C A S O C L Í N I C O
S Í N D R O M E D O L O R O S O R E G I O N A L C O M P L E X O T I P O I D O J O E L H O
:
C A S O C L Í N I C OSafira Cabete,
*Inês Machado Vaz,
*Afonso Rocha,
**Iva Brito
***Introdução
O Síndrome Doloroso Regional Complexo (SDRC) tem tido diferentes designações ao longo dos anos, incluindo causalgia, atrofia de Sudeck, síndrome ombro-mão, algoneurodistrofia e distrofia simpá-tica reflexa, o que reflecte a confusão em torno des-ta condição e a ausência de um conhecimento exacto da sua etiopatogenia. Uma definição sim-ples e de fácil compreensão desta entidade foi apre-sentada em 1984 por Schutzer and Gossling1que a descreve como uma resposta exagerada à lesão, ge-ralmente de uma extremidade, manifestada por dor intensa e desproporcionada, distúrbios vasomoto-res, atraso na recuperação funcional e alterações tróficas. Ultimamente, este distúrbio foi designado como síndrome doloroso regional complexo tipo I e II pela International Association for the Study of Pain.2,3A diferença entre os dois tipos reside na au-sência (tipo 1) ou na presença (tipo 2) de lesão ner-vosa periférica. Este síndrome tem sido descrito como estando presente quando um estímulo nóxi-co, que pode ser minor, causa uma resposta
exces-siva e desproporcionada, com dor regional e alte-rações sensitivas, associada a altealte-rações na tempe-ratura e na coloração da pele, edema, hipersudo-rese e alterações tróficas (pele, unhas e osso) no membro afectado.2,4
Os eventos nóxicos mais frequentemente desen-cadeadores deste distúrbio incluem traumatismos
major, tais como fractura ou luxação, ou
trauma-tismos minor, como entorse ligeira ou lesões dos
te-cidos moles e da pele. Entre outros eventos poten-cialmente precipitantes destacam-se ainda inter-venções cirúrgicas prévias, períodos de imobiliza-ção prolongados, entre outros.2,5
A incidência e prevalência do SDRC não estão claramente conhecidas. Estima-se que esta síndro-me ocorra de forma variável em 1 de 2.000 trauma-tismos envolvendo uma extremidade. Ocorre em qualquer grupo etário, sendo o atingimento dos membros inferiores mais frequente em crianças e dos membros superiores em adultos,6à excepção *Interno complementar de Medicina Física e de Reabilitação do
Hospital de São João
**Assistente Hospitalar de Medicina Física e de Reabilitação do Hospital de São João
***Assistente Graduada de Reumatologia do Hospital de São João. Assistente da Faculdade de Medicina do Porto
Resumo
O Síndrome Doloroso Regional Complexo (SDRC) é caracterizado por uma resposta exagerada a lesão de uma extremidade, com dor desproporcionada (muitas vezes com alodinia) em relação ao evento precipitante, alterações autonómicas, tróficas e fre-quentemente atraso na recuperação funcional. Os autores descrevem um caso clínico de SDRC do joe-lho, com apresentação e evolução clínica atípica e a propósito do qual efectuam uma revisão actual sobre esta condição e métodos de tratamento dis-poníveis.
Palavras-Chave: Síndrome Doloroso Regional
Complexo; Algoneurodistrofia; Joelho.
Abstract
Complex regional pain syndrome is characterized by an over reaction to injury of one extremity, with severe pain (many times with allodynia), autono-mic disturbance, trophic changes and delayed functional recovery. The authors present a case re-port of complex regional syndrome of the knee with atypical clinical onset and course, and review of the current knowledge of the condition and outli-ne the methods of treatment available.
Keywords: Complex Regional Pain Syndrome;
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do joelho cuja incidência do SDRC é maior em adultos, sobretudo do sexo feminino.7
Apesar da etiopatogenia do SDRC permanecer desconhecida, tem sido atribuído ao Sistema Ner-voso Simpático um papel preponderante.5
O tratamento desta síndrome deve ser realizado com vigilância médica regular e consiste na com-binação de terapia farmacológica e programa de reabilitação funcional. A aplicação precoce de tra-tamento, assim como uma boa coordenação das medidas terapêuticas, são essenciais.
Caso Clínico
FMFR, 28 anos, sexo masculino, caucasiano, natu-ral e residente no Porto. Em 05/12/06 sofreu feri-mento por arma de fogo na perna direita do qual resultou fractura cominutiva e exposta da tíbia e perónio, tendo sido submetido no mesmo dia a desbridamento da ferida e osteotaxia da fractura através da colocação de um fixador externo (Figu-ra 1). Houve necessidade de reintervenções cirúr-gicas a 28/12/06 (extracção de fixadores externos e colocação de aparelho gessado cruropodalico) e a 12/02/07 (osteossíntese com placa e parafusos). Recorreu pela primeira vez à consulta de Medicina Física e de Reabilitação da nossa instituição a 22/08/07 para reeducação da marcha. Referia quei-xas de dor difusa do joelho direito associada à mar-cha e diminuição de força muscular dos membros inferiores. Ao exame objectivo, apresentava atrofia
do quadricípede bilateral, joelhos varos, sem der-rame, sem sinais inflamatórios, mas com crepita-ção intra-articular a nível da face anterior em todo o arco do movimento do joelho direito. Efectuava marcha com apoio de 2 canadianas. Nesta altura, iniciou tratamento de hidroterapia com boa evo-lução clínico-funcional, readquirindo capacidade de marcha totalmente independente. Em Dezem-bro de 2007 teve alta dos tratamentos com indica-ção para manter programa regular de nataindica-ção/hi- natação/hi-droginástica no exterior.
Foi reavaliado de novo em consulta externa em Junho de 2008, referindo quadro progressivo de gonalgia de carácter mecânico com cerca de qua-tro meses de evolução, com dor no compartimen-to anterior do joelho direicompartimen-to, compatível com pro-vável sobrecarga femuro-patelar. Ao exame objec-tivo, o joelho direito apresentava edema discreto, dor à palpação e à mobilização da rótula, crepita-ção anterior (femuro-patelar) nos últimos 20-30º de flexão, manobras rotulianas francamente po-sitivas e limitação nos últimos graus da flexão (arco de movimento de 130º). Funcionalmente, era ca-paz de marcha autónoma mas referia que, nos pe-ríodos de exacerbação álgica, necessitava de apoio de uma canadiana. Foi então requisitado exame ra-diográfico dos joelhos que mostrou rarefacção ós-sea mosqueada subcondral no joelho direito (Figu-ra 2). Pa(Figu-ra melhor ca(Figu-racterização da lesão requisi-tou-se tomografia computorizada do joelho direito que mostrou «alteração marcada da trabeculação
Figura 1. Radiografia do membro inferior direito que
mostra fractura cominutiva da tíbia e perónio.
Figura 2. Radiografia do joelho direito que mostra
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óssea a nível do terço distal do fémur e proximal da tíbia, com múltiplas lesões líticas, sem bordo es-clerótico, com atingimento metaepifisário, compa-tível com processo algoneurodistrófico a esclare-cer» (Figura 3). Foi solicitado o parecer da Reuma-tologia e decidiu-se solicitar estudo analítico que se revelou normal e cintilograma ósseo que mos-trou hiperfixação do radiofármaco na projecção do joelho direito, mais evidente na fase tardia (Fi-gura 4). O doente iniciou tratamento farmacológi-co farmacológi-com calcitonina farmacológi-conforme proposto na farmacológi- consul-ta de Reumatologia e programou-se o programa de reabilitação. Foi aconselhado ao doente fazer re-pouso relativo de actividades de provocação,
des-carga com canadiana em caso de exacerbação das queixas dolorosas e a evitar actividades de alto im-pacto.
Na última consulta de MFR, em Outubro de 2008, o doente apresentava melhoria franca clíni-ca e funcional.
Discussão
A SDRC, tal como o nome indica, é uma entidade complexa e por vezes de difícil diagnóstico.
A apresentação usual desta síndrome é caracte-rizada por dor geralmente intensa e desproporcio-nada aos achados clínicos, alterações sensitivas (parestesias e alodinia), perturbação da função motora, alterações vasomotoras e autonómicas (alterações da temperatura e coloração da pele, edema, hipersudurese, alterações tróficas) e dis-túrbios psicológicos.2,5-7Classicamente a evolução desta síndrome pode ser dividida em 3 estadios, embora o último possa estar ausente. O primeiro estadio (fase aguda), caracteriza-se por hiperemia e dor, dando lugar, ao fim de 3 a 6 meses, ao segun-do estadio (fase distrófica) caracterizasegun-do por rigi-dez articular e retracções músculo-tendinosas, po-dendo evoluir para cura ou deixar sequelas (fase atrófica).2,5,7
No entanto, como evidenciado neste caso clí-nico, a apresentação e evolução clínica do SDRC tipo 1 do joelho pode revelar-se atípica, semelhan-te a um quadro de sobrecarga pasemelhan-telo-femoral, o que vem apoiar vários casos descritos na literatu-ra.6,8 De facto, os artigos de revisão sobre SDRC do joelho descrevem que este está geralmente asso-ciado a envolvimento patelo-femoral produzindo
Figura 3. Tomografia computorizada que mostra
alteração marcada da trabeculação óssea a nível do terço distal do fémur e proximal da tíbia.
Figura 4. Cintilografia óssea que mostra hiperfixação do radiofármaco na projecção do joelho direito
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diminuição da mobilidade patelar, dor à palpação da rótula e retináculo e hipersensibilidade.6,9
O diagnóstico de SDRC baseia-se na conjugação dos seguintes parâmetros: presença das manifes-tações clínicas anteriormente enunciadas, ausên-cia de parâmetros analíticos inflamatórios, pre-sença de sinais imagiológicos típicos (como a os-teopenia subcondral mosqueada) e aumento de captação na cintigrafia óssea com Tc99, sobretu-do na fase aguda.2,5,9A resposta ao bloqueio sim-pático e à termografia são também meios úteis para o diagnóstico de SDRC nos casos duvidosos.4 Neste caso, em que as manifestações clínicas foram atípicas, os exames auxiliares de diagnósti-co revelaram-se muito importantes para o estabe-lecimento do diagnóstico.
As principais hipóteses de diagnóstico que ini-cialmente se colocaram, foram a síndrome patelo--femoral e o SDRC. Mas outros diagnósticos care-ceram de exclusão, nomeadamente afecções infla-matórias/infecciosas, tumorais primárias ou se-cundárias e síndrome conversivo. Atendendo aos antecedentes traumáticos, ao quadro clínico de gonalgia persistente com ausência de sintomato-logia constitucional, às características imagiológi-cas típiimagiológi-cas e exclusão laboratorial e imagiológica de outro tipo de patologia, estabeleceu-se o diagnós-tico de SDRC tipo 1.
Em relação à etiologia, pode especular-se entre o traumatismo inicial decorrente de lesão por arma de fogo e as várias intervenções cirúrgicas com pe-ríodos de imobilização, como sendo os potenciais factores desencadeantes do SDRC tipo 1.
Embora descrito na literatura que os sintomas tipicamente se manifestem até 3 meses após o evento desencadeador,6 o diagnóstico de SDRC de-verá também ser considerado em síndromes dolo-rosas de apresentação tardia, como se constata pelo presente caso clínico.
O tratamento desta entidade clínica permane-ce em discussão. Diversos agentes farmacológicos têm sido sugeridos com resultados contraditórios nos diversos ensaios clínicos realizados. Entre os fármacos potencialmente eficazes destacam-se: analgésicos, anti-inflamatórios não esteróides, corticosteróides, opióides, anticonvulsivantes, an-tidepressivos tricíclicos, antireabsortivos ósseos como os bifosfonatos e a calcitonina, propranolol e nifedipina.5,6,9 Não está estabelecido um fármaco de primeira linha para o tratamento desta entida-de clínica, a nossa escolha recaiu sobre a calcito-nina pelos bons resultados obtidos com este
fár-maco em casos semelhantes.
Em combinação com o tratamento farmacoló-gico, um programa de reabilitação funcional deve ser planeado e instituído de forma a se obter um melhor resultado clínico funcional.1,2,4,5,8
O tratamento fisiátrico tem como principais objectivos o controlo da dor, redução de edema, recuperação ou manutenção da mobilidade ar-ticular e força muscular, e melhoria da capacida-de funcional do membro afectado. A prescrição deve ser individualizada e em conformidade com o estádio da afecção. Algumas das modalidades te-rapêuticas que se utilizam estão descritas no Qua-dro I.2,5,8
No caso de refractariedade às intervenções far-macológicas e não farfar-macológicas acima descritas, e caso a gravidade do quadro álgico o justifique, são preconizadas técnicas terapêuticas invasivas como o bloqueio simpático e, mais recentemente, o bloqueio axilar temporário.7,10A estimulação da medula espinhal tem demonstrado alguma eficá-cia nos casos refractários ao tratamento conser-vador.8,9
Correspondência para Safira Cabete
Rua Marechal Saldanha, nº67 – 2ºdto 4150-655 Porto
Tlm: 916 234 239
E-mail: safiracabete@gmail.com
Quadro I. Tratamento de reabilitação do SDRC
Objectivos Modalidades terapêuticas
Controlo de edema Manobras posturais Massagem drenagem Pressoterapia
Controlo da dor Termoterapia (Frio e Calor) Electroterapia (Ex:TENS, US) Banhos de contraste Hidroterapia com turbilhão Manutenção ou Cinesioterapia/
ganho de mobilidade /hidrocinesioterapia articular e (Mobilização passiva e activa, força muscular exercícios de fortalecimento
muscular) Reeducação funcional Técnicas de terapia
ocupacional
Treino de actividades de vida diária
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Referências
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