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2 A BOBAGEM NA ARTE: ANÁLISE CRITICA DOS BOBOS EM

2.3 O Jester: o coroamento do Bobo

2.3.2 O Demônio ―Politicamente Correto‖

Em diversos momentos, Serge Martin se refere ao Bobo da Corte como um ―pequeno demônio‖. O Bobo de Lear muitas vezes nos parece um tanto cruel pelo modo como profere as sofridas verdades sobre Lear. Um dos momentos marcantes dessa sinceridade atroz do Bobo é o encontro com Kent no tronco:

Diante do Castelo de Glócester – Kent está no tronco. Entram Lear, o Bobo e um Gentil-Homem.

117 Sobre as festas ver página 19.

BOBO – Ah, ah! Está usando cruéis ligas. Os cavalos são presos pela cabeça, os cães e os ursos pelo pescoço, os macacos pela cintura e os homens, pelas pernas. Quando um homem tem as pernas por demais viçosas, obrigam-no a vestir calças de madeira. (Ato II, Cena IV)118

Num primeiro momento nos parecem desnecessárias e até mesmo cruéis tais observações, porém a ambiguidade que percorre a figura do Bobo nos revela o porquê de tais condutas. Esse exemplo nos dá uma mostra da verdadeira ambivalência do Bobo. Aquele que ri dos sofrimentos, que é trágico e cômico, sagrado e profano.

Muitas figuras bufônicas, inclusive o Bobo da Corte, eram consideradas uma espécie de ―daimon‖, ou seja, demônio. Porém, ao contrário de uma concepção cristã negativa, demônio, no sentido grego, representava o espírito intermediário entre os mortais e os deuses, era uma potência criadora e, portanto, transformadora da vida. Curiosamente, encontramos também na concepção de herói o mesmo sentido que o de demônio, como aquela figura que está entre os mortais e os deuses.

Uma das dualidades do nosso ―personagem‖ é justamente a sua relação com o sagrado e o profano. Podemos observar que em francês a palavra sacré se traduz tanto como sagrado quanto por ―maldito‖. O sagrado é alcançado quando se transgridem as regras, é preciso ultrapassar o limite entre homens e deuses. O Bobo ―sagrado‖ capta o mistério e se mostra a nós por meio da profanação e dos sacrilégios.

Contudo, muitas vezes seus sacrilégios não são totalmente compreendidos. Existe certo limite para seu jogo. O Bobo sem limites é recriminado quando ―passa da conta‖. Quase nada nem ninguém consegue contê-lo em sua função de dizer as verdades. Porém, o risco de sofrer punição física faz com que este se contenha e volte a equilibrar o ―sagrado‖ com as profanações. Encontramos nas peças estudadas diversos momentos em que o Bobo ultrapassa o limite do suportável e é ameaçado de punição.

Exemplo em ―Noite de Reis‖

118 FOOL: Ha, ha! he wears cruel garters. Horses are tied by the head; dogs and bears by the neck, monkeys by the loins, and men by the legs: when a man is over-lusty at legs, then he wears wooden nether-stocks.

MARIA – Na guerra, nisso é que você vai acabar se metendo, com todas as suas tontices.

BOBO – Bem, que Deus dê sabedoria a quem a tem, e que os bobos saibam usar seus talentos.119

MARIA – Você acaba enforcado120 por ficar ausente tanto tempo; ou será posto na rua. O que não é o mesmo que enforcá-lo? (Ato I, Cena V)121

Exemplo em ―Do seu jeito‖:

CELIA: Mas a quem você está se referindo?

TOQUE: Àquele que o velho Frederico, seu pai, ama.

CELIA: O amor de meu pai é suficiente para torná-lo honrado. Basta! Não fale mais sobre ele ou será chicoteado122 por calúnia qualquer hora.

TOQUE: É uma pena que os bobos não possam falar com sabedoria daquilo que os sábios fazem tolamente.123 (Ato I, Cena II)124

Exemplo em ―Rei Lear‖:

BOBO – Se lhes desse todos os meus bens, ficaria com meus gorros. Aqui está o meu; mendiga outro com tuas filhas.

LEAR – Toma cuidado, patife; olha o chicote!

BOBO – A verdade é um cão que deve ser relegado ao canil; é jogado para fora a chicotadas, mas a Senhora Braca pode ficar perto do fogo a feder. (Ato I, Cena IV)125

Nesse trecho, o Bobo de Lear também faz alusão a Cordélia, que por falar a verdade foi expulsa do reino, enquanto as outras filhas, que mentiram foram agraciadas. E quando é ameaçado, o Bobo fica confuso, pois seu Rei não o deixa mentir, mas ao mesmo tempo é ameaçado por falar as verdades. O Bobo de Lear sofre por não conseguir mentir:

BOBO – [...] Por favor, tio, arranja um professor para ensinar teu bobo a mentir. Gostaria bem de aprender a mentir!

119 Sublinhado/negritado pela autora da dissertação. 120 Idem.

121 MARIA: In the wars; and that may you be bold to say in your foolery.

CLOWN: Well, God give them wisdom that have it; and those that are fools, let them use their talents. MARIA: Yet you will be hanged for being so long absent; or, to be turned away, is not that as good as a hanging to you?

122 Sublinhado/negritado pela autora da dissertação. 123 Sublinhado/negritado pela autora da dissertação. 124 CELIA. Pr'ythee, who is't that thou mean'st?

TOUCHSTONE. One that old Frederick, your father, loves.

CELIA. My father's love is enough to honour him enough: speak no more of him: you'll be whipp'd for taxation one of these days.

TOUCHSTONE. The more pity that fools may not speak wisely what wise men do foolishly.

125 FOOL: If I gave them all my living, I'd keep my coxcombs myself. There's mine; beg another of thy daughters.

LEAR: Take heed, sirrah,—the whip.

FOOL: Truth's a dog must to kennel; he must be whipped out, when the lady brach may stand by the fire and stink.

LEAR – Se mentires, patife, nós te mandaremos açoitar .

BOBO – Não posso compreender como tu e tuas filhas possam ter parentesco: elas me mandariam chicotear, se eu dissesse a verdade, tu me mandarias chicotear, se eu mentisse e, às vezes, sou açoitado quando fico silencioso.127 Preferia ser qualquer coisa menos bobo e, apesar disto, não queria estar em tua pele, tio. Tu aparaste teu espírito de ambos os lados, sem nada deixar no meio. Aqui vem uma das aparas. (Entra Goneril.) (Ato I, Cena IV)128

Existe um momento em ―Noite de Reis‖ em que Viola comenta sobre o equilíbrio entre juízo e loucura que a profissão do Bobo exige. Ela faz um retrato preciso do nosso personagem:

VIOLA – Tem juízo de sobra pra ser bobo, Pois pra ser bobo é preciso espírito.

Tem de saber o humor de com quem brinca, E a sua posição – e a hora certa,

Sem deixar escapar, qual falcão novo, Uma só pluma. E essa profissão

É tão penosa quanto a arte de um sábio. Pois um bobo que é sábio se acredita;

Mas o sábio que é bobo é uma desdita. (Ato III, Cena I)129

O Bobo conhece bem o humor do seu Rei e consegue dizer as verdades através das suas brincadeiras. Sabe ser divino utilizando-se dos jogos terrenos, sabe ser anjo e diabo. O divino é alcançado através da colaboração com o diabo. Como um Judas, ele seria necessário à sociedade: carrega a culpa e a função de traidor para nos mostrar o divino. Satã ou demônio, ele representa a materialização do espírito e não tem ligação alguma com a concepção de um espírito maldoso:

126 Sublinhado/negritado pela autora da dissertação. 127 Idem.

128

FOOL: […] Pr'ythee, nuncle, keep a schoolmaster that can teach thy fool to lie; I would fain learn to lie.

LEAR: An you lie, sirrah, we'll have you whipped.

FOOL: I marvel what kin thou and thy daughters are: they'll have me whipped for speaking true; thou'lt have me whipped for lying; and sometimes I am whipped for holding my peace. I had rather be any kind o' thing than a fool: and yet I would not be thee, nuncle: thou hast pared thy wit o' both sides, and left nothing i' the middle:—here comes one o' the parings.

[Enter Goneril.]

129 VIOLA: This fellow is wise enough to play the fool; And to do that well craves a kind of wit:

He must observe their mood on whom he jests, The quality of persons, and the time,

And, like the haggard, cheque at every feather That comes before his eye. This is a practise As full of labour as a wise man's art

For folly that he wisely shows is fit;

Ele simboliza uma iluminação superior às normas habituais em que conhecimento e destino são misturados, uma iluminação que permite ver mais longe e mais profundamente o que autoriza a violar as regras da razão. O demônio é semelhante ao Bobo (MARTIN, 1985: 42, tradução nossa).

O Bobo da Corte, porém, ainda se encontra mais perigoso que o Diabo, é um ―demônio‖ mais temível, pois carrega dentre de si a inocência. Nunca será culpado e permanecerá para sempre irresponsável de sua monstruosidade. Nosso ―pequeno demônio‖ provoca o medo. Por quê? Porque não tem medida, nem limites, e seu impulso é irrefreável, excessivo e intenso. É violento. Mas sua violência não corresponde àquela considerada um mal das origens, que faz do outro vítima e separa alma e corpo, bem e mal. Ele subverte todas essas contradições que são para nós temíveis, e se liberta diante do desconhecido. Em ―Rei Lear‖, por exemplo, sabemos que o Bobo quer muito bem a Lear e a Cordélia, e por eles é querido. Fora disso, é uma mistura incrível de sabedoria cruel e terror sagaz.

No grotesco romântico, o demônio, que é considerado um mal, se encontra no centro. Segundo George Minois (2003), o riso chega à terra por intermédio de Satã; chega disfarçado de alegria, e os homens o acolhem de braços abertos. Quando, porém, a máscara do riso cai e revela sua verdadeira face, encontramos a zombaria, a chalaça e a sátira, maneiras, para Minois, depreciativas de ver o mundo e os outros. Essa é uma visão romântica tanto de compreensão do riso quanto da figura do demônio.

Como vimos, a concepção romântica é carregada de melancolia por uma visão de homem isolado e que vê o cômico a partir de um caráter negativo. O mundo grotesco romântico é assustador e monstruoso. Ele causa medo, mas não pelos mesmos motivos do Bobo, por sua impulsividade, por exemplo, e sim porque o mundo, a consciência da fragilidade e do vazio que foi estabelecido sobre a condição humana, no romantismo, provoca o peso da existência. Perceber esse mundo por meio do riso faz com que ele fique suportável, mas esse é um riso irônico, é como um meio de se vingar do mundo. Como em Freud, quando o humor ― aquele que advém da desgraça alheia através de um chiste verbal ― faz-se necessário apenas para os adultos, como um reflexo de fuga, e não para as crianças. ―O estado de ânimo de nossa infância, quando ignorávamos o cômico, éramos incapazes de chistes e não necessitávamos do humor para sentir-nos felizes

em nossas vidas‖ (FREUD, 1905:265). Com o passar dos anos, num mundo pós- moderno, a atividade psíquica do adulto é submetida aos processos do princípio de realidade e de repressão, perdendo a habilidade de euforia e felicidade próprias do infantil, e consequentemente de experimentar o prazer. Por isso a recorrência ao chiste, ao cômico e ao humor como um caminho de se experimentar esse prazer.

Mas, com relação ao Bobo da Corte, as pessoas e o Rei riam dele por quais motivos? Se pensarmos num período mais definido, o período elisabetano, observamos que nosso ―personagem‖ habita um contexto com características do Renascimento e com heranças da Idade Média. Nesse contexto, e não numa visão romântica na qual ainda hoje estamos inseridos, ria-se do Bobo da Corte e de suas deformidades, por quê? Sabemos que não podemos utilizar a ideia de que suas deformações são a somatização das deformações humanas interiores e das dores da humanidade, como hoje se observa no grotesco, pois as ―dores da humanidade‖ num contexto renascentista ainda não eram carregadas desse sentido negativo e particular. Muito menos podemos analisá-lo como uma fuga da opressão da realidade adulta, ou como um resgate do prazer infantil, como pretendia Freud (1905, 1919, 1927), ou ainda Henri Bergson (1983), que acentuava as funções do riso como denegridoras. Então, por que se ria de um homem deformado, com habilidades de cantar, declamar e que era por demais astuto e irônico, que utilizava paródia, caricatura, comédia e tragédia para causar o riso?

Seguindo a lógica carnavalesca, descrita por Bakhtin, expressa por formas dinâmicas e mutáveis (protéicas), flutuantes e ativas, a figura do Bobo da Corte é a afirmação da alegre relatividade das verdades e autoridades do poder. O riso emerge da consciência dessa relatividade e o Bobo causa esse riso por se utilizar dessa lógica original das coisas, ―ao avesso‖, ―ao contrário‖. Esse entendimento de relatividade e de consciência da ―verdadeira‖ condição humana, aos quais todos estão submetidos, seja Rei, seja, Bobo, liga-se não a uma imagem negativa, talvez trágica, no sentido romântico de imutabilidade e eternidade, mas a um sentido positivo de renovação e de regeneração:

O riso não é forma exterior, mas uma forma interior essencial que não pode ser substituída pelo sério, sob pena de destruir e desnaturalizar o próprio conteúdo da verdade revelada por meio do riso. Esse liberta não apenas da censura exterior, mas antes de mais nada do grande censor interior, do medo do sagrado, da interdição autoritária, do

passado, do poder, medo ancorado no espírito humano há milhares de anos (BAKHTIN, 2002:81).

As deformações e os exageros, sinais grotescos do Bobo, são caracterizados pelo ―rebaixamento corporal‖, termo utilizado por Bakhtin, ou seja, é posto no corpo e no material tudo o que é elevado, espiritual, ideal e abstrato. O riso degrada o que é divino, ou cósmico, e o materializa, para então se renovar. É a mesma ideia do ―pequeno demônio‖, descrito por Martin; o Bobo é o daimon, no sentido grego daquele que liga o sagrado ao profano; é a ligação do homem, do material, do terreno, com o cósmico, com os deuses:

O diabo é um alegre porta-voz ambivalente de opiniões não-oficiais, da santidade ao avesso, o representante do inferior universal, etc. Não têm nada de aterrorizante nem estranho. Mas no grotesco romântico, o diabo encarna o espanto, a melancolia, a tragédia (BAKHTIN, 2002:36).

O Bobo é a degradação do sublime. Mas essa degradação não está ligada ao ―nada‖, à destruição absoluta, e sim a um rebaixamento produtivo, como um renascimento, um recomeço. A morte, por exemplo, não é considerada uma divisão, uma ruptura, ela é apenas mais uma fase da vida do povo e, ainda, é uma fase importante para a renovação e o aperfeiçoamento da humanidade. Na cultura popular do passado a morte e a imagem do inferno opõem-se ao conceito cristão que depreciava a terra e o baixo da terra. As ideias cristãs oficiais relacionavam o inferno e a morte como sendo uma estéril eternidade, enquanto na Idade Média tanto o inferno quanto o purgatório ou o paraíso eram carnavalizados e compreendidos a partir do rebaixamento corporal, ou seja, um ―fecundo seio materno, onde a morte ia ao encontro do nascimento, onde a vida nova nascia da morte do antigo‖ (BAKHTIN, 2002:347). Bakhtin comenta a ―primeira morte‖, a morte de Abel segundo a Bíblia, que fecundou a terra e aumentou a sua fertilidade. O cadáver e o sangue são como grãos enterrados, que fazem brotar vida nova ― ―a morte semeia a terra produtora e fá-la parir‖ (BAKHTIN, 2002:286).

O riso desmistificou e venceu o temor cósmico cultivado nos sistemas oficiais de opressão. Eram realizadas profecias paródicas, cataclismos carnavalescos, tudo com a função de libertar do medo e aproximar o cosmos do homem. No Renascimento tinha-se a ideia de que todo o universo habitava o

homem e seus elementos naturais e forças do cosmo eram vistos como a habitação familiar desse homem, extinguindo qualquer temor. Esse temor cósmico é mais essencial e forte do que o temor do indivíduo diante da morte, ele é uma herança dos primeiros homens que se viram impotentes diante das forças da natureza.

Mas a cultura popular, de alguma forma, passa a ignorar esse temor e superá-lo através do riso e da confiança do poder do homem como um elemento que também faz parte do cosmo: ―De alguma forma, o homem assimilava os elementos cósmicos (terra, água, ar, fogo), encontrando-os e experimentando-os no seu próprio interior, no seu próprio corpo; ele sentia o cosmo em si mesmo‖ (BAKHTIN, 2002: 294). Naturalmente, esse temor foi utilizado por todos os sistemas religiosos para oprimir o homem e conseguir dominar sua consciência. As culturas oficiais chegavam a cultivar esse temor tanto para humilhar quanto para oprimir os homens.

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