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Ambiguidade da Experiência Religiosa

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A R T I G O S

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JOSÉ LISBOA MOREIRA DE OLIVEIRA

Resumo: a experiência religiosa, tão antiga quanto a humanidade, está car-regada de ambigüidade. O aumento da religiosidade no mundo não tem significado necessariamente um aumento da capacidade ética das pessoas. Existe o risco de um tipo de religiosidade infantil que trans-ferindo toda a responsabilidade para a divindade, tira da pessoa a capacidade de assumir a própria existência e de abri-se para os ou-tros, para a solidariedade. A religião precisa aceitar a crítica da ciên-cia, a fim de evitar o “transcendentalismo”, os fáceis reducionismos e certas explicações mágicas da vida. O diálogo com a ciência contri-buirá para a superação da ambigüidade da experiência religiosa. Palavras-chave: Religião, religiosidade, experiência religiosa

AMBIGUIDADE DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

A

experiência religiosa é tão antiga quanto a humanidade. Existem re-gistros seguros de que há pelo menos cento e cinqüenta mil anos atrás, no período conhecido como Paleolítico Superior, os nossos ancestrais já cultivavam algum tipo de religiosidade. O homem de Neandertal costumava enterrar os seus mortos juntos com algumas oferendas, o que leva a crer que ele acreditava na existência de um ser sobrenatural e na vida após a morte (MARCONI; PRESOTTO, 2006). A experiência religiosa, ao longo desses milênios, tem passado por fases bem diferentes. De um modo geral acredita-se que na medida em que o ser humano evolui e adquire novos conhecimentos, parti-cularmente aqueles científicos, ele vai mudando a forma de se

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relaci-, Goiâniarelaci-, v. 6relaci-, n. 2relaci-, p. 229-240relaci-, jul./dez. 2008 230230230230230 onar com aquilo que ele mesmo chama de divino, de sobrenatural ou de transcendente. Alguns estudiosos chegam a dizer que as pessoas avançadas nos conhecimentos científicos tendem a compreender melhor a realidade, não sendo mais necessário “incomodar os deuses” para explicar certos fenômenos (TERRIN, 2004).

Houve um momento na história mais recente, a partir do advento do iluminismo e do positivismo, que se chegou a proclamar solenemen-te a morsolenemen-te de Deus. Com muita euforia se dizia que a técnica e a ciência iriam resolver todos os problemas da humanidade e que não seria mais necessário buscar soluções para os problemas fora do pró-prio ser humano. Deus seria enterrado e dele só iriam se ocupar os nostálgicos e teimosos (ZILLES, 2004). Os famosos “mestres da sus-peita” (Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud, etc.) estavam convenci-dos de que a religião não passava de uma grande ilusão (FILORAMO; PRANDI, 2003). Alguns deles chegaram a afirmar que a religião negava e destruía a vida humana e, por isso mesmo, era “o ópio do povo”. Ópio enquanto desloca a essência humana para uma realidade exteri-or, provocando dessa forma a alienação, a despossessão, fazendo com que o ser humano permaneça alheio a si mesmo (COLLIN, 2008). Na verdade o que esses teóricos fazem é retomar críticas feitas

anteriormen-te. Basta lembrar, por exemplo, Lucrécio, poeta latino do século I a.C., segundo o qual a origem da religião está no medo e por isso o seu destino seria a extinção, na medida em que as pessoas adquiris-sem racionalidade e consciência. Para Lucrécio o fim da religião esta-ria decretado quando a humanidade percebesse que haveesta-ria uma saída segura para as suas tribulações, quando descobrisse formas de com-bater o medo, de se opor aos grandes e de se subtrair às ameaças dos adivinhos e sacerdotes (FILORAMO; PRANDI, 2003).

Porém, os dados da realidade têm mostrado que, apesar do avanço tecnológico e científico, a humanidade continua cultivando intensamente a ex-periência religiosa. Dados recentes confirmam que pelos menos 80% da população em mais de 80% dos países do mundo seguem algum tipo de religião ou cultivam alguma forma de experiência religiosa (O’BRIEN; PALMER, 2008). No Brasil, segundo o último grande censo, quase 93% da população brasileira se declarava adepta de uma religião. E não resulta que o restante da população seja totalmente formado por ateus. Apenas não declara sua pertença a algum tipo de religião (CAMURÇA, 2006).

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Até mesmo experiências de tentativas explícitas com a finalidade de sepultar a religião se revelaram um fracasso total. Foi o caso, por exemplo, da extinta União Soviética. Após a queda do Muro de Berlim (1989) a religião ressuscita dos porões do regime soviético e se revela como fator de identidade étnica e coletiva. O que se pensava morto ou extinto, de repente ressurge com força e determinação. A ideologia imposta às massas não conseguiu destruir a tradição religiosa que voltou com toda a força. A religião tradicional ou não permanecia firme, contrariando todas as previsões feitas anteriormente (BITTENCOURT FILHO, 2003). Mas, mesmo constatando-se que “Deus não morreu” e que a religiosidade permanece alta, apesar de todas as previsões contrárias, cabe a pergun-ta acerca da eticidade das experiências religiosas. Será que as religiões, as diversas formas de religiosidade e as múltiplas experiências religio-sas estão contribuindo para a humanização das pessoas? Será que é suficiente cultivar uma experiência religiosa para que a pessoa se torne automaticamente ética, capaz de cuidar melhor de si mesma e das ou-tras pessoas? Não seria a religiosidade uma experiência ambígua capaz inclusive de tirar dos seres humanos o seu potencial ético?

Estou convencido de que o aumento da religiosidade no mundo não tem significado necessariamente um aumento da capacidade ética das pes-soas. Estudiosos como Küng não se cansam de afirmar as dificuldades da religião com a ética, mesmo reconhecendo que elas podem, se qui-serem, fundamentar obrigações éticas incondicionais e universais (KÜNG, 2003).

Neste breve artigo defendo que a experiência religiosa é ambígua. Como Rubio também eu estou convencido de que ela tanto pode ser libertadora e potencializadora como pode atuar como destruidora de nossa huma-nidade (RUBIO, 2008).

Partindo desse pressuposto tentarei mostrar, na primeira parte do texto, como existe o risco de um tipo de religiosidade infantil que transferindo toda a responsabilidade para a divindade, tira da pessoa a capacidade de assumir o destino da própria existência. A pessoa religiosa se refugia na onipotência divina e se omite, deixando as coisas correrem às soltas. Disso decorre um segundo problema que é a ausência de compromisso social. Não só a vida pessoal não é assumida com responsabilidade, mas a pessoa se torna tremendamente egoísta, fechando-se na própria subjetividade e não se importando com o que acontece com os outros, com a humanidade e com o planeta.

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, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 229-240, jul./dez. 2008 232232232232232 Considerando esses riscos reais sugiro na terceira parte do artigo uma reto-mada do potencial libertador presente em cada experiência religiosa. Proponho para tanto um diálogo da religião com a ciência, de modo que ela possa ser confrontada e estimulada a agir com mais realismo e mais humanidade. Conclui o artigo uma breve provocação acerca do desafio que permanece

O RISCO DE UMA RELIGIOSIDADE INFANTIL

Como acenei anteriormente, o primeiro elemento que caracteriza a ambi-güidade da experiência religiosa é o risco de que ela não contribua para que as pessoas se tornem adultas, autônomas, donas do próprio destino e do próprio projeto de vida. Rubio, acertadamente, chama a nossa atenção para a constatação bem visível da presença do infantilismo religioso na maioria absoluta das pessoas que freqüentam igrejas, templos e praticam algum tipo de religiosidade.

Rubio (2008), baseando-se nos estudos de Sigmund Freud e de Carlos Domínguez Morano, afirma que, para essas pessoas, a experiência religiosa não é libertadora, ou seja, não colabora para que elas se tornem responsáveis por elas próprias. A prática da religiosidade, a freqüência a templos as afasta delas próprias e as afugentam da reali-dade que as circunda. Tais pessoas, ao invés de assumirem as rédeas da própria história, projetam na divindade o desejo infantil de oni-potência e ficam esperando que o divino solucione os seus problemas e dificuldades.

O risco nesse caso é de que tais pessoas se tornem vítimas de si mesmas, da própria história e de seu inconsciente. A pessoa que cultiva esse tipo de religiosidade infantil, ao invés de se tornar uma pessoa adulta, capaz de gerir sua vida, e de dar a essa um rumo bem definido, per-manece refém do próprio sentimento religioso, esperando que a di-vindade venha resolver os seus problemas. Nesse sentido, pode-se afirmar que a experiência religiosa é ambígua porque suscita no indi-víduo uma série de sentimentos que o deixam paralisado e inerte diante das mais diversas situações da vida.

Entre os diversos sentimentos o mais freqüente é o sentimento de culpa que acaba por invadir todo o âmbito da experiência religiosa e paralisar por completo a pessoa envolvida. Ela não consegue agir, tomar deci-sões, por medo de ser esmagada pela onipotência do ser divino no

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qual acredita. Sendo assim, a pessoa fica completamente privada de sua liberdade e de sua responsabilidade, uma vez que se comporta como uma marionete nas mãos do seu deus. Esse tipo de experiência religiosa passa a ser um verdadeiro obstáculo para o pleno desenvol-vimento do ser humano, o qual só se realiza por completo quando é capaz de agir livremente e de assumir a autoria de seus atos e de suas atitudes.

Mas além de gerar sentimentos de culpa esse tipo de experiência religiosa abre caminho para o fundamentalismo. De fato, o sujeito submetido à onipotência dos deuses é, segundo Rubio (2008), alguém revolta-do, uma vez que na profundidade do seu ser, do seu inconsciente não consegue aceitar o totalitarismo do divino. A divindade é tão onipo-tente e poderosa que não abre brechas para a tolerância e para a dis-sidência. E a intolerância da divindade para com o sujeito gera, neste, a predisposição para também ser intolerante em relação aos outros. Assim sendo, ele passa a ser exageradamente “ortodoxo”, não admitindo

pensamentos e idéias, principalmente no campo religioso, diferente das suas. Sai então à “caça as bruxas”, tentando a todo custo eliminar aqueles e aquelas que pensam diferente dele. Se o seu deus lhe exige total submissão, ele, de conseqüência, exige dos outros total adesão e subserviência à sua divindade e ao que lhe pede essa divindade. Para os que cultivam esse tipo de experiência religiosa a divindade é um ser implacável, dominador, juiz rigoroso e cruel que, com seu poder constituído, controla a vida das pessoas e exige que elas cumpram todos os seus caprichos.

Sabemos como no momento tem crescido o fenômeno do fundamentalismo religioso. E isso tem causado muita preocupação às pessoas de bom senso. O fundamentalismo se caracteriza pelo fechamento de cada religião na própria auto-suficiência dogmática, afirmando que vale apenas a sua verdade (TEIXEIRA: 69-80). Desse modo muitos se-guimentos religiosos se recusam a cultivar um espírito interativo, não querendo ouvir a parcela de verdade presente nas outras crenças reli-giosas. “Fundamentalismo representa a atitude daquele que confere caráter absoluto ao seu ponto de vista” (BOFF, 2002, p. 25). Com isso termina-se por não descobrir uma imagem mais verdadeira dos que professam uma outra fé e a não contribuir para a construção da paz. De fato, “quem se sente portador de uma verdade absoluta não pode tolerar outra verdade, e seu destino é a intolerância” (Ibidem).

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, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 229-240, jul./dez. 2008 234234234234234 Com freqüência o acirramento entre as religiões contribui para a ge-ração do ódio e da violência.

O fundamentalismo religioso costuma depois ser a causa, mesmo que indi-reta, de outros tipos de fundamentalismos. “Todos os sistemas, seja culturais, científicos, políticos, econômicos e até artísticos, que se apresentam como portadores exclusivos da verdade e de solução úni-ca para os problemas devem ser considerados fundamentalistas. Vi-vemos atualmente sob o império feroz de vários fundamentalismos” (BOFF, 2002, p. 38). Desse modo, temos hoje a ditadura do neoliberalismo, do paradigma científico moderno e do fundamentalismo político. O fundamentalismo econômico neoliberal condena à ex-clusão social bilhões de pessoas. O fundamentalismo científico des-trói a natureza e a vida, transformando-se, muitas vezes, numa verdadeira máquina de morte. Por fim, o fundamentalismo político espalha, com seus discursos demagógicos de defesa do bem, muitas vezes mes-clado com o fundamentalismo religioso, terror e ódio por toda parte. Isso porque é próprio do fundamentalismo “responder ao terror com terror, pois se trata de conferir vitória à única verdade e o bem e destruir a falsa ‘verdade’ e o mal” (BOFF, 2002, p. 42-3).

O crescimento dos fundamentalismos é reforçado, no campo do conheci-mento, pelo fenômeno das especializações desconexas que acaba le-vando as pessoas a saberem cada vez menos. Dessa forma os que detém certo tipo de informação acabam por impor sobre os demais os seus pontos de vista e as suas ideologias. Por esse motivo começa a existir uma certa insistência para que a explicação da realidade, inclusive aquela religiosa, não seja feita de forma unilateral, a partir apenas de uma única forma de saber dominante, mas tendo presente o espírito da universalidade, o qual consiste na busca da verdade em todos os campos integrados entre si (FILORAMO; PRANDI, 2003, p. 5-6).

O RISCO DA SUBJETIVIDADE FECHADA

A reflexão sobre a religiosidade infantil, com o seu conseqüente pro-longamento no fundamentalismo, nos aponta para um outro grave e sério risco: aquele de uma subjetividade fechada que faz do ser hu-mano alguém totalmente voltado para si mesmo e completamente insensível diante das situações dos outros. Neste caso, a experiência religiosa, além de causar o estranhamento do sujeito de si mesmo, a

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transferência de sua essência para a figura da divindade (COLLIN, 2008), provoca também a alienação da existência terrestre. A pessoa religiosa não consegue viver numa “abertura para os outros como outros” (RUBIO, 2008). Rubio chama a isso de “subjetividade fe-chada”, uma experiência de transcendência na qual, segundo ele, “o outro é negado como outro” (RUBIO, 2005).

Na subjetividade fechada, as relações, quando existem, são de dominação, de instrumentalização e de desumanização. O outro, o diferente, só é aceito quando possibilita ao sujeito sair levando vantagem em tudo, quando atende perfeitamente às expectativas do interessado. A pes-soa não busca o relacionamento e o encontro com os demais para poder ser ela mesma e, conseqüentemente, participar da construção do bem-estar da humanidade. Busca o outro apenas para satisfazer o apetite do seu narcisismo absoluto. Para encontrar amparo, seguran-ça e apoio ou para ter um “bode expiatório” sobre o qual descarregar suas revoltas e seus sentimentos de frustração. E o pior de tudo é que nesse subjetivismo fechado a pessoa não faz verdadeira experiência do transcendente, uma vez que a divindade termina sendo rejeitada, mesmo que inconscientemente, por ser ela “o Outro” por excelência. Infelizmente, por trás disso pode estar um grande aparato ideológico e grupos que não querem a formação da consciência crítica do povo, financiando a expansão de determinadas expressões religiosas que contribuem para a alienação. De fato, o método usado por determi-nados movimentos religiosos, leva as pessoas à suspensão total da atitude racional e dá muita ênfase ao espetacular, ao jogo emocional, ao transe, às possessões diabólicas, favorecendo a passividade diante das injustiças do sistema sócio-político-religioso e, portanto, a mani-pulação por parte dos grupos politicamente e socialmente dominan-tes. Neste método a instrumentalização da linguagem e dos símbolos é muito forte especialmente quando usados na mídia, visando o gan-ho de novos adeptos. O que podia ser sinal de libertação e de vida para as pessoas pode se tornar mero instrumento de escravidão. Nes-te sentido se enNes-tendem muitas das críticas feitas à religião, como, por exemplo, aquelas de Feuerbach e de Marx, já mencionadas anterior-mente (ZILLES, 2004).

Dentro desse contexto cresce a “religião de clientela” que recorre a forças sobrenaturais e até à magia para tentar explicar fenômenos e situa-ções que não precisam de explicasitua-ções do além para ser entendidas.

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, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 229-240, jul./dez. 2008 236236236236236 Desse modo toda religião passa a ser uma resposta localizada para problemas localizados, perdendo a sua capacidade de ser interlocutora da sociedade. No atual contexto brasileiro a maioria das expressões religiosas parece cair na tentação de concorrer com as outras. É a funcionalização da religião: tornar-se, simplesmente, uma prestadora de serviços religiosos à sociedade, esvaziando, assim, a sua dimensão de instância interpeladora. Isso aparece com muita força na chamada “teologia da prosperidade”, através da qual as religiões vão prestando serviços de acordo com as necessidades dos fiéis. São muitas as pesso-as que hoje buscam esses serviços e têm encontrado um retorno satisfatório.

O risco, portanto, é de que as religiões, para serem modernas, terminem por vender-se como mercadoria agradável, light, sob a alegação de que “o povo quer”. E ao se tornarem apenas prestadoras de serviços religiosos as religiões fogem do compromisso ético, trans-formando-se numa espécie de suporte, de justificativa para atitu-des narcisistas e para a subjetividade fechada, além de fazerem o jogo do grupo dominante que mantém 2/3 da população numa situação de pobreza e 1/3 dela na mais absoluta miséria. Pode acon-tecer então o que Wolff chama de “religião sem o humano” (WOLFF, 2005, p. 223-4), ou seja, a substituição das reais necessidades das pessoas por bens apenas simbólicos. Esta forma de religiosidade interessa aos sistemas injustos porque não oferece a possibilidade de um confronto entre as exigências éticas e as práticas econômi-cas, sociais e políticas que ameaçam a vida. Desse modo a religião contribui para que não haja responsabilidade social, reforçando e alimentando a exclusão social e não incentivando a solidariedade. A religião que opta por esse caminho realça excessivamente a di-mensão do divino, mas termina “dando as costas para o humano” (WOLFF< 2005, p. 224).

O DIÁLOGO ENTRE RELIGIÃO E CIÊNCIA

Estou, então, convencido de que a superação da ambigüidade da ex-periência religiosa passa necessariamente por um diálogo franco e, ao mesmo tempo, humilde entre religião e ciência. Essa questão é bem complexa e não é possível tratá-la de modo exaustivo num artigo tão breve como esse. Mesmo assim arrisco alguns palpites.

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Sabemos que o objetivo tanto da ciência como da religião é a busca da verdade e da felicidade para todos os seres humanos. Por isso é possí-vel um diálogo, até mesmo formal, entre elas que, embora se consti-tuam em realidades autônomas, são complementares e têm finalidades semelhantes. O espaço do diálogo entre ciência e religião é, sem dú-vida alguma, o âmbito da dú-vida, o cuidado com a dú-vida humana e com a vida no planeta e do planeta (LAGO, 2004). A ciência se encarrega de intervir para conservar, melhorar e renovar a vida. A religião ajuda a ciência a permanecer fiel ao princípio do serviço à vida, evitando que determinadas intervenções acarretem problemas e conseqüênci-as trágicconseqüênci-as.

A ciência tem a missão de avançar nas pesquisas e a religião, com seus códi-gos de conduta, com sua ética, ajuda a ciência a não perder de vista o seu objetivo que é o cuidado com a vida. Nesse sentido a interação entre ciência e religião tem o seu ponto de encontro na “humanida-de”, ou seja, naquela reflexão e naquele saber que visam a autocom-preensão do ser humano e da sua relação com o cosmo do qual ele é apenas uma pequena partícula. Portanto, o ponto de convergência entre ciência e religião é a grande pergunta sobre o significado e o sentido da vida (LEMOS, 2004).

Ao tentar explicar o fenômeno da vida a partir de eventos físicos e cósmi-cos, a ciência contribui para que a religião entenda a vida em toda a sua complexidade. E se a missão da religião é lembrar sempre que a vida é um grande mistério, convidando o pesquisador a manter-se humilde e respeitoso na sua pesquisa, venerando o mistério, a tarefa da ciência é interpretar corretamente a vida, a sua evolução. A partir dessa tarefa a ciência pode contribuir para que a experiência religiosa não se agarre aos fundamentalismos e às interpretações ingênuas e simplistas da realidade. Se a religião aceitar esse desafio poderá, sem dúvida alguma, deixar de ser uma experiência ambígua e colaborar eficazmente para a libertação das pessoas.

Sem dúvida alguma a religião precisa ajudar a ciência a não perder de vista a grande pergunta sobre o sentido e o significado da origem de todas as coisas, estimulando-a a olhar na direção do horizonte da transcendência. Mas ela só poderá fazer isso se estiver aberta às inter-rogações da ciência. Por sua vez as provocações da ciência farão com que a religião deixe de infantilizar as pessoas e de tratá-las como inca-pazes. Quando a religião se abre ao diálogo sincero e humilde com a

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, Goiânia, v. 6, n. 2, p. 229-240, jul./dez. 2008 238238238238238 ciência ela encontra caminhos para que os seus adeptos se tornem pessoas adultas, livres e responsáveis. Com isso ela não só aponta o limite do olhar humano, mas, a partir desse limite, convida a ciência a ousar, a permanecer insatisfeita, isto é, a buscar sempre, uma vez que a vida sonhada está sempre além do horizonte.

Com esse gesto ela deixa de ser religião de clientela para ser interlocutora da humanidade, ocupando seu verdadeiro lugar na sociedade. A humil-dade da religião em aceitar a crítica da ciência evitará que ela caia no transcendentalismo, na tentação de atribuir tudo ao divino, quando as coisas podem ser explicadas por aqui mesmo. Tal humildade evita-rá os fáceis reducionismos e certas explicações fundamentalistas e mágicas da vida. Portanto, contribuirá para a superação da ambigüi-dade da experiência religiosa (LAGO, 2004).

CONCLUSÃO: O DESAFIO PERMANECE

Mesmo diante da proposta feita estou convencido de que o desafio perma-nece, uma vez que, no atual contexto, a maioria das experiências re-ligiosas tendem a se perder facilmente no irracionalismo e na fuga da realidade. Os exemplos estão aí bem visíveis aos nossos olhos. Po-rém, toda experiência religiosa precisa ser entendida pela humanida-de humanida-de hoje, uma vez que uma religiosidahumanida-de que não pohumanida-de ser pensada, refletida, ensinada, não serve para nada.

Por essa razão, no meu entender, esse diálogo é indispensável, a fim de que as religiões possam contribuir para que no mundo não prevaleça nem um secularismo ateu e nem um fundamentalismo alienado, mas sim uma religião que consiga comunicar às pessoas esperança, sentido para a vida, padrões éticos e uma firmeza para a luta e a caminhada. Permanece também, para todas as religiões, o desafios de cultivar a verdadeira humildade, uma vez que em todas as religiões o problema da violência se manifesta e em todas elas a violência existe. Muitas vezes a violência é camuflada sob a aparência de obediência cega aos dogmas ou de fidelidade irracional às normas. Por esse motivo a mensagem por elas pregada não surte efeito porque elas têm propos-tas excelentes, mas, muipropos-tas vezes, a prática desmente a teoria. E não podemos, de forma alguma esquecer que, no momento atual,

preci-samos de construtores de pontes capazes de transformar o potencial das religiões em bandeiras de paz e em ações de solidariedade.

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samos de uma religião que não separe e nem divida; uma religião que una e reconcilie. Temos necessidade de uma religião que ajude a ver o que é comum: sobretudo os valores éticos e as atitudes éticas; religi-ões que professem valores e padrreligi-ões, mas que também tentem vivê-los.

Referências

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JOSÉ LISBOA MOREIRA DE OLIVEIRA

Doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma. Mestre em Teologia pela Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional (Nápoles – Itália). Gradu-ado em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma. LicenciGradu-ado em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília. Professor de Antropologia da Religião e Ética na Universidade Católica de Brasília. Gestor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília.

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