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A PERPETUAÇÃO DO RACISMO NO SÉCULO XXI E OS CASOS DE RACISMO VELADO

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Academic year: 2021

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132 A PERPETUAÇÃO DO RACISMO NO SÉCULO XXI E OS CASOS DE

RACISMO “VELADO”

Sandra Regina Marcelino Pinto1 Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar análises de charges que refletem a perspectiva da Análise do discurso de linha francófona. Levando-se em conta o valor das condições sócio históricas de sua produção e o diálogo com um processo histórico para fundamentar e embasar a leitura. São considerados base nesta pesquisa Maingueneau (2013 e 2014) e Fanon (2008). As três charges se encontram-se na página de divulgação e melhores charges de Antônio Julião analisadas com foco na dimensão social e crítica sobre o tema do racismo e as condições do negro na sociedade do século XXI, elemento base de reflexão deste artigo, por conseguinte, determinou a escolha do corpus. Compreende-se como fator sócio histórico o próprio motivo ideológico para o embasamento da presença do discurso racial interatuando nos espaços sociais colocando os negros em condição inferior. As cenas enunciativas apresentadas são um reflexo da atualidade, é o gênero charge compreendido dentro de uma função social, de fazer pensar, para além do humor. O fator resultante da reflexão é a compreensão da charge como um potente instrumento para conscientizar o enunciador sobre assuntos tão importantes e o quanto se pode aprender e crescer com reflexões frutuosas, polêmicas e necessárias para uma revolução no pensamento hodierno.

Palavra-chave: Charge, Racismo; Sociedade Brasileira.

THE PERPETUATION OF RACISM IN THE 21ST CENTURY AND THE CASES OF RACISM "DISGUISED"

Abstract: This article aims to present analyses of cartoons that reflect on the perspective of discourse analysis of French line.Taking into account the value of the socio-historical conditions of your production and dialogue with a historical process to substantiate and support reading.Are considered to be the basis of this research, authors like Maingueneau (2008, 2013 and 2014).The three cartoons are on the page for the dissemination and best cartoons of Antônio Julião, analysed with a focus on social and critical dimension on the subject of racism and the conditions of black people in the society of the 21st century, base element of consideration of this article, therefore,determined the choice of the corpus. Understand how the socio-historical factor own ideological motive for the basement of the presence racial discourse interacting in social spaces, placing blacks in lower condition.The enunciativas scenes presented are a reflection of current events, is the genus charge understood within a social function, to think, beyond the humor.The resulting reflection factor is understanding the charge as a potent tool to educate the enunciator on subjects so important and how you can learn and grow with fruitful reflections, polemics and necessary for a revolution in thought today.

Keywords: Cartoon; Racism; Brazilian Society.

LA PERPÉTUATION DU RACISME AU XXIe SIÈCLE ET LES AFFAIRES DU RACISME “DÉGUISÉ”

Résumé: Cet article a pour objectif de présenter des analyses de dessins humoristiques qui

1 Doutoranda da Pontíficia Universidade Católica de São Paulo no programa de Língua Portuguesa

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réfléchissent la perspective des analyse du discours en français. Prise en compte de la valeur des conditions socio-historiques de sa production et du dialogue avec un processus historique pour fonder et soutenir la lecture. Maingueneau (2013 et 2014) et Fanon (2008) sont considérés comme base dans cette recherche. Les trois dessins se trouvent sur la page de publicité et de meilleurs dessins d’Antonio Julião analysés en mettant l’accent sur la dimension sociale et critique du sujet du racisme et la situation des Noirs dans la société du XXIe siècle, élément de base de la réflexion de cet article, donc , a déterminé le choix du corpus. Il est compris comme un facteur socio-historique le motif même idéologique pour la base de la présence du discours racial en interaction dans les espaces sociaux, ce qui met les Noirs dans une condition inférieure. Les scènes énonciatives présentées sont le reflet du présent, c’est la charge de genre comprise dans une fonction sociale, celle de faire réfléchir, en plus de l’humour. Le facteur de réflexion est la compréhension de la caricature en tant qu’outil puissant pour sensibiliser l’énonciateur à des sujets aussi importants et à ce qu’il est possible d’apprendre et de cultiver avec des réflexions fructueuses, controversées et nécessaires à une révolution de la pensée actuelle.

Palabras-clave: Caricaturas, Racismo; Sociedad Brasileña.

LA PERPETUACIÓN DEL RACISMO EN EL SIGLO XXI Y LOS CASOS DE RACISMO “DISFRAZADO”

Resumen: Este artículo tiene por objetivo presentar análisis de caricaturas que reflejan la perspectiva del Análisis del discurso de línea francófona. Teniendo en cuenta el valor de las condiciones socio históricas de su producción y el diálogo con un proceso histórico para fundamentar y basar la lectura. Se consideran base en esta investigación Maingueneau (2013 y 2014) y Fanon (2008). Las tres caricaturas se encuentran en la página de divulgación y mejores caricaturas de Antonio Julián analizadas con foco en la dimensión social y crítica sobre el tema del racismo y las condiciones del negro en la sociedad del siglo XXI, elemento base de reflexión de este artículo, determinó la elección del corpus. Se entiende como factor socio histórico el propio motivo ideológico para el embasamiento de la presencia del discurso racial interactuando en los espacios sociales colocando a los negros en condición inferior. Las escenas enunciativas presentadas son un reflejo de la actualidad, es el género cargo comprendido dentro de una función social, de hacer pensar, más allá del humor. El factor resultante de la reflexión es la comprensión de la carga como un potente instrumento para concientizar el enunciador sobre asuntos tan importantes y cuánto se puede aprender y crecer con reflexiones fructíferas, polémicas y necesarias para una revolución en el pensamiento actual.

Palabras-clave: Caricaturas, Racismo; Sociedad Brasileña.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O artigo em como tema o estudo da presença e perpetuação do racismo na sociedade hodierna do século XXI. Em muitos casos, o racismo é classificado como “velado” injustificável classificação ante a expressiva exposição da vítima e mais ainda dado o discurso do que o profere. São escolhidos para análise e maior explanação do tema o discurso e a observação dos enunciadores das charges do autor Antônio Junião escolhidas pelo tema de abordagem de assunto racismo.

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processo histórico da perpetuação do racismo na sociedade brasileira. A ideia do país como um lugar não racista, e em decorrência desse fato, a reprodução social de um discurso, fruto de um pensamento solidificado há anos é o fator de ação que repercuti no reflexo do comportamento da população brasileira. Sem frisar foco no produtor das charges, observamos os discursos do racismo e a pauta social do comportamento do brasileiro.

Considerando a charge a “fotografia” de um fato social, questiona-se a liberdade do enunciador discursivo para proferir discursos com teor altamente racistas, mas não dimensioná-lo como racista. Para tanto, nos utilizamos da Análise do Discurso de linha francófona e destacamos a conceituação de cenas de enunciação pautando-se no autor Dominique Maingueneau e sobre a temática de racismo e demais considerações observamos o autor Franz Fanon especificando a obra Pele negra, máscaras brancas.

O nome de Júlio Emílio Braz se insere neste texto dado as suas apresentações, pelos casos de racismo “velado” que o autor apresenta nas obras de literatura, sobretudo para o público infanto-juvenil. Os dramas apresentados pelo autor envolvem o leitor e esse é o segredo pelo qual a sua mensagem se difunde: a atenção do leitor e a sedução pelo tema. Para explanação do conceito de charge e das dimensões enunciativas e comunicativas do gênero, observamos conceitos de Onici Claro Flores presentes em sua obra sobre A leitura da Charge. Como a proposição se atém a delimitações discursivas, os atos de fala são sumamente importantes, para tanto, as observações de prática discursivas evidenciadas nas charges são vinculadas aos conceitos de Maingueneau de cenas, subdividindo-se em: englobante, genérica e cenografia. Esses conceitos são analisados nas charges escolhidas, dentro da dimensão da interação e troca verbal construída pelas personagens. O humor ou a reflexão proposta vem de um ethos cuja representação é proeminente em relação ao discurso e ao quadro de interação. Quando há personagem única na charge, a interação se dá com o leitor e este, sem depreensão da cena e de toda a condição discursiva da personagem, esvai-se o alcance do sentido discursivo e conceitual da performance representada pela personagem.

A respeito de Fanon, o seu pensamento de racismo desvinculado das questões de classe e, portanto, pertinente à discussão de racismo no Brasil. Fanon entende a linguagem como um fator primordial para a discussão do racismo, tanto

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como constituidora do racismo – como um elemento permeado e constitutivo de proliferação do mesmo.

A divisão do texto tem seu início com a apresentação sucinta do gênero em si e é seguida de uma subdivisão expondo então as condições sócio históricas de produção dos discursos escolhidos e sobre a condição de circulação discursiva que o chargista/artista dá a conhecer e, até mesmo, divulga seu trabalho. Posterior a essa apresentação, adentramos a discussão teórica sobre o corpus e o teor de sua delimitação a respeito da dimensão conceitual das cenas de enunciação, as problemáticas discursivas e sobre todo aparato enunciativo interativo das dimensões de discurso. Em seguida, apresentamos a análise do corpus deste artigo, como resultado dos processos de relação da percepção discursiva entrelaçada aos com os processos sócio históricos.

O GÊNERO CHARGE

Charge designa o desenho ao qual se atribui o efeito de humor. A aproximação desse efeito é vinculada ao contexto de produção e por conta disso, ele deve ser recente. Para garantia desse efeito, a consolidação com um acontecimento atual, geram o tema da charge e o número de personagem, o diálogo, as cores e todos os demais elementos pertinentes surgem do acontecimento. A leitura da charge exige domínio de elementos semióticos – unir em uma única leitura interpretativa imagens e texto – a visão de mundo é assim imprescindível para a leitura e compreensão desse gênero.

As representações caricatas, de configuração representativa de hipérbole de personagens icônicos ou exclusivamente destacadas na sociedade, foram ganhando outros rumos com o passar do tempo. As charges foram ganhando espaço em jornais e revistas a expectativa é sempre a mesma, o humor. A sociedade brasileira em suas charges apresenta uma mescla do chamado Cartoon (de origem inglesa) fixa o corriqueiro e aproxima-se da crônica na representação cotidiana da sociedade.

O riso e a provocação deste estão involucradas na relação do criador da charge com o leitor. O processo de seleção é natural, uma vez que o posicionamento do autor é conhecido (sua posição política, sua opção sexual, a preferência de “X” ou “Y” assunto) se gera uma identificação ou antipatia pela sua pessoa. São fatores acentuados no século

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XXI, não apenas a partir da hodiernidade, mas cada vez mais esses e outros fatores, tem se destacado e postos cada vez mais em evidência.

Na charge, articulam-se as relações entre autor, narrador e personagens na mesma vinheta, não sendo comum a justaposição, o que ensejaria o estabelecimento de uma sequência de eventos. Ela apresenta como que uma tirada conclusiva, uma réplica a respeito de um dado evento social, supostamente público e notório envolvendo quem assina, quem narra e as personagens, ou seja, resumindo, instâncias discursivas textuais e extratextuais. (Flores, p. 14, 2002)

Um espaço de manifestação político, social, gerando humor através de sátiras sociais, não exige conhecimentos avançados para sua interpretação, mas sem o conhecimento social, a compreensão é defasada ou até inviabilizada. É da natureza da charge a natureza intertextual, é por conta desse processo que se dá a necessidade de interagir com outros tantos como o domínio de situações sociais, políticas e atualidades para a associação daquele discurso. Por ser a charge um gênero textual vinculado à arte, ela não se isola da interação interdiscursiva. Dois fatores desejamos destacar como essencialmente importantes para a construção interativa da charge: a intertextualidade e a polifonia.

Mesmo sendo a charge encontrada em revistas e jornais, o fator econômico importa, há uma variação entre públicos, considerando o poder aquisitivo do consumidor, podemos ter charges exigindo um leitor com conhecimentos mais aguçados para interpretar alguns elementos. Porém, não há divergência do modelo, enquanto gênero textual. Há diferença de leitor, da formação de leitores, algo muito bem explorado pelos jornais e revistas. Para toda a produção de um meio de circulação, não só para a charge, mas para gêneros diversos, considera-se o público, tanto para fidelizá-lo quanto para promover uma aproximação interativa, própria de todo meio interativo.

Em relação ao gênero charge, não se pode deixar de considerar o fator de polifonia fora do assunto quando o tema é charge, “a polifonia inerente à charge, afim de depreender, dos contextos intra e inter-icônico, um jogo de vozes contrastantes provocador do riso, pelo qual a charge critica um personagem ou acontecimento político, assumindo o estatuto de texto humorístico.” (Romualdo, p. 16, 2000). A constituição do gênero se dá por seu viés dialógico, polifônico à medida que o autor apresenta o seu ponto de vista dialogando com as diversas observações

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dos leitores, interatuando em sentidos que perpassam, ou até mesmo, vão para além da percepção do autor. Em decorrência estes fatores, adentramos ao conceito de charge aproximando-o da dimensão discursiva a qual desejamos tratar neste texto.

“A charge é um texto usualmente publicado em jornais sendo via de regra constituído por quadro único. A ilustração mostra os pormenores caracterizadores de personagens, situações, ambientes, objetos. Os comentários relativos à situação representada aparecem por escrito. Escrita / ilustração integram-se...[...] Discurso verbal e ilustrações revezam-se quando vinculados ao narrador. Já o discurso icônico do narrador e o verbal das personagens mantém uma relação hierárquica. O verbal introduz-se no icônico complementando-o ilustrando o comportamento ilustrativo das personagens criadas pelo narrador.” (Flores, p. 14, 2002)

É dessa interação discursiva a relação necessária para propor as condições de leitura. Recobrando Benveniste, linguista francês, renomado por suas concepções sobra a importância da linguagem para a constituição do ser humano como sujeito, este texto considera a esfera sociocultural da dimensão da charge na aquisição interativa de aquisição de conhecimentos de diversos assuntos ao consultar e conhecer os assuntos. Proposição para reflexões sobre alfabetização e letramento, leitura como entretenimento, relação de interação linguística interpretativa, semiótica e outras questões, o discurso múltiplo do verbal e não verbal e fonte de elementos para diversos âmbitos de observação polifônica. Termo de predileção do filósofo da linguagem M. Bakhtin com a finalidade de caracterizar vozes plurais presentes no romance de Dostoiévski. Para Benveniste a junção semântica e semiótica é necessária para se se atribuir significação. O que não se pode negar a compreensão de leitura como um processo interativo.

A gênese do narrador se dá com a da própria charge, sendo ele (narrador) responsável pelo jogo interativo com o leitor, incumbindo-se de compor o texto, distribuir desenho e a escrita, estabelecer graus de participação de cada linguagem, tipificar e definir personagens, enfim, dar voz, expressão e personalidade as suas criações. Ao narrador cabe estabelecer vínculos entre texto e contexto, sendo sua existência totalmente dependente da publicação da matéria. (Flores, 2002, p.14)

A interação do verbal e não verbal, atrai e é capaz de propor profundas reflexões. Muitas vezes, o leitor recorrer a um texto denso, teórico, com proposições cabíveis e bem elaboradas, não lhe seria possível depreender a densidade do texto,

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enquanto a charge, literalmente, usando poucas palavras, composta pela densidade de todos os seus elementos, se bem explorados, há possibilidade de propor um raciocínio produtivo, capaz de mobilizar a percepção do leitor para um fato.

Posterior a apresentação do gênero, sua função social, modelo e finalidade, seguimos reflexão adentrando em implicações direcionando para as charges que escolhemos para serem tratadas no corpus deste artigo. O poder de promover debate e reflexão estão vinculados a sua força enunciativa. Considerá-la como um elemento humorístico é pouco dentro de todas as questões que ela envolve, sua leitura agrega posicionamento, suscita concordar ou discordar e, a leitura obstruída e carregada de purismo. Entre o século XX, marca de seu surgimento, e o século XXI esse gênero tem sempre o mesmo propósito, mas os tempos mudam, e esse fator influencia a leitura, a compreensão, a interpretação e a interação entre autores e leitores. Passemos a uma reflexão com foco nestes pontos.

MUITO ALÉM DO HUMOR: A CHARGE E SEUS EFEITOS DE SENTIDO

As caricaturas exageradas, sem a composição de elementos escritos, posteriormente incorporados, condições sócio históricas de produção dos discursos escolhidos e sobre a condição de circulação discursiva que o chargista/artista revelam de per si o público que se desejava alcançar, ou seja, o foco não eram os letrados, os cultos, mas a massa. A Imprensa Nacional, instituída pela família real portuguesa no ano de 1808, para publicar livros, panfletos e jornais era obsoleta para a população que carecia meios necessários para compreender o conteúdo escrito. Muito importante para abolicionistas e republicanos, na propagação de suas ideias, no ávido desejo de construção da identidade nacional, explorado pelo romantismo, ainda assim ela enfrentava um grande problema.

O século XIX no Brasil tem a população composta por negros alforriados, uma vasta população pobre sem condições de frequentar escolas e no começo do século XX chegam os imigrantes sem o domínio da língua portuguesa.Neste cenário de uma população analfabeta contando com poucos leitores, a convenção foi propor caricaturas, como um elemento suscetível de leitura para ambos os públicos. Caricaturas promovem reflexão, entre os nomes disseminadores desse gênero está o crítico, historiador e diplomata Araújo Porto-Alegre (1806-1879)2. Outro nome importante é o de Ângelo Agostini (1843-1910) considerado o nome de destaque no Segundo Reinado este ítalo-

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brasileiro foi o fundador do Diabo Roxo, o primeiro jornal ilustrado da cidade de São Paulo e contava com textos da autoria do abolicionista e poeta Luís Gama.

Por ser serem os chargistas são pessoas de um nível de conhecimento superior ao do povo, e nomes respeitados entre a classe de prestígio econômico, a caricatura entra para a história da sociedade brasileira como um elemento de expressão artístico, sem esquecer que a criticidade é uma das funções desempenhadas pela arte. Não é difícil compreender, dado o contexto traçado da maioria da população não ter domínio dos códigos escritos, há junção de baixo índice de caracteres e linguagem muito simples, somando-se ao incentivo do não verbal para se apropriar da leitura e interpretação do conjunto. Como o Brasil fora um país que viveu um período ditatorial, essa relação de arte e criticidade retrata perigo.

Toda charge tem uma proposição de diálogo com o contexto social, os registros linguísticos, os sentidos do enunciado conjuntamente com o desenho, formam o texto. Seja por um recurso publicitário, por interesses diversos da imprensa, pela ideia original de seu criador, há presença de uma intenção discursiva, para muito além do humor. Muitas vezes se entende o humor como elemento imanente à charge, isso não é efetivo, ainda que este possa ser uma das suas possíveis inter-relações, é um gênero textual passível de interpretação, condição sine qua non para compreender o riso como uma possibilidade e não como uma condição intrínseca a leitura

...] é sempre a totalidade do discurso que se aprende a partir da inferência dos vários conceitos que se entrelaçam – e cuja repercussão no plano teórico não é desprovida de significação: ao longo de todo o trabalho do autor, explicita-se um certo modo de inter-relação entre os diversos temas tratados que garante, em última instância que a própria enunciação da obra mimetize a solidariedade entre os diferentes dispositivos de análise apontados. (Maingueneau, p.16, 2013)

É a diversidade de possibilidades de leitura, compreensão, o nível interpretativo voltado a contextualização encadeada dos elementos atribuída pela troca de sentidos possíveis de serem inferidos, é a base para a compreensão de todo e qualquer discurso. Com a charge, não é diferente, a construção de uma cena

enunciativa é apresentada articulada pelo ato enunciativo. Tudo é significação e

importante para a composição de um sentido e nesse caso o conhecimento das condições de produção, auxiliam na compreensão e inferência dos fatos. A unidade constituída não simplesmente não tem significação se isolada e nem o desenho, caso

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este seja construído junto com o elemento textual contido nele. Para essa mobilização da memória chegar ao alcance de seu conjunto, o conhecimento de mundo acionado é o terceiro elemento do conjunto essencial para a constituição de sentido. A construção expressa na charge dê resultado de um conhecimento e interpretação de mundo elaborada para interatuar com outros olhares e saberes, são referências necessárias para a leitura.

Provém dos efeitos de sentido a leitura, a interpretação, a significação e o ato de considerar ou desconsiderar da informação apresentada em uma charge. Os recursos da memória são mobilizados e com isso, o intérprete acessa a relação dos sentidos. O leitor tem sentidos em negociação ao interagir com o dado apresentado, há limites para a polissemia que são negociados com questões sócio históricas e a compreensão se guia por entre esses efeitos. Se há apresentação de uma charge de um contexto político, religioso ou social entre outros, ele não pode ser interpretado desconexo de uma construção que considere o mote factual mencionado, dessa forma, não há margem para vinculá-lo a um tema descontextualizado, à referências externas ao contexto expresso e tudo somado ao exercício de conexão proposto pelo cérebro de vincular os elementos supracitados: a soma dos elementos verbais e não verbais.

Consoante Maingueneau (2013) as instruções para interpretar, uma interpretação confiável será obtida pelo leitor “apoiando-se simultaneamente no contexto” (p.31) a reflexão dos termos expressos, das cores, dos elementos iconográficos em seu conjunto interação dos elementos semânticos e sintáticos e um domínio pragmático que independe da competência leitora. Um estrangeiro pode aprender uma língua e não ter habilidades pragmáticas necessárias para desenvolver compreensão neste gênero e uma pessoa com pouco domínio da competência leitora mostrar mais habilidade de compreensão. A pragmática o elemento diferencial neste sentido, através dos conhecimentos adquiridos, a interpretação fluirá e o destinatário chega a uma análise de contexto para além de uma compreensão fixada apenas na sintaxe apresentada e na composição semântica. E neste quesito se afere conhecimentos e capacidade de conexão com o contexto, com a o que Paulo Freire denominava um bom nível e capacidade de leitura, a leitura de mundo, precedida da leitura da palavra. Há uma seleção de informações filtradas para se chegar ao sentido do apresentado, do micro ao macro e o contexto vai sendo desenhado

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elevando o nível de compreensão essa é a reflexão equivale ao pensamento da Análise do Discurso ao acreditar que “o destinatário não é passivo: ele próprio deve definir o contexto do qual vai tirar as informações necessárias para interpretar o enunciado” (Maingueneau, p.32,2013).

Essa afirmação não anula a prevalência do mote autoral, inclusive o leitor, acionando outros conhecimentos pode vir a complementar a leitura com elementos intertextuais desconhecidos do próprio autor, o contexto e as inferências possíveis de serem relacionadas a ele só mostram a condição polissêmica organizada entre os meios pelos quais se acessa e se organizam as interações cabíveis de análise “A

priori nunca há uma única interpretação possível para um enunciado e é preciso

explicar quais os procedimentos do destinatário para chegar à mais provável, que será aquela que se deve preferir em tal ou qual contexto.” (Maingueneau, p.32,2013). Não se pode dizer que haja uma interpretação dos sentidos, mas uma produção de sentidos negociada, um processo construído através da interação com os elementos apresentados em um gênero textual, com o mundo e com os outros para a leitura e aprofundamento da leitura, e, tudo isso, independente do gênero, não se pode considerar sobrepor a semântica sobre à pragmática ou considerar a sintaxe soberana no conjunto, mas a compreensão dos elementos utilizados em determinado gênero, produzidos e apresentados em dada cena.

Refletir sobre charge, sem considerar as condições sócio históricas de sua produção é desvincular-se do gênero, desconsiderar a essência deste gênero e em consonância com as considerações estabelecidas pela A.D., as condições de produção são analisadas primeiramente olhando para a época de sua criação, posteriormente se pensa nas demais categorias de análise. Sem desconsiderar a dimensão crítica, nas charges presentes em marcas linguísticas, cores, na relação intertextual, os elementos semânticos, pragmáticos e textuais são importantes e todos eles podem e ajudam na leitura do texto. A crítica, para ser compreendida, incorpora ironia, ancorada ou se pode dizer, oriunda de um fato ocorrido ou situação enunciativa soando como uma resposta, como uma crítica, contestação ao fato ocorrido.

Para muito além dos efeitos de sentido estabelecidos apenas na obtenção do humor, a charge tem como centralidade a necessidade de conhecimento de um fato social ocorrido para suscitar sua compreensão e leitura. O destinatário tem

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instruções dadas pelo contexto do conjunto e precisa do contexto para criar hipóteses interpretativas, negociando a produção dos sentidos não inventando-os.

Os efeitos de sentido de uma charge são comprometidos com a sua

apresentação e com o conhecimento sócio histórico de sua construção. A sua leitura depende essencialmente da interação desses dois elementos para acontecer. Sem a referência da produção, a inferência do emissor é debilitada e se perdem efeitos de sentido essencialmente necessários para obtenção da compreensão plena da interdiscursividade presente, afinal a leitura desse gênero não se centra apenas na competência leitora, há um aparato dado pela condição de produção responsável pelo processo de interação, um elo entre o emissor e a garantia de uma leitura estabelecida nas hipóteses implícitas, sem passividade, mas consciente das inferências dadas na integração do processo linguístico, social, cultural e acima de tudo promissor em instigar o emissor através da mobilização da memória do intérprete.

A PERPETUAÇÃO DO RACISMO NO XXI

Um país colonizado, um passado com escravagista e o registro histórico feito de modo a ser necessário a criar leis7 para se mencionar os donos desta terra e os trazidos a força para ser mão de obra escrava. Cinco séculos completos, esse foi o tempo para que na história deste país aparece algum tipo de consideração e reconhecimento nos estabelecimentos de ensino a presença dos negros e indígenas como importantes para a composição cultural, ou ainda, apresentarem-se nos livros didáticos sem ser representados como escravos e inferiores. “Fanon ressalta inicialmente que o racismo e o colonialismo deveriam ser entendidos como modos socialmente gerados de ver o mundo e viver nele. Isto significa, por exemplo, que os negros são construídos como negros.” (Fanon, p.15, 2008).

Em posição de analista do discurso, é possível compreender a importância da transmissão discursiva para manter esse pensamento em vigor sendo alimentado e repassado de modo a ganhar força e tudo isso devido a não reflexão do óbvio: reforçar

7 Lei 10639/2003 inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e

Cultura Afro-Brasileira e a Lei 11.645/2008 estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro- Brasileira e Indígena”.

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a supremacia de um povo, só é possível rebaixando o outro. “Para entender como tais construções ocorrem, o caminho lógico é examinar a linguagem, na medida em que é através dela que criamos e vivenciamos os significados.” (Fanon, p.15, 2008). Fanon se refere a língua falada pelo colonizador, mas para aplicarmos ao nosso contexto, encontramos barreiras linguísticas por associações negativas ao negro depreciativas, de fato elas não são o foco deste texto, porém, incidem no que encontramos em nosso corpus, – reflexo da sociedade contemporânea – e a apresentação escrita conta e é importante para a compreensão do conjunto e valoriza a reflexão.

Os reflexos estereotipados sobre ser negro não reforçam nem estimulam nada positivo, o resultado desse processo histórico, mas o questionamento é o motivo de perdurarem essas questões até a hodiernidade. Pois bem, as condições sócio históricas depreciativas de hoje, foram projetadas e construídas para justamente vivermos o cenário de contemporâneo, afinal, se esses atos fossem considerados vergonhosos e uma triste lembrança, cairiam em ostracismo.

Os argumentos são diversos: há muitos negros que alisam o cabelo por não se aceitarem, os próprios negros se inferiorizam, antes se podia falar qualquer coisa e fazer qualquer brincadeira com os negros e não era racismo... e mais uma vez se comprova o pensamento de W.E.B. Du Bois mencionado por Fanon “em vez de estudar os problemas enfrentados pelas pessoas negras, as próprias pessoas passam a ser o problema” (Fanon, p.15,2008). Ideia amparada num patamar discursivo, um exemplo disso é não ver racismo no Brasil. As relações humanas são construídas por processo de interação, no caso do negro, a rejeição é disseminada, trabalhada de modo a ser inserida entre os negros. A inferiorização com base na submissão dos dominados

é sustentada por um discurso infundado, se não foram os escravizados que

registraram a história, então como garantir a submissão como algo real? Não se exigem comprovações, apenas a reprodução de um discurso consolidado em espaços institucionais conceituados como igrejas, faculdades, escolas os denominados por Athusser: Aparelhos Ideológicos do Estado.

O trabalho de análise deste contexto, através do gênero charge permite observar a “destacabilidade trata-se de enunciado que se dão como autônomos, de um ponto de vista textual” (Maingueneau, p.14, 2014). O conjunto apresenta uma frase inserida, ou mais de uma, chamando a atenção para falas sociais, em diferentes

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espaços sociais, um exemplo da diversidade de espaços onde se pode encontrar a situação do negro no Brasil, seu tratamento e sua condição sem apresentar um contexto denso histórico ou atual, mas fácil para compreender a intenção do autor em seu trabalho e o diálogo presente no exposto com a realidade brasileira.

Nos registros literários, na TV, no cinema, nos espaços sociais de prestígio, entre o século XX e XXI há uma apresentação do negro brasileiro que para ser compreendida é preciso observar quem é o autor, quais demandas sociais e

termômetros sociais para o fazer e o deixar de fazer. Atores e atrizes negros se

mobilizam e fazem força para combater retrocessos como o episódio supracitado dos menestréis e se há quem acredita ser impossível, a comprovação está na peça A

mulher do Trem da Companhia Os fofos e estes relatos datam o ano de 20155. A peça remonta exatamente o mesmo processo: atores brancos pintados de negros configurando o riso nesse caráter compreendido como um humor situacional e não racista.

Não há nenhuma possibilidade para alegar desconhecimento, ou algum tipo de ingenuidade referente a esta situação estando no século XXI, há descomprometimento e irrelevância no ato de não reconhecer esse tema como essencial para a sociedade. O século XXI promove uma efetiva arma para a disseminação do racismo, de modo efetivo, os “comentários” vão para longe de forma

rápida, eles refletem e defendem a proliferação do racismo.

O histórico da escravidão não nos deixou um legado de vergonha e sim um pensamento racista embasado na eugenia, no darwinismo social fundamentado no filósofo inglês Herbert Spencer estabelece legalidade na submissão do negro ao branco embasando-se na superioridade das raças isso no final do XIX e início do XX. O Brasil de Silvio Romero (jurista, promotor e deputado era defensor da imigração europeia com finalidade da promoção da política de branqueamento) Nina Rodrigues (reconhecido pela sociedade da época por pioneirismo em estudos voltados aos negros, defendia a predisposição do negro a “certas” doenças e predisposição à criminalidade), Renato Kehl (foi médico e escritor, se referia a eugenia como a

religião da humanidade e defendia uma legislação como o Aparthaid para o Brasil)

estes nomes, icônicos na sociedade brasileira no século XX, tiveram suas teorias reconhecidas e são mencionados para a sociedade como referências intelectuais. Não é difícil compreender com esse pensamento o motivo do pensamento brasileiro

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fundamentar o racismo tendo por pilares estas referências.

O desejo de Renato Kehl se concretizou, não na criação de uma lei ou na determinação do Estado em segregação de espaços, mas instaurou-se um Aparthaid econômico, como é observado pela banda O Rappa na letra da canção Catequeses do

medo (Álbum O Rappa de 1994) e pode-se acrescentar a esses fatores o sócio cultural,

religioso estabelecendo um binarismo social solidificado no Brasil por essas e considerações. Esse é um argumento estatístico comprovado nos salários, nas profissões ocupadas por negros reflexo de um processo escravocrata projetado em manter o racismo e não em saná-lo.

Sessenta por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais Já sofreram violência policial

A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras Nas universidades brasileiras

Apenas dois por cento dos alunos são negros

A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente Em São Paulo

Essa é a introdução da letra Capítulo 4, versículo 3 álbum lançado no ano de 1997 e o cenário de hoje não apresenta mudança e sim agravantes. Indiscutivelmente é evidenciado um discurso respaldado pela sociedade alimentando esses atos e perpetuando esses acontecimentos.

A concepção e a legitimidade dessas questões são, de modo linear, ora explícitas e ora desviadas de foco, um eufemismo para demonstrar que isso não significa declará-las extintas em nosso país.

O racismo no Brasil se recria, seu potencial destrutivo é alto, e o alicerce sólido para essa ocorrência é a educação. É o contexto didático repassado por gerações reforçando a ideia de submissão de uma raça sobre a outra. É a religião que condena o outro por não ter alma, ou condena a religião do outro por ser pecado, associada ao mal e cheia de elementos negativos. É a sociedade civil, o reflexo de uma polícia que mata a mando de um Estado que encarcera em massa os negros e uma mídia que notícia e nada faz para promover uma alteração desse pensamento. Mas tudo isso é trabalhado para não ser percebido, os AIE de Lois Althusser agem estrategicamente, é preciso fazer o povo pensar como desejam e partindo disso implementar o racismo velado.

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146 Felipe levantou o braço e disse:

- Eu vou ser Jesus!

- Alvoroço. Alguns acharam graça: - Felipe, de Jesus?!

A professora ficou olhando para ele sem saber o que dizer. Dava pra ver o embaraço nos olhos dela, e aquele embaraço só fazia aumentar à medida que as primeiras piadinhas e risinhos apareciam de um lado e outro da sala. (Braz, 2004, p. 9).

Com esse pequeno trecho ilustra-se um caso embaraçoso, engraçado no contexto escolar. E assim surge então mais um caso de racismo “velado” no Brasil: um negro que quer ser Jesus. Da autoria de Júlio Emílio Braz, escritor de literatura infanto-juvenil com obras publicadas no exterior (Portugal, França, Bélgica, EUA e Cuba). Júlio apresenta em sua obra o contexto de produção do racismo na escola, nas relações sociais, nos espaços do dia a dia, onde ele acontece e não é percebido. O trabalho do autor leva a compreender manifestações de hierarquização presentes no discurso arquitetado para não ser perceptível e por isso detectado como “velado”.

O preconceito aparece na gente muito antes do que imaginamos e falo na gente com a maior sem-cerimônia do mundo, pois muitas vezes eu também me surpreendo responsável por algum tipo de preconceito. Ele está por aí, saibam todos. É quase inevitável. (Braz, 1994, p. 64)

É a exata discussão que propomos para o corpus, escolhemos as charges de Antônio Julião, para perceber a presença do racismo no cotidiano brasileiro. A expressão cotidiano tem equivalência em ser comum, banal, ou seja, sem importância. Observemos a primeira charge para análise e vejamos o quanto dos elementos acima supracitados podemos recobrar:

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Figura 1.

Fonte: http://www.juniao.com.br/chargecartum/

O registro temporal, conforme disponibilizado por Junião em sua página é 25 de junho de 2015. Como foi proposto uma apresentação da cena enunciativa, partindo então da cena englobante analisamos o tipo de discurso encontrado e ao analisarmos percebemos personagens, falas, um contexto fundamentado dentro de um espaço configurando todo um aparato situacional. A cena genérica, facilmente reconhecida pela estrutura do gênero charge e suscita a análise de toda a conjuntura para acionar leitura e interação com os elementos apresentados. A cenografia é creditada por Maingueneau como a primeira instância, o primeiro olhar do enunciador, por isso a classificação genérica a precede e lhe fornece bases para a leitura.

Sobre a cenografia apresentada ao percebermos um jovem negro no carro e um policial fora, sem observar os registros escritos se percebe tensão/raiva no jovem negro e ironia do policial parado pela expressão de ambos e sinais iconográficos acima do carro. Num contexto social, a charge traduz em seu conjunto a ideia de transposição do racismo colocando-o não como algo posto do branco para o negro, mas é o negro quem insiste em seguir com a ideia de racismo “é coisa da cabeça” do negro e não uma reprodução do pensamento escravagista, um fator resultante de um processo histórico. Ademais, o policial está ali para “protegê-lo” e jamais o pararia se ele não “parecesse um ladrão”. De acordo com uma pesquisa feita por Lilia Moritz Schwarcz, historiadora e professora no departamento de antropologia da Universidade de São Paulo (USP), constatando “97% dos entrevistados afirmaram não ter preconceito, mas 98% disseram

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conhecer pessoas que manifestavam algum tipo de discriminação racial.”8

Essa não é uma ideia apenas – apenas – legitimada pela polícia, essa imagem é reproduzida na mídia quando todos os bandidos são negros a elite é branca: filmes, novelas e séries. Ladrões tem um padrão físico, ou de acordo com o pensamento de Nina Rodrigues, há uma predisposição, uma tendência a ser ladrão. É a reprodução de comportamento, - comportamento este legitimado, seguido e reproduzido pela sociedade – fator principal de não se perceber ou se sentir racista. É internalizado, um acordo social, legitimamente construído de modo a não ser percebido, identificado ou reconhecido com a finalidade de não ser combatido.

O próprio Antônio Junião comenta a respeito da charge acima em sua página a questão da consciência negra, da força do movimento negro, em seus diversos núcleos espalhados pelo Brasil, ainda não de forma plena, como ele bem salienta, mas acordaram muitas mentes para essa causa: “Daqui pra frente, racistas, quando tentarem passar, ouvirão muito protesto e terão de encarar tanto a lei quanto a vergonha social.9

Em fase da disseminação do pensamento como uma vergonha para os negros e um orgulho para os brancos é a ideia regente dessas atitudes respaldadas no discurso condizente com a legitimação do mito da democracia racial: “é para a sua segurança... não há racismo no Brasil, somos um país miscigenado... você ficaria tão linda se alisasse seu cabelo...”. Chamar a negra de morena, preencher a vaga pela “boa aparência”, fazer distinção pela cor para conceder algo, porém enquanto muitos não conseguem ter acesso a seus próprios direitos outros ostentam diversos privilégios. Tomemos por exemplo a educação, consoante a Carta Magna brasileira em seu capítulo III, artigo 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” Quando consideramos o percentual de negros e brancos matriculados em séries iniciais de ensino, quando comparamos a relação de crianças brancas e negras em escolas particulares, quando observamos o número de evasão escolar, é abismal a diferença étnica. Declarar esse fato um problema social não exclui a questão racial, são os negros a parcela com maior dificuldade financeira no país e essa é uma estrutura

8 Folha de São Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/folha/publifolha/351832-obra-desvenda-a-construcao-e-o-funcionamento-do-racismo-no-brasil-leia-capitulo.shtml

9Confere na página de charges comentadas de Antônio Julião

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configurada já desde o 1888. Considerando essa reflexão, a educação não é exatamente um direito e sim um privilégio, sobretudo quando se menciona uma educação de qualidade. Partindo dessas considerações, observemos a charge abaixo.

Figura 2.

Fonte: http://www.juniao.com.br/chargecartum/

A cena de enunciação acima apresentada compõe-se de uma discussão política, a cena englobante apresenta um binarismo, nas falas das personagens do conjunto em toda a estrutura da charge: nas crianças representadas e os demais personagens se mostram “presentes” por suas “falas”. A cena genérica mantém-se e a reflexão dos papéis dos participantes presentes compõem um quadro cênico analisado com diferentes considerações, considerando a mesma pauta, mas com distintas ponderações e meios de se posicionar sobre a mesma situação esse traço auxilia o receptor a captar o quadro cênico e a adentrar-se no interior do discurso. A cenografia revela as ideologias sociais e os posicionamentos decorrentes degenerados por uma e outra posição, a marca das palavras revelando manifestações favoráveis e contrárias por intermédio das enunciações proferidas é possível chamar a atenção do público.

O segundo, uma charge com registro de data 25 de junho de 2015 no site de Junião, traz uma discussão aproximada às considerações do primeiro exemplo, prevalecem os argumentos sem efetiva fundamentação e a discussão “rasa” de conceber o tratamento adequado. E recobramos a discussão da temática da educação e a discussão

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da redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Para uma sociedade favorável a promoção de encarceramento em massa, e nos cárceres encontramos a população negra em elevados índices, o mesmo ocorre nas unidades prisionais de menores e consideremos ambos espaços com registro de superlotação.

Para recobrar a discussão proposta da educação como um dever da família e do Estado encontramos uma falha de ambos, muitas famílias tem problemas causados pelo Estado: o desemprego, a falta de acesso a saúde e a educação, indenizações negligenciadas enfim, a não promoção dos direitos e sim a expropriação de direitos é imposta ao cidadão por quem deveria garanti-la. O outro ponto a ser observado a subjetividade dos fatos quando consideramos a atenção dispensada a cada uma das crianças, na imagem à esquerda temos a referência de família na palavra “pai”, pede-se “calma”, expressão de reflexão antes de qualquer medida. Na imagem à direita, não se considera a presença de elementos familiares e sim uma sociedade que vocifera e se mobiliza contra o menino já não considerado uma criança, e sim um “ladrão” conforme se confere no registro. Pede-se redução da maioridade penal em frase marcada pelo advérbio de tempo “já” expressão de urgência desse ocorrido.

Essa charge compõe a série intitulada Sobre Crimes e castigos publicada no site da Ponte Jornalismo e a intenção da criação é o debate a respeito da falta de argumentação sobre a Redução da maioridade penal. As bases familiares e o acesso a educação são temas intrínsecos a essa discussão e não são considerados, não existe uma discussão isolada da outra. As discussões provindas de reflexão considerando apenas uma dessas partes é invalida, consistem não só no reflexo do nosso fracasso e retrocesso, mas também revelam o motivo de não avançarmos como sociedade.

Figura 3.

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Terceira e última charge apresentada para análise e conferimos uma cena enunciativa, de denúncia social recobrando um contexto político e um resgate histórico pela relação da ditadura ocorrida em nosso país. A cena englobante nos mostra um discurso de resistência e embora haja elementos escritos, não são de fala, são expressões de manifestação e contestação social. A cena genérica nos conduz a observar uma charge de conjuntura organizada para acionar a relação de elementos extratextuais e de outro gênero, a Supersérie brasileira de outra mídia (a televisão) intitulada Os dias

eram assim sobre o contexto da ditadura dos anos de 1970, esse conhecimento é

necessário para acionar leitura e interação com o cenário apresentado na avaliação da cenografia. A cenografia é composta de um jovem, negro e a relevância dada a esse fato é realçada em dois momentos a cor de sua pele e na frase em suas costas, ambos revelam a militância negra e a atuação do movimento negro perseguido, mas resistindo a luta.

As personagens, por outro lado, passam a existir através do texto e por meio dele ganham alento próprio. Em princípio são ficcionais. Suas características e comportamento, inclusive as falas, compõem o conteúdo que preenche a charge. Maior ou menor verossimilhança e densidade decorrem dos enunciados assumidos por elas, ao darem vazão ao seu papel. (Flores, 2002, p.14)

O destaque dado tem em ambas questões relevância: tanto na ditadura quanto na temática dos negros. O autor comenta essa charge afirmando serem as “Violações praticadas contra opositores políticos no período da Ditadura Militar são como as que o Estado segue cometendo contra moradores de periferias hoje, a maioria negros”.10 O

Estado como criador de problemas, eximindo-se de solucioná-los, esta é a origem do sofrimento de muitos brasileiros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O diálogo promovido pelo gênero charge tem potencial de mobilizar e fazer pensar questões profundas, e sobretudo há relevância em sua pauta por atentar-se a temas atuais. Mesmo partindo de textos curtos, a junção dos elementos verbais e não verbais formam o conjunto de leitura e o ato de ler é interativo, pode ser mais e menos profundo de acordo com os elementos acionados e necessários para se fazer inferências.

10 Junião cartunista. Fonte:

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O conhecimento é adquirido pela troca, e sem troca não há avanços, advém desse fator a necessidade de conhecimentos prévios sobre determinado assunto.

Entender a leitura de charges aprofundando a sua própria dimensão, a reflexão do social, para se averiguar a perpetuação do racismo no século XXI é chegar a triste comprovação da existência dessa perpetuação e de sua circulação na atualidade, afinal charges consideram temas cotidianos para sua criação. A charge auxilia na missão de difusão de ideias em um país onde abundam problemas com a leitura, aproxima, proporciona interação com o não verbal favorecendo a compreensão do verbal por inferência e por níveis não tão desenvolvidos de leitura.

Um país cheio de problemas com a educação, não a torna de qualidade, e revela-se muito censurando, censurar não é só proibir é impedir: impedir avanços na condição de trabalho de nossos professores, impedir debates e impedir construção de argumentos sólidos, visão e compreensão de barbáries do passado para impedi-las no futuro. Tudo isso torna o Brasil uma presa fácil para os para a perpetuação do racismo e promove um futuro sem avanços projetando os mesmos problemas do passado.

REFERÊNCIAS

BRAZ, Júlio Emílio. Felicidade não cor. São Paulo: Moderna, 1994.

FANON, Frantz Omar. Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA: Salvador, 2008 FLORES, Onici Claro. A leitura da charge. Editora da ULBRA, 2002

MAINGUENEAU, Dominique. Frases sem texto. Editora Parábola: São Paulo, 2014 _______ . Análise de textos de comunicação. 6ª Edição. Editora Cortez: São Paulo, 2013

ROMUALDO, Edson Carlos. Charge jornalística: intertextualidade e polifonia: um estudo de charges da Folha de São Paulo. EDUEM: Maringá, 2000.

Recebido em janeiro de 2019 Aprovado em março de 2019

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