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A CONCORDÂNCIA DE NÓS E A GENTE EM ESTRUTURAS PREDICATIVAS NA FALA E NA ESCRITA CARIOCA. por. Juliana Barbosa de Segadas Vianna

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(1)

por

Juliana Barbosa de Segadas Vianna

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EXAME DE DISSERTAÇÃO

VIANNA, Juliana Barbosa de Segadas. A concordância de nós e a gente em estruturas predicativas na fala e na escrita carioca. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/ UFRJ. 2006.

BANCA EXAMINADORA:

_____________________________________________________________________ ORIENTADORA: Professora Doutora Célia Regina dos Santos Lopes – UFRJ

_____________________________________________________________________ Professora Doutora Márcia dos Santos Machado Vieira – UFRJ

_____________________________________________________________________ Professora Doutora Maria Maura da Conceição Cezario – UFRJ

_____________________________________________________________________ Professora Doutora Silvia Rodrigues Vieira – UFRJ

Suplente

_____________________________________________________________________ Professora Doutora Ana Maria Stahl Zilles – UNISINOS

Suplente

Examinada a Dissertação Conceito:

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A CONCORDÂNCIA DE NÓS E A GENTE EM ESTRUTURAS PREDICATIVAS NA FALA E NA ESCRITA CARIOCA

por

Juliana Barbosa de Segadas Vianna

Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas Área: Língua Portuguesa

Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientadora: Professora Doutora Célia Regina dos Santos Lopes.

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À minha mãe,

porto seguro contra todas as tormentas, apoio imprescindível de todos os dias, companhia carinhosa nas noites insones.

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AGRADECIMENTOS

À Professora Célia Regina dos Santos Lopes, minha orientadora querida, que me apresentou à pesquisa científica e vem ampliando meus horizontes acadêmicos nos últimos cinco anos.

Acredito que as maiores oportunidades que tive em minha carreira estão ligadas, mesmo que indiretamente, à sua orientação em minha vida profissional. Na minha opinião, as vitórias mais importantes derivam do “sim” à pergunta que fiz, nos corredores da Letras, em plena greve de 2001. Agradeço pela competência e disponibilidade, nas orientações, e também pela amizade, paciência e bom-humor contagiante que me inspiram a trilhar os caminhos tortuosos – ainda que gratificantes e reveladores – de uma carreira acadêmica. Sem seu apoio, esse trabalho não seria possível!

À Carolina Morito Machado e Lucia Rosado Barcia, pela amizade e companheirismo em toda a trajetória comum. Agradeço à Carol, em especial, pela ajuda preciosa nas mais variadas situações – durante os cursos, trabalhos finais, concursos, apresentações, etc – e pela serenidade com que ouve os meus “grandes pequenos problemas”. E agradeço à Lucia, minha mais “recente” grande amiga, por estar sempre tão próxima e me ensinar a importância de zelar por uma amizade. Agradeço também pela excelente dica a respeito do computador;

Ao Professor Afrânio Gonçalves, que nunca perde uma piada, embora perca alguns amigos; agradeço pelo bom-humor de sempre – ainda que um tanto machista – e pela oportunidade de trabalhar na Biblioteca Nacional, catalogando os manuscritos;

Ao Professor Jorge dos Santos Nascimento e à Professora Sônia Maria Gouvêa Leite, por cederem tão gentilmente suas turmas para que eu pudesse aplicar os testes, sem os quais esse trabalho não seria possível;

À Rosana Terra, pelo apoio e por ajudar na tradução para o Inglês;

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trabalho em algo prazeroso e muitíssimo divertido;

Ao Gustavo Barbosa de Segadas Vianna, meu querido irmão, por digitar parte do trabalho e sempre mostrar o lado engraçado dos momentos de desespero, ainda que eu só percebesse a graça depois;

À minha amada família de Belo Horizonte – Maira, Ian, Aninha, Tio Zé, Simone e Lu –, que sempre soube compreender as minhas diversas ausências nos últimos feriados, mas nunca deixou de me apoiar, embora isso significasse um distanciamento;

Ao CNPq, pelo apoio financeiro.

Por fim, agradeço a todos aqueles que, se não ajudaram, também não atrapalharam a conclusão desse trabalho.

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Houve um momento entre nós Em que a gente não falou. Juntos, estávamos sós. Que bom é assim estar só!

Fernando Pessoa

A gente não faz amigos, reconhece-os. Vinícius de Moraes

O nosso amor a gente inventa pra se distrair

E quando acaba, a gente pensa Que ele nunca existiu

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SINOPSE

O comportamento de nós e a gente, tendo em vista as estratégias de concordância de gênero, número e pessoa. Análise de amostras de fala não-culta e de escrita, entre informantes naturais do Rio de Janeiro. Estudo de cunho variacionista sobre a alternância das formas nós e a gente na escrita de informantes cariocas. Uso da metodologia oferecida pela Teoria da Variação. Aplicação de pressupostos funcionalistas e variacionistas.

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SUMÁRIO

ÍNDICE DE QUADROS, TABELAS, GRÁFICOS E FIGURAS ABREVIATURAS E CONVENÇÕES

I – INTRODUÇÃO... 1

II – A DESCRIÇÃO DO OBJETO 2.1 – A variação de nós e a gente no português brasileiro: da visão gramatical aos estudos lingüísticos...6

2.1.1 – A descrição tradicional...6

2.1.2 – Os estudos lingüísticos...7

2.2 - A entrada de a gente no sistema pronominal como um fenômeno de gramaticalização: resgate da origem histórica e reflexos estruturais...12

2.3 - A questão da concordância: rediscutindo os traços de pessoa, número e gênero do a gente pronominal...13

2.4 - Como a gramática tradicional explica o fenômeno? A concordância ideológica ou silepse de gênero...21

2.5 - Análises lingüísticas da concordância de nós e a gente em estruturas predicativas nas variedades brasileira e européia do português: algumas hipóteses...24

III – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS...28

3.1 – O fenômeno da gramaticalização ...30

3.2 – A metodologia variacionista e o corpus utilizado...39

(10)

3.2.2 – A amostra de escrita: os testes aplicados... 42

3.2.3 – Grupos de fatores controlados...44

IV – ANÁLISE DOS DADOS E INTERPRETAÇÃO DOS RESULTADOS...50

4.1 - As estratégias de concordância de nós e a gente em estruturas predicativas: amostra PEUL...50

4.1.1 – A concordância verbal...51

4.1.2 – A presença dos traços de gênero e número nos adjetivos predicativos...56

4.1.3 – O controle do referente vs. estratégias de concordância: manutenção ou perda do caráter referencial do adjetivo?...61

4.1.4 - A variação da concordância de gênero entre as mulheres em um estudo de tendências: a generalização do [masc-sg] com a gente na curta duração...67

4.2 - A variação nós / a gente nos testes escritos...70

4.2.1 – Panorama da freqüência geral de nós e a gente: confronto entre fala e escrita... 70

4.2.2 - A variação nós / a gente nos testes escritos: fatores selecionados...75

4.2.2.1 – A concordância verbal... 75

4.2.2.2 – A concordância de gênero e número... 81

4.2.2.3 – O Tempo Verbal...90

4.2.2.4 – A Escolaridade...94

V – CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 101

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ÍNDICE DE QUADROS, TABELAS, GRÁFICOS E FIGURAS

Quadro 1 – Apresentação tradicional das desinências número-pessoais em português...13 Quadro 2 – Controle dos traços formais e semânticos de pessoa nos pronomes autênticos...15 Quadro 3 – Controle dos traços formais e semânticos de pessoa entre as formas gramaticalizadas a gente e você...16 Quadro 4 – Controle dos traços formais e semânticos de número nos pronomes autênticos...17 Quadro 5 – Controle dos traços formais e semânticos de gênero nos pronomes autênticos...18 Quadro 6 – Síntese da proposta sobre os parâmetros de gramaticalização (Lehmann, 1985)...36 Tabela 1 – Estratégias de concordância verbal com nós e a gente: década de 80 vs. década de 2000...52 Tabela 2 – Estratégias de concordância de gênero e número com nós e a gente: todos os dados reunidos. Década de 80 vs. Década de 2000...58 Tabela 3 – Estratégias de concordância de gênero e número em função do sexo do entrevistado...61

Tabela 4 – Controle do referente x estratégias de concordância: Amostra 80...62

Tabela 5 – Controle do referente x estratégias de concordância: Amostra 2000...62

Tabela 6 – Controle do referente x estratégias de concordância: todos os dados juntos. Amostra 80 e Amostra 2000...64

Gráfico 1 – A presença dos traços de gênero com a gente em estruturas predicativas: amostra PEUL-RJ (Mulheres)...67 Gráfico 2 – A presença dos traços de gênero com nós em estruturas predicativas: amostra PEUL-RJ (Mulheres)...68

(13)

Tabela 7 – Porcentagem geral do uso de nós e a gente em testes de avaliação subjetiva...70

Tabela 8 – Porcentagem geral do uso de nós e a gente na fala Amostra Censo/Peul-RJ – década de 2000 (Omena, 2003)...71

Tabela 9 – Porcentagem geral do uso de nós e a gente na fala Amostra NURC-RJ (Lopes, 1993)...71

Gráfico 3 – Confronto entre Fala e Escrita (Amostra Censo/Peul – década de 2000 vs. Testes de Avaliação Subjetiva)...73

Tabela 10 Concordância Verbal (valor da aplicação: a gente)...77

Tabela 11 – Concordância de Gênero e Número (valor da aplicação: a gente)...85

Tabela 12 – Tabela estratégia de concordância vs. Sexo do entrevistado: dados de a gente...87

Tabela 13 – Tabela controle do referente vs. estratégia de concordância: dados de a gente ...89

Tabela 14 – Tempo Verbal (valor da aplicação: a gente)...92

Tabela 15 Escolaridade (valor da aplicação: a gente)...97

Gráfico 4 – Estratégias de concordância verbal vs. Faixa Etária...98 Tabela 16 – Faixa etária vs. Escolaridade: estratégias de Concordância Verbal com a gente...100

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ABREVIATURAS E CONVENÇÕES

CENSO/PEUL – Projeto Censo da Variação lingüística no estado do Rio de Janeiro e Programa de Estudos do Uso da Língua

CONDIAL-SIN – Corpus Dialectal com anotação Sintáctica

CRPC – Corpus de referência do Português Europeu Contemporâneo

NURC-RJ – Projeto de Estudos da Norma Lingüística Culta do Rio de Janeiro H1 – Homem da primeira faixa etária (de 15 a 25 anos)

H2 – Homem da segunda faixa etária (de 26 a 49 anos) H3 – Homem da terceira faixa etária (50 anos ou mais) M1 – Mulher da primeira faixa etária (de 15 a 25 anos) M2 – Mulher da segunda faixa etária (de 26 a 49 anos) M3 – Mulher da terceira faixa etária (50 anos ou mais) P1 – Primeira pessoa do singular

P2 – Segunda pessoa do singular P3 – Terceira pessoa do singular P4 – Primeira pessoa do plural P5 – Segunda pessoa do plural P6 – Terceira pessoa do plural PB – Português do Brasil PE – Português Europeu

[+ eu] – traço formal de primeira pessoa (falante) [- eu] – traço formal de segunda pessoa (ouvinte) [φ eu] – traço formal de terceira pessoa (não-pessoa) [+ EU] – traço semântico de primeira pessoa (falante) [- EU] – traço semântico de segunda pessoa (ouvinte) [φ EU] – traço semântico de terceira pessoa (não-pessoa) [+fem] – traço formal feminino

[φ fem] – traço formal neutro quanto ao gênero

[α FEM] – traço semântico de gênero subespecificado [+pl ] – traço formal de plural

[-pl ] – traço formal de singular [+PL] – traço semântico de plural [-PL] – traço semântico de singular TF – traço formal

(16)

I – INTRODUÇÃO

O quadro dos pronomes pessoais continua a ser apresentado pelas gramáticas e livros didáticos como sendo composto exclusivamente pelas formas eu, tu, ele, nós, vós, eles, a despeito das alterações sofridas dentro desse sistema, tanto no português do Brasil quanto no português europeu.

Com relação à 1a pessoa do plural, as gramáticas tradicionais incluem apenas o nós no quadro dos pronomes retos, reservando à forma a gente um status indefinido: ora classificam-na como pronome pessoal, ora como forma de tratamento. Além disso, a implementação da forma inovadora como alternante do pronome nós é registrada apenas na linguagem coloquial, não sendo mencionada para a escrita.

De fato, na língua oral, tal fenômeno tem sido bastante estudado por diversos autores (Omena,1986, 2003; Lopes,1993; Machado,1995; entre outros), que apontam para uma variação estável entre as formas. Entretanto, na escrita, ainda são poucos os trabalhos que se debruçaram sobre as questões relativas à variação entre as formas nós e a gente, o que demonstra ser esse um tema ainda não esgotado.

Outra questão pouco investigada diz respeito ao comportamento da forma a gente em estruturas predicativas. As gramáticas mencionam de maneira breve o fenômeno da silepse, definida como “a concordância que se faz pela idéia e não pela forma do vocábulo” (Ribeiro,1992:170), mas pouco discutem ou descrevem sobre o comportamento da forma e as possíveis estratégias de concordância. Com relação a essas questões, a própria pesquisa científica tem sido incipiente, o que demonstra ser esse também um terreno potencialmente fértil para novas investigações.

Destaca-se que inúmeros trabalhos anteriores têm analisado o comportamento de a gente como um caso de gramaticalização (cf. Omena e Braga, 1996, 2003; Menon, 1996; Lopes,1999, 2003; Zilles, 2005; entre outros), como permite entrever o trecho abaixo:

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(18)

“O nome gente, oriundo do substantivo latino gens, gentis, constitui um SN que nomeia de forma coletiva, indeterminadora, mais ou menos geral, uma agrupamento de seres humanos, identificados entre si por objetivos, idéias, qualidades, nacionalidade ou posição. Determinado pelo artigo feminino a, é a forma originária de a gente que, através de um processo de gramaticalização passou a integrar o sistema de pronomes pessoais do português, concorrendo com nós, forma de primeira pessoa do plural.” (Omena, 2003: pág. 64)

Com relação a tal processo, é comum considerar-se que as formas gramaticalizadas apresentam, em geral, um comportamento “dúbio”: não perdem completamente seus traços originais e não assumem de maneira definitiva as propriedades da nova classe da qual passam a fazer parte, criando assim algumas incompatibilidades entre as propriedades formais e as semântico-discursivas (Lopes, 1999, 2003). No que diz respeito ao comportamento do a gente pronominal, isso equivale a dizer, segundo Lopes (2003), que nem todas as propriedades formais do nome gente foram perdidas, assim como não foram assumidas todas as propriedades intrínsecas aos pronomes pessoais.

Nesse sentido, uma das maneiras de estipular o controle das propriedades formais e semânticas da forma gramaticalizada consiste na análise do seu comportamento em estruturas predicativas, observando as estratégias de concordância de gênero, número e pessoa, em confronto, principalmente, com o comportamento do pronome autêntico nós.

Consideram-se, neste trabalho, como “estruturas predicativas” as construções nas quais as formas pronominais estabelecem relações de concordância com adjetivos (1) ou particípios (2), como pode ser observado nos exemplos abaixo:

(19)

(1)

“quando eles sabem que nós somos católico querem converter a gente ali...” (dado 184, F3, 1o grau )

(2)

“...era uma coisa normal da gente querer fazer... mas a gente era reprimida (dado 191, F3, 2º grau)

Focalizando esse tipo de construção, interessava-nos observar os padrões de concordância nominal mais produtivos e freqüentes com nós e a gente, a partir da análise da flexão de gênero e número presente em adjetivos/particípios. Entre os padrões de concordância possíveis com ambas as formas pronominais, localizaram-se quatro estratégias: concordância com o masculino-singular, com o feminino-singular, com o masculino-plural e com o feminino-plural.

Além disso, foram controladas as estratégias de concordância verbal estabelecidas com as formas pronominais, a partir da observação das formas verbais presentes nas estruturas predicativas analisadas. Foram localizados cinco padrões de concordância, a saber: a combinação de nós com formas verbais na 1ª pessoa do plural (Ex: nós estamos) ou na 3ª pessoa do singular (Ex: nós está) e a combinação de a gente com formas verbais na 3ª pessoa do singular (Ex: a gente está), na 1ª pessoa do plural (Ex: a gente estamos) ou na 3ª pessoa do plural (Ex: a gente estão).

Assim sendo, o presente trabalho de pesquisa tem como objeto de investigação duas questões centrais que serão discutidas no decorrer das análises.

A primeira refere-se à concordância da forma gramaticalizada a gente com adjetivos em estruturas predicativas, no confronto, em particular, com o pronome nós. Busca-se analisar, partindo de uma amostra de fala não-culta e de escrita, o comportamento de a gente como pronome tendo em vista os traços de gênero, número e pessoa. Dessa forma, têm-se como objetivos:

(20)

i) Descrever e analisar as diferentes estratégias de concordância das formas nós e a gente, a partir da discussão da aparente incompatibilidade entre os traços formais e semântico-discursivos de formas pronominais que se gramaticalizam;

ii) Verificar se o masculino-singular está se generalizando com a gente em estruturas predicativas; e

iii)

Discutir se a generalização do masculino caracteriza um novo estágio na gramaticalização da forma a gente.

A segunda questão diz respeito à análise da variação entre nós e a gente em uma amostra constituída por testes escritos para comparação com os resultados obtidos na língua oral, em pesquisas anteriores. Assim, foram estipulados os seguintes objetivos:

iv)

observar de que maneira a variação entre nós e a gente, freqüente na fala, processa-se na modalidade escrita;

v) identificar que fatores lingüísticos e extralingüísticos impulsionam a escolha de uma ou outra forma;

vi) verificar se os fatores identificados em dados de fala, em pesquisas anteriores, mostram-se também relevantes para a escrita.

Tendo em vista tais objetivos, o presente trabalho encontra-se dividido em cinco seções. A primeira é dedicada à introdução, que ora se apresenta, na qual são expostos, além dos problemas de ordem descritiva que motivaram a pesquisa, os objetivos principais a serem perseguidos pela investigação empírica. A segunda seção diz respeito à descrição do objeto de estudo, abrangendo a revisão bibliográfica das obras de referência – gramáticas e

(21)

estudos lingüísticos – sobre o fenômeno de variação entre nós e a gente, além do comportamento da forma gramaticalizada em estruturas predicativas. A terceira, por sua vez, destina-se à explicitação do arcabouço teórico e da metodologia empregada na investigação dos dados. Também são apresentados detalhadamente os corpora utilizados e fatores controlados durante a pesquisa. Na quarta seção, apresentam-se as duas análises efetuadas: a primeira, com base em dados da língua oral, e a segunda, a partir dos dados provenientes da aplicação de testes escritos. Em cada uma delas, além da exposição dos dados, segue-se a interpretação e análise dos resultados aferidos. A última seção é destinada às considerações finais. Por fim, encontra-se, em anexo, um exemplar do teste de avaliação subjetiva aplicado.

(22)

2 – A DESCRIÇÃO DO OBJETO

2.1 – A variação de nós e a gente no português brasileiro: da visão gramatical aos estudos lingüísticos

2.1.1 – A descrição tradicional

A grande maioria dos livros didáticos, ainda hoje, continua a apresentar o paradigma dos pronomes pessoais sujeito constituído das formas eu, tu, ele, nós, vós, eles, independentemente das mudanças já ocorridas nesse sistema. Com relação à segunda pessoa, tais livros incluem apenas o tu, reservando à forma você o status de pronome de tratamento. Semelhantemente, também parece indevida a classificação do pronome nós como único a designar a primeira pessoa do plural, uma vez que a forma a gente mostra-se igualmente produtiva, tanto no português do Brasil quanto no português europeu.

Ao que parece, a postura dos livros didáticos frente às formas inovadoras encontra-se calcada nas gramáticas. Nelas, também, a descrição do quadro pronominal exclui tais formas e mantém-se, de maneira geral, o paradigma eu, tu, ele, nós, vós, eles. No que se refere à primeira pessoa do plural, as gramáticas tradicionais são divergentes quanto ao tratamento que dão à expressão a gente: algumas não lhe concedem nenhum espaço, outras consideram-na e classificam-na, ainda que essa classificação não seja a mesma de gramática para gramática.

Em Cunha & Cintra (2001:296), por exemplo, a gente é tido como fórmula de representação da 1a pessoa, uma vez que pode substituir tanto nós (i) quanto eu (ii).

(23)

Pessoa)

(ii)

Você não calcula o que é a gente ser perseguida pelos homens. Todos me olham como se quisessem devorar-me. (Ciro dos Anjos)

Bechara (1999:166), do mesmo modo, prevê o uso de a gente “em referência a um grupo de pessoas em que se inclui a que fala, ou a esta sozinha”. Entretanto, menciona, como Ribeiro (1992:97), o caráter pronominal da expressão. Destacam ainda, ambos os autores, o uso de a gente “fora da linguagem cerimoniosa” e com verbo flexionado na 3a

pessoa do singular. Rocha Lima (2005), por sua vez, não faz nenhuma menção à forma em sua “Gramática normativa da língua portuguesa”.

Observando as gramáticas supracitadas, constata-se certo pudor por parte dos autores em incluir a forma a gente no quadro dos pronomes pessoais. Mesmo em Bechara (1999) e em Ribeiro (1992), que postulam o valor pronominal da expressão, o paradigma dos pronomes sujeito é apresentado contando com as formas tradicionalmente incluídas: eu, tu, ele, nós, vós, eles. Para esses autores, o caráter pronominal da forma inovadora é considerado sim, mas apenas em notas e observações de final de capítulo.

Como é comum na maioria das gramáticas de caráter normativo, observa-se, na análise das obras supracitadas, uma postura prescritiva no que se refere ao uso da forma a gente. Além de não ser incluída no quadro de pronomes pessoais do português, o uso da forma aparece muitas das vezes restrito à linguagem coloquial, não sendo indicado no âmbito da escrita, ainda que muitos exemplos citados provenham de textos literários.

2.1.2 – Os estudos lingüísticos

Em contrapartida às descrições tradicionais, pesquisas recentes, principalmente de cunho variacionista, comprovam a freqüente substituição de nós por a gente na língua falada, embora tal processo não constitua ainda uma mudança completamente operada no português do Brasil.

(24)

fenômeno de variação entre nós e a gente indica uma mudança lingüística em curso, uma vez que a forma inovadora vai lenta e gradualmente tomando o terreno de sua concorrente. Segundo seus resultados, informantes das faixas etárias mais jovens tendem a preferir o uso do novo pronome, em detrimento da forma-padrão. Entretanto, salienta-se que, com o passar dos anos e a conseqüente mudança de faixa etária, os falantes são submetidos a forças mais conservadoras que propiciariam um maior incremento na freqüência da variante padrão nós devido à ampliação dos seus contatos sociais. Entre os fatores sociais e lingüísticos que estariam impulsionando a escolha da forma inovadora, a autora destaca, além da faixa etária, escolaridade, sexo, renda familiar, exposição à mídia, paralelismo formal, mudança de referência, saliência fônica, tempo verbal, grau de determinação do referente e tamanho do grupo. Demonstra ainda que a variação entre as formas indica um processo de mudança lingüística em andamento, principalmente quando se tem em vista a idade dos falantes.

Entre falantes cultos, Lopes (1993) observa que, ainda que seja possível diagnosticar a mudança lingüística em curso, tal processo ocorre com mais vagar, quando se tem em vista falantes com maior nível de escolaridade. Com base na amostra da década de 70 do Arquivo sonoro NURC-Brasil, a partir da análise de três capitais brasileiras – Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre –, a autora destaca o comportamento de homens e mulheres de meia-idade como responsável por retardar a efetivação da mudança, uma vez tendem a preferir a forma-padrão em função das pressões profissionais a que estão submetidos.

No que se refere aos contextos condicionadores das formas, mostraram-se pertinentes os seguintes fatores sociais e lingüísticos: faixa etária, sexo, cidade de origem do entrevistado, paralelismo discursivo, grau de determinação do referente e saliência fônica do verbo. Em estudo mais recente (Callou & Lopes, 2003:73), em que são confrontados dados de duas décadas diferentes com amostras diferenciadas (cultos e não-cultos), são feitas as seguintes considerações:

(25)

“Aparentemente, a substituição de nós por a gente se está efetivando progressivamente, seja entre os falantes cultos, seja entre os não-cultos. Na amostra NURC relativa aos anos 70, o uso da forma mais antiga nós suplantava a forma inovadora, mas a nova amostra referente à década de 90, com informantes diferentes, sugere, ao contrário, um uso mais freqüente da forma inovadora, indicando uma aceleração rápida na implantação da substituição de nós por a gente na comunidade. Nos resultados de Omena (2003) -- anos 80 e 2000 --, no entanto, a comunidade não mudou, pois as proporções no uso das variantes continuam praticamente as mesmas. (...) observa-se que a comunidade apresenta-se instável, se levarmos em conta os falantes cultos, mas quanto aos não-cultos, nota-se uma certa estabilidade no comportamento da comunidade de uma década para outra”

Com base na fala de comunidades pesqueiras do Norte Fluminense, Machado (1995) constata o predomínio de a gente sobre a forma-padrão. Dentre os contextos lingüísticos examinados, destacam-se fatores de natureza discursiva, semântica e morfossintática, a saber: paralelismo formal, grau de determinação do referente, grau de saliência fônica, tempo verbal, faixa etária e escolaridade, referendando os resultados obtidos em Omena (1986), entre falantes não-cultos cariocas.

Por sua vez, Ferreira (2002) propõe-se a discutir a variação nós e a gente na escrita e na fala, a partir da Amostra Discurso & Gramática (1995). Levando-se em consideração que tal corpus se apresenta composto por textos orais e escritos dos mesmos informantes, com idades entre 5 e 46 anos, a autora busca identificar semelhanças e diferenças acerca da implementação da forma inovadora, tendo em vista a modalidade discursiva. De maneira geral, seus resultados apontam que, na fala, os indivíduos preferem a forma inovadora a gente, ao passo que, na escrita, há maior produtividade da forma-padrão nós.

Adotando uma perspectiva variacionista, observa que, na língua oral, o uso de uma ou outra variante tem como fatores condicionadores: tempo verbal, saliência fônica do verbo e gênero discursivo. Por outro lado, na escrita, a determinação do sujeito, o grau de

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distinção morfológica entre as formas concorrentes e o nível de escolaridade dos entrevistados mostram-se relevantes na variação entre duas formas pronominais.

Ferreira (2002) observa, por fim, que parece haver um isomorfismo entre fala e escrita na medida em que são identificados fatores com o mesmo efeito para o emprego das formas alternantes nas duas modalidades. São eles: realização do sujeito, mudança de referência, grau de envolvimento do “eu” e faixa etária do indivíduo.

Outro aspecto importante diz respeito ao estágio em que se encontra o processamento da substituição lingüística em cada uma das modalidades. Segundo a autora, na língua oral, a variação nós e a gente constitui um processo de variação avançado. Diferentemente, na escrita, o fenômeno de variação processa-se de maneira estável, uma vez que, em tal modalidade, tendem a prevalecer o planejamento e o monitoramento lingüísticos, sobrepondo-se às influências da oralidade.

Em Zilles (2005), com base em duas amostras do Projeto VARSUL referentes a diferentes décadas (anos 70 vs. anos 90), propõem-se duas abordagens metodológicas: análise em tempo aparente e análise em tempo real, subdivididas em: um estudo de tendências (trendy study), no qual há a comparação de grupos distintos de falantes, e um estudo de painel (panel study), a partir do qual se observa o comportamento dos mesmos indivíduos em diferentes períodos do tempo.

Segundo tal trabalho, os condicionamentos lingüísticos e sociais para o processo de substituição de nós por a gente poderiam ser discutidos a partir da perspectiva laboviana para mudança lingüística “para cima” ou “para baixo”.

A autora observa que, entre os fatores que impulsionam a implementação da forma inovadora e caracterizam o fenômeno como sendo “para baixo”, destacam-se a atuação da faixa etária e a concordância verbal. De acordo com a análise dos grupos etários, observa-se que, ainda que o comportamento dos indivíduos observa-seja estável, os indivíduos mais jovens, a cada nova geração, tendem a ampliar as taxas de a gente. Por outro lado, no que se

(27)

refere à concordância verbal, a autora constata que a escolha por a gente se torna uma opção mais segura no sentido de evitar a não-concordância e o estigma social associado a ela.

Em síntese, esses estudos feitos a partir de dados de fala e escrita colhidos no Rio de Janeiro, entre tantos outros realizados com amostras diversificadas de outras partes do Brasil, têm demonstrado que a substituição de nós por a gente ainda não constitui uma mudança completamente operada em terras brasileiras, ainda que seja freqüente o emprego de a gente, principalmente na língua oral. Os diversos trabalhos de cunho variacionista (cf. Omena, 1986, 2003; Lopes, 1993; Machado, 1995; entre outros) apontam para uma variação estável entre as formas, embora o emprego de a gente tenha se tornado mais freqüente nas três últimas décadas. Como defendem Callou & Lopes (2003:73), teríamos uma “mudança geracional: o indivíduo mantendo-se estável no decorrer de sua vida, mas a comunidade apresentaria comportamento instável. Entre cultos e não-cultos, os estudos mostram que o “uso das formas inovadoras, entre os jovens, é quase categórico”.

(28)

2.2 - A entrada de a gente no sistema pronominal como um fenômeno de gramaticalização: resgate da origem histórica e reflexos estruturais

Como mencionado anteriormente, o interesse pelo tema não se restringe ao atual estágio da variação entre nós e a gente em português. O nosso estudo objetiva discutir alguns reflexos estruturais ocasionados com a inserção de a gente no sistema de pronomes do português, principalmente no tocante à concordância de gênero, número e pessoa em estruturas predicativas. Defende-se que a análise das estratégias de concordância com a gente em estruturas predicativas, tendo em vista os três traços postulados, poderia elucidar o “estágio de gramaticalização” da forma, no sentido de melhor diagnosticar os contextos em que realmente são assumidas propriedades pronominais e outros em que a forma gramaticalizada exibe resquícios de características nominais. Toma-se, como ponto de partida, o trabalho de Lopes (1999, 2003) que remonta o percurso histórico de gente para a gente. A autora fundamenta-se em princípios formais e funcionais, numa tentativa de sistematizar as distinções entre as duas classes – nomes e pronomes – tendo em vista o controle dos traços formais e semânticos intrínsecos a cada uma delas.

Em Lopes (1999, 2003), analisa-se o processo de pronominalização da forma a gente em português. Postula-se que tal processo, iniciado no século XVI, tenha sido lento e gradual, marcado por uma longa fase de ambigüidade interpretativa, em que a forma a gente tanto poderia significar “um grupo de seres humanos” quanto “um grupo de seres humanos, incluindo o falante”. A autora observa que, no século XVII, há um incremento progressivo de ocorrências dessa natureza, o que leva a crer ser esse o início do período de transição entre o uso da forma como substantivo coletivo e o emprego como pronome análogo a nós. Ao que parece, a transição perdura entre os séculos XVII e XIX. Apenas, a

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partir do século XX, não são mais registrados casos de interpretação ambígua, indicando uma gramaticalização mais avançada.

2.3 - A questão da concordância: rediscutindo os traços de pessoa, número e gênero do a gente pronominal

Tradicionalmente, afirma-se que os verbos em português se caracterizam por apresentarem desinência flexional. Tais marcas verbais podem indicar tempo e modo, além de apontar a pessoa do discurso à qual o verbo se refere, acumulando a noção de número. Nos manuais escolares e gramáticas tradicionais, o quadro1 das chamadas desinências

número-pessoais (DNPs) é normalmente apresentado da seguinte forma:

Número Pessoas Presente

(Indicativo) Pret. Perf. (Indicativo) Fut. Pres. (Indicativo) Futuro (Subjuntivo ) Outros tempos singular o i i Ø Ø s ste s es s Ø u Ø Ø Ø

plural mos mos mos mos mos

is stes is des is

m ram Õ em m

Quadro 1: Apresentação tradicional das desinências número-pessoais em português.

Observando o quadro descrito pela tradição gramatical, interessa-nos observar a sistematicidade da desinência –mos para a chamada primeira pessoa do plural, nos diversos tempos, em formas verbais como seríamos, chegaremos ou descansamos e a desinência zero para a terceira pessoa do singular em formas como será e chegou.

As questões centrais que o quadro suscita dentro dos limites desse trabalho já foram objeto de discussão por lingüistas e estudiosos da língua. O primeiro deles refere-se à

1 Há vários aspectos discutíveis no quadro apresentado pela gramática tradicional que não serão tratados por não se

relacionarem diretamente ao objeto de estudo deste trabalho. Só para citar alguns teríamos: as marcas desinencias da 3ª pessoa do plural apresentada diferentemente por Camara Jr, o morfe – Õ - como desinência de futuro do presente entre tantos outros aspectos.

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noção de pessoa e o segundo ao número em português. Teríamos, como descrito nos manuais escolares, três pessoas gramaticais com oposição entre singular e plural ou seis pessoas distintas como aponta Camara Jr. (1970)? Quais são as legítimas pessoas do discurso? A forma nós pode ser considerada como mero plural do eu?

Segundo Câmara Jr. (1970), são seis as pessoas do discurso: o falante ou P1, o falante e mais alguém ou P4, um ouvinte ou P2, mais de um ouvinte ou P5, “um ser” ou “mais de um ser” distintos do falante e do ouvinte, respectivamente, P3 e P6. Dentro dessa perspectiva, que remonta Benveniste (1988) entre outros autores, consideram-se três referências, a partir da relação falante-ouvinte, a saber: a pessoa que fala ou emissor e a pessoa que ouve ou receptor. A terceira pessoa, dessa forma, seria considerada como a “não-pessoa”, uma vez que se encontra fora dessa relação falante-ouvinte (Benveniste, 1988).

A forma a gente estabelece, em geral, concordância formal com verbos na terceira pessoa do singular (a gente fala), mas se refere, como variante de nós, ao “falante + alguém”. Como explicar essa aparente incompatibilidade entre os traços formais e semânticos na concordância verbal com a gente?

Adotando a proposta discutida em Lopes (1999, 2003), a especificação semântica de pessoa pode ser estipulada através da atribuição de valores positivo ou negativo ao atributo [EU]. Seguindo tal orientação, no caso de inclusão do falante, como ocorre nos pronomes de 1ª pessoa (eu, nós, a gente), o valor indicado seria positivo [+EU]. Por outro lado, no caso de referência ao ouvinte, como ocorre nas formas de referência à 2ª pessoa (tu, você, vós, vocês), o valor seria negativo [-EU]. Por fim, as formas de 3ª pessoa, uma vez que se encontram fora do eixo falante-ouvinte, caracterizar-se-iam pelo traço neutro [φ eu].

Ainda de acordo com essa proposta, a concordância verbal também pode ser entendida como correlacionada à atribuição de valores positivo ou negativo ao atributo [eu], representando a especificação formal de pessoa.

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em P1 ou P4), o valor indicado é positivo [+eu], uma vez que tais formas indicam a inclusão do falante, como pode ser observado nos exemplos: canto, falei, cantamos, seríamos. Diferentemente, na combinação com formas verbais de 2ª pessoa (P2 e P5), o valor é negativo [-eu], pois indicam a exclusão do falante e inclusão do ouvinte: cantas, falaste, cantais, seríeis. As formas de 3ª pessoa (verbos em P3 e P6), por sua vez, são caracterizadas pelo traço neutro [φ eu], como nos exemplos canta, fala, cantam, seriam.

Sintetizando a proposta de Lopes (1999), no que se refere ao quadro dos pronomes pessoais autênticos, teríamos a atribuição dos seguintes traços semânticos (TS) e formais (TF):

Formas pronominais

REFERÊNCIA À 1ª PESSOA REFERÊNCIA À 2ª PESSOA

EU NÓS TU VÓS

Traços de pessoa

TS TF TS TF TS TF TS TF

[+EU] [+eu] [+EU] [+eu] [-EU] [-eu] [-EU] [-eu]

Exemplos Eu fico alegre. Eu estive no Rio. Nós ficamos alegres. Nós estivemos no Rio. Tu ficas alegre. Tu estiveste no Rio. Vós ficais alegres. Vós estivestes no Rio.

Quadro 2: Controle dos traços formais e semânticos de pessoa nos pronomes autênticos.

Em princípio, é possível observar uma correlação entre traços formais e semânticos a partir da observação dos pronomes pessoais autênticos. Por exemplo, em “Eu fico alegre” e “Nós ficamos alegres”, os pronomes de 1ª pessoa (eu e nós) designam a inclusão do falante, recebendo o traço semântico [+EU]. No que se refere ao traço formal, combinam-se com formas verbais de 1ª pessoa, respectivamente; fico (P1) e ficamos (P4). Dessa forma, recebem o traço formal de pessoa [+eu]. De maneira semelhante, há correlação de traços nos pronomes de referência à 2ª pessoa. Nos exemplos “Tu ficas alegre” e “Vós ficais alegres”, observa-se a atribuição do traço semântico [-EU] e do traço formal [-eu], uma vez que tais formas prevêem a exclusão do falante e inclusão do ouvinte e combinam-se a formas verbais de 2ª pessoa, respectivamente, P2 e P5. Em síntese, teríamos: eu [+EU, +eu]; nós [+EU, +eu]; tu [-EU, -eu]; vós [-EU, -eu].

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Entretanto, a correlação entre traços semânticos e formais nem sempre ocorre, haja vista o comportamento de formas pronominais como a gente e você. O quadro abaixo ilustra a proposta:

Formas pronominais

REFERÊNCIA À 1ª PESSOA REFERÊNCIA À 2ª PESSOA

A GENTE VOCÊ

Traços de pessoa

TS TF TS TF

[+EU] [φ eu] [-EU] [φ eu]

Exemplos A gente ficou inseguro com a alta dos preços.

Você ficou inseguro com a alta dos preços.

Quadro 3: Controle dos traços formais e semânticos de pessoa entre as formas gramaticalizadas a gente e você.

No exemplo “A gente ficou inseguro com a alta dos preços”, embora haja a interpretação semântico-discursiva de 1ª pessoa [+EU] ao designar “o falante + alguém”, observa-se a atribuição do traço formal [φ eu], uma vez que ocorre a combinação com verbos em P3 (não-pessoa por excelência). De maneira semelhante, no exemplo “Você ficou inseguro com a alta dos preços”, ainda que a forma pronominal indique a exclusão do falante e inclusão do ouvinte, assumindo o traço semântico [-EU], há a manutenção do traço formal [φ eu].

Segundo Lopes (1999), a gramaticalização, ou mais especificamente a pronominalização de gente → a gente / VM → você, acarretou perdas e ganhos em termos das suas propriedades semântico-formais primitivas por conta da mudança categorial de nome para pronome. Assim, nem todas as propriedades formais nominais foram perdidas, assim como não foram assumidas todas as propriedades intrínsecas aos pronomes pessoais, por isso esta ausência de correlação entre traços formais e semânticos para a especificação de pessoa. Em síntese, observa-se: a gente [+EU, φ eu]; você [-EU, φ eu]2.

Além da discussão acerca da especificação de pessoa, propõe-se, em Lopes (1999, 2003), a análise das propriedades de gênero e número, a partir do controle dos

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traços semânticos e formais presente nos nomes e pronomes pessoais. Na época, a autora buscava testar empiricamente a mudança nos sistemas de traços durante a passagem do nome coletivo gente para o pronome a gente.

Seguindo essa orientação, com relação ao número, a estipulação do traço semântico corresponde à atribuição de valores positivos ou negativos ao atributo [PL]. Dessa forma, entende-se que o traço [-PL] acarretaria a idéia de “apenas um elemento”, ao passo que o traço [+PL] seria indicativo de “mais de um elemento”. Têm-se, assim, a oposição semântica entre singular e plural.

Entre os pronomes pessoais ditos legítimos, postula-se haver uma correlação entre os traços semânticos e os traços formais de número. Para uma forma no singular, a interpretação é, quase sempre, singular, ao passo que, para uma forma plural, a interpretação é, em geral, plural. O quadro abaixo sintetiza a proposta discutida em Lopes (1999, 2003), a partir dos traços semânticos (TS) e dos traços formais (TF), relativos ao atributo de número:

Formas pronominais

REFERÊNCIA À 1ª PESSOA REFERÊNCIA À 2ª PESSOA

EU NÓS TU VÓS

Traços de número

TS TF TS TF TS TF TS TF

[-PL] [-pl] [+PL] [+pl] [-PL] [-pl] [+PL] [+pl]

Exemplos Eu estou cansado. Nós estamos cansados Tu estás cansado. Vós estais cansados.

Quadro 4: Controle dos traços formais e semânticos de número nos pronomes autênticos.

Observando o exemplo “Eu estou cansado”, percebe-se que ao traço semântico [-PL], inerente à forma pronominal de 1ª pessoa do singular – visto que designa “apenas o falante” – correlaciona-se um traço formal [-pl], verificado na concordância com o adjetivo no singular (cansado). A mesma correlação entre traço formal e semântico de número pode ser observada para a segunda pessoa do singular (tu). Assim, têm-se: eu [-PL, -pl], tu [-PL, -pl].

Com relação às formas de 1ª (nós) e 2ª (vós) pessoas do plural (P4 e P5 para Câmara Jr, 1970), também é possível verificar correlação entre traços. Partindo da

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observação do exemplo “Nós estamos cansados”, observa-se que, paralelo ao traço semântico [+PL] – já que tal pronome designa o “falante + alguém” – há um traço formal [+pl], que pode ser verificado na concordância com o adjetivo no plural (cansados). Dessa forma, para os pronomes nós e vós, são designadas as seguintes especificações de número: [+PL, +pl].

Analisando o comportamento da forma a gente, no que se refere ao número, pode-se depreender uma aparente não-correlação entre traços pode-semânticos e formais. Em uma frase como “A gente está preocupado com as chuvas de verão”, é possível perceber que, embora a forma pronominal possua um traço semântico [+PL] – pois designa o “falante + alguém” –, mantém um traço formal [-pl], ao combinar-se mais comumente a estruturas no singular, como é o caso do verbo e do adjetivo “preocupado”.

No que se refere à especificação de gênero, Lopes (1999) também postula a existência de dois planos: um semântico e um formal, a partir dos quais se consideram os atributos [FEM] e [fem], respectivamente.

A autora considera que apenas os pronomes de 3ª pessoa (antigos demonstrativos latinos) teriam gênero formal subspecificado sintaticamente, por conta da possibilidade de termos: ele(s) / ela(s). Os chamados pronomes autênticos ou originais (eu, tu, nós, vós) não teriam atribuição intrínseca de gênero. Nesse caso, é postulado o gênero neutro ou [φ fem]. Semanticamente, no entanto, pode-se considerar a existência de subespecificação do traço: [α FEM], visto que formas pronominais como eu, tu, nós e vós podem se combinar com adjetivos no feminino e/ou masculino, a depender do gênero do referente. O quadro abaixo ilustra a proposta, tendo em vista os traços semânticos (TS) e os traços formais (TF) para o gênero:

Formas pronominais

REFERÊNCIA À 1ª PESSOA REFERÊNCIA À 2ª PESSOA

EU NÓS TU VÓS

Traços de número

TS TF TS TF TS TF TS TF

[α FEM ] [φ fem] [α FEM ] [φ fem] [α FEM] [φ fem] [α FEM ] [φ fem]

Exemplos Eu sou bonita. Eu fiquei rico. Nós somos bonitas. Nós ficamos ricos. Tu és bonita. Tu ficaste rico. Vós sois bonitas. Vós ficastes ricos.

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Analisando o exemplo “Eu sou bonita”, é possível depreender que o pronome eu designa uma mulher, uma vez que o adjetivo “bonita” encontra-se no feminino. Por outro lado, na frase “Eu fiquei rico”, tem-se como referência um homem, visto que o adjetivo “rico” está no masculino. O mesmo tipo de análise pode ser feito nas frases relativas ao pronome tu, com a diferença que este designa o interlocutor e não o falante. Dessa forma, teríamos, em “Tu és bonita”, a referência a um interlocutor do sexo feminino, ao passo que, em “Tu ficaste rico”, a referência a um interlocutor do sexo masculino.

Tal raciocínio relaciona-se também ao comportamento das formas pronominais nós e vós/vocês. Em “Nós somos bonitas”, o adjetivo em concordância com o pronome se encontra no feminino e, por isso, depreende-se que o pronome nós refere-se a um grupo composto apenas por indivíduos do sexo feminino, no qual se incluiria, necessariamente, o falante, também um indivíduo do sexo feminino. Diferentemente, em “Nós ficamos ricos”, a concordância no masculino – forma não-marcada em português –, indicaria outras possibilidades interpretativas, a saber: um grupo exclusivamente composto por indivíduos do sexo masculino ou um grupo misto, no qual se incluiriam homens e mulheres. No que se refere ao pronome vós/vocês, o mesmo tipo de análise pode ser empreendido, com a diferença que tal forma pronominal designa o interlocutor, na relação falante-ouvinte.

A forma a gente apresenta comportamento semelhante aos ditos pronomes primitivos: traços [φ fem, α FEM] para a especificação de gênero3. Em outras palavras, ainda

que não haja uma atribuição intrínseca de gênero formal, pode-se considerar a existência de uma subespecificação para o gênero semântico, visto que tal forma pronominal pode se combinar com adjetivos no masculino e/ou feminino em estrutura predicativa, a depender do referente, como nos exemplos supracitados.

Em uma frase como “A gente ficou cansado durante aquela viagem à Bahia”, a concordância no masculino – “cansado” – poderia indicar como referente semântico um

3 O substantivo gente apresentava o traço de gênero formal [+fem], embora semanticamente fosse neutro

quanto ao gênero. Quando se diz “Toda a gente estava cansada”, a concordância se estabelece no feminino, embora possamos estar fazendo referência a um grupo misto ou só de homens. Essas mesmas propriedades de gênero são postuladas para nomes como: pessoa, multidão, vítima, etc. A concordância com o feminino, nesses casos, não aciona uma interpretação semântica de gênero feminino como ocorre em “A menina está cansada.”

(36)

grupo misto, isto é, composto por homens e mulheres, ou então um grupo exclusivamente composto por homens. Em “A gente ficou cansada durante aquela viagem à Bahia”, o adjetivo no feminino indicaria um grupo composto exclusivamente por mulheres. Nesse sentido, observa-se, no comportamento de a gente, uma maior integração ao quadro dos pronomes pessoais, uma vez que a concordância no predicativo tenderia a assumir um valor pragmático-discursivo no sentido de indicar o referente, semelhantemente ao que ocorre com os pronomes ditos primitivos: eu, tu, nós, vós.

Em síntese, Lopes (1999, 2003) postula que a forma gramaticalizada mantém do nome gente o traço formal de 3a pessoa ou [φ eu], embora acione uma interpretação

semântico-discursiva de 1a pessoa [+ EU]. Mesmo que o verbo em concordância com a gente permaneça na 3a pessoa do singular, se pressupõe a existência de um “falante +

alguém” ou [+EU]. Com relação ao número, também se observa uma aparente não-correlação entre traços semânticos e formais. Ainda que o a gente pronominal possua um traço semântico [+PL] – pois designa o “falante + alguém” –, mantém um traço formal [-pl], visto que tende a se combinar mais comumente com estruturas no singular. No que se refere ao gênero, com a entrada no sistema pronominal da forma gramaticalizada a gente, a especificação positiva de gênero formal [+fem] do substantivo teria se perdido, tornando-se [φfem]. Entretanto, no que diz respeito à interpretação semântica, a forma a gente pronominalizada passaria a ser semanticamente subespecificada [α FEM], tendo uma certa relação com o traço formal presente em predicativos. O fato de a gente, variante de nós, pressupor “o falante e mais alguém” permitiria várias possibilidades interpretativas ao se estabelecer a concordância com adjetivo em estruturas predicativas como discutiremos mais tarde.

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2.4 - Como a gramática tradicional explica o fenômeno? A concordância ideológica ou silepse de gênero

As discrepâncias entre ‘o que as gramáticas omitem’ e ‘o que as pesquisas revelam’ também são verificadas com relação ao comportamento de a gente em estruturas predicativas: a gente está cansada / a gente está cansado. No que se refere à concordância verbal, prescreve-se o uso do verbo sempre na 3a pessoa do singular, ainda que a

possibilidade de silepse de pessoa (concordância ideológica) seja mencionada.

Cunha e Cintra (2001:633) destacam que no português popular, tanto o europeu quanto o do Brasil, a gente pode levar o verbo para a 1a pessoa do plural.

(iii)

A gente perdemos sempre, mas nunca desistimos... (Luandino Vieira)

Menos afeitos a esse tipo de uso, Bechara (1999: 555) e Ribeiro (1992: 170) consideram a possibilidade de concordância que se faz pela idéia, e não pela forma dos vocábulos; desde que haja relativa distância entre o sujeito coletivo e o verbo no plural.

(iv)

Faça como eu: lamente as misérias dos homens, e viva com eles, sem participar-lhes os defeitos; porque, meu amigo, se a gente vai a rejeitar as relações das famílias, justa ou injustamente abocanhadas pela maledicência, a poucos passos não temos quem nos receba. (Camilo Castelo Branco)

(38)

Estruturas como ‘a gente falamos’ não são aceitas como silepse pelos referidos autores, sendo consideradas como ‘erro’: “a língua moderna impõe apenas uma condição estética, uma vez que soa desagradável ao ouvido a construção do tipo: o povo trabalham ou a gente vamos ”(Bechara, 1999:555).

Com relação à concordância com o adjetivo em estrutura predicativa, as gramáticas mencionam a possibilidade de ‘silepse de gênero’ para expressões de tratamento como Vossa Senhoria, Vossa Majestade, etc., o que permite pressupor que o mesmo valha para a forma a gente. Ainda que sejam expressões originalmente femininas, como destacam os gramáticos (Bechara,1999; Cunha & Cintra,2001; Ribeiro, 1992), podem ser empregadas para designar uma pessoa do sexo masculino. Nesse caso, então, haveria a possibilidade de concordância ideológica, ou seja, como explica Bechara (1999:544), “a palavra determinante pode deixar de concordar com a palavra determinada para levar em consideração, apenas, o sentido em que se aplica”.

(v)

Vossa Excelência é atencioso.(referindo-se a um homem)

(vi)

Vossa Excelência é atenciosa.(referindo-se a uma mulher)

Entretanto, é interessante notar que, embora a maioria dos gramáticos consultados mencione a possibilidade de ‘silepse de gênero’ para expressões de tratamento e definam-na da mesma maneira, fica implícito que alguns consideram a ocorrência do fenômeno apenas quando há concordância com adjetivos no masculino. Em Cunha & Cintra (2001:632), por exemplo, a silepse de gênero é ilustrada com as frases abaixo:

(39)

(vii)

“Imediatamente, pode Vossa Excelência ficar descansado!...” (B. Santareno)

(viii)

“Vossa Excelência parece magoado” (C. Drummond de Andrade)

Ribeiro (1992:193), por sua vez, mencionando especificamente a expressão a gente, deixa claro esse posicionamento em relação ao fenômeno da silepse. Em sua “Gramática aplicada da Língua Portuguesa”, prevê a ‘silepse de gênero’ com a forma pronominal, além de admitir a possibilidade da concordância estritamente gramatical, como pode ser observado em (ix) e (x), respectivamente:

(ix)

A gente é elogiado a todo instante.”

(x)

“A gente é elogiada a todo instante.”

Ao que parece, de acordo com a maioria das gramáticas consultadas, considera-se para o a gente pronominal a manutenção de um traço formal de gênero feminino, à semelhança do substantivo coletivo gente. Só isso explicaria a análise proposta em Ribeiro (1992), que interpreta apenas a concordância da forma pronominal com adjetivos no masculino como sendo um caso de silepse. Diferentemente, a combinação da forma pronominal com adjetivos no feminino é entendida como “concordância estritamente gramatical”, ou seja, nesse caso, haveria a concordância que se faz pela forma do vocábulo em questão, e não pelo significado que este designa.

(40)

2.5 - Análises lingüísticas da concordância de nós e a gente em estruturas predicativas nas variedades brasileira e européia do português: algumas hipóteses

Entre os falantes cultos do português do Brasil, Lopes (1999) identificou, com base no corpus do Projeto Nurc-RJ (Norma Urbana Oral Culta do Rio de Janeiro), apenas duas possibilidades de concordância de a gente em estruturas predicativas, dependendo do sexo do referente: masculino-singular e/ou feminino-singular, em exemplos, como a gente está cansado e/ou a gente está cansada. A concordância no plural só foi atestada com sujeito nós, pleno ou nulo: nós estamos cansados e/ou nós estamos cansadas.

Em Menuzzi (1999, 2000), o comportamento de a gente também é analisado no contexto da oração. Segundo o autor, um fato particularmente interessante no comportamento da forma pronominal diz respeito à não-coincidência entre seus traços gramaticais e semântico-discursivos. Do ponto de vista gramatical, considera-se que tal forma estaria especificada como terceira pessoa do singular feminino, ainda que, em termos semânticos, funcione como um pronome de 1ª pessoa do plural.

Adotando uma perspectiva gerativista – baseada na Teoria da Verificação dos Traços de Chomsky (1986, 1995) –, é demonstrado que ambos os traços estão ativos na gramática, sendo que os traços semântico-discursivos de a gente não são completamente irrelevantes do ponto de vista gramatical, uma vez que exercem influência na escolha de formas pronominais co-referentes.

Seguindo tal modelo teórico, constata-se que, se o pronome a gente se ligar a um item pronominal no domínio local, a forma selecionada será uma anáfora de 3ª pessoa do singular (Ex: A gente encontrou-se no cinema). Contudo, se a relação de ligação não for local, a forma pronominal escolhida não é de terceira pessoa do singular, mas uma forma que concorda com os traços semântico-discursivos, ou seja, uma forma de primeira pessoa do

(41)

plural (Ex: A gente soube que Mauro nos viu no cinema). Sendo assim, defende-se que não se pode levar apenas em consideração os traços gramaticais para explicar o que acontece em termos de ligação, visto que os traços semântico-discursivos também se mostram relevantes. Dessa forma, o autor estabelece a seguinte generalização: num domínio local, a gente liga formas concordantes em termos gramaticais, e, num domínio não-local, a gente liga formas concordantes em termos semântico-discursivos.

Costa et al. (2000), por sua vez, focalizando especificamente o comportamento da forma pronominal em estruturas predicativas – com ênfase na variedade européia da língua –, questiona a validade da generalização proposta em Menuzzi (1999, 2000). Argumenta-se que uma análise baseada em concordância ou verificação dos traços a nível local não seria sustentável, uma vez que, em princípio, os dois tipos de concordância com a forma a gente são possíveis num domínio local: a concordância com traços gramaticais (Ex: A gente estava cansada) e a concordância com traços semântico-discursivos (Ex: A gente estava cansado /cansados / cansadas).

Em tal trabalho, observa-se que mesmo quando há concordância de a gente com formas adjetivais no feminino-singular – aparentemente, o único padrão que não se revela problemático para a Teoria da Verificação dos Traços – não se pode considerar como um caso de concordância gramatical plena, e sim como um caso de concordância semântica, à semelhança dos demais padrões sentenciais. Segundo os autores, sempre que esse padrão de concordância emerge, o falante é do sexo feminino, o que indicaria a concordância semântico-discursiva parcial com o referente do pronome a gente. Dessa forma, a proposta de análise desenvolvida por Lopes (1999) é referendada pelos autores: “Note-se que o mesmo ocorre em PB, o que confirma a hipótese de Lopes (1999), de acordo com a qual o predicativo apresenta traços de gênero variáveis, em virtude de a expressão a gente ser subespecificada relativamente aos traços de gênero” (Costa et al, 2000:8).

Partindo das considerações feitas em Costa et al. (2000), acerca da ineficácia da Teoria da Verificação dos Traços para explicar os diversos padrões de concordância de a

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gente em estruturas predicativas, Pereira (2001, 2003) propõe uma análise a partir da conjugação de diversos modelos teóricos, entre os quais se destacam a Morfologia Distribuída (Halle & Marantz, 1993) e a Derivação por Fases (Chomsky, 1999). Assim, adotando uma perspectiva gerativista, busca entender por que são possíveis os diferentes padrões de concordância encontrados no português europeu, tendo em vista a análise de diversos corpora. São eles: (1) Amostra de língua oral do Projeto CONDIAL-SIN (Corpus Dialectal com anotação Sintáctica), (2) Amostras do CRPC (Corpus de referência do Português Contemporâneo), englobando diversos tipos de textos de discurso escrito e de discurso oral, (3) Amostras de textos literários ou para-literários, englobando letras de música e/ou poesia musicada, e (4) testes de avaliação subjetiva.

A autora observa que, a depender do corpus sob análise, há maior produtividade de uma ou outra estratégia de concordância. Nas fontes de registro oral, observa-se, como padrão predominante, o masculino-singular e, como forma menos freqüente, o feminino-singular. Diferentemente, em textos literários e para-literários, houve maior produtividade do feminino-singular que, segundo a autora, seria favorecido pela norma, haja vista que o substantivo gente, gramaticalmente, é um nome feminino. Por sua vez, com base em testes de avaliação subjetiva, nota-se como padrão mais produtivo o uso do masculino-plural, independentemente do sexo do informante.

Tendo em vista o português do Brasil, Vianna (2003) confirma, em uma análise preliminar com base em uma amostra de falantes de escolaridade média (Censo/Peul-RJ), os resultados obtidos por Lopes (1999) com falantes cultos (NURC-RJ) no que se refere às estratégias de concordância de gênero e número utilizadas com nós e a gente. Embora tenha localizado as quatro estratégias de concordância com a gente (A gente está animad(a),(o),(as),(os) hoje) e o singular não tenha sido considerado categórico, à semelhança do que ocorre no português europeu (Costa et al, 2000; Pereira, 2001, 2003), os exemplos de concordância no plural são raríssimos e não seriam consideradas estruturas predicativas em sua forma canônica. A maior diferença de comportamento identificada a

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partir da amostra Censo/Peul-RJ, em relação aos resultados com base na amostra NURC-RJ, está no uso do masculino-singular que se generaliza combinando-se com a forma a gente em ambos os sexos. Tal comportamento pode sugerir que o masculino, por ser a forma neutra e não-marcada, tem se generalizado como default, principalmente quando a referência é inespecífica: referente [misto] ou [genérico].

Diante desses resultados, especula-se uma diferença de comportamento entre as duas variedades do português. Pela forte inserção de a gente no paradigma pronominal do português brasileiro, ao contrário do que ocorre na variedade européia, acredita-se que o caráter genérico e indeterminado da forma gramaticalizada esteja condicionando, no Português do Brasil, o uso do masculino-singular nos últimos vinte anos. A confirmação dessa hipótese poderia indicar um novo estágio na gramaticalização da forma em construções predicativas, no qual a função pragmático-discursiva do adjetivo tende a se perder.

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III – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

Em sentido lato, a gramaticalização é definida como o processo a partir do qual itens lexicais tornam-se gramaticais, e itens gramaticais tornam-se mais gramaticais. De acordo com essa perspectiva, postula-se que a principal motivação para o processo é a comunicação. A criatividade do falante seria impulsionada pela necessidade de obter sucesso na atividade comunicativa. Para esse fim, uma estratégia possível é utilizar formas lingüísticas de sentido concreto – facilmente acessíveis e claramente delimitáveis – para a expressão de conceitos mais abstratos – menos claramente acessíveis e menos claramente delimitáveis.

A inserção da forma a gente no sistema pronominal ilustraria um caso de gramaticalização. Segundo Lopes (1999), a pronominalização ou gramaticalização sofrida pelo substantivo gente foi lenta e gradual: o nome, durante um longo período de transição, sofreu um esvaziamento do seu significado original, sendo reinterpretado, em alguns contextos, de maneira ambígua. Essa ambigüidade tanto poderia significar “um grupamento de seres humanos” quanto “um grupamento de seres humanos, incluindo o falante”. A partir do século XX, a forma a gente assume interpretação mais nítida, perdendo propriedades características da forma fonte e assumindo, em função da mudança categorial, características da classe destino.

Partindo de outros trabalhos que já se dedicaram à análise da forma a gente como um caso de gramaticalização (cf. Omena e Braga, 1996; Menon, 1996; Lopes,1999 e 2003; Zilles, 2005; entre outros), há dois aspectos centrais que serão analisados neste trabalho.

O primeiro refere-se à concordância da forma gramaticalizada a gente, no confronto, em particular, com o pronome nós, com adjetivos em estruturas predicativas. A hipótese norteadora, como aponta Lopes (2003:84-85) “é a de que, com a entrada no sistema da forma gramaticalizada a gente, a especificação positiva de gênero formal [+fem]

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do substantivo teria se perdido, tornando-se [φfem]. No que diz respeito à interpretação semântica, a forma a gente passaria a ser semanticamente subespecificada [α FEM]”, como os outros pronomes pessoais. Tornar-se subespecificado, em termos semânticos, significa dizer que a forma gramaticalizada passou a combinar-se com adjetivos no masculino e/ou feminino a depender do gênero do referente (a gente está animado/animada). Busca-se, pois, analisar, em uma amostra de fala não-culta e de escrita, o comportamento de a gente como pronome tendo em vista os traços de gênero, número e pessoa.

O segundo aspecto refere-se à análise da variação entre nós e a gente em uma amostra constituída por testes escritos para comparação com os resultados obtidos com amostras de fala. O intuito é identificar se os fatores de ordem discursivo-pragmática, os de natureza formal e os sociais que favorecem, na fala, o uso de uma ou outra variante são os mesmos que atuam na escrita. Nesse sentido, será adotada a perspectiva variacionista laboviana discutida em Weinreich et alii (1968) e Labov (1994) e os resultados serão analisados à luz de modelos funcionais que discutem o fenômeno da gramaticalização (Hopper, 1991; Heine, 2003; entre outros).

Referências

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