivo MDB, criado para ser parceiro da Arena no bi-partidarismo de fachada instituído pelo regime, havia se tornado um instrumento efetivo de oposição democráti-ca, a ser utilizado não apenas na arena eleitoral, mas tam-bém no processo político mais amplo, de modo que, se a política de liberalização deveria ser mantida sob controle do governo, esta tinha que neutralizar tanto as eleições como o MDB (Lamounier, 1988 e Kinzo, 1988).

O segundo fator era a instituição militar e seu conflito interno. Na realidade, uma das principais razões que ex-plicam a iniciativa do governo de iniciar a liberalização é a necessidade de os militares se retirarem da vida política

a fim de preservar a própria instituição.5 Porém, a inicia-tiva de Geisel intensificaria o conflito dentro das Forças Armadas, tornando mais agressiva a reação da chamada linha-dura contra a abertura do regime. A intensificação na repressão policial, empreendida pela linha-dura no comando militar de São Paulo em 1975-76, foi claramen-te uma reação à política de liberalização de Geisel. Trata-va-se, portanto, de neutralizar as pressões internas dos militares contra a distensão, de modo que eles não minas-sem o comando político de Geisel e tampouco interferis-sem, mais tarde, na questão crucial que seria a sucessão presidencial.

Geisel foi bem-sucedido ao lidar com ambos os pro-blemas, jogando nas duas direções ao mesmo tempo: de um lado, puniu com a cassação do mandato alguns dos parlamentares de postura oposicionista mais aguerrida, alterou leis eleitorais e procedimentos legislativos para controlar a oposição, apaziguando assim os militares da linha-dura, ao mesmo tempo em que reafirmava seu con-trole sobre a oposição democrática; de outro lado, reagiu à radicalização dos militares da linha dura, demitindo o comandante das Forças Armadas de São Paulo após a morte por tortura de um jornalista e de um trabalhador metalúrgico, nas dependências dos órgãos de repressão. Reafirmando assim seu comando absoluto sobre o processo político, Geisel conseguiu não apenas dar continuidade à política de distensão, como também controlar o processo sucessório.

Deste modo, ao final de 1978, reformas políticas de cunho liberalizante foram implementadas de acordo com o caráter gradual e seguro da política de distensão. Um novo presidente, general João Figueiredo, encarregado de dar continuidade à transição política nos seis anos seguin-tes, havia sido eleito estritamente de acordo com a deter-minação de Geisel de impor o nome por ele escolhido.

Se Geisel foi extremamente habilidoso ao tratar com po-tenciais opositores a seus objetivos políticos, não teve a mesma habilidade para lidar com um terceiro fator que in-fluenciou o processo de liberalização política: o problema econômico. Várias eram as evidências de que o “milagre eco-nômico” brasileiro estava se esgotando.6 O problema econô-mico era certamente um elemento crucial a ser levado em conta se os militares quisessem retornar aos quartéis com segurança. Ao que parece, considerações de natureza políti-ca foram fundamentais no modo como Geisel decidiu lidar com a primeira crise mundial de petróleo e suas conseqüên-cias recessivas. Em vez de optar pela contração econômica, como aconteceu na maioria dos países afetados pela crise, o

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governo Geisel implementou uma política de expansão eco-nômica através do aprofundamento do modelo de substitui-ção de importações, em detrimento dos conseqüentes desequilíbrios internos e externos. Assim, um ambicioso pro-grama de substituição de importações nos setores de maté-ria-prima e bens de capital foi implantado, envolvendo in-vestimento estatal significativo nos setores de energia e infra-estrutura às custas de grandes empréstimos estrangei-ros. O curso desta política não foi revertida durante os pri-meiros anos da administração Figueiredo, o que significava que, enquanto a economia expandia, as contas externas e a inflação continuavam a crescer. O agravamento dos proble-mas externos obrigou a equipe econômica de Figueiredo a mudar radicalmente a política econômica. Uma tentativa de reajuste econômico foi pela primeira vez implementada, ge-rando uma queda brusca na atividade econômica e aumen-tando o desemprego. Outro choque externo em 1982 agra-vou ainda mais o cenário econômico extremamente vulnerável às mudanças no ambiente externo (Lamounier e Moura, 1986). A partir daí a crise econômica acompanharia passo a passo a transição política e os governos democráticos que lhe seguiram.

Em suma, os três fatores apontados – o processo elei-toral, o conflito interno dentro das forças armadas e a emergência de sérios problemas econômicos – concorre-ram para fortalecer aquele padrão controlado e gradual que caracterizou a transição democrática no Brasil. Ini-ciada em 1974, a liberalização somente teve um avanço significativo em 1978, quando finalmente foi revogado o draconiano Ato Institucional n.5. Em 1979, já na admi-nistração Figueiredo, o Congresso aprovou a anistia, que, embora limitada, permitiu a reintegração à vida pública de políticos exilados e de ativistas de esquerda punidos pelo regime militar. Uma nova lei partidária pôs fim ao bipartidarismo compulsório criado em 1966, levando à criação de novos partidos.

A reforma partidária representou importante avanço no processo de liberalização, mas foi também uma estratégia do governo para dividir a oposição e assim manter a tran-sição sob controle. Entre os fatores a serem controlados estava a sucessão presidencial de 1985, que deveria pos-sibilitar o restabelecimento do governo civil. Tratava-se de garantir não apenas que o próximo presidente fosse eleito via Colégio Eleitoral (e não por sufrágio universal), mas também a maioria governista no Colégio Eleitoral. Assim, alteraram-se as regras eleitorais e mesmo a com-posição do Colégio Eleitoral, de forma a reduzir as chan-ces de a oposição obter a maioria.

Segunda Fase: 1982 a 1985

Apesar dos percalços, o processo de liberalização teve continuidade, iniciando uma nova fase com as eleições de 1982. Novos partidos políticos haviam sido criados e par-ticipado das eleições. Políticos que nos anos 60 tinham perdido seus direitos voltaram à vida pública e, pela pri-meira vez desde 1965, governadores estaduais foram elei-tos pelo voto popular. Naquelas eleições, o governo mili-tar teve importantes ganhos, assegurando sua maioria no Colégio Eleitoral que elegeria o próximo presidente. Po-rém, também a oposição obteve avanços significativos, par-ticularmente o PMDB, que elegeu os governadores e se-nadores de nove Estados e conquistou 200 cadeiras na Câmara dos Deputados. Assim, apesar de os militares continuarem em sua posição inquestionável de jogador principal, outros atores passariam, a partir de 1982, a in-fluenciar o jogo, atrapalhando os planos do governo de manter o controle total sobre o processo político.

O episódio mais importante foi a sucessão presiden-cial, a qual deve ser analisada como uma peça em dois atos. O primeiro seria a tentativa do PMDB, em 1984, de mudar as regras das eleições presidenciais, propondo uma emenda constitucional que restabelecesse o voto direto. Com o objetivo de obter apoio popular para a aprovação da emenda, os partidos de oposição partiram para a mobi-lização da população. O resultado da campanha das “Di-retas Já” foi uma impressionante mobilização popular com milhões de pessoas participando de comícios em todo o país. Observando-se aquela mobilização, a impressão era de que a sociedade civil – que havia mostrado sua exis-tência nos movimentos sociais surgidos em 1978 – tinha decididamente despertado e, finalmente, alteraria o curso da liberalização. Essa foi, na verdade, a percepção de al-guns setores da oposição democrática, mas a emenda foi derrotada no Congresso, uma vez que a pressão popular não foi eficaz o suficiente para fazer frente a todas as manobras usadas pelo governo para evitar sua aprovação. O desfecho deste episódio colocou mais uma vez em evi-dência que os militares estavam determinados a manter, a qualquer custo, o controle sobre o processo sucessório pre-sidencial. Ficou também evidente que, apesar do apoio da mobilização popular, a oposição era numericamente muito fraca no Congresso para ser capaz de desafiar o regime se fosse para continuar jogando dentro das regras estabeleci-das. À oposição restava duas saídas: buscar simpatizantes dissidentes dentro do governo; ou romper as regras do jogo através da mobilização da sociedade civil. A decisão de qual

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direção seguir dependia da posição e força relativa de cada um dos diferentes grupos da oposição, ou seja, o PMDB com suas divisões internas, o PT, o PDT e o PTB. Do PTB se esperava pouco de oposicionismo, dado que havia votado contra a emenda das diretas em troca de cargos no governo. O PDT, por sua vez, era imprevisível, uma vez que seu líder, Leonel Brizola, chegara a propor a prorrogação do mandato presidencial de Figueiredo em troca de eleições diretas para seu sucessor. Deste modo, restaram apenas dois atores prin-cipais: a favor da primeira alternativa estava o PMDB, mais especificamente sua ala moderada, que era a mais numerosa e liderava o partido; a favor da segunda estava o PT, seguido por um pequeno grupo de parlamentares do PMDB que man-tinham relações mais próximas com os movimentos sociais. A decisão do PMDB de optar pela primeira alternativa – isto é, tentar influenciar o processo sucessório jogando conforme as regras estabelecidas – foi o segundo ato da sucessão presidencial. Sem dúvida era o produto da posi-ção moderada dos líderes do partido, para quem uma so-lução negociada evitaria a imprevisibilidade e os riscos de uma mobilização popular e, conseqüentemente, a rea-ção por parte dos militares da linha-dura contra qualquer tentativa de mudança radical.7 De qualquer modo, os lí-deres do PMDB estavam dispostos a participar do pro-cesso sucessório mesmo que em condições limitadas. De fato, enquanto o PMDB trabalhava pela campanha pró-diretas, a ala moderada do partido já articulava uma es-tratégia alternativa caso a emenda não passasse no Con-gresso. A proposta era a candidatura Tancredo Neves para concorrer pela oposição na eleição pelo Colégio Eleito-ral, alternativa que ganhou força tão logo foi derrotada a Emenda das Diretas. Entretanto, viabilizar a candidatura de Tancredo Neves não era uma tarefa simples, uma vez que, para seu êxito, era necessário conseguir o apoio do outro lado, ou seja, de parlamentares do partido do go-verno. A oportunidade surgiu quando alguns políticos do PDS recusaram-se a apoiar o candidato do governo no-meado na convenção do partido. Negociações entre o PMDB e dissidentes do partido do governo (que depois criariam o PFL) levaram à formação da Aliança Demo-crática, cujo objetivo era juntar forças para derrotar o candidato do governo. Em troca do apoio dos dissidentes à candidatura Tancredo Neves, o senador José Sarney foi escolhido para ser candidato a vice-presidente na chapa da oposição.

A estratégia adotada pela oposição moderada certa-mente logrou êxito, pois o governo militar foi impossi-bilitado de impor seu candidato, mas teve duas

conse-qüências importantes: possibilitou que os dissidentes do regime autoritário desempenhassem um papel impor-tante no novo regime – na verdade passariam a ser par-ceiros de todos os governos que se seguiram; e abriu um amplo espaço para as críticas dos setores mais ra-dicais da oposição, mais especificamente o PT, contrá-rios à participação no processo indireto da eleição pre-sidencial. Sob o argumento de que o Colégio Eleitoral era ilegítimo e não representativo, os parlamentares do PT foram orientados a não participar da escolha do su-cessor de Figueiredo. Como o número de votos do PT no Colégio Eleitoral não era decisivo, certamente era mais lucrativo posicionar-se contra a transição nego-ciada, diferenciando-se assim da oposição moderada e afirmando sua própria identidade mais à esquerda no sistema político que emergia. O problema, entretanto, estava no fato de que, ao denunciar as limitações da “transição negociada”, esta estratégia contribuiu para que a nova ordem instaurada em 1985 desse seus pri-meiros passos com sua legitimidade já questionada. Terceira Fase: 1985 a 1990

A segunda fase da transição findou-se com a eleição de Tancredo Neves e José Sarney, em 15 de janeiro de 1985. Porém, a inauguração de seu governo – que deu início à terceira fase da transição – sofreria ainda o efeito do acaso: a doença repentina de Tancredo, seguida de sua morte, levando à posse do vice, José Sarney, na presidên-cia da República. Como conseqüênpresidên-cia, além de a Nova República – como passou a ser chamado o restabele-cimento do governo civil – ter resultado de um acordo entre setores moderados da oposição e dissidentes do governo, sem o respaldo do voto popular, com a morte de Tancredo um outro complicador iria se antepor à democratização. Significava que a Nova República nascia sob circunstân-cias bastante frágeis, especialmente para um presidente que teria de enfrentar uma crise econômica e social que se avolumava. Assim, Sarney tomou posse sem um plano de governo propriamente dito e com um sério déficit em legitimidade: uma figura política marcada por anos de vín-culos com os militares, que assumia o poder sem o respal-do das urnas e que não era das fileiras respal-do partirespal-do que es-perava desta vez governar – o PMDB.8 Estes fatores dificultaram sua administração, que ficou vulnerável a todos os tipos de pressão – desde as forças políticas hete-rogêneas que compunham seu governo (cada uma tentan-do aumentar sua influência) até os partitentan-dos de oposição e

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os setores organizados da sociedade civil demandando pronta democratização em todos os sentidos do termo.

A despeito destes problemas, a democratização brasi-leira seguiu seu curso neste novo contexto político. No que tange à questão social e econômica, o caminho per-corrido foi de pedras e espinhos no período que se seguiu: entre 1986 e 1994 o país mudou quatro vezes de moeda e teve seis experimentos em estabilização econômica, ape-nas o último – o Plano Real – tendo sido bem-sucedido. A sucessão de fracassos não apenas agravou a crise econô-mica e social, mas também comprometeu a capacidade do Estado de governar, tornando o problema da governabili-dade uma realigovernabili-dade permanente.

No que tange à esfera política, a fase inaugurada em 1985 foi de intensificação da democratização. Os sinais mais importantes foram a instituição de condições livres de participação e contestação (com a revogação de todas as medidas que limitavam o direito de voto e de organiza-ção política) e, acima de tudo, a refundaorganiza-ção da estrutura constitucional brasileira com a promulgação de uma nova Constituição em 1988.

A elaboração da Constituição de 1988, vale lembrar, foi ilustrativa da complexidade que cercou o processo de democratização brasileiro. Do início ao fim, o processo envolveu um embate entre os mais variados grupos, cada um tentando aumentar ou restringir os limites do arranjo social, econômico e político a ser estabelecido. Na verda-de, este clima de batalha verbal e de manobras nos basti-dores era, em grande medida, um efeito colateral do cur-so da transição. Uma refundação que se apoiava num acordo negociado seria pressionada em duas direções: de um lado, pelas forças políticas do ancién regime tentando assegurar seu espaço neste novo cenário; e de outro, pe-los setores de esquerda que, embora minoritários, adqui-riram importante papel no processo constituinte. A pecha de ser uma transição negociada acabou fazendo com que seus condutores – líderes políticos moderados mas demo-cratas – se tornassem mais vulneráveis às críticas quanto às limitações do novo regime e, por conseguinte, mais sen-síveis às pressões das forças políticas que clamavam pelo aprofundamento da democratização. Em função deste fa-tor, é provável que a estrutura constitucional tenha se tor-nado muito mais democrática do que se esperaria das cir-cunstâncias de um processo de transição tão gradual e controlado como foi o brasileiro, pois, a despeito de a Assembléia Constituinte ter sido amplamente criticada na época por sua natureza congressual, foi certamente a ex-periência mais democrática na história constitucional

bra-sileira. No que se refere aos procedimentos que nortearam sua elaboração, vários pontos devem ser assinalados: - os trabalhos foram organizados sob uma estrutura bas-tante descentralizada, de modo que todos os constituintes tivessem garantida sua participação nas diversas fases do processo;

- ao invés de um trabalho a portas fechadas, houve ampla abertura para a sociedade, uma vez que foi um processo não só intensamente coberto, a cada passo, pela impren-sa, mas que também contou com a participação dos gru-pos sociais organizados, seja diretamente, através de de-mandas e sugestões na fase de trabalho das subcomissões, seja indiretamente, por meio de pressão para que suas pro-postas fossem aprovadas pelo plenário;

- dado que as forças políticas encontravam-se fragmen-tadas e os partidos escassamente organizados, a Constituin-te se tornou bastanConstituin-te permeável às pressões dos inConstituin-teres- interes-ses de grupo, sendo que a decisão da maioria era precedida de longas negociações a cerca de praticamente cada item específico.9

No que se refere ao produto, a despeito de várias im-perfeições, a Constituição representou um avanço signifi-cativo. Todos os mecanismos de uma democracia repre-sentativa foram garantidos, mesmo aqueles associados à democracia direta, como o plebiscito, o referendo e o di-reito da população de proposição de projeto de lei. Além disso, desconcentrou-se o poder em conseqüência do for-talecimento do poder do Legislativo, do Judiciário e dos níveis subnacionais de governo, bem como da total liber-dade de organização partidária. Do âmbito social, a Carta de 1988 significou importantes avanços nos direitos tra-balhistas, bem como nos padrões de proteção social sob um modelo mais igualitário e universalista (Castro, 1993). A Constituição também foi inovadora em relação às mi-norias, com a introdução de penalidades rigorosas para discriminações contra mulheres e negros. No entanto, dado o contexto social e político no qual se processou a recons-titucionalização do país, o novo estava fadado a conviver com o velho. Este foi o caso do secular problema agrário, que permaneceu quase intocado, e dos militares, que man-tiveram sua prerrogativa de poder intervir, caso solicita-do por um solicita-dos três poderes, na eventualidade de uma gra-ve crise política. O legado da era Vargas foi também reafirmado pela Constituição, na inclinação nacionalista e estatista de algumas de suas cláusulas econômicas e na pre-servação de muitos dos traços característicos da estrutura corporativa de representação de interesses.10

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A eleição de 1989 – quando 72 milhões de eleitores foram às urnas para eleger o presidente da República – finalmente encerrou a terceira e última fase da transição brasileira. A posse de Collor marcava, simbolicamente, o final de um longo e complicado processo de transição de-mocrática. Porém, os desdobramentos políticos que se seguiram demonstraram que a democracia emergente teve ainda que passar por vários testes antes de chegar na pre-sente situação. Entre os fatos marcantes que tornaram o período uma sucessão de crises econômicas e políticas, alguns merecem destaque:

- as drásticas medidas econômicas do Plano Collor decreta-das no dia seguinte à sua posse – políticas que, apesar de sua radicalidade em interferir arbitrariamente na poupança po-pular e investimentos financeiros e em promover ampla li-beralização comercial, logo se mostraram ineficazes para conter a crise, levando à rápida erosão do apoio popular do primeiro presidente eleito pelo voto direto;

- impeachment do presidente Collor em 1992, resultante de sérias denúncias de corrupção, seguidas por uma ex-pressiva mobilização popular e da ação decisiva do Con-gresso Nacional em solucionar a crise política;

- ascensão à presidência do vice, Itamar Franco, cuja li-derança vacilante contribuiu ainda mais para agravar a incerteza política e econômica no país;

- realização de um plebiscito, em 1993, para definir se o país continuava presidencialista ou adotava o parlamen-tarismo como sistema de governo;

- tentativa de revisão constitucional em 1994, que se ar-rastou por meses e praticamente nada alterou, embora a necessidade de algumas mudanças constitucionais fosse demanda de muitos setores políticos;

- a famosa CPI do Orçamento, que pôs a público a deslavada prática de corrupção de alguns membros da Comissão de Orçamento do Congresso;

- implementação, em 1993-94, do Plano Real – um arro-jado plano de estabilização econômica que finalmente conseguiu driblar a inflação;

- eleição presidencial de 1994, que acabou se transforman-do num plebiscito sobre a política econômica transforman-do gover-no, elegendo assim Fernando Henrique Cardoso – arqui-teto do Plano Real;

- sucessão de crises econômicas no mundo afora – México em 1995, Ásia em 1997, Rússia em 1998 – cujo impacto no Brasil quase enterrou os esforços de estabilização do Pla-no Real e a popularidade de Fernando Henrique Cardoso;

- realização, em 1998, sob o impacto da crise russa, da terceira eleição presidencial, cujo desfecho foi a recon-dução de Fernando Henrique Cardoso para um segundo mandato presidencial.

Todos estes fatos foram desafios enfrentados por um regime ainda em processo de consolidação. Ao longo des-ses anos, eleições dos mais diferentes tipos e para os mais variados cargos continuaram a ocorrer com regularidade e com razoável grau de incerteza quanto aos resultados, indicando a vitalidade da democracia no que ela contém de controle popular sobre o exercício da representação política. Por outro lado, montanhas de escândalos de cor-rupção têm recheado as páginas dos jornais; denúncias de violência e atentado aos direitos da cidadania têm sido noticiadas diariamente; erupções de protestos e mobiliza-ções de diferentes naturezas têm ocorrido em vários pon-tos do país. Evenpon-tos como estes tornaram-se parte do dia-a-dia da vida democrática brasileira, que, a despeito desses problemas, obteve conquistas significativas.

DEMOCRACIA ENTRE CONQUISTAS E LIMITAÇÕES

O retrospecto do processo de democratização brasilei-ro aqui realizado tratou de percorrer o curso da transição em cada um de seus momentos fundamentais, avaliando esta experiência de forma a melhor entender os avanços e as limitações do presente sistema político. Como de resto tem ocorrido em outros momentos de nossa história, a democratização que se iniciou com a restauração do go-verno civil não foi o produto de uma ruptura com a antiga ordem. Isto implica que a reconstrução do sistema políti-co deu-se através de apolíti-comodações e do entrelaçamento de práticas e estruturas novas e antigas, combinação esta que estruturou as opções e estratégias seguidas pelos prin-cipais atores do processo político. Salientar este ponto não significa desconsiderar os avanços democráticos conquis-tados, os quais são, em grande medida, o produto da dinâ-mica política introduzida pelo próprio processo de demo-cratização.

Observando o sistema político no Brasil de hoje, não há como negar que se trata de um regime com claros con-tornos de uma democracia. Ao serem tomadas como refe-rência as duas dimensões da poliarquia caracterizadas por Dahl (1971), o país ampliou significativamente as condi-ções de contestação pública e participação política. Po-rém, tampouco há como negar que existam problemas no que se refere tanto à “qualidade” da contestação pública e

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da participação do cidadão quanto ao funcionamento efe-tivo do processo decisório democrático.

Vale lembrar, em primeiro lugar, a questão social, isto é, o problema da pobreza e da desigualdade. Não resta a menor dúvida de que extremas desigualdades sociais são um fator que constrange a consolidação da democracia, especialmente no que se refere è efetiva participação po-lítica de todos os cidadãos. Os elevados índices de pobre-za e de concentração de renda no Brasil são um legado do passado que os governos pós-regime militar não tornaram menos agudo,11 a despeito de avanços na área da educa-ção. Em segundo lugar, há problemas referentes à repre-sentação política e ao processo de decisão democrático. A estrutura institucional brasileira possui vários aspectos que dificultam o funcionamento do sistema democrático-representativo.12 Entre eles, vale destacar a tão debatida questão partidária, que se resume na existência de um sis-tema partidário que é, por um lado, altamente fragmenta-do e, por outro, pouco nítifragmenta-do no que tange às opções ofe-recidas ao eleitor no processo eleitoral.13 Trata-se de um contexto político que dificulta enormemente a capacida-de do eleitor capacida-de fixar as legendas, distinguir quem é quem na competição e criar identidades partidárias.14 Quanto à questão da representação política, este é um contexto que possibilita a eleição de representantes pouco comprome-tidos com seu partido e com os eleitores que os elegeram, mesmo porque muitos se elegeram com os votos exceden-tes dos candidatos mais votados, os quais podem ser de um outro partido pertencente à coligação eleitoral.

Efeito também da alta fragmentação é a impossibilida-de impossibilida-de que um presiimpossibilida-dente saia das urnas com um apoio partidário-parlamentar majoritário, o que o obriga a fazer um governo de coalizão de vários partidos. Isto significa que, a fim de manter uma base parlamentar de apoio a suas políticas, o chefe do governo terá de compor seu ministé-rio com diferentes forças partidárias, por vezes heterogê-neas, fator que certamente dificulta uma ação governamen-tal coordenada, especialmente em relação a políticas públicas cuja implementação depende da ação de vários ministérios. Além disso, na medida em que o Executivo tem de contar com o apoio de vários partidos para ver seus pro-jetos aprovados no Congresso, o processo de negociação é complexo e demorado, ou seja, envolve uma dinâmica difí-cil entre o presidente e os partidos da coalizão, muitas vezes baseada na ameaça e na retaliação mútua.

A tese de que a fragmentação partidária tem impacto negativo no processo decisório é contestada por Figueiredo e Limongi (1994) com base em análise das votações na

Câmara dos Deputados. Para estes autores, a existência de um sistema partidário fragmentado não teria conseqüên-cias, uma vez que a fragmentação partidária é mais nomi-nal do que real, dada a ocorrência de uma reaglutinação nas posições dos partidos. As evidências desse trabalho – baseado em análise acurada das votações de projetos tra-mitados na Câmara dos Deputados – demonstram que os partidos de direita (grandes e pequenos) votam similar-mente e os de esquerda fazem o mesmo, sendo que o grau de coesão é também alto. De fato, pelo que se observou sobre os partidos na Constituinte e sobre o posicionamento dos deputados estaduais da legislatura 1987-91, não há diferenças contrastantes entre os vários partidos de direi-ta ou entre os vários de esquerda, havendo sim uma gradação de mais ou menos direita e mais ou menos es-querda (Kinzo, 1990 e 1993). No entanto, há que se fazer duas ressalvas. Em primeiro lugar, se é verdade que os partidos de direita assumem posições similares, ou não se diferenciam em questões essenciais, e se o mesmo ocorre com os de centro e os de esquerda, qual a relevância de existirem tantos partidos que ocupam semelhantes posi-ções no espectro político-ideológico, mesmo porque tam-bém nas eleições eles se apresentam em aliança? A se-gunda ressalva tem a ver com as conseqüências da fragmentação sobre o processo decisório propriamente dito: a despeito de muitos dos partidos serem parecidos e, quando examinamos os resultados das votações, poder-mos ver menos partidos do que os nominais, o fato é que, na hora de negociar, eles o fazem como atores distintos, de modo que a situação continua sendo a de um jogo de poder fragmentado.

Em suma, o que predomina é uma situação em que o processo de decisão é dificultado pela existência de um sistema de múltiplos vetos, fazendo com que qualquer negociação envolva muitos atores e seja portanto árdua e demorada, situação muito mais propícia à manutenção do

status quo do que à mudança de políticas.15 Em tal con-texto, qualquer que seja o perfil do presidente e de seu partido, a probabilidade de reforma efetiva em políticas públicas é limitada. Na presente experiência de governo democrático pós-85, o chamado presidencialismo de coa-lizão (Abranches, 1988) tem funcionado às custas do re-curso, por parte do Executivo, seja de mecanismos de decisão concentradores de poder, como é o caso das Me-didas Provisórias,16 seja de recursos clientelísticos para negociar apoio parlamentar em bases às vezes até indivi-duais. A permanência desta situação, que reproduz à enésima potência o sistema de contrapesos do modelo

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madsoniano, pode ser entendida como fruto da acomoda-ção possível no contexto de um padrão de desenvolvimento político como o descrito anteriormente. Isto não retira seu caráter problemático, especialmente num país em que a agenda política é carregada de problemas estruturais a serem equacionados.

NOTAS

E-mail da autora: mdkinzo@usp.br

1. Para uma revisão geral da experiência militar-autoritária no Brasil ver Cardoso (1972), Stepan (1973, 1975 e 1988) e Skidmore (1988). 2. É vasta a literatura sobre a economia brasileira durante o regime militar. Os comentários aqui são baseados nos trabalhos de Serra (1982), Fishlow (1973), Suzigan (1974) e Longo (1993).

3. Sobre a transição brasileira, veja Martins (1986), Stepan (1989), Lamounier (1988 e 1989), Velasco e Cruz e Martins (1983) e Diniz (1985).

4. Um balanço das diferentes abordagens explicativas da abertura po-lítica encontra-se em Figueiredo e Cheibub (1982) e Diniz (1985). Sobre o início da transição, ver também a excelente análise de Lamounier (1979).

5. Como Rouquié (1982:3) observou “um sistema permanente de domí-nio militar é quase uma contradição em termos. A instituição militar não pode governar de forma direta e duradoura sem deixar de sê-la”. 6. Desaceleração do PIB, que caiu de 14% em 1973 para 9,8% em 1974 e 5,6% no ano seguinte, aumento significativo do déficit em conta corrente (de US$ 1,7 bilhão em 1973 para US$ 7,1 bilhões em 1974) e crescimento da dívida externa (de US$ 6,2 bilhões em 1973 para US$ 11,9 bilhões em 1974, alcançando US$ 56,3 bilhões em 1981) Serra (1982).

7. É bem provável que o processo político teria caminhado em outra direção caso tivesse sido seguido o segundo curso de ação, defendido pelos setores mais radicais da oposição. De qualquer forma, a demo-cratização tanto poderia ter sido de outra natureza como poderia ter sofrido uma reversão autoritária.

8. Recorde-se que José Sarney filiou-se ao PMDB apenas para que pudesse concorrer à vice-presidência, dado que havia se desligado do PDS e o PFL ainda não havia sido fundado.

9. Sobre a Constituição de 1988, ver Souza e Lamounier (1990). 10. Como assinala Sallum Jr. (1999:27), “apesar de decadente, o mo-delo nacional-desenvolvimentista (certamente sob vestes mais demo-cráticas) foi juridicamente consolidado pela Constituição de 1988”. 11. Sobre esta questão ver Barros et alii (2000).

12. Sobre esta questão ver, especialmente, Lamounier (1992); Kinzo (1997) e Couto (2000).

13. Antes de um simples produto do sistema de representação propor-cional, esta situação tem a ver com uma legislação partidária e eleito-ral que possibilita alianças partidárias até mesmo nas eleições propor-cionais, garantindo acesso ao horário eleitoral gratuito mesmo a parti-dos sem nenhuma expressão política, e com a desvinculação partidá-ria do mandato eleitoral, isto é, a ausência de qualquer impedimento para troca de agremiação partidária de um detentor de mandato eletivo. 14. Como vários estudos têm indicado, a volatilidade eleitoral no Bra-sil, embora decrescente, é ainda bastante acima da média encontrada nas democracias consolidadas. Sobre a volatilidade eleitoral no Bra-sil, ver Nicolau (1998) e Peres (2000).

15. De acordo com Tsebelis (1995), a probabilidade de mudança do status quo é uma função não apenas do número de veto players, ou

seja, atores institucionais e partidários com capacidade de vetar uma proposição, mas também da coesão de cada ator coletivo. No caso bra-sileiro, pode-se dizer que, dado que os partidos da presente coalizão governamental nem sempre se apresentam com alta coesão, no sentido de compartilhar posições ou princípios definidos e claros, são possi-velmente mais propensos à negociação embora a dificultem o mais que puderem.

16. O poder do Executivo não se limita às Medidas Provisórias, uma vez que também detém a prerrogativa exclusiva de iniciativa legislati-va em várias matérias, entre elas as referentes ao orçamento federal. Além disso, o Executivo pode interferir na agenda legislativa, solici-tando ao colégio de líderes urgência na tramitação de uma matéria de seu interesse. Ver Figueiredo e Limongi (1994).

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N

GLOBALIZAÇÃO, REFORMA DO ESTADO

E TEORIA DEMOCRÁTICA

CONTEMPORÂNEA

o decorrer dos anos 90, o tema da reforma do Es-tado adquiriu centralidade na agenda pública bra-sileira. A partir da presidência de Fernando Collor,

ções externas associadas aos desdobramentos do proces-so de globalização e as dificuldades para formular e im-plementar uma nova estratégia de desenvolvimento para o país. Como conciliar inserção externa e crescimento econômico? Como garantir o grau necessário de autono-mia decisória nacional para definir e executar formas al-ternativas de integração ao sistema internacional? Como reencontrar o caminho do desenvolvimento?

As reformas realizadas nos anos 90, notadamente a privatização, a liberalização comercial e a abertura da economia, tiveram eficácia no desmonte dos alicerces da antiga ordem, de tal forma que qualquer perspectiva de retorno ao passado torna-se anacrônica. Entretanto, den-tro do atual modelo, cabem, certamente, diferentes estra-tégias de desenvolvimento, algumas frontalmente contrá-rias às políticas implementadas nos últimos dez anos. Eis porque as possibilidades de inovação passam pela políti-ca. Torna-se imperativo implantar novas formas de ges-tão pública, que permitam a consecução das metas coleti-vas e viabilizem formas alternaticoleti-vas de administrar a inserção na ordem globalizada.

GLOBALIZAÇÃO: A CENTRALIDADE DA DIMENSÃO POLÍTICA

O fenômeno da globalização, que vem caracterizando a economia internacional desde meados da década de 70, desencadearam-se as primeiras medidas para reduzir o

Es-tado e realizar a ruptura com o passado intervencionista, típico do modelo da industrialização substitutiva de im-portações e do desenvolvimentismo dos governos milita-res de 1964 a 1985. Esse esforço reformista foi aprofun-dado no primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, que se propôs a tarefa de sepultar a Era Vargas e superar os entraves representados pela sobrevivência da antiga ordem. Através da prioridade atribuída às reformas constitucionais, iniciou-se um processo de desconstrução legal e institucional, que abriu o caminho para a reestrutu-ração da ordem econômica e, sobretudo, para a refunda-ção do Estado e da sociedade de acordo com os novos pa-râmetros consagrados internacionalmente. A instauração de um novo modelo econômico centrado no mercado foi acompanhado de um projeto ambicioso de dar início a uma nova era. Entretanto, limitada por uma visão restritiva de teor administrativo, a reforma do Estado do governo Car-doso foi capturada pela meta do ajuste fiscal, revelando-se incapaz de realizar a ruptura anunciada.

Desta maneira e após uma década de experimentos ine-ficazes, eis que a reforma do Estado readquire relevância no limiar do novo milênio, configurando-se como um dos principais desafios do momento presente, dadas as

restri-Resumo: O presente artigo retoma o debate sobre a reforma do Estado com o objetivo de inserir a discussão sobre este importante item da pauta das reformas dos anos 90 no âmbito da teoria democrática contemporâ-nea. Para tanto, enfatiza aspectos freqüentemente negligenciados pelas análises correntes, tais como o impac-to das diferentes seqüências históricas, as características do regime político, a inter-relação entre governabili-dade democrática, accountability e responsabiligovernabili-dade pública dos governantes, quer diante da instância parla-mentar, quer diante da sociedade.

Palavras-chave: globalização; democracia; reforma do Estado. ELI DINIZ

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ou, como prefere François Chesnais (1996), a “mundiali-zação do capital”, tem sido interpretado de diferentes maneiras. O termo adquiriu um sem-número de sentidos, que mais confundem do que esclarecem seu real signifi-cado. Entre os equívocos mais correntes, situa-se a visão da globalização como um processo exclusivamente eco-nômico. Trata-se de uma simplificação, pois o processo de globalização não se resume a uma dinâmica puramen-te econômica, senão que se trata de um fenômeno multi-dimensional, que obedece a decisões de natureza política. Em outros termos, a economia não se move mecanicamen-te, independente da complexa relação de forças políticas que se estruturam em âmbito internacional, através da qual se tecem os vínculos entre economia mundial e economi-as nacionais. Portanto, um dos efeitos da visão econo-micista é obscurecer o papel da política. A globalização e a pressão das agências internacionais exercem, sim, forte influência na determinação das agendas dos diferentes países, mas não o fazem de modo mecânico e determinis-ta. As opções das elites dirigentes nacionais – suas coali-zões de apoio político – tiveram e têm um papel impor-tante na escolha das formas de inserção no sistema internacional e na definição das políticas a serem imple-mentadas.

A ênfase unilateral nos aspectos econômicos conduz a um segundo equívoco. Trata-se do pressuposto de um automatismo cego do mercado globalizado. O processo estaria submetido a uma lógica férrea, à qual todos os países deveriam ajustar-se, de modo inescapável e segun-do um receituário único. A abordagem de teor economicista implica, pois, uma visão determinista, já que a ordem mundial é percebida como submetida a uma dinâmica in-controlável, de efeitos inexoráveis, o que, no limite, des-cartaria a existência de alternativas viáveis. Efetivamen-te, se a globalização é apresentada como um processo inevitável, independente da intervenção humana, adaptar-se de forma imperativa torna-adaptar-se a única saída possível.

É interessante ressaltar que tanto do lado da ótica libe-ral ortodoxa, representada pelo Consenso de Washington (Williamson, 1993), quanto numa visão crítica radical, tal como formulada, para citar apenas um exemplo, por Viviane Forrester, no livro O horror econômico (1996), esse traço determinista está presente, já que, em ambos os casos, a globalização é apresentada como um fenômeno monolítico, submetido ao império das leis econômicas. Em conseqüência, os governos nacionais são tratados como objetos passivos de forças que não podem controlar, sen-do, portanto, reduzidos à impotência. Anula-se a ação

po-lítica como contrapartida da supervalorização dos meca-nismos econômicos e esvazia-se a responsabilidade dos governantes pelos erros e acertos das políticas executadas. Em contraste, e tendo em vista a complexidade da nova ordem mundial, cabe salientar que a globalização não está comandada por forças inexoráveis e nem marcada exclu-sivamente por relações e processos de natureza econômi-ca. Está, sobretudo, sujeita a uma lógica política (Diniz, 2000a, cap.1), que por sua vez, tem a ver com relações assimétricas de poder, que se estabelecem entre as potên-cias em escala mundial, traduzindo-se pela formação de blocos e instâncias supranacionais de poder. Configuram-se, assim, as redes transnacionais de conexões, através das quais articulam-se alianças estratégicas, envolvendo ato-res externos e internos, destacando-se, entre estes, as gran-des corporações multinacionais, a alta tecnocracia de teor cosmopolita, as organizações financeiras internacionais, burocratas de alto nível, entre outras elites estratégicas. Tais relações estão por trás das escolhas feitas pelos ato-res, escolhas estas que não são aleatórias, nem o reflexo de critérios exclusivamente técnicos ou econômicos, se-não que se orientam também por um cálculo político.

Cada vez mais, os Estados nacionais tornam-se parte de um sistema de poder de teor supranacional, tornando artificial a rígida contraposição fatores externos-fatores internos. Eis porque administrar com maior ou menor au-tonomia a inserção do país no sistema internacional não requer apenas capacitação técnica de elites iluminadas, mas depende de opções políticas em prol da defesa da sobera-nia e do fortalecimento do poder de negociação dos go-vernos nacionais. Ademais, conquistar posições favorá-veis no jogo de poder internacional implica uma alta capacidade de gestão do Estado, ao contrário do que ad-vogam os defensores do Estado mínimo. Como ressalta Celso Furtado, em seu livro, Brasil, a construção

inter-rompida (1992:24), “A atrofia dos mecanismos de

coman-do coman-dos sistemas econômicos nacionais não é outra coisa senão a prevalência de estruturas de decisões transnacio-nais, voltadas para a planetarização dos circuitos de deci-sões”. Cabe acrescentar, por outro lado, que reverter uma posição subordinada ou rejeitar a predominância da lógi-ca das empresas transnacionais na estruturação das ativi-dades econômicas de um país é um ato de natureza políti-ca, requerendo uma ação deliberada capaz de definir e executar uma nova estratégia nacional.

Entre os equívocos induzidos pela visão economicista, deve-se mencionar ainda a ênfase unilateral nos custos econômicos da globalização, perdendo-se de vista seus

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custos políticos, tão ou mais relevantes. Tais custos, nos países desenvolvidos, manifestam-se pela difusão das ideo-logias antidemocráticas, do tipo fascista, com forte com-ponente xenófobo, em reação ao aumento do desempre-go, da criminalidade, da incerteza e do sentimento de impotência em face das crises internacionais. Nas novas democracias, por outro lado, esse custo político se traduz, entre outras coisas, e de acordo com alguns autores, pela generalização de democracias minimalistas. Assim, por exemplo, Bresser Pereira, José Maravall e Adam Przeworski (1993) referem-se ao predomínio de um estilo político autocrático na administração das crises e das reformas eco-nômicas, a partir dos anos 80. Guillermo O’Donnell (1991) faz referência à difusão, nos países latino-americanos, das chamadas democracias delegativas, caracterizadas por alto grau de voluntarismo no exercício da Presidência da Re-pública, interpretando-se a vitória nas urnas como dele-gação para decidir discricionariamente. James Malloy (1993) destaca o predomínio de regimes híbridos, combi-nando democracias eleitorais com um estilo autoritário-tecnocrático de gestão econômica. Aldo Vacs (1994) men-ciona a tendência à constituição de democracias restritivas, com baixo grau de participação política e processos deci-sórios fechados. Em todos esses autores, sobressai a preo-cupação com a debilidade institucional que dificultaria o aperfeiçoamento da democracia nestes países.

Finalmente, a globalização não tem apenas efeitos uní-vocos na direção da modernidade, trazendo também con-seqüências altamente desorganizadoras e desestruturado-ras. Há um movimento oposto à integração, que opera no sentido da fragmentação, da segmentação e da exclusão. Assim, a inserção na economia mundial não pode ser vis-ta, necessariamente, como um jogo de soma positiva, no qual todos tenderiam a ganhar. Ao contrário, longe de se ter produzido uma ordem econômica mundial mais inte-grada e inclusiva, o que se observou foi a configuração de um sistema internacional, marcado por grandes contras-tes e polaridades, reproduzindo-se as desigualdades entre as grandes potências e os países periféricos, reeditando-se, de forma ainda mais dramática, a exclusão social. Tais clivagens separam não só países, como também continen-tes e, dentro de cada país, instauram um profundo fosso entre as camadas integradas e os setores excluídos, dis-tância que tende a se agravar, sob condições do livre jogo das forças de mercado.

A visão economicista leva ainda ao teor minimalista da agenda pública, pois a ênfase unilateral nos problemas econômicos situaria estas questões no centro da agenda

governamental, eliminando qualquer meta concorrente, deslocando qualquer outro objetivo como fator supérfluo, causador de distúrbios e fonte de distorções. Assim, até mesmo a discussão em torno de uma escala alternativa de prioridades tende a ser apresentada como inoportuna, sen-do mesmo deslegitimada e estigmatizada, como expres-são de uma viexpres-são populista e contrária à modernidade. Alcançada a estabilização e realizadas as reformas, a via da modernização estaria assegurada com a retomada do desenvolvimento.

Por outro lado, a percepção de que as dimensões polí-tica e institucional são também relevantes e não podem ser ignoradas levou a que se considerasse a reforma do Estado uma prioridade dos anos 90. A ruptura com a no-ção fatalista da globalizano-ção, movida pelo automatismo do mercado, se fez acompanhar da descoberta da falácia do enfoque estritamente liberal da reforma do Estado, im-plicando fundamentalmente corte de gastos, redução do tamanho e das funções do Estado. Em conseqüência, ob-servou-se a revalorização da capacidade de ação estatal como um pré-requisito do êxito dos governos na adminis-tração de situações de crise e transição. A centralidade da reforma do Estado significaria, portanto, a afirmação de um novo enfoque de maior alcance e abrangência. A ên-fase desloca-se para a busca de alternativas e o reconhe-cimento de que o cresreconhe-cimento e a conquista de um novo patamar econômico não se produzem espontaneamente, senão que são o resultado de políticas deliberadas, de es-colhas feitas por elites dirigentes determinadas a rever-ter situações adversas e elevar o nível de bem-estar da sociedade.

REFORMA DO ESTADO, REGIME POLÍTICO E DEMOCRACIA: A RELEVÂNCIA DA PERSPECTIVA HISTÓRICA

Além das restrições externas decorrentes do aprofun-damento do processo de globalização, anteriormente re-feridas, cabe também levar em conta as especificidades da evolução histórica de cada país, sobretudo quando se considera o impacto das diferentes seqüências históricas na construção da democracia, em cada caso concreto. Tais considerações remetem ao estudo clássico de Robert Dahl,

Polyarchy: participation and opposition, publicado pela

primeira vez em 1972, em que o autor apresenta as oito garantias institucionais da poliarquia, quais sejam: - liberdade de formar e integrar-se a organizações; - liberdade de expressão;

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- direito de voto;

- elegibilidade para cargos políticos;

- direito de líderes políticos competirem através da votação; - fontes alternativas de informação;

- eleições livres e idôneas;

- existência de instituições que garantam que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras mani-festações de preferência da população.

Desta forma, a arquitetura institucional da democracia compreende certos traços elementares, que são encontra-dos em toencontra-dos os exemplos de democracia política. Entre-tanto, a amplitude e o grau em que tais condições institu-cionais estão presentes, em cada caso considerado, divergem de maneira expressiva. Ademais, as formas pe-las quais o elenco de direitos, garantias e valores básicos constitutivos das poliarquias emergem e se institucionali-zam variam amplamente. Tais variações têm relevância para o funcionamento das poliarquias, vale dizer, as singulari-dades da evolução histórica têm um impacto na qualidade da democracia, em termos de suas duas dimensões bási-cas: os direitos de oposição e de participação política. A consolidação institucional ao longo destas duas dimensões – liberalização ou competição política, por um lado, in-clusão ou participação política, por outro – não se dá num mesmo ritmo e não obedece a uma única seqüência.

Algumas trajetórias são mais favoráveis do que outras para assegurar com sucesso o trânsito para o regime po-liárquico. Dahl (1972: cap.3) aponta dois caminhos prin-cipais: a seqüência I, na qual a liberalização precede o alargamento da participação, percurso em que uma hege-monia fechada (baixa competição e baixa participação) aumenta as oportunidades de contestação pública, trans-formando-se numa oligarquia competitiva para, num mo-mento posterior, expandir os graus de participação políti-ca e transformar-se numa poliarquia; e a seqüência II, na qual a inclusividade precede a liberalização, percurso que vai de uma hegemonia fechada a uma hegemonia inclusi-va e daí à poliarquia, via institucionalização da competi-ção política. A primeira via, a mais segura, foi seguida pela Inglaterra e pela Suécia, enquanto a segunda corres-ponde ao caminho seguido pela Alemanha. Já a França enquadrar-se-ia numa terceira modalidade, caracterizada como um atalho, percurso em que uma hegemonia fecha-da é abruptamente transformafecha-da em poliarquia por uma repentina concessão de sufrágio universal e direitos de contestação pública. Trata-se da via revolucionária, que encerra alto risco de instabilidade política. Assim, a

esta-bilidade da poliarquia estaria associada à seqüência que se configurou historicamente na transição para a demo-cracia. Países que seguiram a seqüência I (liberalização antecedendo o alargamento da participação) seriam mais estáveis em relação àqueles que seguiram a II, na qual o aumento da participação precedeu a institucionalização da competição política.

Partindo do modelo de Dahl, Santos (1993: cap.1) in-troduz algumas qualificações de forma a desvendar a pe-culiaridade da evolução latino-americana em face das experiências européias e anglo-saxônicas. Em primeiro lugar, como ressalta o autor, à semelhança dos exemplos alemão, francês e italiano, “o processo latino-americano caracterizou-se pela incorporação das massas à dinâmica da competição política antes que se obtivesse estabilida-de na institucionalização das regras estabilida-dessa mesma compe-tição”. Em segundo lugar, e este seria um traço da demo-cracia latino-americana, a política social foi utilizada como instrumento de engenharia para universalizar a participa-ção, em um contexto de fraca institucionalização da com-petição política (Santos, 1993:29-30). No caso do Brasil, verificou-se uma outra especificidade, já que os atores estratégicos da ordem industrial em formação – aí incluí-dos o empresariado e os trabalhadores urbanos – adquiri-ram suas identidades coletivas não através dos partidos políticos, mas sim pela via do Estado. Além disso, atra-vés da montagem da estrutura corporativa para realizar a articulação Estado-sociedade, tal como destacado em es-tudos anteriores (Diniz, 1978 e 1992), este processo de incorporação política seria subordinado à tutela estatal.

Num outro veio analítico, O’Donnell (1993, 1998 e 1999) viria também a enfatizar as peculiaridades da for-mação histórica das novas democracias, aí incluindo o Brasil, gerando uma fragilidade institucional que sobre-viveria às tentativas de mudança ao longo do tempo. En-tre tais debilidades, sobressaem a incompletude do pro-cesso de constituição da cidadania, resultando importantes lacunas quanto aos direitos civis e sociais, o estreitamen-to dos espaços públicos, além de sérias deficiências quanestreitamen-to à efetividade da lei. Esta se estende de forma pronuncia-damente irregular sobre o conjunto do território nacional e sobre as diferentes camadas da população, resultando um amplo contingente que se situa fora da cobertura le-gal. Nas novas democracias, regiões inteiras permanecem à margem do sistema legal sancionado pelo Estado, não apenas nas áreas rurais, mas também nas periferias dos centros urbanos. Além disso, no caso de certos setores discriminados, em todas as regiões, mesmo nas mais

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