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É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é... (Rosa, 2001,p. 27)

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SER TÃO GRANDE: VERDADES

O regional transregional em Grande Sertão: Veredas.

Rafael Campos Quevedo Doutorando em Literatura pela UnB.

Professor do curso de Letras da Faculdade Atenas Maranhense.

rafaelquevedo2001@yahoo.com.br

Resumo

Discussão em torno da representação do sertão como um locus situado geograficamente (a região que vai de Minas ao sul da Bahia) e, ao mesmo tempo, a metáfora do Ser, entendido como totalidade de sentido, só acessível por meio de verdades prismáticas (relativas), no caso, as veredas.

Palavras-Chaves: Regional; Transregional; Sertão.

Abstract

Discussion about the representation of the backland as a locus situated geographically (the region extending from Minas to south of Bahia) and, at the same time, the metaphor of Being, understood as totality of meaning, only accessible by prismatic (relative) truths, in this case, the paths.

Keywords: Regional; Transregional; Backland

É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é... (Rosa, 2001,p. 27)

Das obras de feição regionalista que integram o cânone literário

brasileiro, Grande sertão: veredas é certamente aquela em que a

representação do regional ocorre de maneira mais problemática e complexa. A

excepcionalidade dessa representação está ligada ao êxito com que, nessa

obra, ocorre a articulação do local e do universal e, sobretudo, no modo como

tal articulação é executada tendo em vista a também complexa e feliz segunda

articulação do livro: a da forma com o conteúdo. Este breve artigo discutirá,

portanto, o tema da dupla face do regional em Grande sertão: veredas (o

regional/transregional) tendo em vista o Sertão como metáfora do Ser,

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categoria metafísica que se refere à representação conceitual da totalidade dos seres existentes. As veredas seriam, por sua vez, o conhecimento não total, mas sim parcial, relativo, que corresponderia ao saber possível ao sujeito cognoscente que, na impossibilidade de apreensão do Todo, limita-se a percepções prismáticas do Ser.

A lógica subjacente ao discurso do Grande sertão: veredas é, como nos revela a epígrafe deste artigo, a de que “tudo é e não é”. Assim, o livro é regional e ao mesmo tempo não é. É, porque a travessia feita por Riobaldo pode ser situada no percurso que vai de Minas ao sul da Bahia e, além disso, a fala do jagunço Tatarana contém marcas do falar do sertanejo de Minas Gerais.

Ao mesmo tempo não é porque esse lugar localizável, no livro, é símbolo daquilo que o transcende. O que transcende o situado é o que é encontradiço em qualquer lugar, é o que está em tudo. O que transcende o falar regional seria alguma espécie de língua pré-babélica que conteria, em si, todas as línguas possíveis. Grande sertão: veredas é o protótipo do livro total cujo discurso sobre a parte torna-se pretexto para a reflexão acerca do todo.

Comecemos pelo título, portanto, onde esse projeto primeiro se esboça: Grande Sertão: Veredas. É possível, já numa captação meramente empírica desse enunciado, tomar os dois pontos como ícone da travessia (“Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”

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) e índice que torna contíguos os dois “espaços” dessa mesma travessia: o transregional (o Ser) e o regional (a vereda). O Ser (Sertão) é grande porque é o Todo. As veredas são as “verdades”, como sugere a relação quase anagramática entre as duas palavras

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. Dessa forma, o título mimetiza o sentido da obra que pode ser assim sintetizado: o Todo nunca é acessível em si mesmo, mas somente por meio de seus prismas. Esses prismas refratam o Todo em verdades relativas (as veredas), mas guardam ainda, com ele, uma relação de pertencimento. De maneira que falar do regional (a vereda, a verdade relativa) é acenar para o Ser, esse Ser tão Grande!

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ROSA, 2001, p. 80

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Para que “veredas” constituísse um anagrama perfeito de “verdades” bastaria que fosse

acrescentado um ‘d’ à primeira palavra.

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Eis o projeto do livro antecipado pelo título e sustentado ao longo da obra: a aventura do viver/pensar de um jagunço-filósofo no encalço do sentido totalizante do Ser, mas que só esbarra em verdades relativas. É à confirmação dessa “vereda”, desse olhar sobre a obra, que nos ateremos ao logo desta exposição.

A índole filosófica de Riobaldo manifesta-se em várias passagens, entre as quais:

Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia.

(ROSA, 2001, p.26)

O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo o mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre – o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém! (ROSA, 2001, 30-31pp.)

A condição filosófica do narrador protagonista está intrinsecamente ligada, por sua vez, ao tipo de relação travada por Riobaldo com sua realidade circundante, pois, da mesma maneira como na Metafísica o escopo último da reflexão é a pergunta sobre o sentido do Ser, no caso de Riobaldo sua indagação é, em última instância, um pensar o Sertão. Tomaremos, portanto, o locus onde é encenado o enredo da travessia de Riobaldo e, por meio de muitas voltas em torno dos seus vários sentidos, tentaremos demonstrar as relações entre o regional e o universal no Grande sertão: veredas.

Comecemos, portanto, com a seguinte passagem em que Willi Bolle, citando Walnice Galvão, resume a possível origem do termo sertão:

A palavra já era usada na África e até mesmo em Portugal. [...] Nada tinha a ver com a noção de deserto (aridez, secura, esterilidade) mas sim com a de ‘interior’, de distante da costa: por isso o sertão pode até ser formado por florestas, contanto que sejam afastadas do mar.

[...] O vocábulo se escrevia mais frequentemente com c (certam e certão) [...] do que com s. [G. Barroso] vai encontrar a etimologia correta no Dicionário da Língua Bunda de Angola, de Frei Bernardo de Carnecatim (1804), onde o verbete mulcetão, bem como sua corruptela certão, é dado como locus mediterraneus, isto é, um lugar que fica no centro ou no meio das terras. [...]. Os portugueses levaram-na para sua pátria e logo trouxeram-na para o Brasil, onde teve longa vida, aplicação e destino literário. (GALVÃO apud BOLLE, 2004, p. 48)

Do ponto de vista regional, o sentido de sertão como locus

mediterraneus está muito mais próximo do que é a região descrita por

Guimarães Rosa do que a acepção de sertão como deserto, aridez, “desertão”.

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Esta seria mais condizente, por sua vez, com o sertão representado por Graciliano Ramos em Vidas secas. Isso porque o sertão roseano não é só aridez, mas também extensas paisagens verdes banhadas pelo São Francisco e afluentes, estando essa região, contudo, longe do litoral, ou seja, no interior.

Sob a perspectiva do “transregional”, o sertão como experiência do real, também não se confunde com escassez, mas sim com prolificidade de questões. Em ambos os casos, os protagonistas de Vidas secas e Grande sertão: veredas experienciam, no íntimo de suas situações de homens no mundo, uma espécie de abismamento existencial, ou seja, veem-se forçados a refletir sobre suas condições de seres pensantes. Tal introspecção possui relação direta com o mundo (sertão) em que estão inseridos. Por ser o sertão roseano um locus ficcional (e também geográfico) de dimensões metafóricas muito amplas, o jagunço Riobaldo é muito mais fecundo em questões existenciais, ao passo que, em Vidas secas, a desertificação da representação espacial repercute diretamente sobre a estreiteza de pensamento do retirante Fabiano. Nas duas situações, contudo, o sertão exige daquele que o vive o abismamento em si mesmo. Como diz Riobaldo: “Sertão é o sozinho.

Compadre meu Quelemém diz: que sou muito do sertão? Sertão: é dentro da gente.” (ROSA, 2001, p. 24: grifo nosso).

Tal tipo de relação, que envolve eu e realidade exterior num processo de espelhamento reflexivo, interfere diretamente sobre o problema da linguagem. Tanto no romance de Graciliano quanto no de Rosa, seus protagonistas, pela força da pena de seus autores, forçam a linguagem a radicalizar seu poder de mímesis, entendida aqui como representação do real e como autonomia da linguagem, concomitantemente.

Como já é possível perceber, os personagens de Graciliano e de Guimarães Rosa são forçados a aprenderem com o sertão, seja porque a miséria impele Fabiano ao limite de sua condição humana e, já no umbral da animalidade, o faz defrontar diretamente com o problema de o que é ser homem ( “- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta [...] – Você é um bicho, Fabiano”

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); seja porque, cenário do embate entre as forças cósmicas (o bem e o mal, o amor e o ódio, guerra e paz, deus e o diabo etc.) Riobaldo, nas

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RAMOS, 2009, 18-19 pp.

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recordações de seu itinerário existencial, é levado a refletir profundamente sobre o sentido da vida. Em ambos os casos, a linguagem protagoniza a história, seja na “isotopia” com relação à realidade, seja na criação de uma

“nova língua” que, no caso roseano em especial, pudesse encorpar, com frescura e vitalidade, a profundidade das reflexões do narrador Riobaldo

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. Acerca dessa questão, vale conferir o interessante comentário do teórico Vilém Flusser sobre a obra de Guimarães Rosa:

O português ressurge do seu sono de duas direções absurdamente incongruentes: do sertão e das bibliotecas. É como se tivessem guardado a língua de Cícero e de Camões simultaneamente em estufa e em geladeira para conservá-la. No sertão o português retomou contato com a natureza bruta e, com a assistência de elementos índios e bantus, ensaiou como que uma terceira primitividade. (FLUSSER, 2002, p. 157)

Ainda nessa perspectiva da concreção sígnica dos elementos tematizados pelo romance, o sertão é sempre apontado por Riobaldo como uma experiência de travessia. Várias são as formas, pois, em que a própria linguagem manifesta a condição in media res da reflexão sobre a vida. Já citamos, por exemplo, o trecho em que o narrador diz estar o real situado no meio da travessia. Outra presença constante é a indagação acerca da realidade do diabo: sua existência, sua forma de ação, a possibilidade do pacto etc. Se, ao que parece, a conclusão (provisória) é a de que o diabo não existe enquanto ser autônomo mas vive no interior do homem, então a própria linguagem mimetiza essa posição na medida em que o ‘demo’ surge no meio da palavra redemoinho, naquele que pode ser considerado o mais importante dos Leitmotive da obra: “o diabo na rua no meio do reDEMOinho”

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.

O fato de o sertão representar uma posição de mediania espacial é indicativo, a nosso ver, da própria condição humana diante das grandes questões cosmogônicas e teleológicas. Explicando: ser homem no mundo

4

O seguinte trecho extraído de Hermenêutica e poesia corrobora, de maneira sintética, nossas observações sobre a relação sertão-pensamento-linguagem na obra Grande sertão: veredas:

“Para os críticos, quando ainda não havia conceitos formados [...], vigorou a pré-concepção de que o romance de Guimarães Rosa era regionalista [...]. Mas o sertão não era o sertão localizado, regionalista. E o jagunço Riobaldo, longe de ser um matuto, tinha a introspecção de um pensador [...] Falava todas as línguas, uma vez que a linguagem de Grande sertão:

veredas, uma narrativa que o próprio personagem faz, articula termos do latim, do francês, do alemão, do italiano, transformados” (NUNES, 2007, pp. 76-77).

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A importância desse mote para o Grande sertão: veredas pode ser constatada logo na página

de apresentação do livro onde esse enunciado aparece como uma espécie de epígrafe.

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significa, a rigor, nada saber nem sobre a própria origem nem sobre o fim para o qual caminha. Estar no meio, nesse sentido, significa estar equidistante do começo (origem) e do fim (telos). Por mais que se tente avançar ao sentido último das coisas, há sempre uma região inalcançável, insondável pela cogitação humana. Isso se insinua, no contexto da obra, na primeira travessia da jagunçada pelo lugar conhecido como Liso do Susssuarão, esse sim, inóspito ao extremo, ao ponto de fazer sucumbir jagunços e cavalos acostumados a toda sorte de intempéries. Mesmo guiados pelo grande chefe Medeiro Vaz, os jagunços são forçados a voltar, regresso esse que decreta, a princípio, a impossibilidade de se chegar ao termo das coisas. Somente na segunda tentativa, dessa vez liderada pelo “novo” Riobaldo pós-(suposto)pacto, é que é possível a travessia por esse lugar, símbolo das regiões insondáveis ou, se preferirmos, das situações-limite da existência humana, onde é necessário recorrer a toda reserva possível de forças para continuar insistindo na caminhada da vida. O êxito da passagem pelo Liso não significa, no entanto, que o Sertão seja algo que possa ser “dominado” ou, em termos metafóricos, que o real possa ser conhecido em sua plenitude pois, como é dito na obra: “Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; [...]O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho.[...] O sertão está em toda a parte”. (ROSA, 2001, p. 24)

Sobre a incompletude da vida e do homem, aliás, Riobaldo também notou ao dizer: “O senhor já sabe: viver é etcétera...” (ROSA, 2001, p.110) e

“Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.” (ROSA, 2001, p.39). O tema da impossibilidade de se chegar ao fim aparece, também, representado na cantiga entoada pelos jagunços em suas viagens, que diz:

Olererê, Baiana, eu ia e não vou mais...

Eu faço que vou

lá dentro, oh Baiana,

e volto do meio p’ra trás...

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Como se não bastassem tais indícios, até o próprio suporte da mensagem, o livro, corrobora para pôr em destaque o valor do meio, na medida em que, tal como já foi notado pela crítica do Grande sertão, todos os fatos da história são revelados por Riobaldo, sem que o leitor perceba integralmente, até o meio, por assim dizer, material do livro. Inclusive o segredo de Diadorim, que só é desvelado explicitamente no final do livro, já teria sido antecipado pelo narrador, de maneira um tanto discreta, na primeira metade da obra. De maneira que a segunda metade desenovela o fio da trama que se encontra enovelado demais para que o leitor se dê conta de tudo, numa primeira leitura, até a metade do romance

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. Aliás, o próprio Riobaldo adverte seu interlocutor a esse respeito:

Só sim? Ah, meu senhor, mas o que eu acho é que o senhor já sabe mesmo tudo – que tudo lhe fiei. Aqui eu podia pôr ponto. Para tirar o final, para conhecer o resto que falta, o que lhe basta, que menos mais, é pôr atenção no que contei, remexer vivo o que vim dizendo.

Porque não narrei nada à-toa: só apontação principal, ao que crer posso. Não esperdiço palavras. Macaco meu veste roupa. O senhor pense, o senhor ache. O senhor ponha enredo. Vai assim, vem outro café, se pita um bom cigarro. Do jeito é que retorço meus dias:

repensando. (ROSA, 2001, 324-325pp.).

Ao dizer que poderia dar ponto mas não o fez, o narrador é, no fundo, coerente com a cosmovisão assumida na obra, a de que as coisas, na verdade, não possuem termo. Ocorre que o contar (o narrar) é, para Riobaldo, o correlato de existir. Da mesma forma, portanto, que o viver é sinônimo de incompletude, o relatar, em princípio, nunca tem fim, pois a imaginação é capaz de desdobrar o fato em nuances não percebidas, assim como a memória, por seu turno, altera o fato, ao resgatá-lo. A aventura do viver é correlata, digamos assim, a do contar. Tal correlação é atualizada numa variação de outro mote caro ao livro, a expressão “viver é muito perigoso”. Eis a simetria a que nos referimos:

Viver é muito perigoso;

Contar é muito, muito dificultoso.

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Essa é a razão (além é claro, do inusitado da linguagem roseana) que faz com que nós,

leitores, tenhamos tanta dificuldade durante uma boa parte da metade inicial do livro e que,

atravessada essa resistência, flagremo-nos tão enlaçados pelo fluxo da narrativa. Consciente

desses estágios da leitura, o narrador/autor admoesta seu interlocutor/leitor para que não

desista da audição/leitura e siga adiante: “Eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso, muito

entrançado. Mas o senhor vai avante [...]” (ROSA, 2001, p.116)

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Por que contar é dificultoso? Porque contar é tentar achar o sentido do vivido. Narrar é uma maneira de tentar chegar a uma explicação; é uma forma de submeter o caos da experiência concreta a uma ordenação lógica (começo, meio e fim) e a linearidade da linguagem, nesse sentido, concorre no auxílio dessa ordenação. Desde o início a proposta de Riobaldo é, assumidamente, falar daquilo sobre o qual ele não sabe por inteiro. Seu saber é prismático, parcial, é uma verdade, uma vereda:

Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão!

Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção. (ROSA, 2001, p.116)

A constatação de que o real só é acessível por seus prismas e que cada sujeito, em princípio, é um prisma, leva o narrador ao mesmo tempo ao relativismo e à angústia diante da impossibilidade do acesso à Verdade única.

Ao dizer ao interlocutor: “o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães...

O sertão está em toda a parte” (ROSA, 2001, p.24), temos um bom exemplo, bem à maneira de Riobaldo, da constatação a que nos referimos. Em vários momentos o jagunço-filósofo expõe ao seu interlocutor o desejo de que, no mundo, os opostos fossem entidades devidamente apartadas; que o mal, por exemplo, estivesse separado do bem e que o real se assemelhasse, assim, a uma espécie de território onde as fronteiras entre os contrários fossem muito claras e distintas. Contudo, sua reflexão (que decorre de sua experiência) verifica que, na natureza, não é assim que acontece:

Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca-doce pode de repente virar azangada – motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno sempre, com mudas seguidas, de manaíbas – vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandiocabrava, também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que isso é? [...] o diabo dentro delas dorme: são o demo. Se sabe? E o demo – que é só assim o significado dum azougue maligno – tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está misturado em tudo. (ROSA, 2001, p.27)

Comparada a essa percepção da indistinção dos opostos, Riobaldo

sinaliza para a imagem de mundo que almeja, mundo esse em que, conforme

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assinalei anteriormente, as coisas estão muito bem delimitadas, “os pastos demarcados”:

Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado... (ROSA, 2001, p.237)

O narrador do Grande sertão: veredas sonda o sentido da vida e constata apenas possibilidades de sentido. O pensar humano é sempre um estar no meio. Como o sertão entendido como locus mediterraneus, existir é nunca sabermos onde tudo começa e onde as coisas findam. O Todo é muito grande para ser apreendido, por isso, tudo o que podemos fazer é explorarmos suas veredas. Além disso, é próprio da condição humana estar sempre incompleta, nunca terminada. E, ainda, o sentido das coisas, na natureza, não está fixado clara e distintamente à compreensão, de maneira que a separação entre o mal e o bem é tarefa humana, depende de uma avaliação ética que a natureza, em si mesma, não comporta (a mandioca má advém da boa e vice- versa). Se isso tudo faz parte do Sertão, claro está que o Sertão “é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar” (ROSA, 2001, p.41). Por isso o sertão roseano é transregional: “A minha terra era longe dali, no restante do mundo. O sertão é sem lugar”(ROSA, 2001, p.370). Por isso as verdades sobre o Ser são como veredas no Sertão, pois: “Natureza da gente não cabe em certezas” (ROSA, 2001, p. 433) e, afinal, a lógica do real, pelo menos a que a nossa compreensão constata, é a de que tudo é e não é:

“Viver é muito perigoso; e não é não”. (ROSA, 2001, p.328)

Referências:

BOLLE, Wille. Grandesertão.br. São Paulo: Editora 34, 2004.

FLUSSER, Vilém. Da religiosidade. A literatura e o senso de realidade. São Paulo: Escrituras, 2002.

NUNES, Benedito. Hermenêutica e poesia. O pensamento poético. Belo Horizonte; Editora da UFMG, 2007.

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, 2009.

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ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

2001.

Referências

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