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O falar caipira presente em letra de música

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Academic year: 2022

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O falar caipira presente em letra de música

Maria de Jesus Ferreira Aires Adriana Milharezi Abud Sílvia Regina Ferreira Pompeo Araújo Introdução

A música é uma das formas de expressão mais pura da manifestação da cultura e do modo de pensar e agir de um povo. Está presente em suas diversas manifestações expressivas, quer em âmbito oral, quer em âmbito escrito, entretanto sempre foi alvo de preconceito . devido às variações linguísticas que apresenta.

Diante da importância desse tipo de música, o objetivo do presente trabalho é apresentar uma análise das ocorrências fonéticas do falar caipira, trazendo uma discussão sobre a presença da variação linguística e o preconceito linguístico na música caipira, enfocando as letras das músicas:

Chico Mineiro de autoria de Tonico e Francisco Ribeiro e A cruz do Caminho de Anacleto Rosas Jr. e Arlindo Pinto.

Diante do exposto, para organização do nosso trabalho, adotamos os seguintes procedimentos: inicialmente, tecemos um histórico sobre as origens do dialeto caipira; a seguir, abordamos sucintamente o preconceito linguístico; depois, definimos o que é a música caipira;

realizamos a análise das ocorrências fonéticas e, finalmente, apresentamos nossas considerações finais.

Origens do dialeto caipira

Na história de nosso país, o idioma português foi imposto como língua oficial. Isso acarretou um efeito direto do poder do estado metropolitano sobre a população colonizada, além de provocar a redução de cerca de 1200 línguas que eram faladas antes da chegada dos portugueses ao Brasil.

(GUIMARÃES, 2004)

Dessa forma, em um país no qual convivem inúmeras coletividades humanas com as mais diferentes origens geográficas, nacionais, étnicas, culturais e linguísticas apenas a língua portuguesa se consolidou como sendo única, legítima e oficial, marginalizando, principalmente, as línguas de origem indígena e africana.

Desde o final do período colonial até o presente, o acesso privilegiado e a assimilação da língua dominante por meio do sistema escolar de ensino por parte das populações metropolitanas, transformaram-se, historicamente, em mecanismos ativos de discriminação por parte daqueles que tiveram acesso à educação formal escolar, o que estabeleceu uma diferença entre aqueles a quem esse mesmo acesso foi negado.

Segundo MARTINS (2007), o dialeto caipira resultou da hibridação da língua metropolitana com os falares indígenas. Ou seja, as dificuldades de pronúncia de certos sons da língua portuguesa proferidos pelos índios dos séculos XVI a XVIII e também pelos mestiços, seus descendentes, os chamados caipiras, caracterizaram profundamente as sonoridades do dialeto caipira. Portanto, esse dialeto refugiou-se no interior do Brasil, onde era menor a repressão linguística que tinha sido determinada pelo monarca, rei de Portugal, no século XVIII.

Para VILLALTA (2004, p. 61), o dialeto caipira é sobrevivente entre os moradores da zona rural de certas regiões do Brasil e dos descendentes urbanizados, considerado uma língua de

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resistência das populações mestiças contra a imposição de uma língua oficial por parte da Coroa portuguesa.

Para AMARAL (1982, p.41 e 42), o processo dialetal se estenderia por muito tempo, se as condições do meio não houvessem sofrido uma série de rupturas intransponíveis à sua evolução. De algumas décadas para cá, tudo entrou em profunda transformação, pois a substituição da mão de obra escrava pelo assalariado afastou da convivência rotineira dos brancos grande parte da população negra, modificando assim os fatores de nossa diferenciação dialetal.

Dessa forma, os genuínos caipiras, os roceiros, considerados à época como ignorantes e atrasados, começaram também a ser atirados à margem da vida coletiva. A instrução restrita teve extraordinário avanço, impossibilitando que o dialeto caipira deixasse de sofrer grandes alterações do meio social.

Atualmente, o dialeto caipira encontra-se acantoado em pequenas localidades que subsistiram ao progresso, afora, isso, está presente na fala de pessoas idosas, indelevelmente influenciadas pela antiga educação. No entanto, certos resquícios são observados e ainda flutuam na linguagem corrente, em luta constante com outras tendências geradas pelas novas condições, principalmente, pela evolução tecnológica e pela globalização.

Obviamente, a necessidade de se superar a herança de nosso colonialismo não significa que devemos desconsiderar os códigos culturais, experiências e linguagens oriundas da Europa, como as ciências, artes e religiões, ao contrário, torna-se imperioso a possibilidade de criticá-las, dimensionando-as como formas particulares de expressão cultural de populações e grupos, sem dúvida relevantes, mas não menos relevantes e tão pouco superiores a nenhuma outra forma de expressão cultural dos povos, sobretudo, em relação ao dialeto caipira.

O preconceito linguístico

O preconceito linguístico surge da idéia de que apenas existe uma língua correta, aquela encontrada gramaticalizada e dicionarizada, ensinada e perpetuada pela escola. Emprega-se o padrão linguístico literário e culto para determinar o padrão e propriedade da língua e os demais ficam na esfera da impropriedade ou do erro.

Para BAGNO (1998), há um grande preconceito em relação à língua portuguesa baseado na crença de que temos uma única língua falada no Brasil, desconsiderando os subfalares regionais e as suas variações linguísticas. Não se pode esquecer que nossa língua é rica em diversidade regional e peculiaridades.

Segundo esse autor, o preconceito linguístico não está no que se fala, mas em quem fala o quê, tornando-se decorrente de um preconceito social, ou seja, contra a fala de determinadas classes sociais consideradas incultas de certas regiões. Esse preconceito nada mais é do que um profundo preconceito social e individual do falante. Não existe o certo e o errado na língua, mas variedades de prestígio e desprestígio correspondentes ao meio e ao falante.

CALVET (2002) afirma, também, que a história está repleta de provérbios e fórmulas pré- fabricadas que expressam os preconceitos de cada época contra línguas, não se referindo apenas a línguas diferentes, mas a variantes geográficas de línguas. Entre essas diversidades regionais, encontra-se o falar caipira, objeto de estudo deste trabalho, por meio da análise de duas música.

A música caipira

O estigma do termo caipira traz consigo um tom pejorativo. Inezita Barroso (apud NEPOMUCENO, 1999) afirma que “o termo caipira passou a ser pejorativo, sinônimo de brega, mal vestido, idiota, velho, quando é, na realidade, completamente o contrário. Caipira é aquele que se conserva ligado à terra, à cultura original.”

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No modo de expressão caipira, há muitas músicas consideradas sérias, mostrando a personalidade naturalmente saudosa do caipira, descendente do português emotivo e saudoso por natureza. Pode-se dizer que a música caipira está para o brasileiro o que o fado está para o português, e a viola, o instrumento que faz parte da vida do caboclo, é descendente da viola medieval portuguesa..

É comum notar traços claros do falar caipira na retirada do fonema /r/ do final dos verbos no infinitivo, assim como na supressão do plural redundante, como podemos notar em : /contá/ e / as história/.

Análise do corpus

Apresentamos a análise das ocorrências fonéticas que caracterizam esse dialeto caipira no corpus de nossa pesquisa. Primeiramente, apresentaremos a análise da música Chico Mineiro, em seguida, a da A cruz do caminho

Chico Mineiro

Autores: Tonico e Francisco Ribeiro

Declamado

Cada vez que me "alembro"

do amigo Chico Mineiro, das viage que nois fazia era ele meu companheiro.

Sinto uma tristeza, uma vontade de chorar, alembrando daqueles tempos que não hai mais de voltar.

Apesar de ser patrão, eu tinha no coração o amigo Chico Mineiro, caboclo bom decidido,

na viola era delorido e era o peão dos boiadeiro.

Hoje porém com tristeza recordando das proeza da nossa viage motin, viajemo mais de dez anos, vendendo boiada e comprando, por esse rincão sem-fim caboco de nada temia.

Mas porém, chegou o dia que Chico apartou-se de mim.

Cantado

Fizemo a urtima viage Foi lá pro sertão de Goiai.

Fui eu e o Chico Mineiro também foi um capatai.

Viajemo muitos dia

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pra chega em Ouro Fino aonde noi passemo a noite numa festa do Divino.

A festa tava tão boa mas ante não tivesse ido o Chico foi baleado

por um home desconhecido.

Larguei de compra boiada.

Mataram meu cumpanheiro.

Acabou o som da viola, acabou seu Chico Mineiro.

Despoi daquela tragédia fiquei mais aborecido.

Não sabia da nossa amizade.

Porque nós dois era unido.

Quando eu vi os seus documentos me cortou meu coração

vim sabê que o Chico Mineiro era meu ligítimo irmão

Análise das ocorrências fonéticas

Nesta etapa, apresentamos um levantamento das ocorrências das variações fonéticas presentes na música, quer cantada, quer declamada, e faremos uma relação de vocábulos comumente empregados na música caipira.

1. Variação Fonética

a)alembro, alembrando – prótese do fonema /a/, forma antiga e popular de lembrar.

b) viage/home – perda da nasalização. /em/ [ein] em final de vocábulo, que se reduz a /e/ grave.

c) nói, Goiai, capatai despoi – ditongação: as sílabas tônicas, quando seguidas de fonema ciciante (s ou z) no final de vocàbulos se ditongam pela geração de um /i/ e perdem o fonema cciciante final.

Observação: O vocábulo nói aparece também na forma nóis, isto porque o /s/ é conservado, às vezes, nos monossílabos tônicos.

d) viajemo, fizemo, passemo _ perda do /s/ final da terminação pessoa-temporal e) passemo – hipercorreção, seguindo as formas: fizemo, viajemo.

f) fazia -neutralização da 1ª pessoa do plural pela 1ª pessoa do singular. (fazia/fazíamos) g) era – neutralização da 1ª pessoa do plural pela 1ª pessoa do singular. (era/éramos) h) dos boiadeiro, das proeza, muitos dia: /s/ desaparece quando final de palavra paroxìtona ou proparoxítona. A pluralidade do nome é indicada geralmente pelo determinativo.

i) chegá, comprá, sabê – queda do /r/ final indicativo de infinitivo

j) tava – aférese: (es)tava. Ocorrência que persiste na língua coloquial oral nos dias atuais: tô, tava, tá.

k) aonde – troca de onde por aonde. Ocorrência atualíssima l) ante, unido –queda do /s/ final,indicativo de plural ou não

m) úrtima – troca do /l/ por /r/ em final de sílaba.

n) cumpanheiro – [õon, om), neutralização do /o/ e /u/, mudança que ocorre geralmente nos vocábulos cuja sílaba inicial é com-.

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o) ligítimo – neutralização do /e/ e /i/ sobretudo se há outro /i/ na sílaba seguinte.

2. Vocábulos

Temos ainda que observar a ocorrência de alguns vocábulos característicos do linguajar caipira:

a) Hai :verbo haver empregado no lugar do verbo ir. Forma que nos remete ao período do trovadorismo português, por volta de 1300.

b) Proeza – façanha – termo ainda usado pelos boiadeiros.

c) Motim – briga, confusão. Termo que se deslocou, nos dias atuais, para indicar rebelião nas prisões.

d) Delorido – dolorido.

e) caboco – s.m. mestiço de branco e índio. Variante de cabocro, caboclo.

f) apartar-se – separar-se, abandonar alguém.

A cruz do caminho

autores; Anacleto Rosas Jr. e Arlindo Pint

Declamado

Puxe a cadeira seu moço, Sente aqui um bocadinho, Vô contá o que significa Aquela cruiz do caminho.

Seu moço todas as história Cuntece por causa do amor, Mas esta é bem diferente, Não tem muiê não sinhô

Onde essa cruiz tá fincada, Naquele pedaço de chão, Há tempo foi interrado, Zico da Conceição.

O Zico da Conceição, Cantadô i bão violero, E tinha a vóiz mais bunita, De tudo o sertão intero.

Quando garrava na viola, E começava a cantá, Cantava moda bunita, Fazia a gente chorá.

Cantado

Um dia o pobre coitado,

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Sentiu-se muito doente Daí então desandô, A imagrecê de repente,

Ansim ficô muito fraco, Já nem podia cantá saiu um dia de casa, Foi o doutor percurá.

I tudo aqui sintiu farta, Daquela tão linda vóiz, Que ele cantava prá nóis.

E o dotor disse prele, Seu Zico da Conceição, Tenha paciência rapaiz, Vancê tá ruim dos purmão.

O rapais veio simbora, Tristonho sem esperança, Parô naquele lugá, Chorano que nem criança,

Ansim o pobre coitado, Não resistiu tanta dor, Rancô da sua garrucha, E mermo ali se matô.

Com ele foi interrado, A sua viola de pinho, Aqui termina a história, Daquela cruiz do caminho.

Análise das ocorrências fonéticas:

Considerando-se a análise feita na primeira música, percebemos que as variações fonéticas se repetem nas mesmas situações de produção linguística:

- ditongação em: cruiz, rapaiz, vóiz, nóis.

- perda do /r/ final ( tanto de v erbos quanto de substantivos) :contá, cantá, chorá, imagrecê, percurá, cantadô,

- neutralização do /e/ inicial em /i/: interrada, imagrecê; sintiu

- queda do /s/ final indicativo de plural , a pluralidade é indicada pelo determinativo: as história, dos purmão;

- mudança do /l/ em final de sílaba em /r/: farta, purmão Encontramos ainda nesta música as ocorrências:

- muiê: vocalização do/lh/ em /i/

- influência da tônica nasal na sílaba pretônica: ansim

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- redução do ditongo medial e final em vogal: vô, intero, desandô, ficô, dotor, parô, rancô, matô;

- mudança do /on/ medial em /u/ : cuntece

- chorano: o /d/ desaparece sempre na sílaba final das formas verbais em : ando, endo, indo;

- mudança da terminação /om/ em /aõ/ : bão

- simbora – sinalefa, originada da expressão : vamos embora / foi embora. Embora recebe o /z/ por contágio de vamos.

-aférese em; (a)cuntece, (i)magina, (a)ranco, (a)garra - rotacismo: mermo

percura- desde tempos remotos encontra-se essa troca do fonema: percura/precura.;

perguntá/ pregunta.

Quanto ao léxico, percebemos elementos do português do século XVI, com; despois, vocábulo arcaico, encontrado na carta de Pero Vaz de Caminha.

Vancê: evolução do pronome de tratamento Vossa Mercê, que chegou aos dias de hoje como você.

Na sintaxe, encontramos o emprego do pronome indefinido – tudo- por todos

Também há o marcador temporal, usado em língua oral, para indicar a sequência de ações:

daí, então

Conclusão

Observou-se que nas duas músicas as ocorrências fonéticas são quase sempre as mesmas.

Importa ressaltar a presença de vocábulos e ocorrências fonéticas e sintáticas presentes na língua oral dos dias de hoje : tá, mermo( especialmente na fala do carioca),;daí, então; aonde empregado pelo onde.

Pode-se afirmar que, dentro das variantes linguísticas, existem as mais e as menos privilegiadas. A variante padrão, considerada como norma e parâmetro para os falantes daquela língua, goza de respeito incondicional e todas as regalias de uma lei. O tratamento recebido pelas variantes não-padrão tem uma série de fatores que influenciam, como a importância histórica e econômica de uma região, ou sua proximidade com a norma padrão.

As músicas aqui apresentadas e analisadas têm um alcance nacional, uma vez que o material para pesquisa foi coletado bem distante de sua terra natal, e servem como um alerta para que haja maior pesquisa na área, antes que as comunidades não consigam mais transmitir, por meio de sua música, a riqueza de sua linguagem, caindo em uma padronização da linguagem nacional que, na verdade, não pode ser atingida. Ainda, parece claro, que, realmente há em todos nós um pouco desse dialeto que tanto procuramos relegar ao esquecimento, uma vez que se observarmos as ocorrências fonéticas encontradas no nosso corpus, muitas delas persistem em nosso falar culto.

Isso nos leva a concluir que todos nós temos um pouco desse caipira que tanto criticamos, e, principalmente, a escola tanto menospreza e faz questão de discriminar.

Referências

AMARAL,Amadeu. O dialeto caipira: gramática e ocabulário. 4ª Ed. São Paulo,HUCTEC;/ Brasília/:

INL, 1981.

BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico – o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 1998.

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CALVET, Loius-Jean. Sociolinguística: uma introdução crítica. São Paulo: Parabola, 2002.

GUIMARÃES, Eduardo. Entrevista a CAMPBELL, Ulisses. Jornal Correio Brasiliense, Brasília, 18 de julho de 2004.

NEPOMUCENO, Rosa. Música caipira – da roça ao rodeio. Coleção todos os cantos. São Paulo:

Ed.30, 1999.

VILLALTA, Luiz Carlos. Uma Babel Colonial. In: Revista Nossa História, ano1, n.5/ março de 2004.

Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2004.

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