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"E Apareceu a Mim como a um Abortivo": o significado de Ektroma em 1Cor 15,8

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Academic year: 2021

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Ildo Perondi**

“E APARECEU A MIM COMO A UM ABORTIVO”: O SIGNIFICADO DE EKTROMA EM 1COR 15,8*

Resumo: na Primeira Carta aos Coríntios Paulo faz uso do termo ektro-ma ao definir-se no momento em que recebeu a aparição de Jesus Cristo ressuscitado: “Em último lugar, apareceu também a mim como a um abortivo” (1Cor 15,8). O termo é um hapax no NT, e torna difícil a interpretação do versículo, prova disso são as inú-meras propostas de interpretação que já foram apresentadas e que serão analisadas. Nossa interpretação é que Paulo se refere ao seu chamado no momento que ele estava matando a Igreja (a mãe). Num aborto naquela época deveriam morrer a mãe e a criança. Sobreviveram os dois. Isso só pode ser entendido como graça de Deus. Então ele afirma “sou o que sou pela graça de Deus” (1Cor 15,10). O Apóstolo se refere à experiência no caminho de Damasco, entendendo que também foi chamado, mas diferente dos Doze. Ele é o último, mas mesmo assim digno de ser chamado Apóstolo. Seu chamado foi irregular, só sobreviveu por graça de Deus. Paulo insere esta qualificação no capítulo 15 da Carta quando trata do tema da Ressurreição. Igual a ele, a comunidade de Corinto – que se encontra em meio a divisões – deve fazer a experiência do Res-suscitado para entrar no caminho da vida.

Palavras-chave: Paulo. Apóstolo. Ressuscitado. Abortivo. Graça. Coríntios.

O

presente texto é um estudo sobre o significado da frase “e apareceu a mim como a um abortivo”, usada por Paulo em 1Cor 15,8. Para definir sua condição no momento em que foi chamado, o Apóstolo

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utiliza a expressão e;ktrwma, que é um hapax legomenon no Novo

Testamento. Ela aparece somente nesta passagem e, com isso, transforma 1Cor 15,8 em um versículo difícil. A prova disso é que o mesmo suscitou inúmeras interpretações e tantas interrogações por parte da exegese, como veremos e analisaremos a seguir. A finalidade deste trabalho não é interpretar todo o versículo, mas ter

como limite a expressão e;ktrwma, mesmo que às vezes seja ne-cessário tecer alguns comentários sobre outras duas expressões do versículo.

O Contexto

A expressão está no contexto do capítulo 15 da Primeira Carta aos Corín-tios, no qual Paulo fala da Ressurreição. Não podemos interpretar o versículo isoladamente, mas o mesmo deve ser analisado junto com os versículos precedentes, quando Paulo está enumerando outras aparições do Senhor Ressuscitado. No final destas, Paulo descreve também a aparição de Jesus a ele mesmo.

Transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo recebi. Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Apareceu a Céfas, e depois aos Doze. Em seguida, apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez, a maioria dos quase ainda vive, enquanto alguns já adormeceram. Posteriormente, apareceu a Tiago, e, depois, a todos os apóstolos. Em último lugar, apareceu também a mim como a um abortivo (1Cor 15,3-8).

Mas o texto deve também ser analisado juntamente com os versículos se-guintes, que não são uma digressão, porque, no v. 8, Paulo se qualifica e, nos versículos seguintes ele continua esta sua qualificação: “Pois sou o menor dos apóstolos, nem sou digno de ser chamado apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus. Mas pela graça de Deus sou o que sou e sua graça em mim dispensada não foi estéril” (1Cor 15,9-10). A expressão e;scaton de. pa,ntwn (“último de todos”), pode ser interpretada

como a última aparição do Ressuscitado, no sentido cronológico. Mas também pode ser entendida como a última da série de pessoas que foram nominadas por Paulo nos versículos precedentes. Parece--nos mais convincente que esta última opção é mais apropriada.

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Acerca do verbo utilizado no versículo, Paulo descreve a sua experiên-cia na mesma linha das aparições precedentes. Não foi uma visão qualquer o que lhe aconteceu no caminho de Damasco. Ele utiliza a mesma forma verbal wfqh (indicativo aoristo passivo, terceira pessoa singular de ovraw) repetida nos versículos 5-7.

É importante ressaltar que é na Primeira Coríntios que pela primeira vez Paulo se identifica com o título de Apóstolo (cf. 1,1). Nesta Carta Paulo enfrenta e procura resolver os muitos problemas que vivia e divida a comunidade de Corinto (1Cor 1,10-13). No capítulo 15 o Apóstolo discorre sobre a Ressurreição e então utiliza a ex-pressão ektrwma. Estaria Paulo querendo mostrar que ele estando naquela situação de morte só chegou a ser Apóstolo pela força da Ressurreição? E que a situação de divisão e pecado em que vivia a comunidade se assemelhava à sua, em estado de morte, e que só a experiência com o Ressuscitado a faria voltar a viver novamente? Análise do termo ektrwma

O termo ektrwma deriva de evktitrw,skw: provocar um aborto, abortar etc. Ele provém do vocábulo de base trw,w: ferir, causar dano, no grego profano (de Aristóteles em diante) e especialmente na ter-minologia médica indica o parto abortivo ou prematuro, e também aborto puro e simples (MÜLLER, 1995).

O Dizionario dei Concetti Biblici del Nuovo Testamento atesta a presença do termo como “um caso doloroso”, ou então:

ektrwma é um parto prematuro, o aborto, a perda (também provo-cada) do feto (abortus). Em todos os casos se trata do feto imaturo,

não conduzido ao final, dado à luz vivo ou morto. Característica essencial é o momento anormal do nascimento e o aspecto pre-maturo do neonato [...] um feto privado de vida desde o seio da mãe e nascido morto (SCHNEIDER, 1963, p. 367-8).

As leis do antigo Oriente (babilonenses e assírias) puniam os maus tratos à mulher grávida, distinguindo diversas categorias de penas se-gundo os danos sofridos pela mesma (WAU, 1969). No Código de Hammurabi (§§ 209-214) o aborto provocado merecia uma sanção econômica que variava de acordo com a condição social da mulher; unicamente quando esta era filha de um senhor e morria por causa

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do aborto, era condenada à morte a filha de quem havia provocado o aborto (§ 210).

Fora da Bíblia é documentado também com o sentido de “parto prematuro” (OSTEN-SACKEN, 1995). Nas leis assírias (§ 21) mencionam-se somente o aborto da filha de um senhor por culpa de outro homem; este pagaria uma forte multa, seria submetido a cinquenta golpes de flagelação e trabalharia um mês para o rei, ou então a sua mu-lher receberia o mesmo tratamento pagando com a vida perdida do feto (§ 50); se, no entanto, a mulher que abortasse devesse morrer, o culpado seria punido com a morte. Era aplicada a lei do Talião como supunha também a antiga legislação oriental e a Romana das Doze Tábuas (WAU, 1969).

Não havendo os recursos médicos que temos hoje, era também muito comum que o aborto, qualquer que tenha sido sua causa: aquele provocado, resultante de um ferimento ou de uma violência externa, ou mesmo o aborto natural, levava frequentemente também à morte da mãe. NO ANTIGO TESTAMENTO

A palavra “aborto” é rara na Bíblia. É usado o termo “aborto” não somente para definir um nascimento prematuro, mas também para um que, mesmo tendo nascido, estivesse destinado a morrer. Naquela época se a criança nascesse irregularmente, em geral, também morria. A legislação hebraica era ainda mais severa:

Se dois homens brigarem, e ferirem mulher grávida, e forem causa de aborto, sem maior dano, o culpado será obrigado a indenizar o que lhe exigir o marido da mulher; e pagará o que os árbitros determinarem. Mas se houver dano grave, então darás vida por vida, olho por olho... (Ex 21,22-25).

Na LXX o vocábulo tem o significado de parto abortivo ou prematuro e é imagem drástica daquilo que não veio à existência ou não chegou a um pleno desenvolvimento: “Que eu fosse como um aborto es-condido, que não existisse agora, como crianças que não viram a luz” (Jó 3,16). Numa situação igual o vocábulo aparece também em outro texto: “Outro, porém, teve cem filhos e viveu por muitos anos; apesar de ter vivido muitos anos, nunca se saciou de felicidade, e nem sequer teve sepultura. Pois eu digo que um aborto é mais feliz do que ele” (Ecl 6,3).

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Por outro lado o termo serve também para indicar aquelas criaturas que não são ainda perfeitas ao nascer. Na Bíblia o aborto é usado como sinônimo de miserável e indigno ou de uma existência aniquilada: “não seja ela como um aborto cuja carne já está meio consumida ao sair do seio de sua mãe!” (Nm 12,12). O contexto é aquele em que Aarão pede perdão a Moisés pela sua irmã Mirian que havia pecado contra Deus e havia sido atingida pela lepra. Aarão compara Mirian como a um ektrwma: um aborto.

O salmista pede a Deus para estar de pé em sinal de proteção e para que Ele destrua o homem ímpio, comparado ao nascido que para nada serve: “Como lesma derretendo ao caminhar, como aborto que não chega a ver o sol” (Sl 58,9).

Nas passagens onde encontramos o termo na LXX o mesmo se refere às pessoas que estão em situações deploráveis, cujas vidas eram consideradas avarentas, incapazes e indignas. Paulo quando utili-zou a expressão queria mostrar como também ele era uma pessoa miserável e indigna, porque era um perseguidor da Igreja de Deus (HOLLANDER; HOUT, 1996).

Os primeiros cristãos e os escritores patrísticos

Quando os primeiros cristãos e os escritores patrísticos utilizam o termo o fazem em sentido figurado, sublinhando a humildade de Paulo e a ausência completa de qualquer traço de arrogância. Eles entendiam que Paulo se considerava um perseguidor da Igreja de Deus e se sentia indigno de tornar-se Apóstolo. Outros escritores, como Inácio e Gregório de Nissa, procuram demonstrar como também eles eram indignos da sua missão e se comparavam a Paulo.

O termo foi usado também para definir qualquer coisa ou qualquer um que não era completamente formado, como não estando ainda pronto ou maduro. Entendiam que Paulo havia usado o termo para demonstrar aos seus leitores que, perseguindo a Igreja, ele era alguém que não havia chegado ainda à plena maturidade, através da Lei e que não havia chegado também à verdadeira via por meio do batismo. Segundo quanto observam Hollander e Hout (1996), os primeiros cristãos

e os escritores patrísticos, quando usam o termo, são dependentes de 1Cor 15,8, por isso o usam em sentido figurado, ou como uma expressão de desprezo humano e de máxima humildade ou então

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como uma metáfora para qualquer um que é imaturo e que ainda completamente não se formou de um modo ou de outro. Esta de-pendência reduz grandemente o seu valor como uma fonte para afirmar o significado exato do uso do termo.

AS INTERPRETAÇÕES AO LONGO DA HISTÓRIA A pequena estatura do Apóstolo

Wetstein (apud MÜLLER, 1976) pretendeu justificar o uso do termo

acreditando que o Apóstolo se referia à sua pequena estatura. A princípio, parece que seja difícil que Paulo queria empregar a expressão com este sentido. Se fosse este o seu objetivo, não era necessário recorrer a uma expressão assim diversa, pouco usada e difícil. E também porque no versículo seguinte, Paulo se define como o “menor dos Apóstolos”. Mas não é no senso físico, antes como um sinal de humildade em relação aos demais Apóstolos. E se a sua intenção era referir-se à sua baixa estatura, podia muito bem usar a palavra certa e teria construído um belo paralelismo. Um título depreciativo usado pelos seus adversários

A hipótese que Paulo queria usar um epíteto depreciativo que lhe tinha sido atribuído pelos seus adversários para negar a sua dignidade apostólica também é sugerida por alguns estudiosos.

Harnack faz a hipótese convincente que Paulo repita uma injúria lançada contra ele pelos seus adversários que pretendiam negar--lhe a dignidade apostólica... Fridrichsen se move em torno da hipótese que Paulo tenha recolhido um termo inventado e colocado em circulação pelos seus adversários (MÜLLER, 1976, p. 1062). Sabemos que Paulo tinha os seus adversários e isso pode ser comprova-do em muitas das suas Cartas e também nos Atos comprova-dos Apóstolos. Porém que ele tenha sido chamado com este termo, não estamos assim seguros, porque não o encontramos escrito em nenhuma parte. A dificuldade principal com esta interpretação é aquela que não existe evidência que o termo e;ktrwma tenha sido empregado assim durante o tempo de Paulo (HOLLANDER; HOUT, 1996).

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Osten-Sacken (1995, p. 1127) observa que:

O artigo antes de ektrwma não justifica a hipótese que Paulo tenha tomado um termo ultrajante dos seus adversários. Antes, isso confere ‘à imagem uma relação com quanto precede e defi-ne então Paulo como aquele que, em confronto a quantos foram mencionados em precedência, são o ektrwma’. Neste sentido se pode parafrasear ‘(a mim) por assim dizer como ao aborto (entre os apóstolos)’.

É muito difícil que Paulo tenha utilizado próprio uma expressão que havia sido cunhada contra ele. Seria o mesmo que reforçar tal acusação. Podemos fazer uma comparação. Se em uma comunidade corre uma calúnia que o pároco é um ladrão, no domingo seguinte o mesmo pároco jamais começaria a sua homilia dizendo que ele é um ladrão. O pároco poderia começar assim, por chamar a atenção do público, mas em seguida, no desenvolvimento da homilia trataria de provar que ele não é um ladrão e que se trata de uma acusação dos seus adversários. Mas não é este o estilo de Paulo quando se defende das provocações dos seus adversários. Paulo nunca se defendeu desta acusação. Então, podemos crer que a comunidade entendia bem qual era o sentido que ele queria transmitir com esta expressão (talvez ele a tenha utilizado nas suas pregações quando esteve convivendo na comunidade).

Também neste caso o termo estaria sendo usado de forma negativa. E pa-rece que Paulo pretenda usá-lo em sentido afirmativo, isto é, de forma positiva: é nesta situação, como um aborto, que ele recebeu a aparição do Senhor. É isto que Paulo queria dizer aos seus ouvintes. A sua situação era tal, perigosa e deplorável, mas foi naquele estado que o Senhor o chamou para ser Apóstolo.

O aspecto improvisado ou violento da sua conversão

A interpretação que Paulo esteja se referindo ao aspecto improvisado ou violento daquilo que lhe aconteceu no caminho de Damasco é sugerida por Calvino e J. Weiss (MÜLLER, 1976). Esta possibi-lidade supõe que aquilo que aconteceu com Paulo tenha sido uma conversão. Esta interpretação cai bem nos ambientes protestantes. Seguramente Paulo interpretou a experiência de Damasco como um

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fato que marcou e mudou toda a sua vida. Ele repetirá isso tantas vezes. O problema é que nos seus escritos Paulo não usa nunca o termo meta,noia para definir aquilo que lhe aconteceu no caminho de Damasco. Kessler (1999) afirma ser oportuno distinguir os termos. Na conversão, o sujeito sou eu mesmo, sem excluir uma ação subjetivamente mediada. E o sujeito da minha vocação é outro proveniente do externo. “Paulo não interpretou o evento que lhe aconteceu às portas de Damasco como uma verdadeira e própria conversão, mas como um chamado” (KESSLER, 1999, p. 138). E aquilo que aconteceu a Paulo é fruto de uma ação do Ressuscitado que lhe apareceu e lhe transformou a vida. Antes que uma conversão talvez seja melhor falar de uma transformação.

Um bebê nascido morto

A interpretação de que ektrwma seja um “bebê nascido morto”, também parece um tanto forçada. Como podia Jesus aparecer a um morto? Para isso Paulo deveria também mencionar o seu renascimento. E ainda quando fala da sua transformação, ele não a define como um renascimento. Nos textos paralelos de Filon que foi citado para justificar esta interpretação, falta a palavra ektrwma (HOLLAN-DER; HOUT, 1996).

Hollander e Hout(1996) refutam a interpretação de M. Schaefer como “um embrião morto”, segundo o qual o termo usado em 1Cor 15,8 está sob a influência da visão do Profeta Oséias: “As dores de parto lhe sobrevêm, mas é filho néscio, porque, chegado o momento, ele não sai do seio materno” (Os 13,13). No texto do AT, Efraim não escutou o chamado de Deus e não se converteu, ainda que houvesse tempo para isso. Também Paulo não escutou o chamado de Deus, pois havia sido chamado para ser Apóstolo desde o seio materno (Gl 1,15). Ele havia exposto também a mãe ao perigo de perder a vida. E encontrou com o Ressuscitado que o conduziu ao nascimento. O problema principal desta interpretação é que o termo ektrwma não se

encontra em Os 13,13. E no texto de Oséias, Efraim é comparado com um bebê que não quer deixar o útero da mãe quando já é tempo de nascer. E em nenhum lugar encontramos que Paulo não escutou o chamado de Deus na experiência de Damasco.

Porém podemos seguir em frente e por outro caminho, se entendemos que Paulo quer dizer que a sua situação era tal, semelhante a um

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nenê nascido morto, e que foi a ação da graça que o fez renascer. Somente o Deus criador, o autor da vida, podia fazer este milagre. Neste sentido, o evento de Damasco não foi somente uma aparição do Ressuscitado, mas também uma ressurreição experimentada pelo Apóstolo.

DUAS PROPOSTAS DE INTERPRETAÇÃO Tradições proféticas em torno a 1Cor 15,8-10

A proposta defendida por Hollander e Hout (1996) é que, para compreender o v. 8, devemos fazer um passo à frente e ir aos versículos 9-10 onde Paulo se considera indigno de ser chamado apóstolo e afirma que ele é aquele que é fruto da graça de Deus. Os autores afirmam que observando vocações proféticas do Antigo Testamento, veremos que as pessoas reagem referindo-se à sua insuficiência, considerando-se indignas ou incapazes para a tarefa. Existe um obstáculo que deve ser superado por Deus antes de consignar a missão. Podemos citar alguns exemplos bíblicos:

a) Moisés quando foi chamado para a missão sentiu-se incapaci-tado e disse a Deus: “Quem sou eu, para ir ao Faraó e fazer sair os filhos de Israel do Egito?” (Ex 3,11). E mais adiante volta a recusar a missão: “Perdão, meu Senhor, eu não sou um homem de falar, nem de ontem e nem de anteontem, nem depois que falaste a teu servo, porque tenho a boca pesada e pesada a lín-gua” (4,10). E pede que Deus faça outra escolha: “Perdão, meu Senhor, envia o intermediário que quiseres” (4,13).

b) Gedeão diante da opressão dos medianitas, respondeu: “Eu te peço, meu Senhor! Como posso salvar Israel? Meu clã é o mais fraco em Manassés, e eu sou o último na casa de meu pai!” (Jz 6,15). c) Saul diante do chamado através do profeta Samuel: respondeu:

“Não sou por acaso um Benjaminita, uma das menores tribos de Israel e o meu clã não é porventura o mais modesto de todos os da tribo de Benjamim? Por que me dizes tais coisas?” (1Sm 9,21). d) Jeremias respondeu ao ser chamado a ser profeta: “Ah! Senhor

Deus! Eis que eu não sei falar, porque sou ainda criança!” (Jr 1,6). e) O próprio Paulo na Carta aos Efésios afirma: “A mim, o menor de

todos os santos, me foi dada esta graça de anunciar aos gentios a insondável riqueza de Cristo” (Ef 3,8).

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Os exemplos dos textos citados nos mostram que as pessoas chamadas procuram defender-se demonstrando as suas fraquezas ou insufi-ciências para cumprir a missão para a qual estão sendo chamadas. Deus mantém o chamado mesmo que o problema apresentado como empecilho para assumir a missão não seja removido: Moisés continuará com a sua dificuldade de falar; a idade de Jeremias não mudará; nem as tribos de Gedeão ou Saul se tornarão maio-res. O que Deus acrescenta é que não faltará com a sua graça e sua assistência, porque é Ele o responsável pelo chamado e pela missão a ser cumprida. Deus sustentará a pessoa chamada com sua graça e proteção e espera poder contar com a disponibilidade da pessoa chamada.

Parece que também Paulo quisesse demonstrar a sua insuficiência diante do chamado para ser mensageiro e Apóstolo de Deus. Ele se jul-gava indigno da missão, sobretudo porque era um perseguidor da Igreja. Foi a graça de Deus que agiu nele, e por isso se considerava o menor dos Apóstolos.

Assim Paulo julgou adequado apresentar-se com o termo ektrwma como um desastre, em uma situação de morte. Acrescentou o termo definindo-se como alguém que está numa situação deplorável, que é um homem mais avaro e indigno sobre a face da terra. No entanto, apesar de tudo isso, foi escolhido por Deus para ser seu Apóstolo. Ele queria dizer aos seus leitores que a origem do seu apostolado era proveniente de um ato da graça de Deus: ele não a mereceu, nem foi ele que a pediu. Aos seus olhos ele não era mais que um fracasso. Paulo faz a experiência dramática de sentir-se na pior situação possível e é neste contexto que, acolhendo o chamado, proporciona o espaço para a ação maior da graça de Deus.

Esta proposta é convincente e deve ser considerada válida, se observarmos o contexto da afirmação do Apóstolo e aquilo que cremos que ele queria transmitir aos seus ouvintes. Como afirma C. Wau (1969, p. 54): “Paulo se compara a um abortivo, querendo com isso indicar que se considerava como o mais indigno entre os apóstolos”. Porém a fraqueza desta interpretação é que ela possui a mesma

dificul-dade que os próprios autores da proposta criticam a propósito de M. Schaefer como “um embrião morto”, que se baseou no texto de Os 13,13. Ou seja: o termo ektrwma não aparece nunca nos textos citados e nos exemplos de chamados que foram citados por eles.

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Um nascimento/chamado Irregular

Outra possibilidade é interpretar a expressão como se Paulo estivesse se referindo como um ser que teve um nascimento irregular. Como chamado apostólico Paulo não nasceu antes, mas por último. É melhor afirmar que tenha sido um nascimento irregular do que prematuro, quer dizer fora do tempo, antes das condições previstas. Não somente é um nascimento irregular, mas privado de vida. Na condição em que ele se encontrava por força devia morrer. Paulo seguindo o caminho da lei, estava “a caminho da morte”, isto é, não alcançaria nunca o desejo de poder contemplar a glória de Deus, pois na sua busca escrupulosa já estava matando pessoas. Ao mesmo tempo em que aplicava o rigor da Lei, estava indo contra um dos Dez Man-damentos da Lei que pedia para “não matar” (Ex 20,13; Dt 5,17). Não morrendo, encontrou-se neste estado de perseguidor, fazendo morrer, provocando mortes, sendo ele mesmo um instrumento a serviço da morte. Comparando-se com a criança abortada e que tantas vezes provocava a morte da mãe, também ele estava fazendo morrer a Igreja de Deus.

Espiritualmente ele era um homem mal desenvolvido, um feto abortado, com probabilidade de ficar privado de vida, e que foi beneficiado por Cristo através de uma aparição, como a Céfas, os Doze e todos os outros. Foi um prodígio vivente de graça, a quem deve aquilo que no presente é, como esclarece ainda mais no v. 10 (BARBAGLIO, 1996, p. 815).

Paulo nasceu assim, era portador de morte. Mas a sua vida foi mudada. E esta mudança foi fruto do seu encontro com o Cristo Ressuscitado. Não parece bem, portanto, falar em sentido cronológico, de um parto violento ou prematuro. Paulo não tem a intenção de dizer que nas-ceu antes ou depois. Mas que nasnas-ceu fora do tempo. Em um tempo irregular, de forma irregular. Mas se pode interpretar também como se o seu nascimento e o seu chamado para seguir Jesus Cristo não foram da mesma forma daquele dos Doze Apóstolos.

Paulo também se sentiu chamado e considerava-se Apóstolo de Jesus, como os Doze. No entanto, os Doze foram chamados pessoalmente e de viva voz por Jesus Cristo. Eles viveram com Jesus, escutaram as suas palavras, viram o que Ele fazia, tiveram três anos de convivência

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e preparação para a sua missão. Os Doze estiveram em Jerusalém, presenciaram os últimos acontecimentos da vida de Jesus, fizeram a experiência pascal.

Paulo, ao contrário, não teve este itinerário formativo. E mesmo assim se tornou Apóstolo e estava realizando a obra de Deus. Tudo isso somente foi possível pela graça de Deus, como ele bem reconhece: “sou o que pela graça de Deus” (1Cor 15,10).

Tem razão J. Schneider (1963, p. 371) quando afirma que:

Ele foi conduzido à visão de Cristo e ao serviço apostólico por toda outra via que os demais apóstolos. O acento recai sobretudo sobre a anormalidade do processo, que intervém quando as apa-rições do Ressuscitado aos discípulos já haviam sido concluídas. H. Müller entende o episódio como uma intervenção irregular e em vista do

chamado apostólico e descarta a interpretação de aspecto improvisado ou violento, e também aquelas propostas de parto prematuro, mas prefere como sendo parto abortivo, aborto etc. e afirma que “Paulo usando este vocábulo pretende exprimir a feliz gratidão porque Deus o elegeu, mesmo na baixeza de um que tinha sido perseguidor, a ser apóstolo: o mais indigno de todos, certamente, mas sendo sempre apostolo” (MÜLLER, 1976, p. 1062).

O chamado de Paulo acontece de forma irregular, assim sendo ele, de uma forma gratuita, foi chamado a ser Apóstolo. E de forma irregular e gratuita recebeu esta aparição do Ressuscitado. Deste modo, a Ressurreição faz do aborto um ser vivente.

É bom recordar que com a morte de Jesus a esperança dos seus seguidores tinha se acabado, como é bem demonstrado pelos dois discípulos de Emaús (Lc 24,13ss). A morte de Jesus trouxe tristeza, a dor e o fim das esperanças nas quais haviam acreditado. O que trouxe vida novamente, o que fez renascer a esperança e o que fez com que eles voltassem atrás, foi o encontro com o Ressuscitado. A certeza da Ressurreição de Jesus provocou mudanças nas pessoas: veio a paz no lugar do medo; a alegria em vez da tristeza; o retorno à comunidade e não o abandono; a coragem de anunciar substitui o desejo da fuga silenciosa.

Paulo diz que o Ressuscitado apareceu a Pedro, a Tiago, aos Doze Após-tolos, a mais de 500 irmãos... Todos aqueles que foram nominados têm em comum a aparição do Ressuscitado. No entanto, a Paulo

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vem mencionado que a ele foi como a um aborto. No entanto, esta aparição muda a vida de Paulo, pois é este fato que o faz tornar-se Apóstolo. A aparição fez Pedro; fez Tiago, constitui a irmandade, os Doze, toda a Igreja. Todos proclamam a ressurreição, porque foram fundados por ela. A estrutura, a irmandade, a vida mesma... tudo tem como elemento fundante a Ressurreição. É um dado que todos os cristãos podem e devem ver a sua eficácia. Para Paulo pouco interessa a questão apologética. Não quer demonstrar como, mas que ele teve a experiência da Ressurreição e a importância que esta teve na sua vida.

Podemos também coligar 1Cor 15,8 com Abraão e com as mulheres es-téreis do AT que não podiam ter filhos. Sem poder gerar, elas não podiam trazer vida e esperança. A graça de Deus agindo, trouxe a fecundidade, trouxe a continuidade da vida. Paulo nasceu para morrer e trazer a morte, ele tornou-se como um estéril. E é o encontro com o Senhor que o fez portador de vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda que limitado, o presente texto sobre o estudo da origem do termo ektrwma e das várias propostas quanto ao uso que Paulo fez dele em 1Cor 15,8, o mesmo nos ajuda a entender a importância deste versículo bíblico e as interpretações que suscitou ao longo da his-tória, bem como tantas interrogações por parte da exegese.

À primeira vista a expressão ektrwma parece ter um sentido negativo. Porém, Paulo a utilizou em um sentido positivo para definir um fato assim importante como foi para ele a aparição do Ressuscitado no caminho de Damasco. A experiência com o Ressuscitado o fez sair da situação de morte em que se encontra e o colocou no caminho da Vida. Da mesma forma, a comunidade de Corinto, deve fazer a experiência do Cristo Ressuscitado para sair de suas situações de divisões e viver a comunhão e a concórdia (1Cor 1,9-10).

Devem ser rejeitadas algumas interpretações muito fáceis, entendendo o termo como referido à baixa estatura do Apóstolo, ou um ato violen-to no momenviolen-to da sua conversão ou ainda que Paulo tenha usado a expressão com a qual vinha sendo caluniado pelos seus adversários. Outras interpretações possuem bons argumentos, embora apresentem alguns pontos de fraqueza, como foi demonstrado ao fazer a análise das propostas. A possibilidade de que Paulo estivesse se referindo ao

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seu nascimento irregular, aparece assim mais convincente. E assim ele queria demonstrar como a graça de Deus o fez Apóstolo, ainda que tenha sido de forma irregular. Este é um ato reservado somente a Deus Criador e Autor da vida. Foi a graça de Deus que o fez tornar-se portador de vida, a ele que era um perseguidor e portador de morte. O seu chamado, totalmente diverso daquele dos demais apóstolos (mas não menos importante), é aquele chamado feito a um ser frá-gil, privado de vida. É Deus que escolheu a fraqueza, a fim de que ninguém possa gloriar-se de si mesmo (1Cor 1,26-29).

Resta-nos como mensagem destas reflexões um belo ensinamento: tanto para as pessoas como para as comunidades que se encontram em situações de morte. Somos chamados a fazer a experiência do Cristo Ressuscitado, por mais deplorável que seja a situação, e nos abrirmos à graça de Deus, que nos chama e nos dá esperança!

“AND HE WAS SEEN OF ME AS AN ABORTIVE”: THE MEANING OF ektrwma IN 1Cor 15,8

Abstract: in the first Epistle to the Corinthians, Paul utilizes the term

ektroma defining himself in the moment of the apparition of resur-rected Jesus Christ to him: “And last of all he was seen of me also, as of an abortive” (1Cor 15,8). The term is an hapax in the NT, becoming difficult the verse’s interpretation, what is perceived by the numerous proposes of interpretation already presented, analyzed in this article. We defend that Paul regards to his call, occurred exactly while he was murdering the Church (the mother). In an abortion of that period, both the mother and the child must die. In that case, they survived, what just can be understood as the God’s grace. Then, he says “by the grace of God I am what I am” (1Cor 15,10). The Apostle reefers to the experience in the road to Damascus, recogniz-ing that he was also called, but in a different way from the Twelve. He is the last one, but even this way, he has dignity to be named as an Apostle. His call was irregular and has just survived because of the God’s grace. Paul inserts that qualifying in the chapter 15 of the Epistle, when treats about the theme of Resurrection. Just like him, the community of Corinto – that was under divisions – must do the experience of the Resurrected to enter at the way of life.

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Referências

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HAWTHORNE, Gerald F.; MARTIN, Ralph P.; REID, Daniel G. (Org.). Dicionário de Paulo e suas cartas. São Paulo: Loyola, 2008.

HOLLANDER, H. W.; HOUT, G. E. van der. The Apostle Paul Calling Himself an abortion: 1Cor. 15:8 Within the contest of 1Cor. 15.8-10, Novum Testamentum, v. 38, p.

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* Recebido em: 30.06.2011. Aprovado em: 22.07.2011.

Referências

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