• Nenhum resultado encontrado

2 A BOBAGEM NA ARTE: ANÁLISE CRITICA DOS BOBOS EM

2.3 O Jester: o coroamento do Bobo

2.3.3 Entre o Jogo e o Sagrado

É na capacidade de ser ao mesmo tempo espirituoso e mordaz, que reside a ambiguidade do trágico e do cômico no Bobo. O conceito de trágico e de cômico constituído em sistema binário de oposição, como sugere Aristóteles, não serve para Shakespeare. Os dois elementos, cômico e trágico, se integram perfeitamente, até se fundirem. Isto revela a profunda verdade do mundo shakespeariano, que é mais semelhante ao mundo real do que se o cômico e o trágico fossem artificialmente separados:

Observamos em Shakespeare, e algumas vezes também nos escritores alemães, uma maneira corajosa e singular de mostrar na própria tragédia o lado ridículo da vida humana; e quando sabemos opor a essa impressão o poder do patético, o efeito total da peça torna-se muito grande. A cena francesa é a única em que os limites dos dois gêneros, do cômico e do trágico, são fortemente pronunciados: em toda parte em outro lugar o talento como a sorte se serve da alegria por superar a dor (CORVIN,1994:193,194, tradução nossa).

Formando uma boa dupla, o Rei e o Bobo da Corte jogam entre si, transitam entre a razão e o insólito, o horrível e o burlesco, a seriedade e o ridículo; em suma, entre o trágico e o cômico. Para Martin (1985), o Bobo da Corte é cômico e é trágico ao mesmo tempo. Carrega na comicidade uma mistura de dignidade e de fraqueza,

e o seu lado trágico condena aquele que se defende, pois ele aceita o inexorável: ―O riso nos enche de esperança, a emoção trágica nos purifica. Cômico e trágico, dois outros termos colocados nas extremidades da balança. A força-trágica ou a tragédia- bufa estão no fundo do teatro e do Bobo‖ (MARTIN, 1985:49, tradução nossa).

Para Martin (1985), o grau cômico e o grau trágico que norteiam os extremos dessa figura estão relacionados à qualidade de jogo e de sagrado. O jogo do Bobo da Corte é uma osmose entre a sua personalidade e a sua função: ―Ele é ator, livre de interpretação. A função do Bobo junto do seu Rei corresponde àquela do teatro junto à sociedade‖ (MARTIN, 1985:27, tradução nossa). O Bobo está sempre disponível para jogar, não força o jogo, tem claro para si que o jogo reside num lugar próprio na existência humana e que se efetua instintivamente de uma forma muito simples. Seu jogo é contrário à instituição que conserva e sacraliza, é um ato fictício, habita o universo do como se, dando inúmeras possibilidades de improviso.

Habitando o ficcional, ele sonha com o irrealizável e, assim, como no jogo da criança, consegue pensar nas respostas livres. Mas do que se compõe seu jogo? Ainda para Martin, seu jogo parte de uma realidade de imitação formidável, seguido de uma gratuidade e de reflexos inesperados. Esses ―peões‖ utilizados no jogo do Bobo ― a realidade, a gratuidade e o reflexo ― produzem efeitos contraditórios e provocam o imaginário, como por acaso e superficialmente. O jogo acontece com facilidade, gratuidade e acaso, e funciona por reflexos, o que lhe dá um pouco de ar superficial:

O jogo pode parecer como o menos útil de nossos comportamentos. Portanto, jogando, ressentimos muito mais a vida, ou melhor, a vitória da vida. Ele se sente existir. O jogo faz retroceder a morte, empenhando nosso fervor de viver, nos coloca junto do jogo, representando nossos instintos e nossas pulsões (MARTIN, 1985:30, tradução nossa).

Para Johan Huizinga, na sua obra Homo Ludens: o jogo como elemento da

cultura (1990), o ser humano possui o instinto do jogo para o funcionamento da

civilização e se estrutura a partir do sistema de regras de tempo, espaço e significado. Assim como pensa Martin, para Huizinga o jogo ultrapassa a sua concretude e a realidade e se desenrola no mundo ficcional. Essa característica do jogo faz com que seja revelado o espírito daquele que joga, denominado pelo autor de ―ser espiritual‖ (HUIZINGA, 1990:06).

No caso do Bobo, o seu ser espiritual está sempre sendo revelado, pois ele está em permanente situação de jogo. Nesse ponto é que vejo a relação entre jogo e sagrado descrita por Martin como os dois pólos que habitam a figura do Bobo. É através do jogo que se torna possível examinar o impossível: ele nos convida a outro mundo onde as leis se diferem pela sua força em entrever o futuro sob outro ângulo: ―A inteligência que move o Bobo parece se moldar a toda eventualidade. Mas depois que ele se desliga das coisas e rompe com a lógica, sua distração dá assim prova de lucidez‖ (MARTIN, 1985:31, tradução nossa).

O Bobo está em equilíbrio, ele está ―entre‖, entre o simples e o esperto, entre o Jogo e o Sagrado. Na relação desses dois pólos se encontra a revelação. De um lado o grau cômico revela o Jogo que se une às características do profano, e do outro lado temos o grau trágico, que revela o Sagrado, que se une às características do sério. Sério e profano: outras duas facetas, não de oposição, mas sim de relação. Jogando, o Bobo permanece sempre na situação de desvio: com a profanação, ele envolve o sagrado e torna-se sagrado.

Martin (1985) utiliza elementos topográficos para melhor visualizarmos os direcionamentos que essa relação entre Jogo e Sagrado podem fazer surgir. Cria duas grades relacionais que podem contribuir e muito para a compreensão tanto dos princípios que norteiam a lógica cômica do Bobo quanto dos personagens a serem analisados na dramaturgia shakespeariana em geral.

Vamos à grade:

Fonte: Martin (1985:56, tradução nossa)

JOGO Imitação Paródia SAGRADO Violência Exagero Gratuidade Metáfora Seriedade Sabedoria Idênticos Oposição Oposição Idênticos

Contrário Espelho Contrário

A leitura que Serge Martin faz dessa grade tem como eixo central a relação entre Jogo e Sagrado. Neste caso, o Jogo possui duas capacidades (destacadas em azul): as capacidades de Imitação e de Gratuidade. E o sagrado possui outras duas capacidades: de Violência e de Seriedade. É interessante notarmos que as capacidades do Jogo se desenvolvem a partir de uma narrativa horizontal, passado e futuro, enquanto as capacidades do Sagrado são descritas a partir de uma narrativa vertical, ligadas ao céu ou à profundidade da terra. O Bobo de Lear, por exemplo, joga com as ações que o Rei realizou no passado ― no caso, dividir o reino entre Goneril e Regane e expulsar Cordélia. Já a sua capacidade de Sagrado está no que há por trás de seu jogo, a função sagrada de ajudar Lear a alcançar a Lucidez.

Essas relações criam entre si efeitos diversos, de espelho, de oposição, de correspondência e de inversão. No primeiro caso notamos que há possibilidade de espelho entre a Imitação e a Gratuidade e entre a Violência e a Seriedade; as relações entre Imitação e Violência e Gratuidade e Seriedade geram efeitos de oposição. Martin destaca ainda o surgimento de quatro efeitos de correspondência: dois contrários e dois idênticos. O efeito contrário está entre a Paródia e a Metáfora e entre o Exagero e a Sabedoria, enquanto o efeito idêntico está entre a Paródia e o Exagero e entre a Metáfora e a Sabedoria. A Paródia e o Exagero possuem efeito idêntico por partirem do corpo, enquanto a Metáfora e a Sabedoria partem da razão. Talvez o exemplo mais concreto de Paródia nas peças estudadas esteja relacionado à cena em que Feste se disfarça de Sir Topas, o Cura, e engana Malvólio, que está preso, fazendo-o acreditar que está realmente louco. Nas peças analisadas existem muitos exemplos de Metáforas e quase nada de Paródias. Acredito que seja pelo fato de os Bobos de Shakespeare se utilizarem muito mais de recursos cômicos linguísticos do que corporais. Tanto é que em nenhum deles fica claro quais são as suas características físicas. Na cena de ―Noite de Reis‖, Feste ao se disfarçar de Sir Topas, o Cura, põe capa, barba e fala carregadamente, parodiando o mestre Cura. No caso ele revela o vazio da forma: por detrás da manifestação de vida do corpo existe apenas o vazio. Esse tipo de paródia causa o riso por revelar um defeito oculto ao homem:

MALVÓLIO - Sir Topas, sir Topas, bom sir Topas, vá procurar minha senhora.

BOBO – Pra fora, demônio hiperbólico! Como entrou assim dentro desse homem? E ainda fica só falando de mulheres? (Ato IV, Cena II)130

Os defeitos são revelados por meio de um deslocamento intencional da atenção das ações interiores (a fé e a religiosidade de mestre Cura) para as formas exteriores (o exagero no exclamar sua fé) de sua manifestação. ―A paródia só é cômica quando revela a fragilidade interior do que é parodiado‖ (PROPP,1982:87).

Nesta conversa louca e cômica entre Malvólio e mestre Cura (Feste), o Bobo repreende a ignorância moral de Malvólio e revela a sua fragilidade através da Paródia:

MALVÓLIO – Sir Topas, nunca houve homem tão injustiçado. Bom sir Topas, não pense que estou louco. Eles me atiraram aqui, na mais tenebrosa escuridão.

BOBO – Que vergonha, seu satanás desonesto. (Só o trato assim com tanta delicadeza, por ser daqueles tão bonzinhos que são delicados até com o próprio diabo.) Mas disse que sua cela está escura?

MALVÓLIO – Como o inferno, sir Topas.

BOBO – Ora, ela tem janelões transparentes como uma barricada, e clarabóias, tanto para o norte quanto para o sul, que brilham como o ébano; e ainda se queixa de obstrução? (Ato IV, Cena II)131

Para Bloom (2000:310), esse trecho é o mais hilário e irritante da peça:

Mesmo assim, Feste leva as honras, sabiamente repreendendo Malvólio, pela ignorância de sua agressividade moral, no estilo jonsoniano. Em meio a essa conversa estranha, temos um presságio dos diálogos desvairados de Lear com o Bobo e com Gloster. O que Feste bem sabe, e que Malvólio jamais aprenderá, é que a identidade é sempre instável, conforme constatamos em Noite de Reis, do início ao fim.

É justamente nessa instabilidade da identidade que reside a comicidade da cena. Malvólio passa a ser o louco e o ―louco‖ passa a ser o Cura. Assim afirma o próprio Feste:

130 MALVOLIO: Sir Topas, Sir Topas, good Sir Topas, go to my lady.

CLOWN: Out, hyperbolical fiend! how vexest thou this man! talkest thou nothing but of ladies?

131 MALVOLIO: Sir Topas, never was man thus wronged: good Sir Topas, do not think I am mad: they have laid me here in hideous darkness.

CLOWN: Fie, thou dishonest Satan! I call thee by the most modest terms; for I am one of those gentle ones that will use the devil himself with courtesy: sayest thou that house is dark?

MALVOLIO: As hell, Sir Topas.

CLOWN: Why it hath bay windows transparent as barricadoes, and the clearstores toward the south north are as lustrous as ebony; and yet complainest thou of obstruction?

MALVÓLIO – Quem chama aí?

BOBO – Sir Topas, o cura, que vem visitar Malvólio, o louco. (Ato IV, Cena II)132

Diferentemente da paródia, a metáfora é encontrada em todas as três peças. Ela é recorrente no texto de Shakespeare, principalmente na fala dos Bobos. Para Martin (1985:44, tradução nossa), o ―Bobo é coroado príncipe da metáfora‖, aquele que sabe a forma certa de desenhar a fundo um objeto incerto. É preciso sabedoria para construir metáforas, pois ela é feita por intermédio da razão.

Exemplo de metáfora em ―Do seu jeito‖:

ROSALINDA – Calado, bobo idiota! Eu os encontrei numa árvore. TOQUE – Que frutos ruins dá essa árvore! (Ato III, Cena II)133

Toque utiliza sua sabedoria para conseguir, através de metáforas, julgar as intenções de Orlando, que deixa escrito, nas árvores da floresta de Ardenas, declarações de amor a Rosalinda. Toque seria o oposto de Orlando: além de não oferecer juras de amor à ingênua Audrey trata-a com ―sórdida exploração‖. Porém, ao contrário do que afirma Bloom, ele faz isso não por exploração, mas por saber que ―a poesia mais verdadeira é a mais fingida‖:

AUDREY – Não sei o que ‗poética‘ é. É uma coisa honesta, tanto no ato como na palavra? É uma coisa verdadeira?

TOQUE – Não, realmente, pois a poesia mais verdadeira é a mais fingida. Os amantes gostam de versos, mas os que juram nas poesias na verdade é fingimento. (Cena III, Ato III)134

Exemplo de metáfora em ―Noite de Reis‖:

BOBO – [...] Qualquer coisa emendada é remendada; a virtude que escorrega fica só com remendos de pecado, e o pecado que se emenda fica remendado de virtude. Se esse silogismo simples servir, ótimo. Se não, que se há de fazer? O único cornudo é a calamidade, logo a beleza é uma flor. (Ato I, Cena V)135

132 MALVOLIO: [Within] Who calls there?

CLOWN: Sir Topas the curate, who comes to visit Malvolio the lunatic. 133 ROSALIND. Peace, you dull fool! I found them on a tree.

TOUCHSTONE. Truly, the tree yields bad fruit.

134 AUDREY: I do not know what "poetical" is: is it honest in deed and word? is it a true thing?

TOUCHSTONE: No, truly: for the truest poetry is the most feigning; and lovers are given to poetry; and what they swear in poetry may be said, as lovers, they do feign.

135CLOWN: […] Anything that's mended is but patched: virtue that transgresses is but patched with sin; and sin that amends is but patched with virtue. If that this simple syllogism will serve, so; if it will

O Bobo Feste está prestes a ser mandado embora por Olívia: ―Você é bobo que secou‖. Feste, por sua vez, tenta, de todas as formas, provar que ainda é ótimo em bobices. Nessa tentativa, ele abusa de metáforas para comprovar que ainda possui inteligência para construir boas ―bobices‖ e divertir sua patroa:

BOBO – Espírito, se te apraz, faz-me bom de bobices! Os espirituosos que pensam possuir-te muitas vezes são só bobos, e eu que estou certo de não te ter, posso passar por sábio. Pois, como diz Quinapalus, ―melhor um bobo espirituoso do que um espirituoso bobo‖. Que Deus a abençoe, senhora. (Ato I, Cena V)136

Em ―Rei Lear‖, o Bobo utiliza a metáfora para mostrar ao Rei a bobagem que este cometeu ao dividir o reino entre as duas filhas:

BOBO – Bem, partido o ovo em duas metades e comida a substância, as duas coroas do próprio ovo. Quando partiste tua coroa ao meio e deste ambas as partes, carregaste teu burro nas costas através do lamaçal. Tinhas pouco siso debaixo de tua coroa calva, quando abdicaste tua coroa de ouro. Se falo como bobo, que seja açoitado o primeiro que isso notar. (Ato I, Cena IV)137

Aqui, o Bobo deixa claro o vazio por detrás da forma. Acaba sendo uma forma de crítica à Coroa e ao próprio Rei. Lear não possui conhecimento nenhum sobre si mesmo, sua carência de afeto é fruto dessa falta de autoconhecimento. O Bobo conhece muito bem seu Rei, e é na tentativa de mostrar quem é o verdadeiro Lear que o Bobo utiliza os mais variados recursos linguísticos.

Voltemos à grade de Martin. Os efeitos de inversão são frutos do movimento evolutivo contrário entre Jogo e Sagrado, ou seja, Seriedade/Imitação, Gratuidade/Violência, Exagero/Metáfora e, por fim, Sabedoria/Paródia. Esses efeitos de inversão geraram algumas observações. De fato, se juntarmos a Imitação com a Seriedade, teremos o efeito da concentração. O Bobo em ―Rei Lear‖ imita seu Rei,

not, what remedy? As there is no true cuckold but calamity, so beauty's a flower. The lady bade take away the fool; therefore, I say again, take her away.

136 CLOWN: Wit, an't be thy will, put me into good fooling! Those wits, that think they have thee, do very oft prove fools; and I, that am sure I lack thee, may pass for a wise man: for what says Quinapalus? 'Better a witty fool, than a foolish wit.'God bless thee, lady!

137FOOL: Why, after I have cut the egg i' the middle and eat up the meat, the two crowns of the egg. When thou clovest thy crown i' the middle and gav'st away both parts, thou borest thine ass on thy back o'er the dirt: thou hadst little wit in thy bald crown when thou gavest thy golden one away. If I speak like myself in this, let him be whipped that first finds it so.

ele é a sua sombra e passa a jogar com seriedade para exercer a sua função. Notamos nos seus atos uma força de concentração no lugar do devaneio. Tudo o que ele diz tem um porquê e um objetivo bastante concreto, nada é gratuito. Já se juntarmos a Gratuidade com a Violência surge o colapso. É o que acontece com Lear, a gratuidade de sua ação no começo da peça (de dividir o reino) e a violência com que toma suas decisões, leva-o ao colapso. Se, porém, compararmos a Metáfora com o Exagero, encontraremos a relação igualitária do pensamento/corpo, e entre a Sabedoria e a Paródia teremos a relação igualitária do verdadeiro/falso; comprovando não a oposição entre o Jogo e Sagrado, mas sim a relação entre eles; comprovando, também, a capacidade dialética e de equilíbrio do Bobo: ―O Bobo provoca a alegria através dos joguetes orais, mas a vivacidade de seu espírito e a mordacidade de seus sarcasmos vão jogar a medida do trono‖ (Martin, 1985:46, tradução nossa).

Documentos relacionados