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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO MESTRADO EM TEATRO

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Academic year: 2019

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO

MESTRADO EM TEATRO

PAULA BITTENCOURT DE FARIAS

O BOBO DA CORTE

Uma Perspectiva da Bobagem Trágica em Shakespeare

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PAULA BITTENCOURT DE FARIAS

O BOBO DA CORTE

Uma Perspectiva da Bobagem Trágica em Shakespeare

Dissertação apresentada como requisito à obtenção do grau de Mestre em Teatro, Curso de Mestrado em Teatro, Linha de Pesquisa: Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade.

Orientador: Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro. Co-orientação: Prof. Dr. Rafael Raffaelli.

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PAULA BITTENCOURT DE FARIAS

O BOBO DA CORTE

Uma Perspectiva da Bobagem Trágica em Shakespeare

Esta dissertação foi julgada APROVADA para a obtenção do Título de MESTRE, na linha de pesquisa: Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade, em sua forma final pelo Curso de Mestrado em Teatro, da Universidade do Estado de Santa Catarina, em 24 de março de 2011.

Profa Vera Regina Martins Collaço, Dra Coordenadora do PPGT

Apresentada à Comissão Examinadora, integrada pelos professores:

Prof..., Dr Orientador

Prof..., Dr Co- Orientador

Prof..., Dr Membro

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AGRADECIMENTOS

Este trabalho só foi possível devido à contribuição e generosidade de algumas pessoas. Para tanto gostaria de agradecer:

à minha nova família: minha filha Maria Flor; por existir e dar sentido a minha vida;

Meu companheiro Heitor por me ajudar com toda a paciência e generosidade a ―dar à luz‖ mais uma vez e por me ensinar sobre o amor;

à minha eterna família: mãe, pai, Michele e Thiago; pelo amor incondicional, por confiarem e acreditarem nos meus sonhos;

à minha família adotiva: Regina, Nelson, Carla, Paulinha e Israel; por me acolherem em sua casa e em seus corações;

à família Traço: Greice e Débora, por compartilharem dos mesmos sonhos, por não desistirem de mim e me ensinarem a cada dia o porquê de ser artista; Egon, por compartilhar e compreender todos os meus pensamentos, meus conflitos e meu modo de estar no mundo;

à família Ronda: Vicente, Karina e Letícia, por me ensinarem a dançar, por todas as manhãs de descobertas, desabafos, risos e suores. Em particular à Zilá, por me fazer acreditar que sou uma artista, por me amar maternalmente e pelas horas cedidas generosamente me ajudando nas traduções para este trabalho;

à Marianne (Tica) por me formar enquanto atriz, palhaça e ser humano. À Mariella, Magrão e Gabriel pelas trilhas sonoras de todo dia;

ao professor Dr. José Ronaldo Faleiro por suas contribuições para esta pesquisa, mas principalmente pelos sensíveis conselhos para a minha trajetória na vida e na arte;

ao professor Dr. Rafael Raffaelli por suas atenciosas orientações e por me apresentar a infinita riqueza de Shakespeare;

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RESUMO

A pesquisa objetiva investigar a composição dramática dos Bobos de três peças de Shakespeare, verificando a função do humor no desenrolar da trama. Os Bobos

estudados são: Toque de ―Do seu Jeito‖; Feste de ―Noite de Reis‖; e o Bobo de ―Rei Lear‖. A partir da reconstituição dos aspectos cômicos de figuras ancestrais e da

cultura cômica popular da Idade Média e do Renascimento, é investigado no primeiro capítulo, a história dos Bobos verídicos, seus tipos, suas características e influências. No segundo capítulo é feita uma descrição dos Bobos na dramaturgia shakespeariana com base nas suas principais características e uma análise embasada nas ―categorias‖ primeiramente do Bobo ―Fool‖, ou seja, aquele que joga,

que diverte, parte do corpo, das paixões e da loucura. E depois do Bobo ―Jester‖,

que é mais filosófico, que joga com o sagrado e que parte da razão. Por fim, conclui-se que os Bobos de Shakespeare mostram a expressão verdadeira dessas figuras, e sua força universal, que ultrapassa tempo e espaço, mantendo-se sempre atuais.

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ABSTRACT

The research aims to investigate the composition of dramatic Fools of three Shakespearean plays, checking the function of humor in the unfolding plot. The Fools studied are: Touch in "As You Like It"; Feste in "Twelfth Night" and the Fool in "King Lear". By reconstructing the comic aspects of ancestral figures and popular culture comic medieval and Renaissance, is investigated in the first chapter, the history of real Fools, their types, characteristics and influences. The second chapter is a description of Fools in Shakespearean plays centered on their main characteristics and an analysis based on the "categories", first of the Fool "Fool", as the one that plays, which amuses, that part of the body, of the passions and of the madness. Second the Fool "Jester", which is more philosophical, playing with the sacred and that part of the reason. Finally, a conclusion that fools of Shakespeare show the true expression of these figures, and its universal force surpasses time and space, keeping always contemporary.

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1

Realismo Grotesco/Grotesco Romântico

p. 36

Tabela 2

Lucidez

p.74

Tabela 3

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 01

“La Nef des Fous du Monde” de Jérôme Bosch, 1500.

p.54

FIGURA 02

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....11

1 A BOBAGEM NA VIDA: A PROFISSÃO DE FAZER RIR...17

1.1 O Surgimento da Bobagem...17

1.1.1 O Riso levado à Sério...19

1.1.2 Conceituação do Bobo...24

1.1.3 A Procura do Riso...27

1.2 Os Tipos de Bobos ...30

1.2.1 Bobo Natural e Bobo Artificial...31

1.2.1.1 O Grotesco...32

1.2.1.2 Atravessando os Limites do Corpo...38

1.2.2 Trickster, Jester e Fool...41

1.2.3 Bobo Profissional e Bobo Mítico...44

1.2.4 O Parasita...45

1.2.5 O Bobo da Corte Medieval...51

1.2.6 O Mítico...56

2 A BOBAGEM NA ARTE: ANÁLISE CRITICA DOS BOBOS EM SHAKESPEARE...62

2.1 Os Bobos são contratados (Toque, Feste e o Bobo de Lear)...65

2.1.1 Naturalmente Bobos...69

2.1.1.1 Da Loucura à Sabedoria em busca da Lucidez...74

2.1.2 O Artista...77

2.1.3 O Profissional...78

2.2 O Fool : aquele que diverte...82

2.2.1 O Corruptor de Palavras...88

2.2.2 A Roupagem do Bobo...94

2.3 O Jester: o coroamento do Bobo...97

2.3.1 A Inversão...100

2.3.2 O Demônio ―Politicamente Correto‖...105

2.3.3 Entre o Jogo e o Sagrado...112

2.4 Filósofos sem Ilusão...119

CONSIDERAÇÕES FINAIS...123

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INTRODUÇÃO

É quase impossível evitar o excesso de amor que um bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o

bobo. 1

Clarice Lispector

Desde meu ingresso no curso de licenciatura em artes cênicas na Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC (2002) me vejo ligada, como atriz, à linguagem cômica. Ao ingressar, em 2003, na Traço Companhia de Teatro, minha relação com o teatro cômico ficou ainda mais estreita. Foi na Companhia que tive a oportunidade de conhecer a linguagem do palhaço e desde então esta é a linha de pesquisa que permeia todo o trabalho da Traço. Em fevereiro de 2007

estreamos o espetáculo ―As três irmãs‖, uma livre adaptação da obra homônima de Anton Tchékhov. O espetáculo é fruto da pesquisa de mestrado da diretora Marianne Tezza Consentino que tem como título ―As três irmãs e a subjetividade no trabalho do ator: contribuições da técnica do clown‖. Obtendo um retorno positivo do

público, observamos que frutificara nossa pesquisa, que consistia em unir um texto clássico com a linguagem cômica. No intuito de aprofundar a pesquisa, pensamos em 2008 em montar novamente um texto clássico com a mesma proposta. ―Rei Lear‖ foi escolhido e novos caminhos se abriram. Por motivos diversos, o espetáculo não pôde ser montado, mas o encanto pelos textos de Shakespeare já haviam penetrado nos meus mais profundos pensamentos.

Ainda pensando na suposta montagem, me inscrevi na disciplina ―Arte e

Interdisciplinaridade‖ do curso de Pós-Graduação (nível doutorado) da UFSC –

Universidade Federal de Santa Catariana, ministrada pelo co-orientador desta pesquisa, professor Dr. Rafael Raffaelli. Nesta disciplina estudamos a dramaturgia shakespeariana e por coincidência o enfoque que o professor dava aos textos era justamente na figura do Bobo. Pronto, tudo se encaixava. Se na Traço Companhia de Teatro tínhamos a certeza de que a linguagem cômica poderia contribuir para a compreensão e fruição dos clássicos, nas aulas eu tinha a confirmação disso, que surgia de dentro da própria dramaturgia. A importância de um personagem cômico

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para o desenrolar dramático, num texto clássico que não fosse necessariamente uma comédia, confirmou a relevância dramática dessa figura.

Com essas descobertas surgiu a possibilidade de aprofundar os estudos sobre a comicidade. O objeto de estudo não poderia ser outro que não os Bobos nas peças de Shakespeare. Para que a pesquisa tivesse recortes precisos e evitando qualquer desvio para a compreensão da problemática da comédia, utilizo como

unidade de análise as peças: ―Do seu jeito‖2, cujo Bobo leva o nome de Toque,

―Noite de Reis‖3, em que o Bobo se chama Feste e, por fim, ―Rei Lear‖4, cujo Bobo

não possui nome próprio, e é denominado simplesmente de ―O Bobo‖.

2 No original As you like it (escrita entre 1599 e 1600) de William Shakespeare é uma comédia pastoril

que se passa na Floresta de Ardenas. Rosalinda é uma das heroínas cômicas mais talentosas criadas por Shakespeare. Ela é filha do velho Duque que foi usurpado por seu irmão mais novo, Frederico. Rosalinda foi criada pelo tio, juntamente com sua filha Célia, sua melhor amiga. Orlando, um jovem cavalheiro do reino se apaixona a primeira vista por Rosalinda, mas é obrigado a fugir de casa após ser perseguido por seu irmão mais velho, Oliver. Rosalinda também é expulsa por seu tio e foge para Floresta de Ardenas onde seu pai encontra-se exilado ao lado do melancólico Jacques. Célia decide fugir junto com Rosalinda e as duas levam o Bobo do Duque para diverti-las. Rosalinda decide se disfarçar de homem (Ganimedes), enquanto Célia se disfarça de senhora pobre (Aliena). Na floresta, Orlando escreve poemas de amor nas árvores para Rosalinda, enquanto esta disfarçada de Ganimedes decide brincar com seu amado e aproveita para ensiná-lo à como cortejar uma mulher. Oliver vai até a floresta em busca do irmão e acaba se apaixonando por Célia e se arrepende dos males que causou. O Bobo Toque se casa com a pastora Audrey, Rosalinda reencontra o pai e se casa com Orlando. Num lugar em que as hierarquias são neutralizadas, Rosalinda agrada a todos nós com suas falas irônicas e inteligentes.

3 No original Twelfth Night (1599-1601) de William Shakespeare é uma comédia romântica que se

passa no reino de Illyria. Em um ritmo alegre e quase histriônico, as cenas se sucedem rapidamente. O Duque Orsino está apaixonado pela Lady Olívia que não o ama e que chora o luto do irmão morto há sete anos. Viola irmã gêmea de Sebastian, sofre um naufrágio e chega no reino; se disfarça de homem (Cesário) e vai trabalhar para o Duque Orsino, por quem se apaixona. Seu trabalho é convencer Lady Olívia a aceitar Orsino como seu amante. Olívia acaba se apaixonando por Viola sem saber que ela é na verdade uma mulher. Malvólio empregado de Olívia e também apaixonada por ela, é enganado pela empregada e pelo tio de Olívia, Maria e Sir. Toby, que o fazem acreditar que Olívia está apaixonada por ele. Uma confusão está armada e um triângulo amoroso merece ser resolvido. Por fim, tudo se encaixa com a chegada do irmão gêmeo de Viola, Sebastian. Viola se casa com Orsino, Olívia com Sebastian, Maria com Sir. Toby e Malvólio é libertado das brincadeiras do casal. A peça tem como temas principais a juventude e o amor, enredo no qual Feste, o Bobo, é o único que nos parece não ter um comportamento afetado, o único personagem sensato nessa comédia desvairada.

4 No original The King Lear (1605) de William Shakespeare relata a história de um Rei velho que se

prepara para a morte. Segundo Rafaelli, o titulo poderia ser ―Rei Lear ou como aprender a morrer‖.

Porém, Lear em meio a uma crise de carência afetiva, é surpreendido por uma de suas três filhas, Cordélia, que, diferentemente das outras duas, não consegue e não pretende exprimir em palavras o amor que sente pelo pai; ―Infortunada como sou, não posso trazer meu coração até a boca‖. Este

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Devido à abrangência das peças, fazem-se necessárias algumas considerações.

A tradução de As you like it é encontrada em português com o título de

―Como Gostais‖, ―Como Quiseres‖ ou ainda, como sugestão de Rafael Raffaelli para uma tradução mais contemporânea, ―Do seu jeito‖. Optou-se por ―Do seu jeito‖ por

ser o título utilizado na tradução escolhida para a análise.

Já na tradução de Twelfth Night não existem discordâncias. O título diz respeito à décima segunda noite depois do Natal, no caso, a Noite de Reis. Shakespeare cria uma comédia festiva, regida pelo jogo, em que os participantes

fazem ―o que querem‖, no original ―What you willl”, subtítulo da peça.

Utilizei duas traduções de cada peça para fazer a análise. Porém, no corpo do texto, são colocadas as duas apenas quando a diferença entre elas é relevante na compreensão e análise da peça. Contudo, em nota de rodapé, deixo à disposição a citação no original, para que o leitor possa cotejá-las.

Para isso, a escolha das traduções que compõem o corpo do texto foi feita a partir da qualidade, da atualidade e da acessibilidade dessas traduções. São elas:

―Do seu jeito‖, tradução de Rafael Raffaelli. ―Noite de Reis‖, tradução de Bárbara

Heliodora. E ―Rei Lear‖, tradução de Pietro Nassetti.

O objetivo da presente dissertação é analisar a composição dramática dos Bobos das três peças de Shakespeare citadas acima, verificando a função do humor no desenrolar da trama.

A figura do Bobo é pouco estudada no Brasil, mas a bibliografia sobre o assunto é extensa em outras línguas. É com o intuito de estender um pouco mais as referências sobre o Bobo na língua portuguesa que acredito na relevância desta pesquisa. Assim como se examina o herói trágico para ampliar a compreensão da tragédia e até mesmo dos mistérios finais da vida, acredito na relevância do estudo sobre o Bobo como uma figura criada a partir da realidade e não a partir de um mito. A natureza da relação entre a realidade e a arte parece-me ser um assunto pertinente na atualidade. Para tanto, este estudo gira em torno de problemáticas referentes à arte e à vida. Quando o riso passou da realidade do cotidiano, para

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fazer parte de um universo artístico? Até que ponto a realidade e a arte se confundem ou se misturam?

A hipótese central desta investigação consiste em reconhecer a importância do personagem Bobo nos textos de William Shakespeare. Acredito que o autor tinha a consciência da sua importância para o desenrolar da trama. Uma consciência pautada no reconhecimento da força transformadora do Bobo. Assim, além da bibliografia referente aos conceitos de comicidade e da própria figura do Bobo encontrados na realidade, busco na arte, neste caso nos textos de Shakespeare, outras referências que possam ajudar na compreensão do tema.

Este estudo se caracteriza como pesquisa qualitativa. Seus principais procedimentos metodológicos são: revisão bibliográfica e pesquisa dramatúrgica, realizadas a partir da análise critica de três peças escritas por William Shakespeare.

O primeiro capítulo estuda o Bobo na vida real. Faço a reconstituição dos aspectos cômicos de figuras ancestrais e da cultura cômica popular, além da análise sobre riso na contemporaneidade, fornecendo subsídios para as reflexões que permeiam o tema deste estudo. Nesta etapa, realizo a revisão bibliográfica, tendo como principal suporte teórico os estudos de Mikhail Bakhtin (2002); Wolfgang Kayser (1986); Victor Hugo (2002); Sigmund Freud (1905, 1919, 1927).

São apresentados diversos tipos de Bobos, embasados nos exemplos encontrados nas referências de Enid Welsford (1961), Serge Martin (1985), Lopes (2001), etc. A denominação dos tipos de Bobos, suas origens e suas funções são bastante difíceis de serem identificadas. A complexidade do tema se inicia por sua terminologia, encontrando-se denominações tais como: fool, fou, jester, trickster, court-jester, parasita, buffon, court-fool.

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Identifico diferenças entre o ―Bobo natural‖, que nasceu com alguma deformação e o ―Bobo artificial‖, que não possui deformação mas causa o riso

através de sua arte. Além da distinção feita entre o Trickster, figura mitológica, o Jester, o filósofo, e o Fool, o entertainer. E, por fim, apresento a classificação de bufão profissional e de bufão mítico. O profissional é aquele que existiu na realidade e vivia da profissão da bobagem, podendo ser um Parasita ou um Bobo da corte. Já o mítico possui uma origem duvidosa, mas o importante é que transcendeu a realidade e a imaginação popular o transformou em figura mítica.

No segundo capítulo são apresentados e analisados os objetos de estudo. Os momentos que de alguma forma possam esclarecer ou propor reflexões sobre o tema são destacados das peças.

A linha de pensamento que percorre a análise é pautada na idéia de um

Bobo ―Fool‖, ou seja, aquele que joga, que diverte, parte do corpo, das paixões e da

loucura, e um Bobo ―Jester‖, que é mais filosófico, que joga com o sagrado e que parte da razão. Quando as características de ―Fool‖ e ―Jester‖ se misturam num

personagem? Em que momentos são reveladas essas lógicas próprias da bobagem? Quando o Bobo encontra a Lucidez? Quando o Bobo é coroado?

Nesse capítulo também busco os mecanismos cômicos utilizados por esses personagens e observo a atualidade dos seus artifícios propiciadores de riso. Além disso, busco na arte vestígios da realidade, pois, como diz Corvin (1994:198,

tradução nossa), ―Shakespeare tem tudo dito dos recursos essenciais do bufão: sua alegria sardônica, sua insolência nativa, seu gosto pelo exibicionismo que lhe dá o

material de um ator, sua hiper lucidez que lhe faz ver as coisas que são ocultas‖.

Os procedimentos estudados neste capítulo contemplam uma pesquisa bibliográfica baseada principalmente na obra de Barbara Heliodora, Harold Bloom, Jan Kott, Michel Corvin, que fornecem subsídios de investigação sobre a obra e a vida de William Shakespeare.

No interior das obras de Shakespeare, os dois aspectos do mundo – sério e cômico – coexistem e se refletem mutuamente. Bakhtin diz que nesses casos são

abordados os ―aspectos integrais‖ e não imagens sérias e cômicas isoladas, como

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esses ―aspectos integrais‖ abordados por Bakhtin que analisamos as obras

shakespearianas. A escolha tanto de tragédias como de comédias para análise da bobagem reflete o intuito de especificar o riso do Bobo da Corte nas suas múltiplas expressões.

Deve ficar claro que as preocupações dominantes, os costumes, os condicionamentos sóciopolíticos do período elisabetano devem ser levados em conta. Não pretendendo, porém, me aprofundar na pesquisa sobre a vida de Shakespeare, a complexidade de tal tema se faz irrelevante neste momento. Contudo, é importante ter em mente que muitas das características de Shakespeare como autor nascem simplesmente do fato de ser ele inglês e elisabetano. E, ainda, que não é das fontes formais de instrução e informação e, sim, do imponderável do individuo, do tipo de sua curiosidade e do seu interesse que resulta a natureza de sua obra.

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1 A BOBAGEM NA VIDA: A PROFISSÃO DO FAZER RIR

Queremos ter certezas e não dúvidas, resultados e não experiências, mas nem mesmo percebemos que as certezas só podem surgir através das dúvidas e os resultados somente através das experiências.

Carl G. Jung

1.1 O Surgimento da Bobagem

O Bobo da Corte, como é conhecido, não existe mais em nossos dias. Hoje encontramos ramificações dessa figura, adaptadas para a sociedade em que vivemos.

Para tanto, os Bobos de Shakespeare são risíveis na atualidade? Ou ainda, o riso é histórico, ele muda conforme a época e o lugar? A partir de quais referências, devemos analisar a dramaturgia?

A reconstituição dos aspectos cômicos de figuras ancestrais e da cultura cômica popular, além da análise sobre riso, nos fornecem subsídios para essas reflexões sobre a comicidade e nos dão uma base teórica para que possamos analisar o Bobo em Shakespeare. Assim como examinamos o herói trágico para ampliar nossa compreensão não só da tragédia, mas até mesmo dos mistérios finais da vida humana, o estudo sobre o Bobo se mostra importante para ampliar a compreensão do universo cômico, principalmente por ele ser uma figura criada a partir do real, enquanto o herói é uma figura criada a partir do mito.

O riso sempre esteve presente na vida humana, foi unicamente ao homem concedido. Aristóteles (apud Bakhtin, 2002:59) destacava que o dom do riso, um dom divino, é aproximado do poder do homem sobre a terra, da razão e do espírito que apenas ele possui. Para ele, a criança só começa a rir no quadragésimo dia depois do nascimento, momento em que se torna pela primeira vez um ser humano.

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Nas etapas primitivas, dentro de um regime social que não conhecia ainda nem classe nem Estado, os aspectos sérios e cômicos da divindade, do mundo e do homem eram, segundo todos os indícios, igualmente sagrados e igualmente, poderíamos dizer, oficiais (BAKHTIN, 2002:05).

O riso, nessas ―etapas primitivas‖, era livre, fazia parte da condição humana, possuía uma concepção divina e até mesmo estabelecia relações com o tratamento médico e a cura de doentes.

Sobre essas etapas, Elizabeth Lopes (2001:12) destaca que ―os homens

imitavam e ridicularizavam o jeito dos animais e deles mesmos, visando provocar o riso coletivo, acreditando que estariam afugentando e protegendo-se dos perigos da

vida.‖ Temos como exemplo os xamãs que imitavam uma pessoa doente para assim

poder curá-la ou ainda o ―bailarino diabólico‖ que dançava com máscaras quando alguém estava à beira da morte. Esses seres míticos eram reverenciados nas comunidades, mas com o tempo foram perdendo seu caráter mágico e com a estilização dos seus gestos deixaram de operar manifestações ritualísticas para apresentar exibições artísticas. O riso, que provavelmente resultava dos aspectos monstruosos, exagerados e ridículos que tinham essas figuras, possuía um princípio regenerador. A relação temporal dos ritos compunha uma evolução cíclica, de vida, morte e renascimento.

Na Antiguidade ria-se livremente no Olimpo, ouviam-se as comédias, de Aristóteles até Luciano5. Conforme Bakhtin, desde o século IV d.C., os homens deixaram de rir devido a uma tomada de consciência que levou aos mais profundos pesares. Com a diminuição da crueldade, as pessoas voltaram a rir, mas agora o riso tem o seu lugar certo no mundo, um lugar onde reina a hierarquia: ―Só os iguais riem entre si‖. Ninguém ri de um superior, com exceção do nosso anti-herói. O Bobo da Corte é o único que pode rir do seu superior. Ninguém ri dentro da Igreja, na guerra, do chefe, da polícia. Ao permitir que a derrisão reine em seu palácio, o Rei se iguala ao seu Bobo da Corte:

Se as pessoas inferiores forem autorizadas a rir diante de seus superiores ou se não puderem refrear o riso, pode-se dizer adeus a todos os respeitos devidos à hierarquia. Fazer as pessoas rirem-se do deus Ápis, é transformar o animal sagrado em um vulgar touro (HERZEN apud BAKHTIN, 2002:80).

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1.1.1 O Riso levado à Sério

Bakhtin constata que, na Idade Média, o riso era proibido pela Igreja. Criou-se, assim, uma vida dupla na sociedade medieval, em que o riso se tornava extraoficial. Portanto, a primeira vida estava ligada a uma vida oficial, enquanto a

outra, a ―segunda vida‖ do povo, estava diretamente relacionada às festividades. Paralelamente às festas oficiais, em que predominava o tom da seriedade, havia as festividades carnavalescas, a festa não oficial, a segunda vida que permitia

―estabelecer relações novas, verdadeiramente humanas, com seus semelhantes‖

(BAKHTIN, 2002:09). Criava-se uma forma particular de comunicação dotada de um autêntico humanismo, e a população a experimentava concretamente, como destaca Bakhtin (2002:08):

Assim, a festa oficial traía a verdadeira natureza da festa humana e desfigurava-a. No entanto, como o caráter autêntico desta era indestrutível, tinham que tolerá-la e às vezes até mesmo legalizá-la parcialmente nas formas exteriores e oficiais da festa e conceder-lhe um lugar na praça pública.

Todas as festas oficiais, as cerimônias e os ritos civis eram acompanhados

pelo princípio cômico. Esse princípio era autorizado pelo ―Riso pascal‖ (risus paschalis), que permitia a paródia da Bíblia e dos Evangelhos, como ―A ceia de Ciprião‖ (Cɶna cypriani). Existem manuscritos diversos que abrangem toda a ideologia oficial da Igreja e seus ritos através do principio cômico: ―O riso atinge as camadas mais altas do pensamento e do culto religioso‖ (BAKHTIN, 2002:12). A

paródia6 sacra era um gênero literário consagrado pela tradição e até mesmo tolerado pela Igreja. Mesmo que certas formas carnavalescas fossem uma paródia do culto religioso, ainda assim eram exteriores à Igreja e à religião, compunham uma particularidade da vida cotidiana.

6 O termo paródia provém do gr. parodía [ΗΠαρωδία, ας] ‗canto ao lado de outro‘, pelo lat. Parodia, e

pode significar: 1. Imitação cômica de uma composição literária; 2. P. ext. Imitação burlesca; 3.Teatro. Comédia satírica ou farsa em que se ridiculariza uma obra trágica ou dramática; arremedo. [Cf.

parodia, do v. parodiar.] (V. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da

língua portuguesa. 3.ed. Curitiba: Positivo, 2004. p. 1496. V. também PAVIS, Patrice. Dicionário de

Teatro. Tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999. p. 278-279. ― «Imitação bufa de um trecho poético» (Aristóteles, Da

Poética, 2, 5; Ateneu de Naukratis, Banquete dos Sofistas, in BAILLY. Dictionnaire Grec Français

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Foi exatamente por pertencer a uma cultura extraoficial que a cultura cômica se diferenciou pelo seu radicalismo e liberdade — enfim, por sua lucidez:

Ao proibir que o riso tivesse acesso a qualquer domínio oficial da vida e das ideias, a Idade Média lhe conferiu em compensação privilégios excepcionais de licença e impunidade fora desses limites: na praça pública durante as festas, na literatura recreativa. O riso medieval beneficiou-se com isso ampla e profundamente (BAKHTIN, 2002:62).

Fica autorizado, portanto, um tipo de culto paralelo, especificamente cômico, que gravita em torno da Igreja e da festa. Trata-se das ―Festas dos Loucos‖ (festa

stultorum, fatuorum, follorum), celebradas por estudantes e clérigos nas seguintes datas: dia de Santo Estêvão, Ano-Novo, dia dos Inocentes, da Trindade e de São João. No princípio, essas festas eram celebradas dentro das Igrejas; depois, foram levadas para as ruas e tavernas, fazendo parte das comemorações do Mardi Gras, dia de carnaval cristão, a Terça-feira Gorda.

A ―Festa dos Loucos‖ e a ―Festa do Asno‖ eram, segundo Bakhtin (2002:64),

degradações grotescas dos diferentes ritos e símbolos religiosos incorporados no plano material e corporal, como por exemplo, fomentar a glutonaria e a embriaguez sobre o altar, utilizando gestos obscenos e até mesmo desnudamentos. O asno,

explica Bakhtin (2002:173), ―é o símbolo bíblico da humilhação e da docilidade (ao

mesmo tempo que da ressurreição)‖. Na ―Festa dos Loucos‖ fazia-se a eleição de um abade, de um bispo e de um arcebispo para rir, e nas Igrejas sob a autoridade direta do Papa, elegia-se um Papa para rir. Essa abertura da Igreja advinha do que chamamos de risus paschalis, que admitia o riso e as brincadeiras licenciosas no interior da Igreja na época da Páscoa: ―Do alto do púlpito, o padre permitia-se toda espécie de histórias e brincadeiras a fim de obrigar os paroquianos, após um longo jejum e uma longa abstinência, a rir com alegria e esse riso era um renascimento feliz‖ (BAKHTIN, 2002:68). Existia também o ―riso de Natal‖, que consistia em

canções alegres sobre assuntos leigos, cantadas dentro da Igreja. Os cantos espirituais eram cantados com melodias leigas, até mesmo canções de rua.

Havia também a ―Festa dos Tolos‖, que era uma manifestação alegre e livre da tolice. Na festa popular a tolice era considerada como nossa ―segunda natureza‖.

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A tolice é o reverso da sabedoria, o reverso da verdade. É o inverso e o inferior da verdade oficial dominante; ela se manifesta antes de mais nada numa incompreensão das leis e convenções do mundo oficial e na sua inobservância. A tolice é a sabedoria licenciosa da festa, liberada de todas as regras e restrições do mundo oficial, e também das suas preocupações e da sua seriedade (BAKHTIN, 2002:227).

A tolice possui um caráter ambivalente, de um lado negativo — representada pela figura moderna do ―imbecil‖ ela é rebaixamento e aniquilação — e, de outro, ela é positivamente representada pela renovação e pela verdade.

A fantasia era um elemento importante da festa popular: fazia-se a renovação das vestimentas e consequentemente da personagem social. Cambiavam-se os personagens, fazia-se a permutação do superior e do inferior hierárquicos, o bufão era sagrado Rei. Invertia-se o superior e o inferior, tudo que

era elevado e antigo, perfeito e acabado, era transferido para o ―baixo‖ material e corporal para que nascesse depois da morte. Esse tipo de paródia sagrada não era contrário aos textos sagrados ou contra os regulamentos e leis da sabedoria escolar: pelo contrário, transpunha todos esses conceitos para o registro cômico. Não se preocupava em explorar os aspectos negativos da Igreja, mas sim em transpô-los para um universo alegre, livre e inacabado, como uma segunda revelação do mundo, feita por meio do jogo e do riso.

As datas das festividades estavam diretamente ligadas com a concepção de tempo do carnaval, ou seja, uma ideia de tempo referente ao ―ciclo calendário‖

(organização do calendário). Essa organização era feita pelos homens da Idade Média, pela contagem de períodos sucessivos de quarenta dias: todo ano, de festa em festa, procede pelo decorrer de quarenta dias. Michel Corvin (1994:45, tradução nossa) diz que esse intervalo de quarenta dias é a duração de um ciclo lunar e meio. Do Natal até a Terça-feira Gorda, são realizadas festas preparatórias ao carnaval. Essas festas são chamadas de ―liberdades de dezembro‖, que são espécies de pré -saturnais. Quarenta dias depois do Natal acontece a Chandeleur7[Candelária], festa importante, pois é a primeira data possível até a Terça-Feira Gorda. Após a Quaresma, temos a Páscoa, que é a festa em que é comemorada a Ressurreição de Cristo.

(22)

Com efeito, desde as origens dos textos litúrgicos em língua vulgar (por exemplo, O Ofício Pascoal da Ressurreição), faz-se uma mistura de derrisão e de respeito para com a Igreja. São apresentados num contexto cômico tanto os apóstolos quanto as santas mulheres, nos momentos mais dramáticos da morte e da ressurreição de Cristo. Para Corvin (1994:47, tradução nossa), a utilização da ironia, pela interpretação dos valores, é rica de sentido e por isso devemos compreender o elo que une o carnaval e as manifestações sociais e culturais tão diversas como os

―jogos‖ do domínio picard8, os monólogos dramáticos ou sermões alegres (como Le Franc Archer de Bagnolet [O Franco Arqueiro de Bagnolet], 1470, sátira do fanfarrão), as soties9 e as farsas. Essas manifestações são prolongamentos dos ritos

do carnaval. Apenas o sentido do carnaval, com sua inversão de ritos e de crenças, pode explicar, por exemplo, por que tanto as farsas como as soties evocam o rito do Baise-Cul (Beija-Cu), por onde passeiam enormes falos (como nos Kômos10

arcaicos e em Aristófanes) e é ―proclamada‖ uma abundância de peidos.

Como exemplo de farsas e soties, temos os Bazoches (/ba.zɔʃ/) e os Cornards (os cornudos). Corvin (1994:46, tradução nossa) explica que o Bazoche seria uma trupe de estudantes (clérigos) que representa as farsas com o nome de Enfants sans souci [Crianças Despreocupadas] ou de Gallants sans souci [Galantes Despreocupados]. A farsa era o pot-pourri11, do qual todos podiam participar, do cômico grosseiro de situação à sátira generalizada das mulheres, das classes, das profissões. Já os Cornards eram uma trupe de representação de soties, zombaria exacerbada, que as autoridades locais chamavam pelo nome de princípios morais;

8 O Picardo é uma linguagem estreitamente relacionada com o francês e, como tal, é um dos maiores

grupos de línguas românticas. É falado em duas regiões no extremo norte da França – Nord-Pas-de-Calais e Picardia – e em partes da região belga da Valónia (mas é claramente distinto do idioma valão). Disponível em: <http://fr.wikipedia.org/wiki/Picard> Acesso em: 23 out. 2009 (tradução nossa).

9 Soties são peças políticas interpretadas pelos Sots (tolos, Bobos) e pelos Les Enfants-sans-Souci

(crianças despreocupadas). Os Sots fundaram um sistema de sátira baseados na ideia de que a sociedade como um todo é composta por fous (tolos, Bobos). Suas fantasias, eram atributos que identificavam um determinado estado, uma função particular: o juiz, soldado, monge, nobre, e assim por diante. Teve seu período mais brilhante na época de Luís XII. Disponível em: <http://fr.wikipedia.org/wiki/Sotie> Acesso em: 23 out. 2009 (tradução nossa).

10Os Komos

(em grego κώμος, pl. Komoi) procissão realizada por foliões bêbados na Grécia antiga,

cujos participantes eram conhecidos como komastés [κωμαστές]. Na literatura arqueológica e iconográfica, os komos geralmente se referem a uma procissão ruidosa e festiva de bebedores acompanhados por músicos. São representações características de banquetes dionisíacos. Essa procissão tem suas raízes em celebrações da natureza dedicada a Dioniso e seus seguidores na colheita. Disponível em: <http://fr.wikipedia.org/wiki/Sotie> Acesso em: 23 out. 2009 (tradução nossa).

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estes cornards são dotados de um agrupamento especial: com manias e costumes bizarros, com um sac à coquillons na cabeça (capuz de orelhas de asno).

Contudo, durante o Renascimento, o riso se distancia das camadas populares e, com sua forma universal e alegre, através da língua vulgar, adentra na

alta literatura e no universo das ideologias ―superiores‖. Nesse momento são criadas

grandes obras literárias universais, como o Quixote de Cervantes e os livros de Rabelais, e será nesse período que encontraremos nosso objeto de análise, as obras de Shakespeare.

A distância que o riso toma das ruas, devido à instauração do absolutismo e de um novo regime oficial, enfraquece a cultura cômica, relegada aos mais baixos níveis da hierarquia dos gêneros. Ela perde então as suas raízes populares, restringe-se e degenera-se. O riso associa-se ao saber humanista, à política, à ciência, à prática médica e acaba sofrendo mudanças cruciais. Essa nova combinação faz com que o riso da Idade Média, com seu universalismo e ousadia,

passe de uma existência espontânea para ―um estado de consciência artística, de aspiração a um fim preciso‖ (BAKHTIN, 2002:63).

A franqueza da praça pública adota um aspecto íntimo, fazendo com que a

obscenidade do ―baixo corporal e material‖ se transforme em frivolidade erótica e a

relatividade das coisas se configure em ceticismo e indiferença. O riso da Idade Média revelou a verdadeira concepção do princípio material e corporal. Ele não é apenas uma forma exterior, mas sim, uma forma interior essencial e que não pode ser substituída pelo sério. A verdade revelada por meio do riso possui seu caráter particular, libertando as pessoas não apenas das censuras exteriores, mas principalmente das interiores, de medos como do sagrado, do autoritarismo, do poder, do passado, enfim, medos que perturbam a humanidade há milhares de anos.

A concepção carnavalesca influenciava radicalmente a visão e o pensamento das pessoas sobre o mundo. Sua condição social era renegada, mesmo que temporariamente, fazendo-as vislumbrar o mundo a partir de uma perspectiva cômica. Mas qual seria essa perspectiva cômica?

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Evolução, no qual estão incluídos os que riem. A comunhão criada durante as festas, devido à abolição provisória das diferenças e hierarquias, criava uma comunicação entre as pessoas impossível de ser exercida no cotidiano. Essa comunicação familiar era bastante especifica daquele tempo, impossível de pôr em prática na vida moderna, pois perdemos o caráter universal e a concepção profunda de mundo. Naquela época, ―o cósmico, o social e o corporal estavam ligados

indissoluvelmente numa totalidade viva e indivisível‖ (BAKHTIN, 2002:17).

1.1.2 Conceituação do Bobo

Mas do que o Bobo da Corte ri? Para Lopes (2001:69), o bufão ri de nós, humanos, devido ao sarcasmo com que opera. Já para Martin (1985:21, tradução nossa), ele zomba dele mesmo, pobre, ingênuo, estúpido, idiota, grosseiro e ignorante, e de seu Rei, que ele imita, rico e abandonado. Para Martin, a paródia é

própria do Bobo da Corte, ―ele é uma paródia viva‖. Como nos afirma Vladímir Propp (1900:84), a paródia seria a imitação das características exteriores de um fenômeno qualquer da vida que pretende ocultar ou negar o sentido interior daquilo que foi parodiado. A paródia demonstra que por detrás das formas exteriores de uma manifestação espiritual não há nada; por trás delas existe o vazio. A paródia é um dos instrumentos mais poderosos de sátira social e isso irá aparecer constantemente na dramaturgia de Shakespeare. Parodiando o seu Rei, o Bobo da Corte desvenda a inconsciência deste que foi parodiado, revela a fragilidade da sua condição humana:

―Mas a bufonaria não se reduz aos gestos. É uma filosofia. É a forma mais acabada do desprezo. Do desprezo absoluto‖ (Kott, 2003:67).

Na figura do Bobo da Corte, visualizamos que ele é representado, através do bastão que tem na ponta um truão em miniatura, como um duplo de si mesmo. Lopes (2001:79) relata que em algumas representações o Bobo da Corte aparece com um espelho na mão e faz uma paródia de si mesmo ao olhar-se em sua própria imagem. Esse relato nos confirma que o Bobo da Corte ri de si mesmo por sua condição de ser humano.

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proveito da impunidade assegurada às suas loucuras. Ele seria um ―negativo do poder‖, pois utiliza o privilégio do poder para se permitir tudo:

A máscara sobrepõe duas imagens: uma real, não aparente, mas reconhecível, serve de base à imitação, e uma deformada. Ela produz um falso semblante mais verdadeiro que o real, este aqui se encontra denunciado, descoberto (MARTIN, 1985:22-23, tradução nossa).

Através da caricatura, ele transforma tudo o que é sério em ridículo. Para Propp (1900:89), a caricatura seria um detalhe que é exagerado de modo a atrair para si uma atenção exclusiva. Ela pode ser tanto de ordem física, espiritual ou de caráter. O Bobo da Corte brinca com esses detalhes, exagera-os, seja para negá-los, seja para confundi-los. Esse nosso ―personagem‖ vive à margem, não pertence

a um mundo social, ele é subversão. Sua critica derrisória nos convida a explorar as

coisas ―não ditas‖, a ler as entrelinhas. ―Nada lhe resiste pois tudo é atacável‖

(MARTIN, 1985:250, tradução nossa).

Para Lopes (2001:19), a definição mais antiga da forma e do conteúdo do bufão do teatro se encontra na figura de Dioniso. Para ela, Dioniso é o primeiro de uma prole do teatro cômico, uma figura distinta da linhagem dos fanfarrões. Temos como referência de sua aparência ―uma figura jovem, quase criança, gorducho, de

bochechas e nariz rubro, com uma coroa de hera, e um tirso coberto de folhagens de

videira‖.

Encontramos ainda no discurso de Philippe Gaulier12 outro ancestral do Bobo da Corte, interessante de se notar: ―O demônio deu liberdade para a mulher... Para a

primeira mulher, Eva. A mulher, então, foi o primeiro bufão. – Na bíblia vocês podem ver o que Deus disse à mulher quando ela comeu a maçã – e completa a ideia final:

Vão para o gueto!‖ (GOULIER apud LOPES, 2001:105).

Enid Welsford (1961:04) afirma que os relatos mais antigos da profissão do bufão vêm da Grécia e da Roma Imperial. No século II A.C. Athenæus compõe a

obra ―O Banquete dos Sofistas‖13 (tradução nossa), em que relata a existência de

bufões ―glutões‖, que faziam de tudo para conseguir um lugar à mesa nos grandes banquetes. Para conseguir sobreviver, ou até mesmo para conseguir satisfazer seus

12Philippe Gaulier estudou e ensinou com Jacques Lecoq, e há muitos anos vêm mantendo sua

própria escola de formação para atores na França. É um dos maiores mestres de palhaço atualmente, direcionando parte do seu programa à essa linguagem.

13The Sophists at Dinner

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vícios, para desfrutar das bebidas e comidas dos grandes banquetes, esses bufões se aproveitavam das suas habilidades artísticas.

Martin (1985:11) declara que, da Antiguidade clássica até o século XVII, os ricos e os poderosos sempre tiveram ao seu lado os bufões. Na Pérsia, no Egito, depois na Grécia, em Roma, aqueles que tinham algum tipo de deformação possuíam a missão de estar ao lado de pessoas importantes, de anunciar o futuro ou as vontades de Deus. Pode-se considerar Esopo, escritor de fábulas gregas do século VI a.C. (620-560 a.C), um Bobo-sábio que desfiava as sentenças morais de forma agradável. Esse escravo frígio se apresentava como um morósofo (louco sábio) que citava sentenças morais em meio a engenhosas anedotas, causando o riso. Tornou-se também uma espécie de conselheiro, um tanto burlesco. Encontramos ainda Tersites,14 que segundo Lopes (2001:40) foi um dos primeiros

bufões gregos: ―O guerreiro cuja divertida caricatura traça a Ilíada‖. Diz-se que o que causava o riso era sua aparência grotesca, sua insolência, jactância e covardia. Ele era um bufão voluntário, possuía assento na assembleia dos Reis, tomando parte nas deliberações.

Essas figuras misturam a realidade com a arte. Todas elas representavam a desordem e ao mesmo tempo purificavam e renovavam o sistema social. Suas vidas, suas deformidades, seus vícios são reais e suas histórias são verdadeiras. Aproveitando-se delas, o bufão consegue suprimir seus desejos e necessidades:

O genuíno bufão, por outro lado, rompe com essa distinção entre o divertimento e a sabedoria, entre vida e arte. O bufão não é nem o Bobo inconsciente nem o artista consciente que retrata a si mesmo. Ele é um Bobo consciente que expõe a si mesmo, decididamente para ganhar (para viver), mas ocasionalmente, pelo menos, por amor à folia, ao divertimento (WELSFORD, 1961:27, tradução nossa).

14 Encontramos Térsites no 2ª Canto da Ilíada.

―A Ilíada (em grego antigo: Ἰλιάς, AFI: [iːliás]; em grego moderno: Ιλιάδα) é um poema épico grego que narra os acontecimentos ocorridos no período de pouco mais de 50 dias durante o décimo e último ano da Guerra de Tróia e cuja génese radica na

cólera (μῆνις, mênis), de Aquiles. O título da obra deriva de um outro nome grego para Tróia, Ílion. A Ilíada e a Odisseia são atribuídas a Homero, que se julga ter vivido por volta do século VIII a.C, na Jônia (lugar que hoje é uma região da Turquia), e constituem os mais antigos documentos literários gregos (e ocidentais) que chegaram nos nossos dias. Ainda hoje, contudo, se discute a sua autoria, a

existência real de Homero, e se estas duas obras teriam sido compostas pela mesma pessoa.‖

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Um ponto importante de destacar é que ser um Bobo da Corte, nas épocas mencionadas, significava ter uma profissão como outra qualquer. Esse profissional era contratado pelo Rei para servi-lo. O seu serviço? A bobagem. Existem, porém, informações muito complexas detrás dessa bobagem, e é na busca de tais informações que este estudo se baseia. Por meio do riso, o Bobo da Corte tornava-se um contornava-selheiro do Rei e um desvelador. O que ele revelava? Revelava a imagem do próprio Rei, como um espelho, de profundidade não mensurável. Como nos afirma Serge Martin (1985:08, tradução nossa),

O espaço que ele provocou não se detém na imagem virtual do espelho do salão. A própria imagem se deforma versus uma realidade mais viva. Seu impacto depende da condição do sujeito de compartilhar mais ou menos intimamente a presença improvisada e o olhar malicioso dessa sombra, desse nariz, desse pequeno demônio: desse duplo.

Com a zombaria, nossa figura toma uma distância necessária das coisas e dos acontecimentos, desloca seu nariz do problema e dá os mais sábios conselhos ao seu Rei, fazendo com que esses conselhos pareçam nada mais do que uma simples brincadeira: ―Excesso de todo pequeno que pensa grande‖ (MARTIN,

1985:08, tradução nossa). É o riso que nos dá a possibilidade de nos distanciarmos da angústia da imensidão do universo e da profundidade do nosso pensamento. Daí, então, alcançamos o lugar de onde somos capazes de enfrentar tudo o que é exterior e principalmente enfrentar a nós mesmos. O riso nos redime da angústia do sério; já não sabemos mais de qual sujeito se zomba. Essa ideia de riso como um enfrentamento é fruto de uma concepção do humor pós-moderno, ou seria fruto do mau humor pós-moderno?

1.1.3 A Procura do Riso

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teóricos, como Gilles Lipovetsky em A era do vazio (1989), acreditam que vivemos numa sociedade humorística, embora o humor pós-moderno nada tenha que ver com o riso alegre e positivo descrito por Bakhtin. A psicanálise, para Kupermann (2002), viria com o propósito de fazer emergir outro tipo de riso que não fosse o riso cínico e superficial da pós-modernidade.

Como propõe Roudinesco (2000), falta, em nossa cultura, humor e prazer de viver. O homem pós-moderno é polido e sem humor, esgotado por ter de conter suas paixões e envergonhado por não estar de acordo com o ideal de homem imposto pela sociedade. Na contemporaneidade encontramos a derrota do sujeito: ―em lugar

das paixões, a calmaria, em lugar do desejo, a ausência de desejo, em lugar do

sujeito, o nada, e em lugar da história, o fim da história‖ (ROUDINESCO, 2000:41). Entretanto, para Lipovetsky (1989), vivemos numa ―sociedade humorística‖, na qual

nada deve ser pesado ou sério. As relações interpessoais possuem um clima irreverente e ninguém deve se levar muito a sério.

Podemos observar, porém, que não há uma diferença real entre as teorias de Roudinesco e de Lipovetsky:

A depressão na contemporaneidade, afirmada por Roudinesco, é efeito da descrença e da falência dos ideais universalistas modernos que tinham possibilitado, até meados do século XX, o engajamento dos indivíduos em projetos comuns marcados pelo signo do conforto e da revolta contra os sistemas totalizantes que tolhiam sua expansão erótica. Com a crescente influência do biopoder sobre as subjetividades, passou-se ―da era do conforto para a era da evitação,

e do culto da glória para a revalorização dos covardes‖

(KUPERMANN, 2002:16).

O humor pós-moderno é cínico, encobre e descontrai as tensões, é fruto da falência dos projetos comuns e da descrença na possibilidade de transformação social. Em nada tem que ver com o espírito, nele vigora a desvitalização e a banalização esterilizante. O homem individualista produzido na pós-modernidade

apresenta, cada vez mais, ―dificuldade em rebentar de riso, em sair de si, em sentir

entusiasmo, em entregar-se à jovialidade‖ (LIPOVETSKY, 1989:131).

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Rabelais, Cervantes e Shakespeare, Bakhtin (2002:57) revela que em ―nenhum outro aspecto, a não ser na atitude em relação ao riso, as fronteiras que separam o século XVII e seguintes da época do Renascimento, são tão bem marcadas, tão

categóricas e nítidas‖. O riso no Renascimento aprofunda este valor de concepção

de mundo: o riso era uma forma pela qual a verdade sobre o mundo se revelava. Através do riso se tinha uma forma particular e universal de percepção do mundo e não menos importante do que o sério; por isso, a grande literatura o admitia da mesma forma. Tinha-se a consciência de que somente por meio do riso podia-se ―ter acesso a certos aspectos extremamente importantes do mundo‖ (BAKHTIN,

2002:57).

Já nos séculos XVII e seguintes o riso perdeu seu aspecto universal e abrangeu somente certos fenômenos parciais da concepção de mundo, e típicos da sociedade. O cômico passou a ter um caráter negativo, não cabendo a ele tudo o que é importante e essencial. A ele coube apenas os vícios dos indivíduos e da sociedade. Na literatura, o riso ocupa o lugar destinado aos gêneros menores, ―que descrevem a vida de indivíduos isolados ou dos extratos mais baixos da sociedade‖,

o riso é um ―divertimento ligeiro, ou uma espécie de castigo útil que a sociedade usa para os seres inferiores e corrompidos‖. (BAKHTIN, 2002:58).

O riso encontra o seu lugar no gênero cômico. É na comédia que encontramos o vínculo com o outro que o riso propõe. Para Bender (1996), esse vínculo com o público existe por causa da particularidade dos temas encontrados na comédia. Mas quais seriam esses temas?

Esses temas, para Bergson (1983:02), estão diretamente ligados à pessoa humana: ―não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano”. Porém, é de extrema importância o fato de tratar-se de uma ideia de pessoa comum e facilmente reconhecida. Esse padrão de pessoa não é posto em cena, mas é a partir dele que teremos o objeto gerador da comicidade. O objeto será tudo o que estiver fora desse padrão.

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1983:15). Essas concepções acerca da fuga dos padrões estabelecidos proporcionam a via de acesso ao caráter negativo do riso da contemporaneidade.

Esse dogmatismo aniquila não apenas o verdadeiro riso ambivalente como também a verdadeira tragédia, já que, na cultura antiga (Greco-Romana), o sério não excluía o aspecto cômico. Bakhtin (2002:104) chama isso de ―sério aberto‖, que

abrange um todo, participa de um mundo inacabado, por isso não teme a paródia nem a ironia:

No interior de certas obras da literatura mundial, os dois aspectos do mundo – sério e cômico – coexistem e se refletem mutuamente (são os chamados aspectos integrais, e não imagens sérias e cômicas isoladas, como no drama ordinário da época moderna)... as obras mais notáveis desse tipo são as tragédias de Shakespeare.

É com o intuito de abranger esses ―aspectos integrais‖ abordados por

Bakhtin que analisamos as obras shakespearianas. A escolha tanto de tragédias como de comédias para análise da bobagem reflete o intuito de especificar o riso do Bobo da Corte nas suas múltiplas expressões.

1.2 Os Tipos de Bobos

É difícil saber ao certo sua origem e suas funções. Existem diversos e numerosos relatos de pessoas que poderíamos descrever como Bobos nesta pesquisa. A complexidade do tema se inicia por sua terminologia. Encontramos nomes como: fool, fou, jester, trickster, court-jester, parasita, bouffon, court-fool:

Todas essas tentativas de determinar um nome para cada tipo e fixar cada um dos tipos com seu devido nome são sempre vãs. Para começar, temos a questão da tradução. Em francês, o Bobo da Corte é fou (louco), em inglês fool (louco), mas muitas vezes o termo usado é jester, que seria melhor traduzido para o português como jogral. Em português, temos o termo Bobo designando o Bobo do Rei, mas este era também chamado de bufão, louco ou gracioso (CASTRO, 2005, p. 31).

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podermos entender um pouco melhor essas figuras tão complexas, e não para reduzi-las a uma análise superficial.

1.2.1 Bobo Natural e Bobo Artificial

Comecemos pela diferenciação entre o Bobo natural e o Bobo artificial. Segundo Welsford (1961:119), essa diferenciação entre Bobo natural e Bobo artificial vai do século XII até o século XVI, na França e na Inglaterra. O Bobo natural é aquele que nasceu com alguma deformidade física ou mental. Geralmente, trata-se de corcundas ou anões; são trata-seres marginalizados pela sociedade. Caso não tivesse domínio sobre alguma arte, esta lhe era ensinada, ou não, podendo apenas fazer companhia ao seu mestre. Tal é o caso de alguns Reis que possuíam anões, pois acreditavam que lhes dava sorte:

Esta [sic] espécie de superstição teria encontrado a forma humana na Idade Média, cujos Bobos da Corte, defeituosos e loucos, eram adotados como verdadeiros talismãs pela nobreza, eternizando a sua figura que, na forma grotesca e corporal, deixa entreaberto o passado e o devir da sociedade humana (LOPES, 2001:39).

Já o Bobo artificial não possuía deformidade, mas podia ter algum domínio artístico, ser considerado um profeta ou um sábio, utilizando-se sempre da comicidade. É evidente que essas características podiam se misturar. Por exemplo, um Bobo corcunda poderia ser um conselheiro do Rei por causa de sua sabedoria ou pelo seu dom de profetizar. É difícil distinguir entre um Bobo são e um Bobo insano, ou um ―natural‖ e um ―artificial‖. Umas das tentativas de distingui-los consistia em ver se eles possuíam valetes15 ou não. Welsford (1961:118) descarta essa opção, pois não se sabe ao certo se os valetes atuavam como um empregado do Bobo ou como um carcereiro, sendo esta última opção a mais provável.

Essas deformidades do Bobo Natural estão ligadas à concepção estética criada na vida medieval e renascentista que tinha como sistema de imagens o

―realismo grotesco‖: ―A vida se revela no seu processo ambivalente, interiormente contraditório. Não há nada perfeito nem completo, é a quintessência da

15 Valete: 1. Na Idade Média, jovem nobre colocado ao lado de um senhor para iniciar-se como

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incompletude. Essa é precisamente a concepção grotesca do corpo‖ (BAKHTIN,

2002:23).

1.2.1.1 O Grotesco

São conteúdos do grotesco: o coito, a gravidez, o parto, o crescimento

corporal, a velhice, a desagregação e o despedaçamento corporal, etc. ―A imagem

grotesca caracteriza um fenômeno em estado de transformação, de metamorfose ainda incompleta, no estágio da morte e do nascimento, do crescimento e da

evolução‖ (BAKHTIN, 2002:21). Há no realismo grotesco um ―rebaixamento‖, ou

seja, tudo o que é elevado, espiritual, ideal e abstrato é colocado no corpo material. O riso, nesse caso, degrada e materializa tudo o que é cósmico e ao mesmo tempo regenera e renova, formando um corpo material em constante mutação: ―A

degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a um novo nascimento. E por isso não têm somente um valor destrutivo, negativo, mas também positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo tempo negação e afirmação‖ (BAKHTIN, 2002:19).

Os bufões primitivos, segundo Lopes (2001:14), pautavam suas ações nas partes corporais que se abrem para o mundo exterior ou onde o mundo penetra nele: boca, órgãos genitais, seios, barriga e nariz. A deformidade era uma analogia da vida humana, era a representação do mundo na sua distorção física.

O exagero, o hiperbolismo, a profusão, o excesso é um dos sinais característicos do estilo grotesco. Para Schneegans (apud Bakhtin, 2002:266) o grotesco exagera caricaturalmente um fenômeno negativo, distinguindo-se da bufonaria e do burlesco, que também admitem exageros, mas não dirigidos contra o que não deveria ser. No grotesco, o exagero é de um fantástico levado ao extremo, tocando a monstruosidade. Conclui-se, portanto, que na visão de Scheneegans o grotesco é sempre satírico. Essa concepção é negada por Bakhtin, que diz se tratar de uma sátira reduzida, pautada na visão moderna de negação de certos fenômenos particulares e não de uma estrutura fundamentada na negação como uma afirmação de um novo nascente.

Bakhtin (2002:269) não considera o exagero (hiperbolização) a característica

mais importante do grotesco: ―O mundo grotesco no qual só se tivesse exagerado o

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acreditamos que a análise da bobagem shakespeariana deve partir de conteúdos objetivos, buscando nos motivos e nas imagens sua significação universal e não as lendo apenas como ridicularização.

Se para Bakhtin o realismo grotesco possui uma denotação positiva, universal e popular, para outros teóricos o grotesco está vinculado a uma visão negativa. É o caso de Vladimir Propp (1992:91) que denomina o grotesco como o

―extremo do exagero, aquilo que é aumentado já se transforma em monstruoso. Extrapola a realidade e penetra no domínio do fantástico‖. Para ele o grotesco se

distancia de um mundo realmente possível, ele só é possível na arte, impossível na vida. Desse ponto de vista poderíamos dizer que o Bobo da Corte não é uma figura grotesca, já que habita a esfera do possível?

Todavia, para Bakhtin essa visão do grotesco da qual fala Propp estaria

relacionada ao ―grotesco romântico‖ e não ao ―realismo grotesco‖ encontrado na

Idade Média e no Renascimento. No ―grotesco romântico‖, a visão de mundo é

subjetiva e individual, está ligada ao Sturm und Drang16. Dos pré-românticos até os

surrealistas contemporâneos, os corpos estão separados uns dos outros, estão solitários e não em constante evolução, pelo contrário, trata-se de corpos acabados e perfeitos.

Se o Bobo da Corte é uma figura grotesca, qual a leitura que devemos fazer

sobre os Bobos da Corte criados por Shakespeare? Uma leitura a partir do ―grotesco romântico‖ ou a partir do ―realismo grotesco‖?

Sobre o caráter ambivalente, de passagem e de oscilação entre o terrificante e o grotesco, Daniel Kupermann (2002) recorre à obra de Bakhtin para demonstrar que o grotesco romântico é uma tentativa, ainda que abrandada, de recuperação do realismo grotesco manifestado nas festas populares. É, portanto, a partir do estudo dos princípios que regem o realismo grotesco — o riso ambivalente e a concepção carnavalesca do mundo — que será possível compreender do que e de quem o Bobo da Corte ri. Os princípios que regem o realismo grotesco, segundo Bakhtin, não devem ser interpretados segundo o ponto de vista das regras modernas e nele serem vistos apenas os aspectos que delas se afastam, mas sim, deve ser analisado dentro do seu próprio sistema. Porém, seu próprio sistema, na realidade histórica

16

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viva, encontra-se em constante evolução, produzindo diferentes variedades históricas do clássico e do grotesco: ―O método de produção das imagens grotescas

procede de uma época muito antiga: encontramo-lo na mitologia e na arte arcaica de todos os povos, inclusive na arte pré-clássica dos gregos e romanos‖ (BAKHTIN,

2002:27).

Há indícios da existência do grotesco na Antiguidade pré-clássica (a Hidra, as Harpias, os Ciclopes) e em vários personagens do período arcaico. Porém, apenas em fins do século XV, o termo grotesco passa a ser utilizado para definir um estilo artístico, após a descoberta de um tipo de pintura ornamental encontrada nos subterrâneos das termas de Tito, em Roma, chamada grottesca, derivada do substantivo grotta, (―gruta‖ em italiano) ou ainda, segundo Muniz Sodré (apud Kupermann, 2002:330), pode significar ―porão‖, o que nos remete a uma imagem

civilizatória em contraponto com a ideia de gruta, muito mais primitiva. As características que surpreenderam os contemporâneos dessas figuras eram a mistura insólita das formas vegetais, animais e humanas, que se mesclavam, esmaecendo as fronteiras do mundo natural. O grotesco, com a sua mobilidade e o seu eterno inacabamento, se chocava com um mundo cuja essência residiria na estabilidade e na perfeição. Assim, só foi possível estabelecer uma visão mais profunda e ampla do grotesco na segunda metade do século XVIII, passando a ser efetivamente concebido como reação à estética clássica antiga e à estética do belo traçada na modernidade.

O grotesco possibilitava não apenas a exploração do feio, segundo o ideal de beleza vigente, mas sobretudo direcionava o olhar para dimensões da vida às quais a arte idealizante insistia em manter ocultas. No entanto, é possível encontrar concepções bastante distintas dos sentidos do grotesco ao qual se refere Mikhail Bakhtin nas interpretações fundamentadas por uma mentalidade romântica, como podemos observar nos escritos de Wolfgang Kayser (1906-1960) e Victor Hugo (1802-1885), dois nomes de referência para o entendimento do pensamento romântico. O grotesco, na visão de Kayser em sua obra O Grotesco (1986), é definido, grosso modo, como uma mistura de surpresa e de angústia diante da decomposição do mundo, própria da modernidade; um mundo ao qual pertencemos, mas ao mesmo tempo ao qual nos sentimos alheios. Já para Bakhtin (2002:30), essa

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ritos e espetáculos carnavalescos populares‖. No Romantismo, com o descobrimento do indivíduo subjetivo, profundo, íntimo, complexo e inesgotável, encontramos a concepção de Victor Hugo em sua obra Do grotesco e do Sublime:

Tradução do “Prefácio de Cromwell” (2002) sobre o grotesco como um meio de contraste para a exaltação do sublime. Na visão de Hugo a estética do grotesco é a deformidade, a deformidade considerada como o feio, sendo todo o resto o belo, o sublime. Já para Bakhtin, o grotesco e o sublime se complementam mutuamente.

No Renascimento, momento em que perde seus laços com a cultura popular da praça pública e mergulha na tradição literária, o grotesco se formaliza e a sua visão particular de mundo carnavalesco, ousado e universal se degenera,

tornando-se um ―simples humor festivo‖:

Esse caráter infinito interior do indivíduo era estranho ao grotesco da Idade Média e do Renascimento, mas sua descoberta pelos românticos só foi possível graças ao emprego do método grotesco, da sua força capaz de superar qualquer dogmatismo, qualquer caráter acabado e ilimitado. Num mundo fechado, acabado, estável, no qual se traçam fronteiras nítidas e imutáveis entre todos os fenômenos e valores, o infinito interior não poderia ser revelado (BAKHTIN, 2002:38-39).

O riso, nesta fase, toma outras formas, como o humor, a ironia ou o sarcasmo. Ele deixa de ser jocoso e alegre; seu aspecto regenerador e positivo se

reduz e a automatização e a desagregação transformam o grotesco ―positivo‖ –

explorado por Bakhtin — em grotesco ―negativo‖, encontrado na interpretação romântica de Kayser. Nesse caso, podemos dizer que o grotesco positivo de Bakhtin

está associado ao ―realismo grotesco‖, e o grotesco negativo de Kayser associa-se

ao ―grotesco romântico‖.

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GROTESCO TEÓRICOS FORÇA ASPECTO GÊNERO VISÃO DE MUNDO

Realismo Grotesco

Bakhtin Regeneradora Positivo Sem

distinção de gênero

Universal

Grotesco Romântico

Kayser Victor Hugo Freud

Libertadora Negativo Tragicômico Das Unheimliche

Os sentidos do grotesco romântico habitam distintas faces que oscilam entre o horror e o riso. Para Freud (1919), a diferença reside entre a realidade que experimentamos e o que conhecemos por intermédio da ficção, ou seja, rimos somente quando o estranho é vivido no universo da imaginação. Com o intuito de aprofundar a compreensão do processo de criação sublimatória na psicanálise, Freud escreveu primeiramente, em 1905, ―Os chistes e sua relação com o inconsciente‖; em 1919 escreveu ―O estranho‖; e anos depois, em 1927, escreveu ―O Humor‖, um breve ensaio sobre o humor. Nesses estudos ele se depara com a

inquietante aproximação entre unheimliche e o cômico. A ideia de unheimliche

(estranhamente familiar) ―é uma herança da categoria estética do grotesco, cultuada

pela arte romântica como expressão maior da experiência tragicômica do horror mesclado ao sorriso próprio ao homem moderno‖ (KUPERMANN, 2002:32). Sua

inquietação estava no fato de que os mesmos elementos capazes de provocar a experiência do estranho poderiam também fazer rir. Para Kupermann, tanto no Romantismo quanto em Freud o horror se sobrepôs ao riso, e a angústia à alegria.

A definição encontrada por Freud sobre o estranho refere-se aos complexos infantis reprimidos revividos através de alguma impressão, ou quando crenças primitivas são resgatadas e confirmadas: ―O estranho seria, portanto, o produto de

uma experiência na qual o sujeito vê confirmar-se, no plano da realidade, a sua

Imagem

Figura 01:  ―La Nef des Fous du Monde”  de Jérôme Bosch, 1500.
Figura 02: Globe Theatre. Fonte: &lt;http://salempress.com. acesso em 15 mai.2011.

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