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D’ O Guarani de José de Alencar e Carlos Gomes aos Guaranis do clown Benjamin: Diálogos entre literatura, cinema, circo e música

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Aniki vol.5, n.º 1 (2018): 78-104 | ISSN 2183-1750 doi:10.14591/aniki.v5n1.350

D’O Guarani de José de Alencar e Carlos Gomes aos Guaranis

do clown Benjamin: Diálogos entre literatura, cinema,

circo e música

1

Danielle Crepaldi Carvalho

2

Introdução

Um dos grandes sucessos teatrais do ano de 1908 é Os Guaranis,

“pantomima histórica” encenada no Circo Spinelli pelo popular

ar-tista Benjamin de Oliveira. Baseada em duas versões de O Guarani

3

,

ambas obras símbolos do patriotismo brasileiro – a original, o

ro-mance histórico escrito por José de Alencar (em 1857), e a sua

adaptação operística (de 1870), de autoria do compositor brasileiro

radicado na Itália Carlos Gomes –, Os Guaranis tinha como

peculia-ridade ser encenado e protagonizado por um clown negro, intérprete

do índio Peri. A carreira bem sucedida da peça pelos Estados de São

Paulo e do Rio de Janeiro, em cujos palcos circulou desde 1902,

cul-mina em sua migração do picadeiro à tela do cinema, no filme

homônimo exibido, a partir de setembro de 1908, no carioca

Cinema-Palace, acompanhado por uma “orquestra aumentada”

4

especialmente para a ocasião (“Cinema-Palace” 1908a, 6).

Este artigo considera que, para a compreensão dos usos dos

sons no cinema silencioso, é fundamental o desbastamento do

ema-ranhado da teia social no interior da qual o cinema era engendrado.

Procura, portanto, refletir sobre os sentidos construídos pela

adapta-ção de Benjamin de Oliveira, ao palco do circo-teatro e, enfim, ao

cinema, colocando-se em primeiro plano os deslocamentos operados

pela produção cultural em tempos de primeiro cinema. Para isso,

1 Agradeço as leituras cuidadosas de Eduardo Morettin e dos pareceristas deste

periódico, fundamentais ao melhoramento do texto, bem como a Carlos Roberto de Souza, cujos conhecimentos no campo da história do cinema muito colaboraram para o estabelecimento da metragem da fita Os Guaranis, e, enfim, a Fernando Neves, que conhece de berço a história do circo-teatro no Brasil, pelas longas e ricas conversas a respeito do tema.

2 Universidade de São Paulo, Escola de Comunicações e Artes, 05508-020, São

Paulo, Brasil. Pós-Doutoranda da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, bolsista FAPESP (15/06383-4).

3 Optei por atualizar a ortografia das citações, dos nomes próprios, bem como dos

títulos de livros e de filmes.

4 Não pude aferir o número costumeiro de integrantes da orquestra do

Cinema-Palace. No entanto, a referência ao seu incremento quando da exibição de Os Guaranis é por si só digna de nota.

(2)

retrilhará o percurso da criação de José de Alencar, do livro

im-presso às cenas operística, teatral, circense e, enfim, cinematográfica

– ponderando, no que tange à música, no papel desempenhado pela

partitura de Carlos Gomes em cenas tão díspares. O objetivo aqui é

compreender o cinema da aurora do século XX no interior do

cadi-nho cultural de seu tempo e, daí, a relação de mão-dupla que tal arte

estabelecia com o âmbito dramático e o musical, e a presença, na sala

do cinema, da polifonia social

/

sonora. Dada a ausência empírica da

matéria fílmica, o percurso se tecerá a partir dos registros escritos e

visuais que restaram da obra (anúncios, artigos, crônicas,

fotogra-fias), espalhados por arquivos brasileiros como o Centro de

Documentação e Informação da Fundação Nacional das Artes

(CEDOC-FUNARTE), O Arquivo Nacional e a Hemeroteca Digital

Brasileira (que disponibiliza a íntegra dos principais periódicos

pu-blicados à época).

O plural ao qual se refere o título da obra de Benjamin de

Oliveira – Os Guaranis – relê, pela chave crítica, a personagem-título

concebida por José de Alencar e Carlos Gomes. Protagonista da

pan-tomima e do filme, o clown negro Benjamin – artista multifacetado,

exímio mímico, humorista, instrumentista e cantor – inverte os

si-nais que historicamente silenciaram o papel das etnias africanas na

conformação da identidade brasileira, elevando-as simbolicamente

ao papel de protagonismo, ao inserirem-nas no cerne das cenas

cir-cense e cinematográfica do Rio de Janeiro, crescentemente

frequentadas pelas elites sociais. Artista que usualmente utilizava a

máscara branca – a máscara primordial do pagliaccio da commedia del

arte, segundo Dario Fo, donde mais tarde se originará o Pierrot

(apud. Silva 2007, 44) – abandona-a em Os Guaranis, surgindo no

picadeiro num só tempo negro e índio, interpretação derrisória que

merece o plural que dá título à peça.

A denominação Os Guaranis acena, ademais, para a mescla

en-tre a cultura erudita e a popular que caracterizava a sociedade

brasileira da época – mescla que o âmbito circense tão bem explicita,

já que historicamente se apropria, com a disruptiva sem-cerimônia

que lhe é típica, dos repertórios dramático e musical eruditos,

inse-rindo-o no centro do picadeiro, adequado às características

individuais da trupe e às dimensões mais exíguas do palco e da banda

circense. Na sala do Cinema-Palace, aquela “orquestra aumentada”

especialmente para o programa do qual fazia parte a fita

(“Cinema-Palace” 1908a, 6. Cf. Imagem 1) provavelmente mimetizava a

ence-nação circense da obra de Benjamin, fazendo com que a música

grandiloquente de Gomes conduzisse as sombras cinzentas a

desem-penharem a milenar arte da pantomima, que o cinema soube tão bem

eternizar. O anúncio que convida o público a prestigiar a fita

deno-mina-a “farsa”, arrematado ato derrisório, já que arrastava a

obra-fonte àquele que a hierarquia clássica considerava o rés-do-chão dos

(3)

gêneros artísticos, transformando em baixa comédia um drama de

fundação da identidade nacional.

Os Guaranis do clown Benjamin de Oliveira

Em 23 de fevereiro de 1907, uma das Fagulhas do cronista A. A. tecia

comentários entusiásticos ao espetáculo ocorrido dois dias antes no

Circo-Teatro Spinelli, comemorativo ao centenário de apresentações

da companhia naquele sítio que ficava no Boulevard de São

Cristó-vão, entre o Mangue e o matadouro, no Rio de Janeiro:

Quereis ver o povo na sua manifestação mais pitoresca, quereis apanhá-lo em flagrante? Não o procureis nas avenidas da moda, nem nos teatros, nem mesmo no Passeio Público: ide ao circo Spi-nelli.

(...)

Mas que público bem-humorado e alegre, e como se vê que ele quer bem a todo o pessoal do circo! Que boas, que sadias gargalhadas! (A. A. 1907, 2)5

Por detrás da alcunha de A. A. estava Arthur Azevedo, o mais

popular teatrólogo de seu tempo, autor de dezenas de comédias,

sai-netes, operetas, revistas de ano; homem que se bateu durante porção

considerável da vida em prol do teatro nacional e da classe teatral,

não poucas vezes defendendo publicamente artistas profissionais

(que então possuíam fama pouco lisonjeira) da detração de seus

co-legas cronistas (Mencarelli 1999; Neves 2006). A surpresa

explicitada pelo autor, que era dos mais profundos conhecedores do

teatro popular, frente à companhia de Spinelli, prova cabalmente o

modo enviesado como a crítica olhava o circo, e o lugar por ele

ocu-pado então no interior dos gêneros teatrais. A crônica de Azevedo

propõe um deslocamento do olhar de seus leitores, demasiado

volta-dos, então, às vias centrais da cidade, recém-reformadas pelo poder

público (sobretudo a Avenida Central e a Avenida Beira-Mar), de

acordo com a pompa europeia (Dimas 1883; Souza 2003; Autor

2014), fazendo-os mirar o arrabalde.

O artigo é, até onde se tem notícia, o primeiro a olhar a sério a

arte da companhia de Spinelli, bastante apreciada pelo público – daí

o número não desprezível de récitas que ela dava por onde passava –

mas ainda desprezada pela “elite” social do período, da qual o

cro-nista cobra atenção.

6

Mais que isso, o texto é documento precioso de

5

Devo a localização da crônica a Lucinéia A. dos Santos (2015, 139) e a Erminia Silva (2007, 230-231).

6

Cabe aqui uma referência ao ótimo trabalho de Sílvia Souza, sobre o âmbito teatral carioca dos anos de 1832 a 1868, no qual a autora defende a heterogeneidade do público que, então, frequentava os circos. Todavia, a passagem do tempo não parece ter incorrido no incremento desta frequentação pela elite social carioca, ou das referências a ele por parte dos cronistas do período – por

(4)

guarda da história do Spinelli e, mais especificamente, dos meus

ob-jetos de estudo neste artigo: o clown Benjamin de Oliveira e a

“aparatosa pantomima de costumes indígenas” (Circo Spinelli 1906a)

Os Guaranis, também denominada então “original e grande

panto-mima de costumes nacionais.” (“Circo Spinelli” 1904, 8) ou “farsa”

(Circo Spinelli 1906d, 2) – os limites escorregadios dos gêneros

de-safiam o analista contemporâneo, especialmente quando – e é este o

caso – a obra em questão se perdeu.

Os Guaranis interessa-me, sobretudo, devido à sua posterior

migração do picadeiro do circo-teatro de S. Cristóvão à tela do

cen-tral Cinema-Palace, em fita rodada por Antonio Leal, da

Photocinematografia Brasileira, e exibida, como ocorria à maioria da

produção cinematográfica da época, em meio a um conjunto de fitas

curtas. Neste caso específico, Os Guaranis em sua estreia fechou um

programa de quatro títulos nacionais, rodados pela companhia em

questão, 1- “Os capadócios da Cidade Nova”, 2- “Sô Lotéro e nhá

Ofrásia com seus produtos à Exposição” e 3- “Tudo pela higiene”.

Todas de vieses cômicos, a se apoiarem em gêneros teatrais caros ao

público carioca, como a comédia de costumes e a farsa – a segunda

fita citada realizava uma fusão de gêneros, unindo a comicidade à

faceta documental, já que tinha como pano de fundo a “Exposição

Nacional” comemorativa aos cem anos da abertura dos portos,

evento que procurava inserir o Rio de Janeiro no calendário dos

paí-ses civilizados, nos quais as “Exposições Universais” davam o tom da

modernidade (Gunning 1994). A contar pela indicação do anúncio,

era cômica mesmo a fita Os Guaranis, embora fosse baseada num

romance que, pelo seu cunho de narrativa de formação nacional

(Candido 1959), investia densamente na dramaticidade.

isso, o papel fundamental da citada crônica de Arthur Azevedo. (Souza 2002, 246-247).

(5)

Imagem 1: Anúncio do programa do Cinema-Palace com a estreia de Os Guaranis. (“Cinema-Palace” 1908a, 6) | © Hemeroteca Digital Brasileira.

Além de a fita Os Guaranis não ter sobrevivido ao tempo, não

restam discursos substanciais a seu respeito, uma vez que as películas

da época eram, quando curtas (como é o caso desta, de cerca de 10

minutos de duração), referidas apenas brevemente na imprensa.

Por-tanto, procurarei doravante reconstruir o percurso da pantomima às

telas, buscando num só tempo refletir sobre a apropriação do teatro

pelo cinema, e sobre os sentidos históricos do gesto do Benjamin de

Oliveira. Ora, o título dado à peça – Os Guaranis, no plural (quiçá em

alusão à “dinastia de Manoel Pery”, nas palavras de Arthur Azevedo

no supracitado artigo, a qual trabalhava então no Spinelli) – tomava

criticamente a personagem-título de Alencar e Gomes, os quais

bu-rilaram um indígena de fortes traços europeus, num esforço de

construção de uma identidade nacional que atrelasse o Brasil à

civili-zação do Velho Mundo, pensamento vigente no período.

Protagonista da pantomima e do filme, o clown negro Benjamin

in-vertia os sinais que historicamente silenciaram o papel das etnias

africanas na formação da identidade brasileira, elevando-as ao papel

de protagonismo, ao mesmo tempo em que acenava para a mescla

entre a cultura erudita e a popular que caracterizam a sociedade

bra-sileira.

(6)

Esta mescla está muito bem posta pelos contornos da

panto-mima circense encenada por Benjamin de Oliveira, sobre a qual

restam relatos mais extensos – nos quais me deterei, no intuito de

preencher a lacuna deixada pela ausência da película. Relata a

bió-grafa de Benjamin, Ermínia Silva, que a pantomima estreou em São

Paulo em 1902, como uma explícita adaptação ao picadeiro da obra

de Alencar, com o título de D. Antônio e os Guaranis (Episódio da

História do Brasil), obra de autoria Manoel Braga dotada de “22

qua-dros, 70 pessoas em cena e 22 números de música”, arranjada à

banda da companhia pelo maestro João dos Santos (a partir da

origi-nal de Carlos Gomes) e encenada por Benjamin de Oliveira e Cruzet

(Silva 2007, 210) – este último deixa de ser mencionado já em 1903,

quando a Companhia apresenta-se no Rio de Janeiro

7

. O registro

publicado no Estado de S. Paulo, citado por Ermínia Silva (2007,

210-211), é, até onde pude observar, o único que apresenta em detalhes a

relação das personagens principais da pantomima. São elas: Ceci

(Miss Ignez); Peri (Mr. Benjamin); D. Antonio (Mr. Theophilo); O

inglês (Mr. Salinas); O criado (Mr. Vampa); Cacique (Mr. Cruzet)

8

;

Mulher do Cacique (Maria da Glória); Guerreiras (Miss Luisa, Miss

Candinha, Mlle. Vitória e Mlle. Aveline).

O entrecho da obra de José de Alencar (1857) é, em linhas

ge-rais, o seguinte: D. Antonio de Mariz é um dos nobres portugueses

que emigraram ao Brasil nos princípios da colonização (tendo, em

meados do século XVI, composto as hostes do governador Mém de

Sá em suas incursões contra os invasores franceses e na fundação da

cidade do Rio de Janeiro). José de Alencar sublinha, n’O Guarani, os

lastros que desejava estabelecer da personagem com a realidade

9

. No

momento em que se passa a história, início do século XVII, D.

Anto-nio habita as matas dos arredores do rio Paquequer, num rincão do

Rio de Janeiro, com a mulher, os filhos (além de Cecília/Ceci, D.

Diogo de Mariz, que por engano mata uma indígena Aimoré, durante

uma caçada, e acaba inadvertidamente sendo responsável pela

7

No ano seguinte, Benjamin de Oliveira era a grande estrela da companhia. Tanto que, por ocasião do deslocamento do Spinelli de Niterói ao Rio de Janeiro, a folha O Fluminense publica uma carta assinada apenas pelo artista, na qual ele agradece os obséquios do público e da imprensa locais, lamentando não poder se despedir pessoalmente de cada um dos amigos, e anuncia sua partida próxima à capital federal, juntamente com a trupe (“Circo Spinelli” 1903, 3).

8

Cruzet fora, conforme já apontado, co-encenador da montagem primordial da pantomima, juntamente com Benjamin de Oliveira, tendo a sua esposa Ignez Cruzet desempenhado o papel de Ceci. A partir de 1 de fevereiro de 1908, os principais papéis femininos da trupe do Spinelli caberiam a Lili Cardona, que além de atriz era “acrobata, equilibrista, ginasta excêntrica e aramista” – como Benjamin, uma artista completa. (Silva 2007, 242)

9

À descrição de que D. Antônio de Mariz tratava-se de “fidalgo português cota d’armas e um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro”, o escritor ajunta a seguinte nota de fim de capítulo: “Este personagem é histórico, assim como os fatos que se referem ao seu passado, antes da época em que começa o romance. Nos Anais do Rio de Janeiro tomo 1º, pág. 328 lê-se uma breve notícia sobre sua vida.” (Alencar 1857, I Parte, 11, 171).

(7)

débâcle da casa paterna) e um rol de aventureiros que visavam às

investidas no sertão. Dentre esses homens está o italiano Loredano,

ex-frade carmelita, que abandonara a batina com o sonho de fazer

fortuna explorando uma mina de prata cujo mapa lhe caíra em mãos.

Para atingir os seus propósitos, Loredano emprega-se no bando de D.

Antonio, conhecendo a loura, branca, pura e heráldica Ceci

10

, por

quem se apaixona lascivamente – como o eu-narrativo prodigamente

ressalta. Caberá ao índio guarani Peri – que, por sua vez, era “de alta

estatura, linha as mãos delicadas; e a perna ágil e nervosa (...),

apoi-ava-se sobre um pé pequeno, mas firme no andar e veloz na corrida”,

etc. (Alencar 1857, I Parte, 33)

salvar a mocinha das mãos do

aven-tureiro e do sem-número de perigos que a afrontam, até que,

abraçando a fé cristã, ele ganha o direito de retirá-la da casa paterna,

já em posse da tribo dos Aimorés. No desfecho, sobram apenas Peri e

Ceci, agarrados a uma palmeira arrastada pela torrente, espécie de

releitura da fábula bíblica de Noé.

A documentação histórica serve a Alencar de ponto de partida

aos voos imaginativos e à exacerbação de um conteúdo

programá-tico: a obra inventava a gênese da nação brasileira à maneira do

pontuado pelo cientificismo do século XIX e por agremiações como

o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o IHGB, do qual,

con-forme aponta Lilia Schwarcz, foram sócios vários escritores

românticos, a exemplo de Alencar. Foge ao meu objetivo penetrar

profundamente a literatura acerca do IHGB. Cabe ressaltar, em

li-nhas gerais, apoiando-me na obra de Schwarcz O espetáculo das

raças, o anseio dos membros da agremiação de “formular uma

histó-ria [‘oficial’] que, a exemplo dos demais modelos europeus, se

dedicasse à exaltação e glória da pátria” (Schwarcz 1993, 102), ou

então o papel da Independência do Brasil na construção do ideário

romântico (Schwarcz 1993, 104) e, ainda assim, o louvor à dinastia

portuguesa (tanto que D. Pedro II, considerado “protetor perpétuo”

da casa, era seu presidente honorário e doador maiúsculo), bem

como o louvor ao regime monárquico e à escravidão:

Concretizado alguns anos após o movimento de Independência, o instituto é de alguma forma filho dileto de um espírito de época que nesse momento se difunde. ‘A Independência tem um papel deci-sivo para o ideal romântico’, afirma Antonio Candido ao caracterizar esse período em que a literatura torna-se um recurso de valorização do país, quer reproduzindo o que se fazia na Europa, quer exprimindo uma realidade específica e local. (...) Fazer história

10

“D. Cecília (...) era a deusa desse pequeno mundo que ela iluminava com o seu sorriso, e que alegrava com o seu gênio travesso e a sua mimosa faceirice. (...)/ Os seus grandes olhos azuis, meio cerrados, às vezes se abriam languidamente como para se embeberem de luz, e abaixavam de novo as pálpebras rosadas./(...). Sua tez alva e pura como um froco de algodão, tingia-se nas faces de uns longes cor de rosa, que iam, desmaiando, morrer no seu colo de linhas suaves e delicadas. (...) Seus longos cabelos louros, enrolados negligentemente em ricas tranças, descobriam a fronte alva (...).” (Alencar 1857, I Parte, 19, 43-44).

(8)

da pátria era antes de tudo um exercício de exaltação. (Schwarcz 1993, 107)

Se o IHGB procurava construir uma história com base no rigor

documental, a historiadora igualmente vê emergir dele um esforço

seletivo. Do projeto de nação forjado pelo grupo ficariam de fora os

negros e os índios, considerados, os primeiros, incivilizáveis; e

to-mados, os segundos, ora como símbolos da identidade nacional, na

esteira da tradição literária ocidental, ora como seres passíveis da

“civilização” por meio da catequização e do jugo do trabalho

(consi-derado, nesta visão etnocêntrica, “enobrecedor”) (Schwarcz 1993,

111, 113)

11

. Daí o apagamento do negro da história forjada pelo

IHGB e a defesa de um “aperfeiçoamento” racial que tinha como

ponto de chegada o elemento branco (Schwarcz 1993, 112). Neste

sentido, é simbólica a especificidade do amálgama racial forjado em

O Guarani, no qual a união entre Peri e Ceci apenas ocorre uma vez

que o índio se dobra à fé cristã.

12

Ao se observar Os Guaranis do Circo-teatro Spinelli a

contra-pelo da obra de Alencar, salta aos olhos como a historiografia oficial

conviveu com propostas outras de historiografias, atentas à vasta

gama de etnias que construíram o Brasil, já que originárias no seio

delas. Neste deslocamento do olhar do centro às bordas, é

funda-mental que se atente à arte oriunda de grupos dedicados a gêneros

artísticos de cunho popular, desconsiderados por uma crítica cujos

parâmetros de avaliação pautaram-se historicamente pelos

pressu-postos da arte erudita (Thomasseau 2009). Circos-teatros como o

Spinelli são pródigos exemplares disso e fundamentais para que

pen-semos o primeiro cinema, que tanto bebeu desses gêneros.

Destaque-se que, em comparação à obra de José de Alencar, o

elenco da pantomima de Benjamin é bastante reduzido. Elimina-se,

por exemplo, a personagem de Isabel, filha adulterina de D. Antonio

com uma índia (portanto, meia-irmã de Ceci), que representa no

romance o elemento oriundo da miscigenação do colonizador com o

povo autóctone, “Era um tipo inteiramente diferente do de Cecília;

era o tipo brasileiro em toda a sua graça e formosura, com esse

en-

11

Para um resumo desses debates, conferir Morettin 2013.

12

Embora o cerne deste trabalho não seja a análise cerrada de O Guarani de José de Alencar ou da inclinação política do autor, vale aqui destacar trabalhos mais recentes que colocam em perspectiva os paradigmas teóricos defendidos por estudiosos como Antonio Candido e Alfredo Bosi, que enfatizam a “tendência fito-colonialista” (Oliveira 2005, 137-138) de Alencar. Efetivamente, na exegese nos periódicos contemporâneos a Alencar realizada para a escrita deste artigo, pude recolher a seguinte referência ao autor, alusiva à sua atuação como deputado, que problematiza os pressupostos explicitados numa obra como O Guarani: “O ilustrado Sr. José de Alencar, em 7 de julho, submeteu à câmara o seu projeto n. 121, permitindo ao escravo a formação de um pecúlio destinado à sua manumissão.” (s.a. 1871, 4). A sua defesa legal de que os negros tivessem direito a amealhar uma soma em dinheiro destinada à alforria coloca em debate a filiação estrita do autor no que concerne ao esforço de apagamento do elemento africano da história nacional, proposta pelo IHGB.

(9)

cantador contraste de languidez, de malícia, e de vivacidade ao

mesmo tempo”. (Alencar 1857, I Parte, 46). O jovem europeu

Ál-varo, dileto funcionário de D. Antonio o qual o velho senhor a

princípio deseja unir a Ceci, porém que no desfecho se apaixonará

por Isabel e perecerá junto dela, tampouco surge na peça. Já o vilão,

o italiano Loredano, transforma-se na peça num inglês, com fins

provavelmente cômicos – na distribuição dos papéis da montagem

primeva da pantomima, publicada por Ermínia, pode-se observar que

o elenco tinha preposto aos nomes os títulos de Mr. e Ms., e Arthur

Azevedo destaca do seguinte modo a falácia do sotaque daquela

trupe, segundo ele, eminentemente brasileira:

Conquanto os palhaços finjam sotaque estrangeiro, o pessoal do circo Spinelli é todo nacional, todo à exceção de um japonês, que tem mais anos do Brasil que do Japão, e é pai de uma cambada de brasileirinhos, todos insignes acrobatas, como o pai. (A. A. 1907, 2).

Do conjunto de personagens, Azevedo destaca, claro,

Benja-min de Oliveira, que ele considera, “um saltador admirável, um

emérito tocador de violão, um artista que faz da cara o que quer,

pa-recendo ora um europeu louro como as espigas do Egito, ora o índio

vermelho apaixonado pela filha de D. Antonio de Mariz;”,

conclu-indo pela assertiva de que “ele é o nosso Tabarin” – elogiosa, já que

insere o artista brasileiro na mesma tradição de representação à qual

pertencera o célebre prestidigitador e cômico dos teatros de feira

parisienses do século XVI-XVII

13

. Porém, o teatrólogo igualmente

chama atenção para a personagem do criado, funcionário dileto de D.

Antonio na obra original, transformado, na adaptação, numa espécie

de Sancho Pança: “Um dos Perys, o mais novo, creio, fez-me rir a

perder no papel do velho Ayres (...)”, diz Azevedo (A. A. 1907, 2). A

paródia é característica cara a gêneros teatrais de cunho popular,

tendo migrado a circos como o Spinelli, que, a partir de fins do XIX,

somavam os números de funambulismo às encenações teatrais,

re-presentadas, na segunda parte do espetáculo, entre o palco e o

picadeiro.

Outro traço incontornável deste gênero, também comum a

outros exemplares do teatro popular (como a ópera-bufa, a opereta e

a revista de ano) é a rutura das barreiras entre o erudito e o popular.

Os Guaranis era acompanhado por “22 números de lindos trechos de

música extraídos da bela partitura – O Guarany, do imortal maestro

Carlos Gomes.” (“Circo Spinelli” 1906e, 4), segundo anúncio da

pantomima. A redução da partitura da ópera aos instrumentos da

banda circense soma-se ao investimento na espetacularidade,

característica comum aos palcos populares e incontornável ao circo

– cuja primazia pertence aos números de destreza física. A

pantomima concluía-se numa apoteose denominada “A fuga de Pery

com Cecy”. Seu prólogo igualmente possuía a dimensão de tableau

13

(10)

vivant, e, ao contrário do final apoteótico, não tinha relação com o

romance de Alencar. Denominado “A primeira missa no Brasil/

desembarque das tropas e comitiva de Pedro Alves [sic] Cabral”

(“Circo Spinelli” 1906c, 3), fazia menção à portentosa pintura

histórica de Victor Meirelles “A primeira missa no Brasil” (de 1861,

portanto, contemporânea ao romance), pintura que valeu ao artista

um prêmio do imperador e igualmente pertencia ao intuito da nova

nação de construir os seus símbolos identitários (cf. Morettin 2000).

Ao comparecer no espaço do circo cujo protagonista era um clown

negro, a cena tem os seus significados redefinidos, e seu sentido

original questionado – lembre-se que tal passagem já deu ensejo a

corrosivas leituras alegóricas, como aquela presente em Terra em

Transe (1967), de Glauber Rocha, na qual, aliás, igualmente

comparece a trilha sonora de Il Guarany.

Na citada crônica que dedica ao Spinelli, Arthur Azevedo

constata: “Não digo que a peça arrancasse exclamações de

entusiasmo a José de Alencar e Carlos Gomes” (A. A. 1907, 2).

Efetivamente, se o elemento espetacular está presente na obra de

Gomes e mesmo na de Alencar (na qual o viés historiográfico dá

mãos aos desvarios próprios ao Romantismo), o sentido da peça de

Benjamin é todo outro, determinado pelo gênero teatral que a

enforma, e pela sem-cerimônia com que se casam, nela, o popular e o

erudito. Como esta característica acabará por resvalar à cena

cinematográfica, tecerei a seguir uma análise comparativa entre a

obra de Benjamin e aquelas que lhe serviram de modelo.

Veredas do Guarani: o romance histórico, a opera ballo, a

pantomima circense, a fita cinematográfica.

Uma mudança fundamental da pantomima circense de Benjamin de

Oliveira com relação ao romance de José de Alencar é o seu

deslocamento da seara do drama – ou melodrama – em direção à

farsa. Estudos recentes produzidos nos âmbitos das teorias da

literatura e do teatro procuram dar conta do entremear, em obras

com contornos semelhantes a O Guarani, de características de

gêneros literários considerados, segundo a hierarquia clássica,

“baixos”, como o folhetim jornalístico ou o melodrama teatral

14

. No

14

Thomasseau tece as seguintes considerações sobre a questão, tomando como foco o melodrama teatral:

“Desta forma, reforçou-se uma hierarquia indiscutível e rigorosa de gêneros que colocava a tragédia no topo da pirâmide dos valores teatrais. Imediatamente após a Revolução, no imenso deslocamento político e social que se opera, os valores são redistribuídos, uma vez que a pirâmide das certezas estéticas, juntamente com aquela da sociedade, alterara-se a partir da base. O gênero melodramático, nascido naquela época, depois de ter rapidamente adquirido, graças ao surgimento de um novo público, a plenitude dos seus meios, encontrou-se de saída no centro de tensões contraditórias, atraindo conjuntamente o desprezo de detratores clássicos e românticos, mas também o fervor das multidões.” (Tradução da autora). No original: “S’est de la sorte renforcée une indiscutable et stricte hiérarchie des

(11)

que toca a esta obra de Alencar, é incontornável a sua aproximação

dos cânones da literatura folhetinesca, impressa a granel em jornais e

revistas desde princípios do século XIX. Observe-se, na construção

da narrativa, a tipificação dos caracteres, a equiparação do âmbito

moral e do físico das personagens (tornando-se, assim, a alvura e a

envergadura física reflexos da limpidez moral, e o sarcasmo, a

sensualidade e a impassibilidade reflexos das máculas morais)

15

, a

presença, entre um capítulo e outro, dos “ganchos” – síncopes

narrativas cujo intuito é titilar a curiosidade do público para o que

vem adiante –, e a relevância atribuída às cenas de ação, daí a

prodigalidade com que as destrezas físicas do índio Peri colocam-se

em exibição no romance, ou a prodigalidade com que se narram os

episódios derradeiros da história: a tentativa de sequestro de Ceci

por Loredano; a tomada da fortaleza de D. Antonio de Mariz pelos

Aimorés e a fuga de Peri e Ceci entre a densa floresta dominada

pelos indígenas e, finalmente, sobre a palmeira que vaga solitária

sobre o túrgido Paquequer. O ritmo ágil da narrativa, a

preponderância das cenas de ação e dos quiproquós narrativos ao

burilamento poético do texto – enfim, a exacerbação do âmbito

óptico dos episódios narrados – são elementos que aproximam este

romance de exemplares populares da literatura e do teatro do

Oitocentos, os quais enfatizam a visualidade da cena em detrimento

do âmbito literário. Thomasseau (2009), um dos principais

estudiosos do gênero, faz sobre ele as seguintes considerações:

É em torno dos anos de 1820 que o espírito dos dramas mudará no Boulevard. Sua qualidade essencial é, no entanto, a faculdade de comover menos pelas palavras que pelo olhar, assim como sublinha ainda Geoffroy, para quem a arte do teatro, a exemplo do que ocorria com seus contemporâneos letrados, é ainda e acima de tudo a arte da linguagem: “Tratam-se de espetáculos de óptica, de mecânica e de indústria mímica, absolutamente estrangeiros à arte do teatro propriamente dito; as palavras são deixadas de lado em prol do mercado, o que se diz é um acessório que não serve pra

genres qui plaçait la tragédie tout en haut de la pyramide des valeurs théâtrales. Immédiatement après la Révolution, dans l’immense brassage politique et social qui s’opère, les valeurs se redistribuent car la pyramide des certitudes esthétiques, avec celle de la société, a bougé de la base. Le genre mélo – dramatique, né à cette époque, après avoir très vite acquis grâce à l’émergence d’un nouveau public la plénitude de ses moyens, s’est alors d’emblée trouvé au centre de tensions contradictoires, s’attirant conjointement le mépris des zoïles classiques et romantiques mais aussi la ferveur des foules.” (Thomasseau 2009, 8)

15

Observem-se as descrições de Loredano nas passagens a seguir: “Loredano não pôde reprimir a risada sardônica que lhe veio aos lábios.”; “Os olhos do italiano lançaram uma faísca; mas o seu rosto conservou-se calmo e sereno.”; “A fisionomia de Loredano não se alterou, e conservou a mesma impassibilidade; apenas o seu ar de indiferença e sarcasmo desapareceu sob a expressão de energia e maldade que lhe acentuou os traços vigorosos.” (Alencar 1857, 26, 27, 30)

(12)

nada; o que se vê é essencial, é para isso que se paga.” (Thomasseau 2009, 38. Tradução da autora.)16

A crítica citada pelo estudioso num só tempo explicita a

dimensão óptica incontornável aos gêneros teatrais de cunho

popular – a exemplo do melodrama –, quanto, ao trazer as verrinas

que os letrados do período lhes dirigiam, relaciona o conjunto de

gêneros desconsiderados pela crítica. Este volume de Thomasseau,

compêndio de ensaios que se debruçam sobre peças fundamentais

do repertório melodramático francês, é um manancial para o estudo

do teatro do século XIX, testemunhando o desabrochar de uma

cultura cada vez mais voltada para a visualidade, que, nos estertores

do século, teria no cinema um dos seus mais importantes

desdobramentos. As análises que ele propõe a exemplares do gênero

melodramático nos permitem entrever as semelhanças entre tais

obras e um romance como O Guarani, parido como obra séria,

imbuído de missão histórica e nacionalista.

A emergência visual do romance de José de Alencar

determinou a sua extração não apenas à cena operística, por Carlos

Gomes, como à teatral, numa variante da obra que, embora seja hoje

pouco conhecida (já que jamais veio ao prelo), foi igualmente bem

sucedida junto ao seu público contemporâneo. Ambas, a ópera e a

peça, têm em comum o investimento na espetacularidade.

Classificada a primeira como “opera ballo”

17

, igualmente reduz o

número de personagens. As vozes/ tipos principais são Peri (tenor),

Cecília (soprano), D. Álvaro (tenor), D. Antonio de Mariz (baixo) e

Gonzales (barítono) – como se vê, a tipologia das personagens

exacerba-se a partir dos timbres dos cantores, à maneira do

melodrama, a vilania intensificando-se pela gravidade do timbre do

barítono. Outra personagem secundária é Pedro, homem de armas de

D. Antonio, cuja identidade com o patrão se estabelece pelo

compartilhamento do timbre do baixo. Todas personagens, como

pudemos observar, transpostas à pantomima de Benjamin de

Oliveira – note-se, todavia, a alteração na nacionalidade do vilão da

história, espanhol ao invés de italiano (provável concessão de Carlos

Gomes ao país que o acolheu e estreou a sua produção)

18

. Redigido

quatro anos mais tarde, o drama toma como modelo menos o

romance que a ópera, para a qual já havia sido realizado um

bem-

16

No original: “C’est autour des années 1820 qu’au Boulevard, l’esprit des drames va changer. Leur qualité essentielle demeure cependant la faculté d’émouvoir moins par les mots que par le regard, ainsi que le relève encore Geoffroy pour qui l’art du théâtre, comme pour tous ses contemporains lettrés, est encore et d’abord celui du langage: ‘Ce sont des spectacles d’optique, de mécanique et d’industrie mimique, absolument étrangers à l’art du théâtre proprement dit ; les paroles y sont par dessus le marché ce qu’on y dit est un accessoire compté pour rien ; ce qu’on y voit est l’essentiel, c’est cela que l’on paie.’”

17

Il Guarany (1870), opera ballo/melodrama em quatro atos, com música de Carlos Gomes e libreto de Antônio Scalvini e Carlo d’Ormeville. (Scalvini, Ormeville 1870)

18

(13)

sucedido enxugamento da trama. Isto não significa que o drama ou a

ópera deem de ombros ao texto original, malgrado José de Alencar

tenha publicamente demonstrado repúdio à encenação da peça e

mesmo esboçado reservas, em âmbito privado, à ópera. No que toca

à criação de Carlos Gomes, ele teria dito a Taunay: “O Gomes fez do

meu Guarani uma embrulhada sem nome, cheia de disparates,

obrigando a pobrezinha da Ceci a cantar duetos com o cacique dos

Aimorés, que lhe oferece o trono da sua tribo, e fazendo Peri jatar-se

de ser o leão das nossas matas” (Faria 1982, 60).

19

Imagem 2: Peri (Benjamin de Oliveira) e Ceci (Lili Cardona). © Pasta Benjamin de Oliveira (CEDOC-FUNARTE)20.

O autor toca numa questão fulcral ao âmbito melodramático,

que, embora esteja presente no romance – ainda que de forma mais

sutil –, exacerba-se na ópera: o investimento na subjetividade,

transformada em chave de acesso à coletividade; a narrativa

historiográfica filtrada pelas paixões individuais. Enquanto no

romance Peri e Ceci são construídos como polaridades

19

João Roberto Faria realiza um pormenorizado levantamento da questão. No que toca à reação do escritor frente à encenação da ópera de Carlos Gomes, findo o espetáculo, Alencar teria recebido “educadamente” a parte que lhe coube das demonstrações populares: enquanto que o maestro fora chamado à cena uma dezena de vezes, carregado em apoteose por uma plateia em êxtase e recebido pessoalmente congratulações de D. Pedro II, o romancista fora visitado pela mocidade efusiva, a quem agradecera e louvara as qualidades. A confissão sobre seu desagrado no que toca à produção se dera, sobretudo, aos amigos pessoais (Faria 1982).

20

Agradeço à instituição pela cessão dos direitos de uso, neste artigo, desta imagem e da seguinte.

(14)

diametralmente opostas, ambos altamente idealizados (a deusa

virgem e seu escravo submisso), funcionando como alegorias

respetivamente do europeu e do povo autóctone – sugerindo-se a

sua aproximação carnal apenas quando o índio adere à fé cristã e,

portanto, se dobra ao colonizador –, na ópera as duas personagens

enquadram-se à moldura convencional do gênero, transformadas

desde o princípio no par romântico protagonista.

21

Isto se explicita

no notório primeiro dueto de ambos, prenhe de lirismo. Observe-se,

no entrecho que se segue, que a simultaneidade da melodia e dos

versos do dueto (outra característica sine qua non da ópera

tradicional italiana, cf. Abbate e Parker, 2015) simboliza um

encantamento romântico compartilhado:

Peri:

“Sinto uma força

indômita/ que a cada hora mais me aproxima de ti,/ mas não a posso

exprimir,/ nem te dizer por quê./ Sei que uma só palavra tua, ó

virgem/ um sorriso teu, um olhar/ como um dardo afiado,/ ferem o

meu coração.”; Cecilia: “(Eu também, eu também em vão/ imploro a

mim mesma a cada hora/ o que é essa sensação angelical,/ que me

comove o coração./ O seu olhar tão vívido/ Sinto refletido em

mim,/ em vão eu me questiono,/ mas não sei dizer para mim mesma

por quê.)”

22

. (Tradução da autora.

Scalvini; Ormeville 1870, 11).

Alencar menciona com igual amargura o dueto de Ceci com o

cacique dos Aimorés, cena inexistente no romance, outra convenção

do gênero operístico, cuja excelência determina-se pela tessitura da

relação contrapontística das vozes. Embora a obra de Carlos Gomes

também respondesse ao intuito de construção de uma memória

nacional de cunho laudatório, fomentada pelo Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro – fazendo-o ademais desde um centro cultural

europeu, o que lhe potencializava a relevância –, fazia-o balizado

pelas regras do gênero que manejava. Além do citado dueto entre

Ceci e o Cacique, a obra de Carlos Gomes tem um extenso ballet

indígena (coreografado à la europeia), correspondente aos ritos

antropofágicos da tribo Aimoré no desfecho dos quais Peri pereceria,

o qual cumpre com a espetacularidade requerida pelo gênero. Em

suma, Gomes estabelece com o romance uma relação de liberdade,

servindo ao gênero no interior do qual trabalhava.

21

A história da ópera italiana centraliza-se nas paixões de apenas um casal protagonista, daí ser eliminado da cena o par Isabel e Álvaro – menos idealizado no romance, ainda que igualmente alegórico (ela, a mameluca passional, resultado da relação do colonizador com a índia; ele, o europeu por ela seduzido – relação que mimetiza a miscigenação do povo brasileiro). Isto faz com que certos contornos deste casal sejam transpostos ao par Peri e Ceci.

22

A tradução tem o intuito de facilitar a compreensão do texto. Não se deve perder de vista, todavia, que os versos originais são cantados em italiano: Peri: “Sento una forza indomita/ che ognor mi tragge a te;/ ma non la posso esprimere,/ né ti so dir perchè./ So che un tuo detto, o vergine,/ un tuo sorriso, un guardo,/ come un acuto dardo,/ scende a ferirmi il cor.../”. Cecilia: “(Io pure, io pure invano/ chieggo a me stessa ognor/ che è mai quel senso arcano,/ che mi commuove il cor./ Lo sguardo suo sì vivido/ sento riflesso in me;/ ma invan me stessa interrogo,/ ma né mi so dir perchè.)”

(15)

As conexões temáticas e formais existentes entre a ópera e o

melodrama teatral determinam as semelhanças entre Il Guarany de

Carlos Gomes e a obra homônima de Visconti Coroacy e Pereira da

Silva. Aliás, o repertório operístico erudito historicamente desce de

bom grado aos palcos populares, não só melodramáticos como

cômicos, amoldando-se igualmente bem às telas, como terei a

oportunidade de demonstrar ao longo deste artigo.

23

A estreia da

extração teatral de O Guarani é anunciada para 9 de maio de 1874,

após uma extensa polêmica envolvendo os autores, a companhia de

Heller – onde se daria a encenação – e José de Alencar

24

. Tratava-se,

segundo o anúncio publicado no Jornal do Comércio, de um “drama

de grande espetáculo, em um prólogo, quatro atos e onze quadros

extraído do romance do mesmo título com o consentimento do autor

o Exmo. Sr. Conselheiro José de Alencar, por Visconti Coroacy e

Pereira da Silva, música do maestro Carlos Gomes” (Teatro Lírico

Fluminense... 1874a, 6) – observem-se destacadas tanto a permissão

do autor do romance à sua versão teatral quanto a utilização da

música da ópera.

Desdobrado à cena dramática, O Guarani explicita a sua

inconteste filiação com a cena operística. Além da presença da

música de Carlos Gomes a pontuar a ação (ensaiada e conduzida pelo

maestro Mesquita), a encenação procurava sublinhar seu âmbito

espetacular, demonstrando a veracidade do que assevera Victor

Hugo no Prefácio de Cromwell: “le théâtre est un point d’optique”

(apud Thomasseau 2009, 24). No conjunto de quadros citados

abaixo, observe-se o destaque dado àquele que se denomina “Campo

dos Aimorés”, composto por uma vasta sequência de bailados que

nada deviam à ópera de Gomes, nos quais tomava parte um vultuoso

número de pessoas. Dignas de nota são também as cenas

pertencentes ao âmbito do maravilhoso, fundamentais a gêneros

teatrais de cunho popular, a exemplo das peças fantásticas (também

denominadas “mágicas”), cujos enredos estavam num segundo

plano, em detrimento das encenações faustosas (Mencarelli 1999) –

o anúncio do espetáculo destacava os responsáveis pelo vestuário,

adereços e maquinismos da peça, o que atestava a sua dimensão

espetacular:

Prólogo e primeiro quadro: O Segredo das Minas/ 2º quadro: O Mar de Prata/ 3º quadro: Palácios Encantados/ 1º ato – 4. quadro: O Guarany/ 2º ato – 5. quadro: Os Aventureiros/ 3º ato – 6. quadro: Desafio e Traição/ 7º quadro: A Revolta/ 8º quadro: A Seta do Índio/ 4º ato – 9. quadro: O Campo dos Aimorés: Neste quadro, em que tomam parte mais de 250 pessoas, executar-se-ão: A banda selvagem; Os grandes bailados; O passo das flechas; A marcha dos

23

Faz-se preciso sublinhar aqui que a presença do repertório musical erudito no Rio de Janeiro da aurora do século XX era intensa e ultrapassava a barreira das classes sociais, ao contrário do que se dá hoje.

24

Para detalhes sobre a polêmica, remeto o leitor ao já citado ensaio de Faria (1982).

(16)

Aimorés; A corrida veloz e fantástica; A grande entrada triunfal; O Cacique no seu palanquim; Entrada dos aventureiros; Combate final; tudo ensaiado pelo 1. bailarino Poggiolesi que toma parte em todos os bailados em companhia da 1a bailarina Bernardelli./ 10º quadro: A Explosão/ 11º quadro: A Inundação/ O rio Paquequer em ocasião de enchente a sumir-se ao longe iluminado pelo Arco-Íris. Peri e Cecília, abraçados, são levados pela corrente sobre o grelo de uma palmeira. (Teatro Lírico Fluminense 1874b, 6)

O repúdio de José de Alencar à peça – uma das cláusulas do

contrato que assinara com os autores e o empresário da Fênix

Dramática proibia a publicação de seu texto – procurava escamotear

a proximidade existente entre a versão teatral e a obra original.

Embora as adaptações sejam fruto de uma seleção, é digno de nota

que mesmo as cenas mais extravagantes desta peça sejam exploradas

ou sugeridas pelo romance caudaloso, composto de mais de 700

páginas e quatro partes paulatinamente narradas, numa tradição que

remete ao roman-fleuve produzido por autores como Honoré de

Balzac e Victor Hugo.

25

Obra dada não apenas aos arroubos

sentimentais como à serialização, duas premissas caras ao cinema

narrativo que, desde o princípio do século XX, nutre-se da literatura

como dela se nutrira o teatro, no século anterior. As inúmeras cenas

do romance voltadas à exploração das destrezas físicas de Peri ou aos

idílios de Ceci às margens do (ou sobre o) Paquequer, prenhes de

visualidade, realizam-se à perfeição pelo teatro popular, já que são a

sua razão de ser.

O final apoteótico do romance, no qual o barco que conduz

Ceci e Peri desliza frágil na cheia do Paquequer, é espaço por

excelência para que o “Sr. Caetano”, o maquinista da Fênix, esgrima

os seus dotes – afirma Jean-Marie Thomasseau que o uso cênico das

inundações com fins dramáticos ou espetaculares passa a ser

recorrente às encenações teatrais de cunho popular, a partir de fins

do XIX

26

. Ademais, a encenação da obra foi realizada pelo principal

artífice do teatro popular em ação no Rio de Janeiro nos anos de

1870, Correia Vasques – o popularíssimo, alcunha que vale por uma

descrição completa –, homem que comporta grandes semelhanças

com Benjamin de Oliveira, conforme aponta Silvia Souza: Artista

multifacetado, ator, encenador e autor – é dele a autoria da

25

Remeto o leitor à primeira edição da obra, que compõe a coleção da Biblioteca Brasiliana, disponível para download e consulta online no link citado na Bibliografia.

26

O estudioso reporta-se a um caso notório: o concernente ao melodrama Os dois garotos (Les Deux Gosses, Decourcelle, Berton, 1896), grande sucesso mundial, no qual o cenário da eclusa da Ponte D’Austerlitz – que utilizava água verdadeira – obrigou à importação de maquinário da Inglaterra (Thomasseau 2009, 271). No Rio de Janeiro, espetáculos do tipo eram igualmente comuns. No mesmo dia em que a pantomima cinematográfica Os Guaranis era exibida no Cinema-Palace, a Companhia Equestre Frank Brown fazia exibir, no Teatro S. Pedro de Alcântara, a “pantomima aquática” O S. Pedro Debaixo d’água, “com extraordinários incidentes e diversões, terminando com uma assombrosa torrente, inundando a pista em 35 segundos 100.000 litros d’água.” (“Teatro São Pedro de Alcântara...” 1908, 6).

(17)

adaptação à cena brasileira da obra de Jacques Offenbach Orphée aux

enfers (transformada em Orfeu na roça), obra que, por meio de um

denso exercício metatextual, fazia bulha num só tempo da mitologia

grega e do sisudo teatro realista (Souza 2002, 234-239).

Transformado no encenador do teatro Ginásio Dramático, não

demorou ao artista fazer ali uso dos talentos adquiridos nos teatros

de feira em que se exercitara quando jovem, encenando peças que

estabeleciam relação intertextual com a cena teatral do período, a

exemplo daquelas alusivas ao “Grande Circo Oceano”, então na

cidade. A homenagem, prestada no recinto que era o berço brasileiro

da dramaturgia realista, num só tempo conferia relevância àquele

grupo circense e procurava absorver a multidão que frequentava o

estabelecimento (Sousa 2002, 246-247).

Quando o igualmente popular Benjamin conduziu a trupe do

Circo-teatro Spinelli pela esteira do Guarani, ele tinha atrás de si uma

vicejante tradição teatral popular, para a qual o repertório erudito é

fonte de apropriação e ressignificação. As semelhanças existentes

entre as adaptações do romance à ópera e ao teatro colocavam em

xeque a dicotomia estrita que, segundo a tradição clássica, separava

os gêneros entre “altos” e “baixos”. Mesmo Carlos Gomes não era

infenso à mescla. Um analista seu, um século depois da estreia de sua

ópera, diria – de modo, aliás, detrator – que o seu já mencionado

ballet estabelecia “uma frequente e perigosa vizinhança com música

de circo” (Kiefer 1977, 95). Na cena teatral do século XIX havia,

como se nota, uma permeabilidade entre os gêneros, explicitada por

meio da vizinhança que certos trechos da música de Gomes

estabeleciam com os espetáculos circenses, da inserção dos

principais trechos musicais da ópera Il Guarany no melodrama

homônimo, ou das paródias do repertório exibido na cidade que

Vasques levava à cena do Ginásio Dramático nos idos de 1860. Como

sensível observador da ópera de Gomes e continuador espiritual de

Vasques, Benjamin de Oliveira levou a sua encenação a construir

uma relação metadiscursiva com a obra-fonte, reinterpretando-a.

É impossível precisarmos como isso se deu, já que, conforme

foi apontado, os registros remanescentes a esse respeito são raros.

Mas as imagens disponíveis da encenação (Imagem II e III) dão a

ver, à maneira de tableaux, um Peri galardoado e uma Ceci ora

passivamente prostrada, ora a entoar uma prece, tendo de um lado o

índio a protegê-la e, de outro, o aventureiro espanhol (como se pode

observar, sua nacionalidade alterara-se, quando comparada à

montagem de 1902) a intimidá-la. Ao fundo, um cenário pintado

simboliza a murada da fortaleza de D. Antonio de Mariz. Encenação

sem diálogos, à moda da pantomima clássica – o que leva certo

espectador fluminense a solicitar, em 1906, a publicação de sua

“explicação” por parte do encenador

27

–, a criação de Benjamin apela

27

“Circo Spinelli: Tem agradado muito a pantomima Os Guaranis, e muito satisfeitos ficariam os espectadores se o ensaiador Benjamin de Oliveira publicasse

(18)

à memória coletiva. Já o estatismo dos tableaux remete ao gênero

melodramático, demasiado conhecido das plateias de então.

A análise de um objeto evanescente como a película Os

Guaranis convida-nos a colocá-lo em diálogo com outras obras

análogas contemporâneas que sobreviveram ao tempo. Dois artigos

de The sounds of the early cinema debruçam-se sobre a questão. John

Fullerton analisa comédias dinamarquesas anteriores ao ano de 1910,

atentando para a existência, nelas, da “experiência auditiva do circo”.

O autor analisa a presença sonora naqueles filmes a partir de um

duplo viés: na figuração do som no interior da diegese fílmica e na

introdução dos elementos sonoros a partir do âmbito da sala de

exibição. Assim, os jump cuts

28

sincronizavam-se às inserções

sonoras, ambos relacionando a espectatorialidade fílmica à circense:

“os sons e os saltos estimulariam uma resposta multimedial no

espectador, trazendo alguns dos eventos auditivos associados à

performance circense à experiência de se assistir a um filme”

(Fullerton 2001, 90)

29

. Por seu lado, Dominique Nasta reflexiona

sobre os melodramas fílmicos anteriores a 1915, norte-americanos e

europeus. No que toca aos filmes norte-americanos, destaca a

presença incontornável de música e sons, tanto como pano de fundo

emocional às ações quanto no anúncio das “pausas da ação ou

interlúdios extra-fílmicos”, à maneira dos melodramas teatrais e

operísticos que lhe serviram de modelo. Já no que se refere aos

filmes europeus, a autora constata que os modelos anteriores –

fossem teatrais, fossem operísticos – ofereceram influências menos

no âmbito conteudístico e mais no estilístico. Debruçando-se sobre a

grande presença de sons figurados na diegese fílmica, sobre as

“reações auditivas” de personagens aos sons encenados em película –

estimulando, no público, o âmbito auditivo a partir do óptico –,

Nasta aponta para o comparecimento, naquelas fitas, da “moral

oculta” do gênero melodramático

30

: “o ato de ouvir ou escutar

frequentemente permite tanto aos protagonistas quanto à audiência

considerar o som a chave à transcendência, à subjetividade mental

ou à psicologia da personagem.” (Nasta 2001, 96).

31

A presença

uma explicação sobre ela, a fim de melhor orientar o público./ Esperamos ser atendidos./ Pagante & C.” (“Circo Spinelli” 1906b, 3).

28

Também conhecido como raccord ou salto, trata-se da montagem de dois planos a partir de uma mesma tomada, removendo-se parte do interior da mesma, o que gera uma transição brusca entre eles e o efeito de “salto” na ação. (Aumont e Marie 2003).

29

Tradução da autora. No original: “sound and the jump cut would have stimulated a multimedial response in the historical spectator, bringing some of the aural events associated with live circus performance to the experience of viewing the film.”

30

Palavras de Peter Brooks, que a autora recupera (Brooks 1976, 20-21, apud. Nasta 2001, 96).

31

Tradução da autora. No original: “the very act of hearing or listening frequently allows both the protagonists and the audience to consider sound as the key to transcendence, to mental subjectivity or to character psychology.”

(19)

indelével da música no melodrama remete, ademais, para a aceção

histórica do gênero: obra dramática cujo texto é acompanhado de

música.

Imagem 3: Peri (Benjamin de Oliveira), Ceci (Lili Cardona) e o aventureiro espanhol (Cardona)32 | © Pasta Benjamin de Oliveira (CEDOC-FUNARTE).

Os registros históricos que nos chegaram acerca d’Os Guaranis

de Benjamin de Oliveira remetem-no, como vimos, tanto à farsa

quanto ao melodrama. O analista incauto corre o risco de alinhar os

picadeiros estritamente ao âmbito farsesco, deixando de lado uma

questão fundamental: a farsa cáustica e o mais pungente melodrama

– ou seja, o entremear de humor e drama – eram consubstanciais aos

circos d’outrora.

33

O lirismo da música de Carlos Gomes, presente

fosse na memória coletiva do público, fosse empiricamente – pela

execução da banda do Cinema-Palace –, cooperava na construção dos

sentidos, aproximando afetivamente, a priori, aquele negro que se

fazia de índio e a jovem branca que com ele contracenava:

forjando-se simbolicamente uma nova identidade nacional, que dava ao negro

o protagonismo historicamente negado. Após reportar-se às

“aventuras idílicas” das duas personagens, Arthur Azevedo aproxima

Benjamin doutra personagem célebre, prenhe de densidade

dramática: “um negro que, metido nas suas bombachas de clown, me

32

A referência ao intérprete desta última personagem nos é fornecida por Lili Cardona, no verso da fotografia (Pasta Benjamin de Oliveira).

33

Tais características são percebidas hoje em espetáculos brasileiros como Pagliacci, da companhia circense La Mínima (La Mínima, 2017), ou Maria do Caritó (dirigido por João Fonseca e produzido por Fernando Neves em 2010), alinhados ao circo-teatro tradicional.

(20)

pareceu Otelo, que saltasse das páginas de Shakespeare para um circo

da Cidade Nova.” (A. A. 1907, 2). O clown ganhara realeza

shakespeareana.

A relevância de Benjamin de Oliveira na cena teatral do

período fomentaria o convite para que ele e a trupe do Circo-teatro

Spinelli interpretassem a pantomima diante da objetiva de Antonio

Leal, da Photocinematografia Brasileira. Vicente de Paula Araújo, um

dos historiadores pioneiros do cinema brasileiro do período, afirma

que a filmagem deu-se no Spinelli, com câmera imóvel (Araújo 1976,

264). Enquanto que a assertiva acerca da posição da câmera

provavelmente esteja correta, não é impossível que a fita tenha sido

rodada no estabelecimento de outro de seus produtores, Labanca,

afamado fotógrafo, cujo ateliê de vidro costumava frequentar as

páginas de anúncios das folhas cariocas. Júlio Ferrez, outro

cinematografista pioneiro da cidade, redige umas memórias

saborosas sobre o espaço, quando narra detalhes concernentes à

encenação de uma fita sua ali rodada um ano mais tarde, A Viúva

Alegre.

Na Rua dos Inválidos havia um atelier envidraçado do Sr. Labanca que serviu para diversos filmes, inclusive um filme nacional A

Moreninha feito pelo Leal. Aproveitei deste studio assaz vasto para

poder movimentar uma troupe de opereta. Não se conhecia ainda os primeiros planos para os artistas principais, assim mesmo delimitava a ação com giz no chão obrigando as vedetes a vir cantar à frente34.

O que Júlio Ferrez diz sobre A Viúva Alegre – uma das obras

comercialmente mais bem-sucedidas da época – ajuda a iluminar

uma fita como Os Guaranis, sobre a qual as informações são escassas.

A proximidade dos atores com relação à câmera atesta que o cinema

brasileiro já havia deixado de lado o plano aberto, tributário do

ponto de vista do espectador teatral, como escolha unívoca. Isto nos

remete novamente às Imagens 2-3 – é provável que tais fotografias

mimetizassem o registro cinematográfico das cenas, tomando-se as

personagens num plano mais aproximado, como se eles se

chegassem ao proscênio, à maneira como se dava nas phonoscènes da

Gaumont.

35

Caso Os Guaranis tenha sido rodado no atelier de

Labanca, é provável que as limitações do espaço obrigassem à

supressão da célebre cena da inundação, aproximando-se a fita de

forma mais cerrada da versão operística do romance. A redução faria

jus às características técnicas do filme: nas memórias supracitadas,

Júlio Ferrez faz menção à existência, então, de rolos de película de

34

Cf. Arquivo Nacional: Fundo Família Ferrez – Júlio Ferrez: FF-JF: 2.0.2, documento 5/2.

35

Tais fitas correspondem a alguns dos primeiros esforços de sincronização entre o cinematógrafo e o fonógrafo. Os cantores eram filmados segundo a encenação teatral: surgiam em cena, cantavam o número que lhes cabia e se retiravam, retornando ocasionalmente à cena para receberem os aplausos da plateia exterior à diegese fílmica. A este respeito, conferir Carvalho (2017).

(21)

no máximo 60 metros, o que lhe obrigara a atentar para a duração

dos números de canto de uma obra longa como A Viúva Alegre (com

cerca de 1000 metros de extensão, ou cerca de 1h00 de duração, caso

o filme tenha sido projetado na velocidade de 16q/s

36

) em relação à

extensão dos rolos, cuidando para que cada rolo terminasse “num

compasso firme” (Firma Família Ferrez), de modo a conseguir-se um

bom efeito de continuidade nos momentos de troca dos rolos.

Enquanto A Viúva Alegre ocupava todo um programa

cinematográfico, Os Guaranis toma a parte final de programas

compostos por quatro fitas (como se observa na Imagem 1),

transformando-se, assim, no ponto culminante dos espetáculos.

Considerando que o programa exibido pelo Cinema Palace possuía

aproximadamente a duração de A Viúva Alegre; considerando-se,

ademais, o tempo gasto na troca das quatro fitas do programa,

supõe-se que cada fita media cerca de 180-240 metros de extensão. Assim,

Os Guaranis durava aproximadamente 9-12 minutos

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, a ação sendo

condensada nos principais episódios que funcionavam, como já

apontei, à guisa de tableaux vivants (como bem explicitam as Imagens

2 e 3); quadros tributários do teatro melodramático, que levavam a

emoção a um paroxismo. Misto de farsa e drama, oferecia à orquestra

a ocasião de fechar cada programa com os compassos altissonantes

da música de Gomes, à maneira do que ocorria nos programas

teatrais dos tempos de Correa Vasques.

Considerações finais: um tecido cultural

A relação intermidial estabelecida no século XIX entre romance e

teatro encorpa-se, no século XX, com o advento do cinematógrafo.

Examinando-se as folhas de 1908, observamos que “Guaranis”

variados conviveram na cena carioca: sendo a fita Os Guaranis ora

exibida no Cinema-Palace concomitantemente à récita da ópera de

Gomes, pela “Grande Companhia Lírica Italiana” que então ocupava

o Teatro Apolo (“Cinema-Palace” 1908b, 20; “Teatro Apolo...” 1908,

20); ora exibida no dia anterior à apresentação de ambas a

pantomima Os Guaranis, no Circo-teatro Spinelli, e a ópera de Carlos

Gomes, pela mesma companhia italiana, agora no palco do Teatro

São Pedro de Alcântara. Os sentidos da fita da trupe de Benjamin

construíam-se nesses meandros, na polifonia sonora que ressoava na

metrópole – polifonia que as telas do Cinema-Palace sublinhavam, já

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Conforme Júlio Ferrez descreve nas supracitadas memórias, A Viúva Alegre tinha “cerca de mil e tantos metros” (cf. Arquivo Nacional: Fundo Família Ferrez – Júlio Ferrez: FF-JF: 2.0.2, documento 5/2). Na Tabela de metragens apresentada por Usai em Silent Cinema: an introduction (2000), um filme 35 mm (fora utilizada nas filmagens de A Viúva Alegre uma câmera Pathé, que utilizava rolos de 35 mm) com extensão de 1000 metros comporta, quando exibido na velocidade de 16 quadros por segundo, 55 minutos de duração (Usai 2000, 170-174).

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Segundo a supracitada tabela, cada 60 m. de fita projetados a 16q/s tem a duração de 3,16 min. (Usai 2000, 170-174).

Referências

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