UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
UNIVERSIDADE PARIS 13
CENTRE DE RECHERCHE SUR L’ACTION LOCALE
(Tese en co-tutela/Thèse en co-tuttelle)
LULY RODRIGUES DA CUNHA FISCHER
ORDENAMENTO TERRITORIAL E PLANEJAMENTO MUNICIPAL
:ESTUDO DE CASO DAS LIMITACÕES SUPRALOCAIS À APLICAÇÃO DO ART. 30, VIII DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 PELO MUNICÍPIO DE PARAUAPEBAS,
PARÁ
LULY RODRIGUES DA CUNHA FISCHER
ORDENAMENTO TERRITORIAL E PLANEJAMENTO MUNICIPAL:
ESTUDO DE CASO DAS LIMITACÕES SUPRALOCAIS À APLICAÇÃO DO ART. 30, VIII DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 PELO MUNICÍPIO DE PARAUAPEBAS,
PARÁ
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará em regime de cotutela com a Universidade Paris 13, França para a obtenção do grau em doutor em Direito. Área de concentração: Direitos Humanos e Meio Ambiente, subárea Direitos Humanos e Proteção Ambiental
Orientador: Prof. Dr. José Heder Benatti Co-orientador: Prof. Dr. Robert Etien
LULY RODRIGUES DA CUNHA FISCHER
ORDENAMENTO TERRITORIAL E PLANEJAMENTO MUNICIPAL:
ESTUDO DE CASO DAS LIMITACÕES SUPRALOCAIS À APLICAÇÃO DO ART. 30, VIII DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 PELO MUNICÍPIO DE PARAUAPEBAS,
PARÁ
Banca examinadora
____________________________________________ Prof. Dr. José Heder Benatti
Orientador
____________________________________________ Prof. Dr. Robert Etien
Orientador
____________________________________________ Membro: Prof. Dr. Solange Telles da Silva Instituição: Universidade Prebisteriana Mackenzie
____________________________________________ Membro: Prof. Dr. Girolamo Domenico Treccani Instituição: Universidade Federal do Pará
____________________________________________ Membro: Prof. Dr. Pierre Teisserenc
Instituição: Universidade Paris XIII
____________________________________________ Membro: Prof. Dr. Blaise Tchikaya
AGRADECIDMENTOS
Aos professores e servidores do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos e da Universidade de Paris 13, pelos conhecimentos partilhados, em especial aos Professores Gutemberg Guerra e Pierre Teisserenc pelo apoio à concretização da cooperação que permitiu a realização da presente cotutela, fonte não apenas de aprofundamento teórico em uma nova área do Direito, mas também por um significativo enriquecimento cultural e pessoal.
A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e a Direção da Maison du Brésil da Cidade Universitária de Paris pelo suporte material para a execução dessa pesquisa
Aos meus orientadores pelo auxílio na elaboração do presente trabalho. Aos servidores Prefeitura de Parauapebas, do Instituto de Terras do Pará e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária em Marabá pelo auxílio na disponibilização do material para a pesquisa, sem os quais a análise não teria sido possível.
A geógrafa Andrea Coelho, servidora do Instituto de Desenvolvimento Econômico, Social e Ambiental do Pará pela elaboração da maior parte dos mapas que compõem a presente tese.
A Rudy Echard, Benoit Arsac e Erwan Le Mener pelo auxílio na revisão do texto em francês.
RESUMO
Objetiva verificar se as normas do sistema jurídico brasileiro com reflexo territorial podem ser aplicadas de forma hierarquizada, integrada e coordenada pelos Municípios localizados na Amazônia legal no seu planejamento. O escopo dessa análise é limitado ao território do Município de Parauapebas, Estado do Pará. O município estudado fornece uma síntese dos problemas jurídicos existentes em matéria de ordenamento territorial municipal na Amazônia Legal.. Utiliza o método
empírico, baseada na técnica de estudo de caso.O resultado da pesquisa é dividido em quatro partes. Na primeira é feita uma retrospectiva dos projetos de exploração da Amazônia do período colonial até a atualidade, demonstrando as mudanças operadas na legislação que subsidiaram a atuação estatal. Na segunda é analisada a repartição de competências em matéria constitucional sobre ordenamento territorial, urbanismo, atividades agrárias, mineração e meio ambiente para fins de identificação do quadro normativo ao qual se submete o planejamento territorial municipal. As disposições infraconstitucionais que influenciam no planejamento municipal no plano federal e estadual e os instrumentos supralocais de planejamento e gestão do território também são analisados. Na terceira parte é analisado se o planejamento municipal de Parauapebas atende às determinações supralocais identificadas. Na última parte são analisadas as normas europeias e francesas sobre o ordenamento territorial da Guiana para verificar como as particularidades da região amazônica são adereçadas, mas sem a pretensão de fazer uma análise comparativa entre os ordenamentos jurídicos. Conclui-se que o ordenamento jurídico brasileiro possui apenas instrumentos de planejamento regionalizado e políticas setoriais de impacto territorial, com alguns conteúdos diferenciados para a Amazônia Legal, mas não há ainda instrumentos com base territorial para coordenar essas políticas em nível nacional e regional. Os Municípios são os únicos que devem elaborar um planejamento compreensivo de base territorial. Sua autonomia para planejar é conformada por normas supralocais. O planejamento e o exercício do poder de polícia municipal estendem-se por todo o território municipal, mas seus efeitos são diferenciados de acordo com tipo de bem tutelado.
ABSTRACT
It aims to verify how municipalities can apply the Brazilian Legal System’s laws of
territorial impact in a hierarchic, integrated and coordinated way to its planning. The scope of this analysis is limited to the Municipality of Parauapebas, in the State of Pará. This municipality fournishes a general overview of the existing legal problems in terms of land use in the Brazilian Amazon. It uses the empirical method and the case study technique. The result os this research is divided in four section. At first, it is analysed the exploitation and development projets in Amazonia since the colonial times, in order to demonstrate the changes operated in the legal system to enable the intervention of the State in the use of the territoiry. In the second part it is analysed the constitutional dispositions regarding the land use, urbanism, agrarian activities, mining and environment in order to identify the legal requirements to be followed by local planners. In the second section it is also analysed federal and State laws that influence the local planning, as well as supralocal instruments of territorial planning. In the third it is verified if the Parauapebas planning meets the supralocal legal requirements analysed in the previous sections. In the last section, it is analysed the European and French land use regulations are applied to the French Guiana in order to understand how the particularities of the Amazon region are regulated, but without the scope to compare the Brazilian and French systems. This analysis led to the conclusion that the Brazilian Legal System limits its land use regulation to the use regionalized planning instruments and sectorial polities of territorial impact, with few differentiations for the Amazon region, but there are not instruments to coordinate the effects of these policies ate the national and regional level. The municipality is the only level of the Federation legally bound to create a land use planning law. The local autonomy is conformed by supralocal laws and policies. The local land use planning and the exercice of the municipal police power are extensible to the whole territory, but they have different effects over it according to the existing land tenure.
RÉSUMÉ
Cette thèse a pour objectif de vérifier si les lois d'impact territorial de l'ordre juridique brésilienne peuvent être appliqués de façon hiérarchisée, intégrée et coordonnée par les municipalités situées en Amazonie dans l'élaboration de leurs planifications territoriales. L'analyse est limitée au territoire de la municipalité de Parauapebas, dans l'État du Pará. La configuration territoriale de cette municipalité fournit une synthèse des problèmes juridiques existant en matière d'aménagement du territoire municipal en Amazonie Légale. La recherche moibilise la technique d'étude de cas. Le résultat de la recherche est exposé en quatre parties. Dans la première partie, il est présenté un historique des projets d'exploitation en l'Amazonie depuis la période coloniale jusqu'à la période actuelle, examinant les changements légaux nécessaires pour soutenir l'activité de l'État. Dans un deuxième temps, l’analyse porte sur les
dispositions constitutionnelles et infraconstitutionnelles par rapport à l'aménagement du territoire. Cela a servi de base pour identifier les normes auxquelles sont soumises la planification municipale, tout comme fonctionnement des instruments de gestion intermunicipales. Dans un troisième moment, la planification municipale de Parauapebas et son adéquation aux normes supralocales constituent l’objet d’étude. Le document se termine par une discussion concernant l'application des normes européennes et françaises sur l'aménagement du territoire de la Guyane, afin de comprendre comment cet ordre juridique a trouvé des solutions adaptées aux
particularités de l'Amazonie; l’objet n’est pas toutefois de comparer les systèmes juridiques. Au terme de l’enquête, il apparaît que l'ordre juridique brésilien possède seulement des instruments de planification régionalisés et des politiques sectorielles d'impact territorial, avec quelques dispositions différenciées pour l'Amazonie légale. Il
n’existepas d’ intruments de coordination des politiques sectorielles au niveau national, ou même régional. La municipalité est le seul membre de la fédération
obligé d’élaborer une planification à l’échelle de son territoire. Malgré tout,
l'autonomie municipale s’est conformée par des règles supralocaux. La planification et l'exercice du pouvoir de police s'étendent à la totalité de son territoire, mais ses effets sont différenciés selon le régime du foncier.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1 - Eixos de integração e desenvolvimento do IIRSA 92
Ilustração 2 - Portfólio de projetos aprovados na Agenda de Impelementação Consensuada pela IIRSA
94
Ilustração 3 - Localização do Projeto Onça Puma 261
Ilustração 4 - Evolução dos desmembramentos para a formação do território municipal de Parauapebas
267
Ilustração 5 - Processos Minerários no Município de Parauapebas 269 Ilustração 6 - Áreas do Estado do Pará afetadas pelo Decreto-lei n. 1.164/1971 272 Ilustração 7 - Áreas arrecadadas pela União durante a vigência do Decreto-lei 1164/1971
274
Ilustração 8 - Configuração municipal após os desmembramentos 279 Ilustração 9 - Mapa de localização da Terra Indígena Xikrin do Cateté no Município
311
Ilustração 10 - Unidades de Conservação do Mosaico de Carajás 314 Ilustração 11 - Área de lavra da Companhia Vale no interior da Floresta Nacional de Carajás
319
Ilustração 12 - Área ocupada por posseiros no interior da Floresta Nacional de Carajás
321
Ilustração 13 - Zonas de mineração segundo o plano de manejo da FLONA Carajás
323
Ilustração 14 - Terras públicas estaduais no Município 335
Ilustração 15 - Conflito de terras da Vila Sanção 340
Ilustração 16 - Distritos segundo o plano diretor de Parauapebas 357 Ilustração 17 - Macrozoneamento Municipal, segundo o Plano Diretor 361
Ilustração 18 - ZEIS criadas no Município de Parauapebas 363
Ilustração 19 - Organograma da Estrutura da SIPLAG 380
Ilustração 20 - Zoneamento do Município de Parauapebas segundo o Zoneamento Ecológico Econômico aprovado para o Leste do Estado do Pará
405
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Distribuição de áreas públicas federais de uso especial no Município de Parauapebas
282
Quadro 2 - Áreas patrimoniais doadas pela União no atual território de Parauapebas pelo Programa Terra Legal
283
Quadro 3 - Leis que importaram na expansão de áreas patrimoniais municipais 286
Quadro 4 - Listagem sobre a situação de loteamentos urbanos existentes no Município de Parauapebas
297
Quadro 5 - Legislação municipal sobre disposição de Patrimônio Municipal 303
Quadro 6 - Glebas federais incidentes sobre o Município de Parauapebas 328
Quadro 7 - Projetos de Assentamentos criados em Parauapebas 330
Quadro 8 - Pedidos de regularização fundiária individual sobre terras públicas federais segundo o Programa Terra Legal no Município de Parauapebas
331
LISTA DE SIGLAS
ANA Agência Nacional de Águas
APROAPA Associação de Produtores da APA
CDRR Comitê para o Desenvolvimento e Reconversão de Regiões
CDRU Concessão de Direito Real de Uso
CE Comunidade Européia
CFEM Compensação Financeira sobre a Exploração Mineral
CONAMA Conselho Nacional do Meio Ambiente COSIPLAN Conselho de Infraestrutura e Planejamento
CPER Contratos Projeto Estado-Região
CPER Contrats Plans État-Région
CTN Código Tributário Nacional
CVRD Companhia Vale do Rio Doce
DATAR Délégation à L'aménagement du Territoire et à L'action Régionale
DIACT Délégation Interministérielle à L'aménagement et à la Compétitivité des Territoires
DNPM Departamento Nacional de Pesquisa Mineral
DTA Diretivas Territoriais de Ordenamento
DTADD Diretivas Territoriais de Ordenamento e Desenvolvimento Sustentável
EDEC Desenvolvimento do Espaço Comunitário
FDA Fundo de Desenvolvimento da Amazônia
FEDER Fundo Europeu de desenvolvimento Regional
FIDAR Fonds Interministériel D’intervention Adapté FNO Fundo Constitucional de Financiamento do Norte
FUNAI Fundação Nacional do Índio
FUNSOCIAL Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano e Interesse Social
FZC Fundação Zoobotânica de Carajás
GETAT Grupo Executivo das Terras do Araguaia Tocantins
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis
ICMS Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços
IDEB Índice de Desempenho da Educação Básica
IDHM Índice de Desenvolvimento Humano dos Municípios Brasileiros IIRSA Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional
Sul-Americana
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária IPTU Imposto Predial Territorial Urbano
ITERPA Instituto de Terras do Pará
ITR Imposto territorial rural
LADDT Loi D’orientation Pour L’aménagement et le Développement
Durable du Territoire
LADT Loi D’orientation Pour L’aménagement et le Développement du
Territoire
LOMP Lei Orgânica Municipal de Parauapebas
MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário
OT Ordenamento Territorial
PADD Plano de Ordenamento e de Desenvolvimento Sustentável
PAOF Plano Anual Operação Florestal
PDSEA Planos de Utilização Sustentável e de Desenvolvimento Sócio-Econômico-Ambiental
PECRQ Política Estadual para as Comunidades Remanescentes de Quilombos
PGC Programa Grande Carajás
PLU Planos Locais de Urbanismo
PMGC Plano Municipal de Gerenciamento Costeiro
PNDR
PNGATI Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas
PNOT Política Nacional de Ordenamento Territorial
PPA Plano Plurianual
PRDA Plano Regional de Desenvolvimento da Amazônia
RADAM Radar Amazônia
SAR Schéma d'Aménagement Régional
SEDURB Secretaria Estadual de Desenvolvimento Urbano
SEIDURB Secretaria Estadual de Integração e Desenvolvimento Urbano
SEIR Secretaria de Integração Regional
SEMMA Secretaria Municipal de Meio Ambiente
SEPLAN Secretaria Municipal de Planejamento
SIAB Sistema de Informação da Atenção Básica
SMVM Schéma de Mise em Valeur de la Mer
SNUC Sistema Nacional de Unidades de Conservação
SRADT Schéma Régionaux D'aménagement et de Développement du Territoire
SUDAM Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia
UE União Europeia
UFPA Universidade Federal do Pará
UNASUL União das Nações Sul-Americanas
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 18
1.1 APRESENTAÇÃO DA PROBLEMÁTICA E JUSTIFICATIVA 18
1.1.1 Histórico dos Projetos de Integração da Região 18
1.1.2 Ordenamento Territorial: uma definição 27
1.1.3 Particularidades da Política de Ordenamento Territorial na
Amazônia Legal e os Municípios
31
1.1.4 Ordenamento Territorial e a Autonomia dos Municípios
Paraenses
33
1.1.5 Experiência de Ordenamento Territorial na Amazônia
Internacional
37
1.2 OBJETO DE PESQUISA 38
1.3 HIPÓTESE 38
1.4 METODOLOGIA 38
1.5 PLANO DA OBRA 40
2 A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA EM PROJETOS DE
ORDENAMENTO TERRITORIAL: UMA ANÁLISE DAS POLÍTICAS DE DESENVOLVIMENTO DA AMAZÔNIA E SUA INFLUÊNCIA NO PROCESSO DE URBANIZAÇÃO DA REGIÃO
42
2.1 DO PERÍODO COLONIAL À ABERTURA DAS RODOVIAS 43
2.2 ESTRATÉGIAS DE DESENVOLVIMENTO DO PERÍODO MILITAR 48
2.3 A REDEMOCRATIZAÇÃO E A BUSCA DE UM MODELO DE
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL PARA A AMAZÔNIA
52
2.3.1 Alterações no Contexto Internacional 52
2.3.2 A Nova Ordem Democrática 54
2.3.3 Projetos de Desenvolvimento na Amazônia a Partir da
Redemocratização
58
2.4 NOVAS TENDÊNCIAS NO PLANEJAMENTO NACIONAL
BRASILEIRO
61
2.4.1 O Plano Plurianual 63
2.4.2 Política Nacional de Desenvolvimento Regional 69
2.4.2.2 Plano Regional de Desenvolvimento da Amazônia 83
2.4.3 O projeto de criação de uma Política Nacional de Ordenamento
Territorial
85
2.4.4 Iniciativa Para a Integração da Infraestrutura Regional
Sul-Americana (IIRSA)
87
2.5 O ORDENAMENTO TERRITORIAL MUNICIPAL COMO
ALTERNATIVA DE PLANEJAMENTO INTEGRADO NA AMAZÔNIA
100
2.5.1 As Particularidades da Implementação de uma Política de
Ordenamento Territorial na Amazônia Legal e o Papel das Áreas Urbanas
101
2.5.2 A Competência Municipal em Matéria de Ordenamento Territorial
e a Realidade dos Municípios Paraenses
103
2.6 CONCLUSÃO DA SEÇÃO 106
3 LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS E INFRACONSTITUCIONAIS
SOBRE ORDENAMENTO TERRITORIAL MUNICIPAL
112
3.1 PANORAMA GERAL DA REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS NA
CONSTITUIÇÃO DE 1988
113
3.1.1 Histórico do Desenvolvimento do Federalismo Brasileiro 113
3.1.2 Repartição de Competências Legislativas e Materiais 118
3.2 REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS CONSTITUCIONAIS E
ORDENAMENTO TERRITORIAL
126
3.3 COMPETÊNCIAS CONSTITUCIONAIS EM ÁREAS AFETAS AO
PLANEJAMENTO TERRITORIAL
131
3.3.1 Repartição de Competências em Matéria Urbanística 131
3.3.2 Repartição de Competência em Matéria Socioambiental 135
3.3.3 Repartição de Competência em Matéria Agrária 136
3.3.4 Repartição de Competência em Matéria Mineral 137
3.3.5 Repartição de Competências em Matéria Ambiental 139
3.4 A POLÍTICA URBANA NA CONSTITUIÇÃO E O ESTATUTO DA CIDADE
141
3.4.1 Delimitação da Área Urbana e Exercício do Poder de Polícia
Municipal
141
3.5 OUTRAS NORMAS URBANÍSTICAS COM INFLUÊNCIA NO PLANEJAMENTO MUNICIPAL
161
3.5.1 Saneamento Básico 162
3.5.1.1 Resíduos Sólidos 164
3.5.2 Mobilidade Urbana 167
3.5.3 Habitação de Interesse social, Regularização Fundiária e
Parcelamento do solo urbano
169
3.6 INFLUÊNCIA DA LEGISLAÇÃO FUNDIÁRIA NO PLANEJAMENTO
MUNICIPAL
180
3.6.1 Terras Públicas Federais Arrecadadas e Terras Devolutas
Estaduais
180
3.6.2 Terras na Faixa de Fronteira 182
3.6.3 Terrenos de Marinha, Terrenos Reservados e Várzeas 183
3.6.4 Ilhas Marítimas, Fluviais e Lacustres 186
3.7 INFLUÊNCIA DA LEGISLAÇÃO AGRÁRIA NO PLANEJAMENTO
MUNICIPAL
187
3.8 INFLUÊNCIA DA LEGISLAÇÃO MINERÁRIA NO PLANEJAMENTO
MUNICIPAL
191
3.9 INFLUÊNCIA DA LEGISLAÇÃO AMBIENTAL E SOBRE DIREITOS
TERRITORIAIS DE COMUNIDADES TRADICIONAIS NO
PLANEJAMENTO MUNICIPAL
193
3.9.1 Zoneamento ambiental 194
3.9.2 Sistema Nacional de Unidades de Conservação 200
3.9.3 Código Florestal 203
3.9.4 Política Nacional de Recursos Hídricos 208
3.9.5 Plano Nacional de Zoneamento Costeiro 210
3.9.6 Terras Indígenas 214
3.9.7 Territórios Quilombolas 221
3.10 INSTRUMENTOS SUPRALOCAIS DE PLANEJAMENTO E GESTÃO
TERRITORIAL
227
3.10.1 Regiões Metropolitanas, Aglomerações Urbanas e Microrregiões 227
3.10.2 Consórcios Públicos 232
4 ORDENAMENTO TERRITORIAL E O MUNICÍPIO DE PARAUAPEBAS
249
4.1 DADOS SOCIOECONÔMICOS E AMBIENTAIS DO MUNICÍPIO 249
4.1.1 Demografia 250
4.1.2 Principais Atividades Econômicas Desenvolvidas no Município e
Empregabilidade
251
4.1.3 Indicadores de Educação, Assistência de Saúde e Segurança
Pública no Município
255
4.1.4 Principais Impactos Ambientais No Município 256
4.1.5 Receita Municipal 258
4.1.6 Grandes Projetos e o Município de Parauapebas 260
4.1.7 Dados sobre a Região de Integração no Qual o Município Está
Inserido
264
4.2 HISTÓRICO DO SURGIMENTO DO MUNICÍPIO E DE SUA
CONFIGURAÇÃO PATRIMONIAL ATUAL
265
4.2.1 Desmembramentos Municipais Que Originaram o Município de
Parauapebas
265
4.2.1.1 A descoberta da Província Mineral de Carajás 268
4.2.1.2 A Federalização de Terras Devolutas no Sudeste Paraense 271 4.2.1.3 A Implantação do Projeto Mineral na Serra dos Carajás e o
Surgimento do Município de Parauapebas
275
4.2.1.4 O Início da Atividade Mineral e a Emancipação do Município 278
4.3 A CONFIGURAÇÃO FUNDIÁRIA ATUAL DO MUNICÍPIO DE
PARAUAPEBAS
280
4.3.1 A Constituição da Área Patrimonial do Município de
Parauapebas
280
4.3.1.1 O Repasse de Áreas Patrimoniais por Desmembramento 281
4.3.1.2 A Competência para o Repasse de Áreas Públicas no Município de Parauapebas
282
4.3.1.3 A incorporação patrimonial pelo Município de Parauapebas a partir da aquisição de áreas privadas
285
4.3.1.4 A Disposição do Patrimônio Público pelo Município de Parauapebas 303
4.3.3 Criação da Floresta Nacional do Carajás e da Área de Proteção Ambiental do Igarapé Gelado
313
4.3.3.1 Área de Proteção Ambiental do Igarapé Gelado 315
4.3.3.2 Floresta Nacional de Carajás 317
4.3.4 A atividade mineral e a CVRD no município de Parauapebas 325
4.3.5 Os projetos de assentamento e de regularização fundiária no
Município de Parauapebas
328
4.3.6 A Atuação do Instituto de Terras do Pará (ITERPA) no Município 334
4.4 ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO MUNICIPAL REFERENTE AO
PLANEJAMENTO URBANO
342
4.4.1 Lei Orgânica do Município e o Planejamento Municipal 342
4.4.1.1 Disposições sobre Planejamento Municipal na Lei Orgânica Municipal de Parauapebas (LOMP) de 1990
342
4.4.1.2 Disposições sobre Planejamento Municipal Segundo a Emenda à Lei Orgânica n. 1/2009
348
4.4.1.3 Análise Comparativa das Disposições de 1990 e 2009 352
4.4.2 Análise do Plano Diretor de Parauapebas 354
4.4.2.1 Definição de Área Urbana e de Uso, Ocupação e Parcelamento do Solo Urbano e Rural.
355
4.4.2.2 Políticas Setoriais de Impacto Espacial 367
4.4.2.3 Política de Planejamento e Desenvolvimento Municipal 373
4.4.2.4 Sistema Municipal de Planejamento e Gestão 379
4.4.2.5 Descentralização Regional e Política 382
4.4.3 Legislação Urbanística Municipal Editada Depois de 2006 383
4.5 ANÁLISE DOS IMPACTOS DA LEGISLAÇÃO SUPRALOCAL NA
ELABORAÇÃO E EXECUÇÃO DO PLANEJAMENTO URBANO MUNICIPAL
387
4.5.1 Disposições de Natureza Urbanística 389
4.5.2 Disposições de Natureza Ambiental e Agrária 397
4.5.3 Disposições de Natureza Fundiária, Indigenista e Minerária 409
4.6 CONCLUSÃO DA SEÇÃO 416
5 ORDENAMENTO TERRITORIAL EUROPEU NO DEPARTAMENTO
ULTRAMARINO FRANCÊS DA GUIANA
5.1 A UNIÃO EUROPÉIA: DA COESÃO ECONÔMICA À TERRITORIAL 433
5.1.1 O Desenvolvimento do Debate Territorial em Nível Europeu e
suas Implicações Jurídicas
439
5.1.1.1 Evolução das Preocupações Territoriais em Escala Europeia 439
5.1.2 Competências e Instrumentos da União Europeia para Atingir a
Coesão Territorial
448
5.1.3 A Incorporação dos Instrumentos de Coesão Territorial
Europeus pela França
459
5.2 ORDENAMENTO TERRITORIAL NA FRANÇA 462
5.2.1 O Modelo de Estado Unitário Francês 463
5.2.2 Ordenamento Territorial no Direito Francês 479
5.2.2.1 Coordenação Interministerial (DATAR) 483
5.2.2.2 Leis de Orientação em Matéria de OT (LOADT e LOADDT) 486
5.2.2.3 Contratos Estado-Região 501
5.3 APLICAÇÃO DAS NORMAS DE ORDENAMENTO TERRITORIAL
NA GUIANA FRANCESA
504
5.3.1 A Habilitação Legislativa como Ferramenta para Lidar com as
Especificidades
506
5.3.2 Disposições Específicas em Matéria de Ordenamento Territorial
na GF
507
5.4 CONCLUSÃO DA SEÇÃO 510
6 CONCLUSÃO 514
REFERÊNCIAS 525
1 INTRODUÇÃO
1.1 APRESENTAÇÃO DA PROBLEMÁTICA E JUSTIFICATIVA
Ordenar a Amazônia legal brasileira em pleno século XXI pode ser considerado um grande desafio contemporâneo (SOUZA; FILIPPI, 2010). Com um território repartido desigualmente em nove estados da federação, que representam mais de 50% do país, e formando com seus vizinhos1 a Amazônia internacional é um
dos ecossistemas – cultural e biologicamente – mais diversos do planeta (BECKER, 2010).
Sua grande dimensão e abundância de recursos naturais, outrora considerados ilimitados, ensejaram na sua exploração desde período colonial, importando numa gradativa apropriação privada de seu território, que condicionou seu (des)ordenamento atual e as relações que nele se estabelecem.
Seu cenário contemporâneo é marcado por problemas fundiários, contrastes sociais, elevados índices de violência, problemas ambientais, permanecendo uma região pouco desenvolvida e com fraca participação no produto interno bruto brasileiro. Trata-se de um espaço que – apesar de ter sido submetido ao planejamento estatal – possui uma dinâmica ainda incompreendida e que, segundo Becker (2010) jamais recebeu um projeto de desenvolvimento a altura.
1.1.1 Histórico dos Projetos de Integração da Região
Desde o período colonial a história da ocupação desse território se confunde com o apossamento de recursos naturais e do confronto entre grupos humanos culturalmente distintos. Originalmente a área pertencente ao Reino de Portugal era restrita a 370 léguas marítimas a partir da Ilha do Cabo Verde, mas com a união das Coroas ibéricas (1580-1640), esta região foi progressivamente sendo ocupada pelos portugueses para além de seus limites iniciais, graças às missões religiosas de evangelização e às expedições com perfil econômico-militar, materializando-se em
1 Os países com que faz fronteira são: Bolívia, Colômbia, Equador, França (através de seu
aldeamentos e fortificações (TRECCANI, 2001; ÉLERES, 2002), que deram origem ao sistema urbano na região.
Para povoar e explorar esse novo território, a coroa portuguesa optou por aplicar às novas terras a mesma legislação utilizada em Portugal. No entanto, outro sistema de apossamento coexistiu não regulado pela lei, baseado no simples apossamento. Essas duas formas de privatização de terras configuraram um território dominado por ocupações com limites geográficos imprecisos, e justamente por sua fluidez que facilitaram a apropriação de recursos naturais.
Mesmo ocupada desde o início do processo de colonização das Américas, com uma economia marcada pela subsistência e pequena produção mercantil, somente no século XVII foi iniciada uma política de exploração colonial na região, o que incentivou o desenvolvimento da monocultura e do extrativismo, que passou a coexistir e mesmo a substituir as atividades previamente em execução.
Com a suspensão do sistema sesmarial em 1822, se instaurou um período de 32 anos de anomia, prevalecendo o sistema costumeiro de apossamento. Novo tratamento jurídico a matéria somente reaparecerá com o advento da Constituição Imperial de 1824, que introduziu a concepção de propriedade privada de caráter absoluto, cuja regulamentação se deu pela Lei de Terras (1850). No entanto, ocupações ilegais persistiram.
Em 1891, com promulgação de uma nova Constituição, o país passou a ser uma República federativa e as províncias foram transformadas em Estados, com maior autonomia, sobretudo na questão fundiária e mineral. Como a administração de terras passa a ser atribuição dos Estados, houve o favorecimento das oligarquias locais, o que culminou com o aparecimento de grandes propriedades na região Amazônica.
A abertura física da Amazônia Legal com a implantação do eixo rodoviário permitirá a chegada de sucessivas ondas migratórias. A terra passa a ter valor de mercado e sofrer processo de especulação, marcado por fraudes e irregularidades, uma vez que não foram adotadas medidas preventivas para resolver a situação de incerteza dominial, caracteriza o sistema de apossamento anterior, criando condições para a eclosão de intensos conflitos agrários.
Com o golpe militar de 1964 a integração da região amazônica ao restante do país passa a ser uma prioridade para o Governo Federal, passando a região a fazer parte de seu planejamento, caracterizado pelo investimento seletivo em infraestrutura e na exploração setorial, mas em grande escala, dos recursos naturais. Para regular essa nova fase de intervenção o governo promulga uma nova Constituição em 1967, listando dentre os bens da União as terras devolutas indispensáveis à defesa nacional ou essenciais ao seu desenvolvimento econômico, o que permitirá a apropriação de terras na Amazônia, sem a necessidade de indenização dos Estados afetados.
Sobre as áreas federalizadas foram criados projetos de colonização dirigida e agrovilas para a implantação de colonos de outras regiões. No entanto, por razões de ordem técnica, ecológica e econômica a maior parte dos projetos de colonização não prosperou, ficando a primeira fase de planejamento caracterizada pela ocupação espontânea de terras.
A segunda fase do projeto federal de integração nacional foram dirigidos investimentos para o fomento de políticas creditícias e desoneração tributária para projetos agropecuários de grande escala, que supostamente levariam para o campo uma mentalidade empresarial (TRECCANI, 2001). A combinação desses incentivos e o baixo valor a terra na região propiciou a expansão do capital (KOHLHEPP, 2002), acirrando conflitos pela terra, que passaram a ser reprimidos como violações a ordem pública.
representam as última ação do governo militar na Amazônia.
A alteração do cenário internacional mundial com o fim da Guerra Fria e a crise do capitalismo com os choques do petróleo de um lado e a crescente luta pela redemocratização do país puseram um fim à ditadura (1985). Visando adaptar o país ao novo contexto econômico internacional, bem como responder às demandas sociais internas com a redemocratização, a Assembleia Constituinte elaborará uma nova Constituição (1988), elegendo novas prioridades para a atuação do Estado no plano econômico e social.
Uma das principais mudanças operadas pela Carta Constitucional de 1988 é o papel do Estado na ordem econômica, que deixa de ser um interventor e passa a ser um regulador da economia, adaptando-se assim à nova ordem neoliberal, caracterizada pela fluidez do capital, a flexibilidade organizacional, estímulo à concorrência e à produtividade baseada no desenvolvimento tecnológico (CASTELLS, 2007).
O Estado não mais consegue controlar sua economia, mas continua a influenciá-la, através de incentivos e de políticas para tornar seu território mais competitivo, atraindo assim investimentos. É por essa razão que as políticas de planejamento se deslocam do econômico para o espacial, permitindo que mesmo Estados e Municípios passassem a negociar seus projetos de desenvolvimento independente, aumentando disparidades regionais.
De principal ator econômico, o Estado passa a ser um agente normativo e regulador das atividades que atuam em seu território, exercendo as funções de fiscalização, incentivo e planejamento. A intervenção do Estado na economia passa a ser restrita a casos específicos, face aos imperativos de segurança nacional e de interesse coletivo, guardando o monopólio apenas de áreas estratégicas. Mesmo serviços públicos, atividades outrora de competência exclusiva do poder público, poderão ser delegados à iniciativa privada através de permissões e concessões.
competindo à União articular suas ações de forma diferenciada no território para reduzí-las.
Essas medidas devem ser ordenadas através da execução de planos regionais, que deverão se articular com planos nacionais de desenvolvimento econômico e social, devendo contar com a participação dos Estados envolvidos, cabendo aos municípios, no que couber promover o ordenamento territorial do solo urbano (art. 30, VIII). Contudo, apesar de prevista a participação dos estados e municípios no planejamento da ordenação territorial, essa atribuição continua a ser uma competência material exclusiva da União, que poderá realizá-la mesmo sem a edição de lei (art. 21, IX).
Portanto, na nova Constituição o peso da União2 permanece significativo,
ainda que tenha sido reduzido se comparado com suas atribuições no regime anterior. Mesmo que possua apenas competências materiais e legislativas expressas, na prática, esse rol é extenso (arts. 21 e 22), bem como os bens públicos sob seu domínio (art. 20).
Não obstante, convém ressaltar que a nova ordem constitucional incorporou medidas descentralizadoras em prol dos Estados3 e, sobretudo em relação aos
Municípios no novo pacto federativo que foi elevado à posição de ente federado, uma peculiaridade do federalismo brasileiro4. Com a adoção do federalismo
cooperativo no país, houve um aumento do rol de competências dos estados e municípios (art. 25 e 30), tanto de natureza material (art. 23) quanto legislativa (art. 24). Nos assuntos listados sob esse tipo de competência, cabe à União a edição de normas gerais, podendo os estados suplementá-las no que for possível, ou mesmo de editá-las em casos de ausência de norma federal5.
Todavia, a grande dificuldade prática de implementar esse tipo de ação cooperativa no Brasil é a distinção entre o campo de atuação das competências de
2 A União é a esfera federal de governo. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente. O parlamento
é bicameral. O Poder Judiciário é autônomo. A estrutura da União também representa o Estado Nacional.
3 Os Estados-membros são formados pela somatória de Municípios, totalizando 26 no Brasil. Cada
Estado possui um Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, ao qual cabe julgar todos os litígios de direito comum, excetuados os que envolverem o âmbito federal de governo.
4 Trata-se de um ente autônomo (art. 18) que possui o direito à auto-organização, estabelecidas
através de leis orgânicas, com competências específicas (arts. 29 a 31). Essa autonomia é condicionada, contudo, por normas federais e estaduais, o que segundo Araújo (2005) demonstra que os municípios não se equiparam aos Estados, uma vez que possuem menos autonomia.
5 A competência concorrente municipal é implícita, nos termos do art. 30. II da Constituição, não
natureza legislativa e material da União com as de natureza concorrente, em razão da vagueza dos termos utilizados, o que acaba por criar uma sobreposição de regras. Essa situação é ainda agravada pela atuação centralizadora da União em termos financeiros, seja na regulação estrita do poder de tributar dos entes federados (art. 146), seja pela imposição de limites ao seu endividamento, através da Lei de Responsabilidade Fiscal.
No que concerne às políticas setoriais que possuem impacto direto na organização do território amazônico vários avanços foram feitos. A questão urbana (art. 186), ainda que não seja de competência exclusiva do município, teve seu planejamento baseado na atuação local (art. 30, VIII). As áreas urbanas passam a obedecer às funções da propriedade e da cidade, visando melhorar a qualidade de vida de seus habitantes e fortalecer o direito à moradia. No entanto, a competência legislativa em matéria de direito urbanístico é de natureza concorrente (art. 24, I), competindo à União instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos (art. 21, XX).
A temática ambiental, no âmbito da competência concorrente, mencionada diversas vezes no texto constitucional em razão de sua natureza transversal, foi tratada em capítulo próprio, incorporando a definição internacional de desenvolvimento sustentável (art. 225). O meio ambiente passa a ser considerado um bem de uso comum do povo, e a floresta amazônica foi classificada como patrimônio nacional, sendo apenas admitida sua exploração de modo sustentável. Essa nova classificação que importará na necessidade de uma alteração radical da atuação do poder público em relação à região. A forma de exploração degradadora, que foi estimulada desde o período colonial, passa a ser ilegal, sendo reprimida pelo Estado, civil, administrativa e penalmente.
Reconheceu-se também no novo texto constitucional o direito à diferença cultural de grupos historicamente excluídos (art. 215 e 216), sendo dada especial atenção aos seus direitos territoriais. Grupos indígenas e quilombolas passaram a receber um tratamento jurídico diferenciado (arts. 231 e 68 ADCT).
Ficou sob a competência da União a execução da política agrária6 do país,
um dos temas mais controvertidos da Constituinte (TRECCANI, 2001). O texto
6 A política agrária deve ser compatibilizada com a agrícola, que por sua vez deverá ser elaborada de
condicionou a utilização da propriedade a sua função social (art. 186), sob pena de desapropriação (art. 184), ficando, no entanto, alguns casos fora da abrangência dessa norma (art. 185), bem como dispôs expressamente a Constituição sobre a impossibilidade da prescrição aquisitiva de terras públicas (art. 191).
A partir das disposições constitucionais acima é possível perceber que apesar da centralização ainda existente de poderes nas mãos da União, a Constituição aumentou o poder de atuação dos Estados e Municípios e estabeleceu diretrizes gerais para a cooperação entre os entes federados. Contudo, a existência de competências que se sobrepõem, bem como de uma legislação editada ao longo dos anos sem qualquer preocupação em permitir uma ação articulada, geram significativas dificuldades para sua operacionalização.
Os projetos de desenvolvimento na Amazônia após 1988 refletem o período de ajustes estruturais que têm inicio com o processo de redemocratização, não se estabelecendo uma política de desenvolvimento bem definida (THÉRY, 2005). Esse momento também é marcado pela declaração oficial do governo do fim da intervenção territorial na Amazônia, através da edição do Decreto-lei n. 2375/1987 e da transformação dos territórios federais em novos estados federados. Essas medidas reduziram as áreas sob o domínio da União na Amazônia, mas esta permanece ainda detentora de uma porção significativa das áreas da região, sobretudo no Estado do Pará, um dos mais afetados por programas de integração realizados durante o regime ditatorial.
ente federado como gestor direto do território na região norte7.
Assim, na Amazônia pós 1988, a disputa e o uso pela terra se mantém complexa, pois não se sabe ao certo quem são os proprietários privados ou onde suas terras estão localizadas. Quanto às terras públicas não há precisão do que pertence ao Estado ou à União e quem é competente para regularizá-las. Desse modo, à medida que fronteira aberta da Amazônia se fecha, a questão fundiária passa ser uma decisão de quem tem prioridade no uso da terra e de seus recursos naturais. Um ordenamento territorial no país necessita identificar alternativas para esses problemas.
Muito embora durante a década de 90 se consolide a legislação ambiental no país, a temática ambiental continua tendo uma influência residual no planejamento econômico. Buscando ampliar a transversalidade das políticas ambientais, o governo federal passou a concentrar esforços na difusão de instrumentos de planejamento que incorporem essa dimensão, sendo o zoneamento ecológico-econômico o que recebeu maior destaque8.
Essa mudança de estratégia se fez necessária para tentar resolver os impasses da coexistência no espaço amazônico dois projetos de desenvolvimento distintos, traçados por setores do governo de forma separada – o econômico e ambiental – que não levam em consideração o impacto de um sobre o outro e que atrapalham a viabilização de novas ações na região. Nesse jogo de forças há uma tendência que a fronteira econômica se expanda, enquanto medidas conservacionistas funcionem como focos de resistência (PINTON; AUBERTIN, 2005).
Por determinação constitucional o Estado passou a ser obrigado a elaborar plano plurianual através de lei, em que deverão constar de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada com o prazo de validade de quatro anos. A partir desses instrumentos é possível avaliar que ações são destinadas à Amazônia Legal.
7 As terras indígenas e unidades de conservação se somam, portanto às áreas de domínio da União
por determinação constitucional e àquelas que se mantiveram em seu domínio mesmo após o fim da intervenção territorial na Amazônia.
8 O Zoneamento ecológico-econômico começa a ser realizado na Amazônia no fim da década de 80,
Nos primeiros dois planos plurianuais, denominados respectivamente Brasil em Ação e Avança Brasil, foram previstas medidas ligadas ao desenvolvimento tecnológico e científico para valorização do conhecimento tradicional associado à biodiversidade para a região, mas a maior parte dos investimentos foram destinados para a execução de obras em infraestruturas na área de transportes, reafirmando o modelo agroexportador9 para a região e o projeto de integração continental
brasileiro.
Com a chegada do partido dos trabalhadores ao poder (2003), propõe-se pela primeira vez um programa de desenvolvimento para a Amazônia baseado na produção sustentável (BRASIL, 2008). No entanto, ainda que o discurso oficial incorpore a vertente ambiental, a cisão entre as duas políticas persiste. A União, que possui um papel regulador, não dispõe de estrutura eficiente para articular suas políticas setoriais ou trabalhar de forma integrada com os governos estaduais e municipais na região, o que apenas agrava essa situação de descontrole do espaço amazônico brasileiro e acirra disputa pelo uso no território e seus recursos naturais na região.
No plano supranacional há em curso uma iniciativa para a integração da infraestrutura regional Sul-Americana, na qual o Brasil possui forte atuação. Esse planejamento amplia a necessidade de coordenação não apenas entre os entes da federação brasileira, mas também entre países com o fim de tornar mais competitivo o território da América do Sul e aumentar sua relevância no plano econômico internacional. Essa estratégia possui significativos reflexos no ordenamento territorial na região, pois haverá grandes investimentos em infraestrutura para viabilizar esse projeto, o que trará alterações bruscas para áreas anteriormente sem dinamismo na Amazônia, mas que também são ambientalmente frágeis e estão ocupadas por populações camponesas e tradicionais.
Para evitar que essa nova fase de planejamento imprima os mesmos efeitos adversos dos projetos de integração na região, se faz necessária uma atuação coordenada dos entes federados que atuam na região no planejamento e gestão do ordenamento territorial do espaço amazônico.
Como não existe uma estrutura legal que dê suporte a essa atuação coesa,
9 Existe uma crescente demanda de commodities agropecuárias no mundo que pressiona a expansão
seja no plano supranacional, seja no plano nacional, o que há são apenas projetos e programas que não operam de forma coordenada para alcançar esse fim. Para tentar alterar esse cenário é necessário buscar na legislação vigente uma interpretação que permita o ordenamento territorial da Amazônia Legal. Para que possamos identificar essas normas, primeiramente é necessário definir o que entendemos por ordenamento territorial.
1.1.2 Ordenamento Territorial: uma Definição
O Brasil e os demais países da América Latina utilizam medidas estatais em algum grau para influenciar a localização de pessoas e atividades no seu território, mas são ainda incipientes em relação à Europa (CABEZA, 2002).
Para explicar o contexto em que o ordenamento territorial surge na América latina o referido autor divide sua evolução em três fases. Na primeira, ocorrida entre os anos 50 e 60, eram medidas baseadas exclusivamente no crescimento econômico e aplicadas de maneira seletiva e desigual ao longo do território. Seu principal motor era o Estado, que provia projetos de infraestrutura como elemento principal para a superação de desigualdades regionais. Entre as décadas de 70 e 80 esse modelo passa a ser questionado e é acompanhado por mudanças drásticas no plano econômico.
Uma segunda fase se inicia entre as décadas de 80 e 90, num contexto de competitividade territorial, favorecendo um desenvolvimento econômico endógeno. Essas políticas privilegiam projetos que permitiram colocar em evidência as capacidades, os atores e os recursos de cada região como estratégia de inovação e competição internacional. O Estado Nacional deixa de ser um ator principal, e cede lugar ao poder local, ao qual cabe promover arranjos de cooperação entre diferentes atores. Essa mudança é resultado de medidas de democratização e descentralização, que aumentaram a autonomia dos entes locais.
contraditórias que se materializam em um mesmo território finito10.
De acordo com Veiga ([s.d.], p. 20) esse tipo de política voltou “com toda força para as agendas de desenvolvimento” na contemporaneidade pelos seguintes fatores: a) está no centro das estratégias que visam à competitividade e a atratividade econômica; b) reforça a coesão social; c) permite a modernização de políticas públicas, já que impõe abertura à transversalidade; e d) permanece um domínio de ação das instâncias hierárquicas superiores cujos graus de liberdade são cada vez mais condicionados pelos projetos de globalização e pela construção de acordos regionais supranacionais.
Portanto, o território – espaço de materialização dessas contradições –
ganha relevância, sendo a criação de uma política de ordenamento territorial uma possibilidade de administrar essas tensões do espaço, que se expressa por normas que permitam a coabitação de interesses conflitantes no arranjo espacial11.
É sob essa premissa que se dá o surgimento de uma nova política de contornos ainda pouco claros no país: o ordenamento territorial. Segundo Costa (2008) ela não se confunde nem com as antigas políticas de planejamento regional desenvolvidas no Brasil, nem com o zoneamento ecológico-econômico, que nada mais é que um dos instrumentos para sua operacionalização. Essa deve ser pensada como um esforço que envolva uma reflexão organizada e concentrada a ser coordenado pela União, que se dará dentro de um novo arranjo federativo. Essa política deverá integrar igualmente outros agentes sociais nesse planejamento, tal como empresas, organismos internacionais e a sociedade civil organizada (SOARES, 2009).
Essa mudança de perspectiva faz com que os estados e principalmente municípios, que eram tratados como receptores de investimentos pré-estabelecidos e decididos pelo poder central durante o regime militar, passem a ter status de planejadores nas políticas e projetos de desenvolvimento territorial, pois são eles
10 Nos princípios do ordenamento territorial europeu, para controlar é necessário definir recortes
espaciais visando melhor gerir os recursos naturais com vistas a produzir sem comprometer o sustento das gerações futuras, de forma que se mantenha vivo, também, o sistema produtor de mercadorias. Daí reside à relação inconteste entre a concepção de desenvolvimento sustentável e a formulação de políticas para o ordenamento do território (MIRANDA NETO, 2009).
11 Segundo Soares (2009, p. 71) essa coabitação de interesses conflitantes poderá ocorrer através do
que conhecem a realidade, bem como estão mais próximos dos atores locais. “[o] local é uma das dimensões concretas enquanto território de produção e de
experiência social” (CASTRO, 2007, p. 116). Assim, essas políticas de ordenamento territorial deverão não apenas ser pactuadas com os atores envolvidos, mas devem ser desenvolvidos por parte do poder central, instrumentos de planejamento suficientemente flexíveis para que se adaptem às especificidades de cada região.
Para a elaboração de uma política de ordenamento territorial, o conhecimento local deve se aliar ao científico, permitindo uma tomada de decisões que reúna o maior número de elementos possíveis sobre a região (COSTA, 2008, p. 4).
Em resumo, conforme destaca Veiga ([s.d.]) essa renovação da concepção de território tem por base a coesão social e territorial, apoiada sobre três eixos: a combinação de concorrência com cooperação, de conflito com participação e de conhecimento local prático com o científico.
Vale observar que, apesar da doutrina especializada apontar as razões de sua origem, bem como estabelecer alguns parâmetros para sua execução, a definição do que deve ser entendido por ordenamento territorial não é uniforme.
Segundo a Carta Européia de Ordenação do Território (UNIÃO EUROPÉIA, 1983), uma das definições mais difundidas, o ordenamento territorial é:
uma disciplina científica, uma técnica administrativa e uma política concebida com um enfoque interdisciplinar e global e cujo objetivo é um desenvolvimento equilibrado das regiões e da organização física do espaço.
Segundo o Grupo de estudos para a elaboração da proposta de Política Nacional de Ordenamento Territorial no Brasil (BRASIL, 2006, p. 18):
[...] é a regulação das ações que têm impacto na distribuição da população, das atividades produtivas, dos equipamentos e de suas tendências, assim como a delimitação de territórios de populações indígenas e tradicionais, e áreas de conservação no território nacional ou supranacional, segundo uma visão estratégica e mediante articulação institucional e negociação de múltiplos atores12.
Cabeza (2002), após fazer a análise de várias definições existentes, verifica
12 “A política de ordenamento territorial brasileira, [...] embora com características próprias,
que, apesar dos países utilizarem instrumentos distintos para atingir seus objetivos, de modo geral, o ordenamento territorial é uma estratégia para se atingir o desenvolvimento sustentável, sendo entendida como uma política multisetorial e horizontal. O referido autor propõe a seguinte definição para o termo:
é um processo e um instrumento de planificação, de caráter técnico-político-administrativo, com o que se pretende configurar no longo prazo, uma organização do uso e ocupação do território, de acordo com as potencialidades e limitações do mesmo, as expectativas e aspirações da população e os objetivos de desenvolvimento. Apresenta-se em planos que expressam um modelo territorial de longo prazo que a sociedade entende como desejável e as estratégias com as quais de atuará sobre a realidade para se evoluir até o dito modelo.13
Portanto, ante o exposto podemos concluir que a elaboração de uma política de ordenamento territorial tem por fim a coesão territorial14, baseando-se na
capacidade do poder local se articular com os diferentes grupos sociais para desenvolver projetos que sejam ao mesmo tempo economicamente viáveis e sustentáveis e do estado nacional em atuar como incentivador e orientador desse desenvolvimento espacial equilibrado.
Muito embora em razão de sua complexidade, o presente tema somente possa ser tratado de forma pluridisciplinar segundo Girardon (2010), nossa análise ficará limitada ao aspecto jurídico do ordenamento territorial, isto é, a análise das regras e instituições que viabilizam a coesão. Em outras palavras, analisaremos quais são os elementos essenciais de um sistema normativo hierarquizado de planificação para a promoção de uma gestão integral do território, sob a coordenação estatal em suas múltiplas escalas.
Vale destacar que essa análise não tem a pretensão de resolver os problemas históricos e estruturais na Amazônia legal, através da elaboração de uma lei ou fazer desaparecer as desigualdades regionais do país. Se essa fosse a
13“[...] es un proceso y un instrumento de planificación, de carácter técnico-político-administrativo, con
el que se pretende configurar, en el largo plazo, una organización del uso y ocupación del territorio, acorde con las potencialidades y limitaciones del mismo, las expectativas y aspiraciones de la población y los objetivos de desarrollo. Se concreta en planes que expresan el modelo territorial de largo plazo que la sociedad percibe como deseable y las estrategias mediante las cuales se actuará sobre la realidad para evolucionar hacia dicho modelo” (tradução livre).
14 O conceito de coesão territorial foi debatido no livro Verde da Coesão Territorial da União Europeia
solução, a edição do sistema nacional de unidades de conservação, da política nacional de desenvolvimento urbano, do plano nacional de Recursos Hídricos, do Plano de Gerenciamento Costeiro, da Política Nacional de Desenvolvimento Regional, da Política Nacional de Meio Ambiente, da Política de Desenvolvimento Rural Sustentável e das diretrizes do zoneamento ecológico-econômico, dentre outras, teriam sido suficientes para reverter esse quadro.15
O que pretendemos, partindo da hipótese de que a inexistência de um marco regulatório de ordenamento territorial não implica dizer que essa atividade já não esteja sendo executada no país, é compreender como esse emaranhado de instrumentos de intervenção territorial aplicados na Amazônia Legal pode funcionar de maneira hierarquizada, integrada e coordenada de modo a gerar efeitos positivos. Visamos assim contribuir no plano jurídico para o debate sobre a temática que leve em consideração as especificidades da Amazônia legal.
1.1.3 Particularidades da Política de Ordenamento Territorial na Amazônia Legal e os Municípios
A Amazônia Legal apresenta particularidades de ordem sociocultural geográfica e histórica que impactam negativa e significativamente a implantação de políticas estruturantes no que se refere à utilização do solo. Essa situação é agravada por uma baixa presença institucional da União e Estados, onde os Municípios, geralmente responsáveis por territórios de grande extensão territorial, são os únicos representantes do Estado brasileiro16, o que gera uma sensação de
abandono por parte dos cidadãos e uma crescente demanda pela divisão territorial17
(COSTA, 2008).
Esse cenário torna particularmente difícil a gestão territorial municipal na Amazônia legal. Suas sedes administrativas, além de polos de atração na busca de
15 A elaboração de uma lei de política de ordenamento territorial é apenas uma parte de uma política
de ordenamento territorial. Ela deve ser acompanhada de um planejamento de bases concertadas, do estabelecimento de um sistema de governança territorial e de um sistema de monitoramento e acompanhamento de resultados (BRASIL. MIN, 2006).
16 A baixa presença institucional da União e Estados na maior parte dos municípios implica na
execução de projetos desarticulados e de curto prazo na região visam dar respostas imediatas a problemas estruturais (COSTA, 2008).
17 O Estado do Pará no ano de 2011 passou por um plebiscito sobre sua divisão territorial do Estado,
serviços e infraestrutura, formam a base de articulação de uma sociedade civil extremamente heterogênea. São nessas áreas que concentram na atualidade a maior parte da população da região norte, bem como grandes problemas sociais e ambientais.
Historicamente, os núcleos urbanos sempre tiveram papel de destaque na dinâmica socioeconômica da Amazônia. Os primeiros tinham finalidade militar e comercial, localizados ao longo dos rios, tendo estas estruturas permanecido praticamente inalteradas até a década de 60, quando foi dado início ao processo de integração territorial da região ao resto do país. Segundo Trindade Júnior e Tavares (2008), esta dinâmica provocou inchaço populacional das capitais dos Estados da região norte, o surgimento de médias e pequenas cidades ao longo de rodovias e sua retração ao longo dos rios. Com este processo o modo de vida da população em geral se altera, mesmo a que reside em áreas rurais (ENDLICH, 2006).
Esse processo modificação espacial não se deu de modo uniforme. Atualmente, o produto desses rearranjos resulta numa grande complexidade do padrão de urbanização, que pode ser assim classificado (VICENTINI, 2004; BECKER, 1990): a) metrópoles contemporâneas, compostas por estruturas urbanas complexas; b) cidades novas e modernas, implantadas para servir a grandes projetos de exploração de recursos, que servem de base de operação e de reprodução social, fazendo desses espaços verdadeiros enclaves urbanos na rede de cidades da Amazônia; c) cidades de colonização, que serviram de apoio a projetos de colonização públicos e particulares, implantados ao longo de rodovias; d) cidades de surgimento espontâneo, caracterizadas por estruturas urbanas novas e precárias associadas às atividades e serviços complementares, formais ou não, relativas aos grandes projetos ou de apoios às novas frentes econômicas; e e) cidades tradicionais, compostas por estruturas urbanas mais antigas, baseadas no transporte fluvial, e menos sujeitas às transformações recentes decorrentes dos impactos sociais, culturais e ambientais promovidos pela introdução de novos modelos de produção.
urbano (BECKER, 2001). Esses índices tendem apenas a aumentar, uma vez que as taxas de crescimento populacional e de urbanização na região são superiores à média nacional (IBGE, 2010). É por esse motivo que essa pesquisa tem por objetivo específico analisar qual o papel dos municípios na elaboração de uma política de ordenamento territorial na região.
Ocorre que ao delimitar a análise do ordenamento territorial na Amazônia Legal representa estudar a realidade de nove estados, subdivididos em 775 municípios (IBGE, 2010). Em razão das limitações que esse tipo de pesquisa impõe foi necessário refinar ainda mais nosso objeto de análise.
Para isso o restringiremos ao estudo dos municípios do Estado do Pará, segundo maior Estado da Amazônia Legal em dimensão e o mais populoso, pelos seguintes motivos: a) seus núcleos urbanos serviram como suporte para a ocupação da Amazônia; b) foi um dos Estados mais impactados pelas políticas federais de integração regional durante o regime militar; c) representa uma síntese dos diferentes problemas apresentados na região em razão de políticas setoriais desarticuladas, tanto do ponto de vista ambiental quanto fundiário18; d) possui a mais
complexa rede de cidades da região norte, mas ao mesmo tempo possui índices de urbanização inferiores à média nacional, o que nos permite analisar complementaridade entre urbano e rural na região.
1.1.4 Ordenamento Territorial e a Autonomia dos Municípios Paraenses
De acordo com a Constituição de 198819, é competência do ente municipal
(art. 30, VIII), no que couber, a promoção do adequado ordenamento territorial mediante o planejamento, controle do uso, parcelamento e ocupação do solo urbano. Essa atribuição deverá estar em consonância com o disposto nos arts. 182 e 183 do mesmo texto legal, regulamentados pela Lei do Estatuto da Cidade (BRASIL. Lei n. 10.257/2001). Dentre as atribuições do Município na ordenação da
18 Ainda que não haja dados precisos sobre a situação fundiária do Estado, estima-se que mais
metade do território do Pará esteja afetada por unidades de conservação, territórios quilombolas e terras indígenas. No restante do estado uma parcela significativa de municípios está situada em áreas de domínio da União – estimada em um terço –, e que nem sempre podem ser doadas ao Município, como é o caso dos terrenos de várzea e de marinha e acrescidos. Há ainda municípios em que partes significativas de seu perímetro urbano incidem em áreas de fazendas, devidamente tituladas, mas nunca georreferenciadas ou desapropriadas.
19 No caso dos Municípios localizados no Estado do Pará, em matéria urbanística, deve ser
cidade, destacamos dois pontos: a) a definição dos limites do perímetro urbano e de expansão urbana; e b) o planejamento democrático do uso do território municipal.
A definição do perímetro urbano é uma das mais elementares competências municipais, pois delimita o exercício de seu poder de polícia no que concerne o parcelamento do solo. Para defini-lo, o critério é jurídico, conforme dispõe o art. 3º do Decreto-Lei n. 311, de 02 de março de 193820. Um assentamento ou
aglomeração humana, no Brasil, só adquire a categoria de cidade quando o seu território se transforma em município. Portanto, cidade, no Brasil, é caracterizada por ser a sede do governo municipal, qualquer que seja sua população.
Todavia, não podemos entender cidade e Município como termos sinônimos, pois cabe ao Estado criar os Municípios e a esses definir o seu perímetro urbano.
Vale acrescentar que, ainda que o Município possua competência legislativa para determinar sua zona urbana, tal determinação não possui o condão de transformá-la automaticamente em área de domínio público municipal, isto é, em instituir sua área patrimonial. Os Municípios no Brasil somente adquirem bens quando esses lhes são concedidos pela União ou pelos Estados ou pela aquisição de áreas particulares. Portanto, a doação de áreas públicas é a forma inicial de constituição do Patrimônio público municipal.
Ante o exposto, é de se esperar que os Municípios apenas dependam de doações dos demais entes federados para em sua fase inicial, isto é, para a instalação de sua sede, pois a própria expansão da cidade possibilitará a aquisição de novas áreas patrimoniais. Mas, essa presunção não se confirma em grande parte da Amazônia, no qual o Pará está inserido. Podemos apontar algumas razões para a ocorrência dessa particularidade.
A primeira é o problema da grilagem que inviabiliza a formação de um mercado formal de terras, limitando a atuação dos municípios não apenas na constituição de um patrimônio próprio, mas também no exercício de sua competência urbanística, como por exemplo, para o controle da função social da propriedade urbana e cobrança de tributos. Como o Município não pode desapropriar bens do Estado e da União, o crescimento urbano sobre terras públicas os torna dependentes de novas doações de terras públicas, o que compromete seu
20 Outros critérios utilizados para a definição dos limites urbanos é a aplicação do disposto no art. 32