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Liberdade de imprensa, censura e dominação na crítica de Max Stirner

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Academic year: 2021

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José Manuel Silva (Universidade da Beira Interior)

Um dos pilares mais visíveis de um Estado de Direito democrático, e seu requisito consensual, é a exigência de liberdade de imprensa. Mas para Max Stirner esse gesto de exigir, tão caro ao liberalismo político, é a própria negação da liberdade. Esta não é uma dádiva, nem uma concessão ou permissão do Estado que a outorga. A liberdade de Imprensa só é acessível através da conquista, da apropriação, tornando-se propriedade do indivíduo ao ser por ele reclamada.

Num mundo confuso, caótico e paradoxal como o nosso, a aspiração stirneriana de uma utópica liberdade de imprensa, caracterizada pela au-sência de limites, parece fazer, por mais incrível que pareça, cada vez mais sentido.

Pela primeira vez na história da humanidade os meios para operar tão radical transformação – cada um reclamar para si o direito de publicar e difundir o que bem entenda – estão finalmente à disposição dos indiví-duos. A oportunidade é de ouro. A explosão dos media unipessoais de alcance global é talvez a novidade mais radical do século que se inicia. Os novos meios electrónicos de difusão permitem ao indivíduo não mais depender de autorização para expressar e publicar. A censura, as leis de imprensa, são letra morta quando o indivíduo se apropria da sua liberdade de expressão.

Neste trabalho procuro examinar como o ideal stirneriano de busca de uma liberdade de expressão sem limites pode pela primeira vez na história da humanidade, reunir condições para se cumprir, materializan-do-se nas novas redes interactivas, local por excelência para a individua-lização dos media. A concretização desse ideal implica a ausência de limites de qualquer espécie. A simples existência de um ser espiritual que se deva reverenciar ou ao qual mostrar deferência tornam, de algum mo-do, a expressão da imprensa diminuída.

Philosophica, 41, Lisboa, 2013, pp. 85-95

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Neste quadro, qualquer limite imposto a partir de abstracções do co-lectivo deve ser liminarmente rejeitado. É por isso que Stirner despreza a «exigência» de liberdade de imprensa própria do liberalismo. É que essa liberdade supõe regras, e para Stirner, no quadro da liberdade de expres-são, só a ausência de regra ou limite vale. A liberdade vigiada, educada e sociável que os liberais propõem transforma-se na sua própria negação e, mais perigoso ainda, cria a ilusão de liberdade, ocultando as regras que a sustentam.

The liberty of the press, for instance, is such a liberty of liberalism, liberalism fighting only against the coercion of the censorship as that of personal willfulness, but otherwise showing itself extremely inclined and willing to tyrannize over the press by ‘press laws’; the civic liberals want liberty of writing for themselves; for, as they law--abiding, their writings will not bring them under the law. Only liberal matter, only lawful matter, is to be allowed to be printed; otherwise the ‘press laws’ threaten ‘press-penalties” (Stirner, 1993: 98).

A luta do liberalismo pela liberdade de Imprensa é recebida por Stirner com frieza, se não desprezo. É que o liberalismo esforça-se por colocar a liberdade de expressão a salvo de limitações oriundas da tirania individual e da censura, no mesmo passo em que encoraja a criação de regras adequadas ao status quo dos proprietários dos meios de comunica-ção. Ora este limite – a propriedade dos meios de produção – parecia, no seu tempo, inultrapassável. E porém, hoje, cada indivíduo pode ser pro-prietário do seu próprio media com difusão à escala planetária, e recolher, editar e publicar qualquer coisa, sem outro juiz que ele próprio.

Do limite e sua ausência

Max Stirner, na segunda parte do seu livro O Único e sua Proprie-dade intitulada «Eu», analisa o conceito de «Eu-proprietário», e mais especificamente “As minhas relações”. É neste ponto que introduz o tema da liberdade de imprensa sem limites. Inicia a sua análise fazendo a dis-tinção entre bens materiais e bens espirituais. Enquanto nos primeiros qualquer reserva ou manifestação contrária consiste numa “subtracção ou alienação”, já uma afronta aos bens espirituais, é um ultraje ao sagrado, provocando o decaimento na troça, na imprecação, no desprezo e no cep-ticismo. Estes serão os rostos, as gradações “de um descaramento crimi-noso” (Stirner, 2004: 220). Uma das profanações máximas ao sagrado é a não “existência de uma liberdade de imprensa sem limites”, focalizada na liberdade do indivíduo. A liberdade enquanto propriedade do corpo social entendido como colectivo é negação da liberdade do indivíduo, e conse-quentemente uma farsa.

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Thus the whole question of the liberty of the press is turned upside down when it is laid claim to as a ‘right of the people’. It is only a right, or better the might, of the individual. If a people has the liberty of the press, then I, although in the midst of this people, have it not; a liberty of the people is not my liberty, and the liberty of the press as a liberty of the people must have at its a press law directed against me (Stirner, 1993: 190).

Stirner regista o lamento, o queixume pela liberdade de imprensa que perpassa pelo seu tempo e que ecoa ainda nos nossos dias – dizemos nós. “Vai por aí um suspirar pela liberdade de imprensa!”, ironiza, adian-tando que qualquer libertação do servilismo ou sujeição tem de caber ao indivíduo:

If I cannot or may not write something, perhaps the primary fault lies with me. Little as this seems to hit the point, so near is the application nevertheless to be found. By a press-law I draw a boundary for my publications, or let one be drawn, beyond which wrong and its punishment follows. I myself limit myself.1

A regulamentação do direito à expressão aniquila a sua essência mes-ma, ao traçar uma fronteira entre o que pode, ou não, ser nomeado. Encon-tramos em Stirner, também, e no que toca a esta questão, quase que um apelo à desobediência civil, ou de desafio aos poderes instituídos, pois a responsabilidade do actual status quo pertence por inteiro ao indivíduo.

A liberdade de imprensa não é algo que possa pertencer ao colectivo, clamar por ela em coro é algo de infrutífero, porque não verdadeiro. Os que a reclamam desse modo, reclamam apenas o direito de traçar uma fronteira relativa ao que se pode, ou não, escrever e dizer. A conquista da verdadeira liberdade de expressão pertence única e exclusivamente ao indivíduo, ao Eu. É claro que há algo de utópico nesta concepção, que lhe prognostica o papel de valor ou princípio regulador, mas isso também Stirner o nota: “Certainly, the absolute liberty of the press is like every absolute liberty, a nonentity. The press can become free from full many a thing, but always only from what I too am free from” (Stirner, 1993: 249).

Nessa concepção paradoxal e utópica de liberdade, o que Stirner de-seja realmente, mesmo se à partida não o reconhece de imediato, é que a imprensa se possa libertar do abraço tentacular e tutelar do Estado. No

1 “Se eu não posso nem devo escrever qualquer coisa, talvez a culpa deva começar

por ser procurada em mim. Embora isto pareça ser pouco pertinente, a sua aplicação é imediata. Com uma lei de imprensa, eu ponho ou deixo que ponham um limite àquilo que escrevo, para lá da qual entro numa zona do ilegal e estou sujeito a puni-ção. Eu próprio me imponho limites” (Stirner, 2004: 221).

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entanto, tal libertação é vista como uma “petição”. Ora, isso pode ser considerado como “um pedido de justiça”, e o Estado sob esta forma está investido nas vestes do patrono outorgante, daquele ser magnânimo e caprichoso que doa e concede2.

Com esta “dádiva” pouco se pode fazer. Os outorgados verão o Es-tado como entidade sagrada e apressar-se-ão a constituir uma lei que im-peça e puna actos criminosos que atentem contra esse espaço consagrado. A verdadeira libertação, posto isto, nunca pode ser um acto colectivo, mas sim algo de intrinsecamente individual. “In a word, the press does not become free from what I am not free from.”

A par da exigência da liberdade de imprensa, têm de ocorrer outros factores para que ela, de facto, possa ser alcançada. A liberdade de im-prensa per se não passa de um mendigar por uma permissão limitada. A verdadeira liberdade não conhece nem deus nem mestre.

A Ocasião Propícia

Stirner tem uma visão sui generis do que será a liberdade de impren-sa. Longe de ser seu inimigo, como uma primeira leitura poderia levar a pensar, o autor faz aliar a liberdade de imprensa a um conceito assaz pe-culiar – o de “favourable opportunity”.

A liberdade de imprensa, para ser verdadeiramente concretizável, espera sempre pela oportunidade favorável, pela brecha que antevê à sua frente. É verdade que essa liberdade nunca será absoluta, pois estará sem-pre dependente do instante perfeito para se poder manifestar. No entanto, essa espera nunca é um modo passivo de acontecer, muito pelo contrário: “He who would enjoy it must seek out and, if possible, create the favora-ble opportunity, availing himself of his own advantage against de the State; and counting himself and his will more than the State and every ‘superior’ power” (Stirner, 1993: 282).

A liberdade de imprensa é uma conquista que se impõe contra o Es-tado. Nunca será alcançada no seu interior, isto é, nunca poderá ser enun-ciada como um pedido, e outorgada como dádiva. Terá de ser conquista-da, como obra de uma rebelião que se manifesta no seu exterior. Só ao indivíduo oportunista, que percorre estas franjas, é permitido lutar contra o Estado e impor o seu poder, ainda que momentâneo e fugaz. Assim,

2 Este papel de “patrono outorgante” notou-se bem durante a privatização dos OCS

em Portugal nos anos 80, e mais ainda nos concursos para a atribuição dos canais privados de televisão. Outro case study interessantíssimo seria o da concessão das frequências de rádio locais, que matou excelentes e pujantes “rádios piratas”, subs-tituindo-as em muitos casos por empresas medíocres, que hoje funcionam já quase só como retransmissores de cadeias nacionais.

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“a liberty is not a liberty if it stands in the service of the State, of morals, or of the law [...] really I am not wholly free till I ask about nothing; and writing is free only when it is my own, dictated to me by no power or authority, by no faith, no dread” (Stirner, 1993: 283).

A apropriação: a imprensa tem de ser minha

Ficar apenas e só pela liberdade de imprensa é ainda muito pouco. Esta seria algo de escasso: uma liberdade minguada de permissão de im-primir. Stirner quer alcançar muito mais. A imprensa tem de ser minha para poder abranger a verdadeira conquista do eu. Dessa conquista faz parte a singularidade própria da imprensa – “owness of the press or property in the press, that is what I will take”.

O assunto posto nestes moldes dá azo à crítica stirneriana sobre o funcionamento do liberalismo político, respeitante ao seu estilo de abor-dar e construir a liberdade de imprensa. Como é natural, aqueles que re-clamam a liberdade de imprensa a partir do interior do Estado são os libe-rais, que Stirner despreza. Colocar a questão da liberdade de imprensa neste terreno não passa de um perfeito desperdício, um pedido de “autori-zação”. Aquela que é “a mais espectacular reivindicação dos liberais” e, no fundo, a única coisa que lhes interessa obter, trata-se apenas de uma maior e mais ampla “tolerância para a palavra livre” (Stirner, 2004: 223). Os liberais tornam-na uma questão do povo, que nesta perspectiva é aná-logo ao próprio Estado. Daí que antes de o povo possuir esta liberdade de imprensa, o indivíduo não possa fazer uso dela.

A possibilidade da imprensa ser minha só surge quando a Igreja, o Estado, o povo, a sociedade e outras entidades fantasmáticas forem arre-dadas do horizonte do indivíduo. Esse momento crucial só será realizável quando o desprezo que eu nutro por mim próprio – enquanto domesticado por todo aquele poder acima de mim – finalmente desaparecer. Cessando o desprezo, esfuma-se também a existência daquelas entidades que to-lhem a liberdade do indivíduo. O Eu é transformado em Eu-Proprietário, conceito da maior relevância no âmbito da filosofia de Stirner.

Mas enquanto tal não sucede, arranjamo-nos como podemos. Stirner não parece muito preocupado com o facto de a “minha” imprensa ser ainda “muito pouco livre”. É verdade que o indivíduo pode mandar im-primir tudo aquilo que deseja, sem que para tal necessite de possuir os meios de produção que dão origem à imprensa, mas não deixa de ser fundamental afirmar a minha propriedade. Por esta razão o Eu-proprie-tário, o egoísta, espera convenientemente a oportunidade necessária para “passar a perna aos meus inimigos” (Stirner, 2004: 224). É claro que os eleitos como inimigos são os liberais políticos, que se amparam à sombra protectora dos poderosos.

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O Eu-proprietário nutre o mais profundo desprezo pela “autoriza-ção” que se traveste de liberdade de imprensa, e se a pede, se por ela também reclama, é com um fim muito mais amplo em mente: derrubar aquele que a outorga, fazendo uso das armas que o próprio lhe forneceu. O comentário é breve e cáustico:

I am not concerned for their permission, but so much the more for their folly and their overthrow. I do not sue for their permission as if I flattered myself (like the political liberals) that we both, they and I, could make out peaceably alongside and with each other, yes, probably raise and prop each other, but I sue for it in order to make bleed to death by it, that permitters themselves may cease at last. I act as a conscious enemy, overreaching them and utilizing their heedlessness (Stirner, 1993: 284).

Na condução deste processo a intenção dos liberais fica só a meio caminho. Para além da libertação dos actos arbitrários e ataques dos po-derosos contra a liberdade de imprensa, é forçoso que ela se abra a todos sem excepção para que logre escapar às leis, que Stirner reconhece como afim da vontade popular, mas que não são mais que a vontade do Estado. Fazer da liberdade de imprensa uma “questão do povo” é circunscrever os seus horizontes. É tornar essa liberdade rasteira e mesquinha, sempre pronta a aceitar, servilmente, a entrada sub-reptícia da censura. Sujeitar--se ao juízo do povo não passa de um outro modo de dominação, de subalternização, dos actos do indivíduo.

The people plays judge over my thoughts; it has the right of calling me to account for them, or, I am responsible to it for them. Jurors, when their fixed ideas are attacked, have just as hard heads as the stiffest despots and their servile officials” (Stirner, 1993: 285).3

Em oposição às Aspirações Liberais do seu condiscípulo Edgar Bauer, obra em que se preconizava o reconhecimento da liberdade de imprensa apenas no seio do “Estado Livre”, onde o indivíduo, inserido num colectivo, membro de pleno direito de algo “verdadeiro e racional”, teria o direito de se exprimir livremente, Stirner caminha num sentido radicalmente distinto. O indivíduo atinge tal limiar porque realmente deixou de o ser. É um ser-outro, a sua individualidade única transformou--se em algo totalmente diferente – em membro da comunidade. “Ou seja:

3 “O povo faz de juiz dos meus pensamentos, e eu tenho de prestar-lhe contas, sou

responsável perante ele. E os jurados, quando as suas ideias fixas são atacadas, têm cabeças e corações tão duros como os mais inflexíveis déspotas e seus servis esbir-ros.”

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não é o indivíduo que tem liberdade de imprensa, mas o ‘membro’. [...] Mas é precisamente enquanto indivíduo que, pelo contrário, cada um tem liberdade de se exprimir” (Stirner, 2004: 225).

Procurar encontrar a liberdade de imprensa, como tenta fazer Bauer e outros que se lhe seguem, nos direito sagrados e inalienáveis do “cida-dão do Estado” ou do “cida“cida-dão livre” é brincar com espectros, simulacros de uma vida autêntica. Em primeiro lugar porque, pura e simplesmente, o indivíduo não possui “direito” a coisa alguma. A liberdade não é uma dádiva a ser concedida, algo predestinado, e muito menos algo que neces-site do assentimento do povo para ocorrer.

Ao invés do direito a, Stirner vê a chave para alcançar a liberdade na força e na vontade do indivíduo. E tal é o seu ímpeto que faz dele o Eu--proprietário. É a partir desta grandeza que o indivíduo se pode subtrair a qualquer ideia de “legitimação” exterior aos seus actos. A liberdade de imprensa assume aquilo que verdadeiramente é: uma conquista, só possí-vel porque pertence naturalmente ao indivíduo.

Por isso qualquer governo, o mais democrata, o mais liberal possí-vel, não recusa de modo algum a liberdade de imprensa ao homem – isso é apanágio de qualquer Estado que se preze, já que se trata de “um direito humano”. Mas em troca, exige ao indivíduo a maior caução de todas – a de se converter num verdadeiro homem, ou seja, num espectro.

[The government] does not dispute the liberty of the press as a right of man, but demands from the individual a security for his really being man; for it assigns liberty of the press no to individual, but to man. Under the exact pretense that it was no human, what was mine was taken from me! What was human was left to me undiminished. Liberty of the press can bring about only a responsible press; the irresponsible proceeds solely from property in the press (Stirner, 1993: 286).4

Da apropriação à posse

Os nossos dias adaptaram-se à era democrática, que teve o seu alvor em 1789, e se intensificou e disseminou ao longo do século XX. Os rituais mais triviais da democracia, como as eleições para um parlamento/gover-no, onde participam os cidadãos adultos, a organização de partidos políti-cos em torno de ideias e fervores, propagaram-se por várias partes do

4 “Não é ao indivíduo mas ao homem que ele [Governo] concede a liberdade de

imprensa. O que era meu foi-me tirado precisamente com o pretexto de que não era humano: o humano, esse deixaram-mo inteiro. A liberdade de imprensa só pode produzir uma imprensa responsável, a irresponsável só pode nascer da propriedade da imprensa” (Stirner, 2004: 225).

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globo, e as massas transformaram-se no principal factor de mudança so-cial: “A democracia evoluiu, assim, de uma forma de governo para um estilo de vida” (Zakaria, 2005: 12).

Mas tal é visto com muito desconforto. Mais uma vez são os libe-rais5 dos dias de hoje que lamentam a perda de liberdades fundamentais

para o homem. A ideia é que a democracia e a liberdade nem sempre concorrem a par. Aliás, se a primeira floresce e se dissemina pelo globo, tal não acontece com a segunda. Muitos vêem hoje retrocessos no que diz respeito à restrição de liberdades dadas há muito como garantidas (Zakaria, 2005). Sinais dos tempos, ou talvez não.

De resto, a nossa época parece marcada por sinais contraditórios. Apesar da autoridade do Estado estar cada vez mais difusa – a “democra-tização da violência” é um dos seus rostos mais visíveis – continua a lenta corrosão do carácter dos indivíduos às mãos da legitimidade democrática das reformas económicas neo-liberais (Sennett, 2001).

A protecção das liberdades fundamentais, entre as quais se destaca a da expressão, há muito se encontra moribunda face ao interesse do bem público, e que acaba, queixam-se os liberais hodiernos, “no desencanto, na desordem, na violência e em novas formas de tirania”. A terra foge debaixo dos nossos pés a toda a velocidade. A vida cultural das socieda-des está impregnada socieda-desta cultura popular, onde a quantidade reina. Quer se trate do último blockbuster de Hollywood, quer da novela televisiva escrita, realizada e produzida de acordo com o cânone da maioria, as massas governam e ditam a moda de recepção dos produtos.

A Internet intensificou ainda mais todas estas tendências. A demo-cratização a que se assiste no acesso às novas tecnologias de informação veio permitir que todos tenham ao seu dispor, ao alcance de um clique, aquilo que pretendem, sem dar satisfações ou pedir autorização a nin-guém.

A democracia política, que não é mais que o governo do povo, tem também de seguir na mesma direcção. Hoje não se dá um passo sem pri-meiro consultar a opinião pública. Spin doctors gravitam em torno do poder e tal como os oráculos da antiguidade, que analisavam vísceras de animais, assim se prevêem os dias de amanhã nas sondagens de opinião. Se antes estava em jogo o destino individual, agora interessa sentir o pul-sar colectivo. O estado de espírito do público tornou-se a máxima da actualidade. Neste frenesim pela produção do poder perde-se rapidamente a compostura, e a liberdade é a primeira a sofrer face a um agend-setting que impõe censura a todo e qualquer acto individual que vá contra este estado de coisas.

5 “Liberal” aqui deve ser entendido no sentido que os norte-americanos dão ao termo,

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Mas esta parafernália tecnológica posta ao dispor destas novas for-mas de dominação do indivíduo é exactamente a mesma que, paradoxal-mente, está a colocar a liberdade individual de expressão para lá de quaisquer limites que o Estado zeloso pretenda impor.

Sobre a experiência traumática do 11 de Setembro, Dan Gillmor re-latava que

ora entre o pavor daquelas horas e dias, surgiu uma nova forma de relatar os acontecimentos. Através do e-mail, das listas de correio electrónico, dos grupos de diálogo, dos jornais pessoais na Web – tudo fontes não habituais de notícias – conseguimos obter um conjunto de factos e circunstâncias que os grandes meios de comunicação americanos não quereriam, ou não poderiam, fornecer (Gillmor, 2005: 12).

Também em Portugal, o agenda-setting deixou há muito de ser mo-nopólio dos órgãos de comunicação mainstream, com grande desconforto de muitos profissionais e gurus que aí têm o seu modo de vida.

Neste mundo de satélites e fibras ópticas, os indivíduos estão a dei-xar de ser meros consumidores passivos da informação, para agirem e se apropriarem de um espaço que até agora lhes estava vedado (Gillmor, 2005). Tornam-se criadores, produtores e broadcasters, logo proprietá-rios da sua própria expressão.

O alcance desta revolução nos meios de comunicação só é compará-vel à invenção da escrita e da imprensa. É no dealbar do novo século que o texto de Stirner encontra, finalmente, as condições materiais de se cum-prir, sobretudo no carácter quase profético da espera pela “ocasião propí-cia”, que o Eu-proprietário acalenta e antevê.

Esta já não é uma tarefa realizada no interior do Estado, tal como os liberais políticos anteviam. Trata-se, antes de mais, de um labor, de uma força oriunda do seu exterior. Consumidor e produtor estão a diluir-se num mesmo e só indivíduo.

A rede de comunicações será um meio de dar voz a qualquer um, não só àqueles que podem investir milhões de dólares em máquinas impressoras, lançar satélites, ou obter permissão dos governos para utilizarem o espectro audiovisual” (Gillmor, 2005: 15).

É verdade que as forças de dominação começaram já a reagir a uma abertura tão disruptiva dos cânones liberais. Veja-se o exemplo das restri-ções do governo chinês impostas aos seus cidadãos no acesso à World Wide Web, ou o modo como o governo norte-americano lidou com o acesso ao Youtube por parte dos seus soldados em solo iraquiano. Tal como em qualquer sequela da Guerra das Estrelas, o império contra--ataca. No próprio mundo da Comunicação Social o jornalismo

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empresa-rial tornou-se dominante. As fusões são a regra, fazendo com que os gru-pos se transformem e alarguem cada vez mais os seus braços tentaculares. Tais factos provocam “a diminuição da qualidade para fazer subir os lu-cros a curto prazo” (Gillmor, 2005: 17).

No entanto, para lá da crise instalada na imprensa, e também da crise de valores que o jornalismo ocidental atravessa, a oportunidade é favorá-vel ao indivíduo que procura o que é seu. Os meios de comunicação tra-dicionais – jornal, rádio ou televisão – eram de um para muitos. A rede veio alterar radicalmente esse jogo de forças. Agora tudo é possível, des-de des-de um para um, des-de um para muitos, ou mesmo des-de muitos para muitos. O pedido de autorização, a permissão para poder publicar, tão cara aos liberais políticos, foi dinamitada pelos meios de comunicação multimé-dia. Hoje, qualquer um no mundo desenvolvido tem a força e os meios ao seu dispor para se apropriar da liberdade de imprensa, tal como preconi-zava Max Stirner. Mais de dois séculos depois do claim de Stirner, publi-car na web interactiva cumpre quase todos os requisitos que este colocava ao pleno exercício da liberdade de imprensa.

Na verdade, o que há de novo e revolucionário nesta tecnologia é que ela veio permitir a individualização dos media, algo nunca antes vis-to. Diz-nos ainda Dan Gillmor:

Foi um verdadeiro renascimento da Web interactiva. Todos podíamos escrever, não apenas ler, de formas nunca antes possíveis. Pela primeira vez na História, qualquer um que dispusesse de um computador e de uma ligação à Internet podia, pelo menos, no mundo desenvolvido, ser proprietário de um órgão de imprensa (Gillmor, 2005: 41).

Para Stirner “eu só serei livre quando não tiver de pedir nada e a es-crita só será livre quando for a minha eses-crita”, e é bem verdade que nos tempos que correm, apesar das primeiras perseguições a caminho, no mundo da blogosfera, essa liberdade apropriadora acontece. Convenha-mos que nunca a liberdade absoluta poderá acontecer ad eternum, mas tal como adverte o autor de Ego and its Own, para se ter um vislumbre dela é necessário forçar a “favorable opportunity”, sabendo de antemão que essa liberdade é algo de muito frágil. Eu tenho de agir como o “inimigo cons-ciente” daqueles que nos dão autorização para imprimir, enganando-os e tentando levá-los para o caminho da sua ruína. Até lá encerra sarcastica-mente Stirner: “O mundo é grande e arranjamo-nos como podemos” (Stirner, 2004: 224).

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Referências bibliográficas

Gillmor, Dan, (2005), Nós os Media, Lisboa: Editorial Presença.

Sennett, Richard, (2001), A Corrosão do Carácter – As consequências pessoais

do trabalho no novo capitalismo, Lisboa: Terramar.

Silva, José Manuel, (2004), O Destino do Eu – Ascensão e queda do indivíduo

na Modernidade, Lisboa: Instituto Piaget.

Stirner, Max, (1993), The Ego and Its Own – The case of the individual against

authority, London: Rebel Press.

_______, (2004), O Único e a sua Propriedade, Lisboa: Antígona.

Zakaria, Fareed, (2005), O Futuro da Liberdade – A democracia Iliberal nos

Estados Unidos e no mundo, Lisboa: Gradiva. RESUMO

Um dos pilares mais visíveis de um Estado de Direito democrático, e seu requisito consensual, é a exigência de liberdade de imprensa. Mas para Max Stirner esse gesto de exigir, tão caro ao liberalismo político, é a própria negação da liberdade. Esta não é uma dádiva, nem uma concessão ou permissão do Estado que a outorga. A liberdade de Imprensa só é acessível através da conquista, da apropriação, tornando-se propriedade do indivíduo ao ser por ele reclamada. Hoje, qualquer um no mundo desenvolvido tem a força e os meios ao seu dispor para se apropriar da liberdade de imprensa, tal como preconizava Max Stirner. Mais de dois séculos depois do claim de Stirner, publicar na web interactiva cumpre quase todos os requisitos que este colocava ao pleno exercício da liberdade de imprensa.

ABSTRACT

Freedom of the press is one of the most visible cornerstones of a Democratic State, as well as a consensual requisite for it. Nevertheless, for Max Stirner, this gesture of demanding so cherished by political liberalism is the very negation of freedom. Freedom is neither a gift nor a concession or permission granted by the State. Freedom of the press only becomes accessible through conquest and appropriation, becoming the individual ownership as it is claimed by him. Nowadays, everyone in the developed world has at his disposal the force and means to become the owner of the freedom of the press, as Max Stirner stated. More than two centuries after Stirner’s claim, publishing in the interactive web meets the conditions established by him for a full exercise of the freedom of press.

Referências

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